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Psicologia para América Latina

On-line version ISSN 1870-350X

Psicol. Am. Lat.  no.15 México Dec. 2008

 

 

Psicologia social do trabalho e cotidiano: a vivência de trabalhadores em diferentes contextos micropolíticos

 

Social psychology of work and everyday life: the experience of workers in different micro-political contexts

 

Psicología social del trabajo y cotidiano: la vivencia de trabajadores en diferentes contextos micropolíticos

 

 

Leny Sato; Marcia Hespanhol Bernardo; Fábio de Oliveira

Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, (Brasil)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo pretende ilustrar a perspectiva de uma psicologia social que se dedica aos estudos do trabalho a partir do cotidiano, âmbito privilegiado dos processos micropolíticos. Após situar a psicologia social do trabalho, examina três exemplos de pesquisa em diferentes contextos (empresas toyotistas, feira livre e cooperativas), nos quais se evidenciam distintos modos de vivenciar o trabalho, de agir e de produzir sentidos. São apontadas as contradições do discurso da flexibilidade e as formas de resistência dos trabalhadores nas empresas toyotistas, descrevem-se os processos organizativos da feira livre, que ocorrem na tensão entre cooperação e competição, e comparam-se as vivências como cooperados pautadas pelas relações cotidianas de trabalho estabelecidas em cooperativas distintas.

Palavras-chave: Psicologia social do trabalho, Cotidiano, Toyotismo, Feira livre, Cooperativismo.


ABSTRACT

This article illustrates the standpoint of a social psychology oriented to investigating work in everyday life as a particular micro-political process. After presenting the social psychology of work, three diverse research contexts are examined &– toyotist companies, street market, and cooperatives &– in which varied forms of experiencing work, acting and producing meanings stand out. The contradictions contrasts between the discourse on flexibility and the forms of resistance among workers at toyotist companies are highlighted; the organizational processes of the street market characterized by the tension between cooperativeness and competitiveness are featured; and the members' experiences built from everyday work relationships in distinct cooperatives are compared. 

Keywords: Social psychology of work, Everyday life, Toyotism, Street market, Cooperativism.


RESUMEN

El artículo pretende ilustrar la perspectiva de una psicología social que se dedica  a los estudios del trabajo a partir del cotidiano,  ámbito privilegiado de los procesos micropolíticos.  Después de ubicar la psicología social del trabajo, examina tres ejemplos de investigación en contextos diferentes (empresas toyotistas, mercados móviles y cooperativas), en los cuales se evidencian diversas formas de vivenciar el trabajo, de actuar y de producir sentidos. Se señalizan las contradicciones del discurso de la flexibilidad y las formas de resistencia de los trabajadores en las empresas toyotistas, se describen los procesos organizativos del mercado móvil, que suceden en la tensión entre cooperación y competición, y se comparan las vivencias como asociados de la cooperativa pautadas por las relaciones cotidianas de trabajo establecidas en cooperativas diferentes.

Palabras clave: Psicología social del trabajo, Cotidiano, Toyotismo, Mercado móvil, Cooperativismo.


 

 

1. A psicologia social do trabalho

De acordo com Sato (2003), consolidaram-se no Brasil dois grandes campos teórico-práticos  no interior da psicologia, campos que constroem de modos distintos o trabalho humano como objeto. O primeiro “abraça problemas e interesses postos pelo corpo gerencial e pelo capital, articulando-se, por exemplo, com a administração e com a engenharia” (p. 168). O segundo vale-se da leitura da psicologia social &– que se articula com as ciências sociais e visa a compreender o trabalho a partir do olhar de quem o vivencia, o trabalhador.

Diferenças de leitura também foram evidenciadas por Spink (1996), que aponta duas tradições de compreensão do que é uma organização. De um lado, uma tradição instrumental, de inspiração gerencial, que compreende a organização como uma estrutura que se apresenta ao psicólogo como fonte de problemas de gestão a serem resolvidos. De outro, a perspectiva de uma psicologia do trabalho que toma a organização um fenômeno psicossocial.

Historicamente, a perspectiva da psicologia vinculada aos interesses empresariais e gerenciais &– que teve origem na psicologia industrial da virada para o século XX e é denominada no Brasil e em vários outros países como psicologia organizacional &– demarcou o campo da psicologia voltado para as questões do trabalho e dos processos organizativos e permanece hegemônica na atualidade. Ainda que se possam observar mudanças em suas propostas ao longo desse tempo &– que levaram essa vertente da psicologia a deixar de ser apenas uma área relacionada à aplicação de técnicas e a incorporar atividades de pesquisa &–, tais metamorfoses nas práticas adotadas “não refletem uma guinada em termos de objetivos ou de concepção” (Sato, 2003, p. 168). Isso porque o objetivo continua sendo o de fornecer subsídios para buscar a eficiência e a produtividade.

Por outro lado, na vertente da psicologia social , interessa compreender fenômenos como: “identidade, processos de interação social, processos de percepção e de cognição social e a subjetividade” (Sato, 2003, p. 169). Em geral, tais fenômenos são estudados entre trabalhadores e trabalhadoras, focalizando os momentos da produção e da reprodução em diversos contextos de trabalho. Além de estudos internacionais que se tornaram referências nesse campo (por exemplo, Weil, 1996), temos, no Brasil, estudos importantes, no âmbito da psicologia, que focalizam o universo social, os valores, as trajetórias e as aspirações de trabalhadores e trabalhadoras das classes populares, como os de Rodrigues (1978), Mello (1988) e Fonseca (2000), que têm por objeto a vivência de trabalho e a condição dos trabalhadores na sociedade hierarquizada.

Já o olhar para aspectos relacionados ao conteúdo e à organização dos processos de trabalho que possam trazer conseqüências negativas para os trabalhadores, no caso do Brasil, foi possibilitado por um importante movimento que construiu o campo da saúde do trabalhador, forjado a partir do movimento sindical e dos serviços públicos de saúde (Ribeiro, Lacaz, Dutra & Clemente, 2002; Sato, Lacaz & Bernardo, 2006).  A saúde, compreendida como direito e não como recurso necessário à produção, tem sido o mote a partir do qual diversas reivindicações de melhorias das condições de trabalho e de direitos sociais são feitas. Embora emerja no campo da saúde coletiva e das práticas em saúde pública, a leitura sobre a relação trabalho e saúde está incluída no segundo campo teórico prático (a vertente da psicologia social), conforme Sato (2003), pois essa leitura está apoiada nas ciências sociais e na economia política, que compreendem o processo saúde-doença como um processo social, como  formulada pela medicina social latinoamericana (García, 1989; Laurell & Noriega, 1989)

Cabe ressaltar, ainda, que historicamente a psicologia do trabalho dedicou pouca atenção às modalidades de trabalho criadas pelos estratos pobres da população, como os pequenos comerciantes, os artesãos e os trabalhadores de ofício (Spink, no prelo). E isso ocorre inclusive em países como os da América Latina, em que a sociedade salarial, nos termos definidos por Castel (1998), nunca foi uma realidade e o mercado comporta a convivência entre atividades de trabalho formais e informais &– de grandes empresas transnacionais com expressas finalidades de reprodução do capital a pequenos empreendimentos e trabalhos criados para suprir as necessidades mínimas de sobrevivência &–, como mostrou Ackermann (2007). Além disso, o trabalho rural também tem sido pouco estudado pela psicologia do trabalho no Brasil.

Uma hipótese para explicar as razões dessa opção, e que merece ser investigada, é a de que a psicologia do trabalho, mesmo nos países subdesenvolvidos, voltou-se para responder às necessidades gerenciais, ao mercado formal de trabalho e apenas recentemente dá mostras de que reconhece que esse mercado engloba somente uma parte do trabalho e das atividades econômicas capazes de gerar renda para as pessoas.

Observa-se, assim, que os estudos voltados para o trabalho dentro da psicologia comportam abordagens e focos bastante diferentes . De acordo com Spink (1996), “o que é hoje chamado de psicologia do trabalho é uma lista de tópicos tão vasta que perde qualquer significado específico e é difícil considerar como um conjunto” (p. 174). Sendo assim, optamos por destacar neste texto a perspectiva adotada pelos próprios autores &– a chamada psicologia social do trabalho, que busca compreender os fenômenos organizativos a partir de seus determinantes sociais.

 

2. As vivências de trabalho em diferentes contextos encontrados na atualidade

O olhar atento para o trabalho permite observar uma enorme gama de modos de trabalhar e de estar no trabalho, que vão muito além das linhas de produção fordistas que historicamente moldaram e simbolizaram a idéia de trabalho no imaginário social. Além da atividade fabril, podemos observar a ampliação do trabalho terceirizado, do trabalho informal e de atividades no setor de serviço.

Assim, buscamos a seguir mostrar como o olhar a partir do cotidiano de trabalho evidencia distintos modos de vivenciar, de atribuir sentido e de estar em diferentes tipos de organização do trabalho. Optamos por apresentar sinteticamente três exemplos de situações de trabalho que foram objetos de pesquisas no campo da psicologia social do trabalho (Bernardo, 2006; Sato, 2006; Oliveira, 2005), nas quais se buscou compreender os arranjos, as permutações, as combinações e as negociações que configuram diferentes formas de estar no trabalho. As três pesquisas apoiaram-se em metodologias qualitativas, partindo da análise dos processos cotidianos de trabalho através da observação etnográfica ou de entrevistas semi-estruturadas.

São situações muito distintas, mas que, justamente por isso, são representativas em relação ao “caleidoscópio” (Ianni, 1992) que configura o mundo do trabalho. Os três casos ilustram diferentes situações de governo do trabalho, nas quais é possível visualizar matizes no espectro que vai da heterodeterminação à autodeterminação, dentro do qual negociações, acordos e conflitos abertos são conduzidos. A contribuição que se pretende oferecer é a de uma psicologia social que aborda os processos cotidianos de trabalho como processos micropolíticos, isto é, processos em que poder e controle comparecem como categorias fundamentais.

As situações mostradas são: a) a diferença entre o discurso gerencial e a vivência dos trabalhadores em duas montadoras de automóveis de origem japonesa, cujo modelo de organização da produção é considerado pela literatura gerencial como o “paradigma” da modernidade; b) a construção da organização da feira livre , uma forma de trabalho tradicional que tem origem séculos atrás e ainda se preserva nas grandes cidades do Brasil, congregando diversos “micro-empresários”; e c) as diferenças entre cooperativas de trabalho autogestionária e as de terceirização de mão-de-obra.

2.1. A fábrica toyotista: o contraste entre o discurso e a prática

Nas últimas décadas, tem-se observado, na literatura de gestão empresarial, o predomínio de um discurso que afirma a superação do rígido taylorismo-fordismo por um modelo de organização do trabalho que seria mais “flexível”: o toyotismo. Esse modelo de organização tem sido foco de muitas pesquisas, mas poucas dedicaram-se a estudar esse novo contexto a partir da vivência dos trabalhadores, o que, ao contrário, é priorizado no enfoque da psicologia social que se quer demonstrar. Essa perspectiva possibilita compreender as sutilezas e as nuances encontradas no cotidiano de trabalho e, ao empreender essa tarefa, lança um novo olhar sobre as promessas do toyotismo.

É importante dizer que o discurso que acompanha a divulgação do modelo toyotista de produção destaca que ele seria mais humanizado, pois superaria características que, historicamente, foram alvos das críticas dos trabalhadores organizados. Esse modelo de organização, segundo o discurso predominante, possibilitaria, assim, a participação, o trabalho em equipe e a autonomia dos trabalhadores, além de respeitar suas competências. Mas, será que os trabalhadores submetidos a essa proposta de trabalho a vivenciam do mesmo modo como é sugerido pelo discurso hegemônico?

A partir de uma pesquisa realizada junto a trabalhadores em duas montadoras de automóveis de origem japonesa instaladas no Brasil &– que adotam o modelo toyotista &–, Bernardo (2006) aponta que a resposta à questão é negativa. A investigação demonstrou que os temas presentes no discurso gerencial em nada têm a ver com humanização, mas sim com a exploração máxima da força de trabalho. A noção de competência, por exemplo, serve para justificar: a introdução de critérios ideológicos, pessoais e sociais nos processos de seleção e avaliação; a individualização das relações de trabalho; a utilização da capacidade cognitiva dos trabalhadores em prol da produção e sua maior responsabilização pela qualidade dos produtos. A avaliação individual é uma das características mais marcantes dessa “inovação” e dá-se principalmente por meio de entrevistas individuais periódicas com cada trabalhador por representantes de níveis gerenciais superiores, nas quais se avalia muito mais do que o desempenho na tarefa designada: o envolvimento com as propostas da empresa e o empenho em ir além das atividades básicas são o principal foco dessas entrevistas.

No que se refere à participação, que é outra idéia destacada no discurso gerencial atual, os trabalhadores dizem em tom de ironia que a única “participação” que vivenciam é a obrigatoriedade de apresentar sugestões de melhorias dos produtos e do processo de produção, já que, nas empresas que adotam o modelo toyotista, há metas mensais de sugestões a serem atingidas e esse aspecto é levado em conta na avaliação individual. Nota-se, assim, que as empresas buscam utilizar o saber e a criatividade do trabalhador em prol da produção, seja em relação a metas quantitativas ou à qualidade dos produtos.

A idéia de trabalho em grupo também é outra falácia segundo os próprios trabalhadores. As células de trabalho características do toyotismo configuram-se, na realidade, como “agrupamento” de trabalhadores que continuam a exercer tarefas segmentadas. A diferença em relação à especialização taylorista é que, agora, os trabalhadores são “multifuncionais”, ou seja, devem conhecer uma multiplicidade de tarefas para poder substituir ou ajudar os colegas quando for necessário.

Outro aspecto bastante destacado diz respeito ao oposto da idéia de autonomia, muito veiculada pela literatura empresarial: trata-se do controle cotidiano sobre os trabalhadores para que as normas de produção sejam seguidas e os constrangimentos direcionados àqueles que não se comportam da forma esperada. Observou-se que o domínio das empresas sobre seus funcionários assume características peculiares, que incluem um misto de autoritarismo, disciplinarização e técnicas que visam, sobretudo, àquilo que Linhart e Linhart (1998) chamam de “controle da subjetividade”. Essa constatação demonstra uma sofisticação das formas como as empresas buscam exercer o poder sobre os trabalhadores, uma vez que não focalizam mais apenas seus corpos, mas, também, suas mentes.

Em tal contexto, a vivência dos trabalhadores é de exploração física e mental acentuada. Nesse sentido, além da referência a uma cadência de trabalho considerada “insuportável”, expressões como “assédio moral” e “pressão psicológica” são bastante freqüentes, assim como a referência espontânea a situações de sofrimento e de adoecimento. “Ritmo alucinante”, “trabalho incessante”, “loucura”, “desespero”, “estresse” e “depressão” também foram expressões utilizadas pela maioria dos trabalhadores entrevistados ao descrever aspectos da organização do trabalho.

Desse modo, se a intensificação e o parcelamento do trabalho introduzidos nos sistemas de produção pelo modelo taylorista-fordista sempre foram vistos como fontes de risco para a saúde dos trabalhadores, a organização “flexível” baseada no toyotismo agrega-lhes ainda outros fatores que parecem ter graves conseqüências não somente para a saúde física, mas também para a saúde mental. Os mecanismos de controle utilizados são vivenciados pelos trabalhadores como formas de violência: violência psicológica, no caso das “pressões” e das “humilhações” cotidianas, e violência física, no caso da imposição de um ritmo de trabalho que vai além do que seus corpos podem suportar.

Nesse contexto, o discurso empresarial que destaca a idéia de flexibilidade assume o papel de legitimar o poder das empresas, que é mantido, sobretudo, pela ameaça de desemprego e “administrado” (Bihr, 1998) por meio de mecanismos disciplinares típicos do taylorismo e de dispositivos de controle mais sofisticados que visam não mais a simples moldagem do trabalhador, mas a sua “modulação” (Deleuze, 1992), de modo a conseguir que utilizem sua inteligência e sua criatividade para os interesses da produção.

Por outro lado, apesar da dissimulação das relações de dominação (Bourdieu, 1996), que tem sustentação no discurso hegemônico divulgado em publicações especializadas e na mídia, o engajamento subjetivo desejado nem sempre parece ser alcançado. Nos casos estudados por Bernardo (2006), as empresas não alcançaram o domínio sobre a subjetividade dos trabalhadores exatamente pelas condições objetivas de trabalho extremamente pesadas que impõem.

No plano da ação coletiva, o sindicato dos trabalhadores da categoria estudada tem buscado adotar novas estratégias para combater o discurso e a prática das empresas. Mas é especialmente no cotidiano que os trabalhadores utilizam táticas diversas que configuram uma “rede de antidisciplina” (Certeau, 1996) baseada em “malandragens” que se contrapõe aos aspectos do trabalho que lhes são desfavoráveis. Se não resolvem os problemas apresentados pela organização do trabalho, certamente essas ações astuciosas utilizadas no cotidiano servem, algumas vezes, para amenizar alguns fatores de sofrimento e, em outras, simplesmente para expressar a rebeldia em relação às condições de trabalho impostas.

2.2. A feira livre:a convivência negociada entre diversas unidades produtivas

A feira livre é uma modalidade de comércio bastante antiga nos centros urbanos. Ela antecede em séculos a industrialização e mantém, ainda nos dias de hoje, muitas de suas características originais decorrentes do fato de ser um espaço multidimensional em que trabalho, arte e sociabilidade convivem (Sato, 2006, 2007). Atualmente, a feira livre mantém sua freguesia, mesmo sofrendo a forte concorrência dos super e hipermercados, muitos deles empresas multinacionais. São Paulo, uma megalópole brasileira de onze milhões de habitantes, mantém aproximadamente 900 feiras livres por semana, capazes de gerar renda para cerca de 40 mil pessoas. Talvez a resistência a uma concorrência tão forte deva-se à singularidade de sua organização, dotada de admirável capacidade adaptativa, e à capacidade de preservar os espaços de convivência nos logradouros onde se instalam. Diferentemente dos modernos mercados que visam reproduzir o capital, a feira livre é uma atividade econômica que objetiva, sobretudo, garantir as condições de sobrevivência dos trabalhadores.

“Feira livre” é substantivo coletivo. Isso significa que ela apenas existe se congregar diversas unidades produtivas (as bancas) de propriedade dos feirantes titulares, que são micro-empresários e os feirantes ambulantes (que portam as mercadorias nas mãos e as oferecem à freguesia caminhando pela feira). No município de São Paulo, a organização da feira livre dá-se mediante uma tímida definição de regras por parte da Secretaria Municipal de Abastecimento da Prefeitura (SEMAB). Essa secretaria define normas e está encarregada de fiscalizar as feiras livres. Há um conjunto de normas referentes à instalação, tipos e grupos de mercadorias que podem ser comercializados, regras de higiene, dentre outras.

A autorização para trabalhar como feirante também é concedida pela SEMAB, que define o rol de feiras livres nas quais o feirante titular (detentor de autorização) pode trabalhar, de terça-feira a domingo. Os ambulantes não têm autorização legal para trabalhar na feira, mas, como diz um antigo feirante: “feira que não tem ambulante não é boa!”.Característica estrutural importante é o fato de as feiras instalarem-se no espaço público e serem itinerantes.

Marcos, feirante há vários anos, define a feira livre como uma “bagunça organizada, expressão que compatibiliza duas formas organizativas aparentemente antagônicas em que a anarquia (capacidade organizativa autônoma) convive com uma suposta padronização centralmente definida.

As regras bastante genéricas emanadas pelo poder público deixam um campo aberto para que os feirantes definam regras de convivência, construam e organizem seus fazeres. Ademais, o nomadismo estrutural faz com que o feirante tenha que “montar uma loja todo dia” (nas palavras da feirante Dinorah). E isso quer dizer muito mais do que estar submetido ao trabalho fisicamente pesado de transporte, carregamento, montagem, arrumação e desmontagem da “loja. O nomadismo requer que os feirantes se situem e convivam em ambientes sociais, econômicos e culturais diferentes, variação essa garantida pelos múltiplos perfis das freguesias e pela convivência com feirantes diferentes em cada lugar. A cada dia o feirante situa-se em um campo social diferente (Lewin, 1963, 1973), o que lhe demanda construir acordos e negociar as regras de convivência em cada lugar.

Além disso, a característica desse comércio é justamente possibilitar um número infinito, e sempre renovado, de acordos construídos a cada hora, a cada circunstância e a cada problema que se apresente em cada “loja. Assim, dependendo da feira onde se instala, a banca de um mesmo feirante poderá portar feições bastante distintas. A variação atinge diversos aspectos: o tamanho da banca, os tipos de mercadorias comercializadas, a quantidade de mercadorias, o número de feirantes que trabalham na banca, a unidade de comercialização (por exemplo: monte, dúzia, quilo etc.). Isso só é possível porque, a partir de suas unidades produtivas autônomas, os feirantes definem e negociam regras de funcionamento e convivência numa estrutura horizontal. Tal estrutura marca a singularidade da negociação micropolítica: amplo poder para cada unidade produtiva com ampla possibilidade de escolhas organizacionais (Kelly, 1978). 

Segundo Sato (2006), o grau de adaptabilidade da feira livre garante respostas rápidas às mudanças do ambiente econômico, social e cultural no qual se instalam, por meio da adoção de diversas configurações das unidades produtivas e das regras de convivência. Por esse motivo, a feira livre é um exemplo vivo do que a análise combinatória nos ensina: são múltiplos arranjos, permutações e combinações resultantes da capacidade de negociação e de criação, que se dá num contexto de tênue equilíbrio entre a cooperação e a competição entre as unidades produtivas.

2.3. Cooperativas: entre a terceirização e a superação da condição de empregado

Um outro fenômeno que, por vários motivos, tem atraído a atenção de psicólogos sociais que se dedicam ao estudo do mundo do trabalho são algumas formas alternativas de trabalho derivadas do chamado trabalho associado.

Isso não é por acaso, pois assistimos nas últimas décadas a um crescimento do interesse de diversos setores sociais de vários países latino-americanos pelo cooperativismo. Seja em uma vertente empresarial, na qual as cooperativas de mão-de-obra aparecem como um caminho para a contratação de trabalhadores sem o peso dos custos trabalhistas legais, seja em uma vertente de economia solidária ou de ajuda mútua, na qual o cooperativismo aparece &– para trabalhadores de empresas recuperadas ou para os participantes de políticas públicas de fomento à economia solidária &– como alternativa ao desemprego e como superação da condição de “empregado”.

A partir de uma pesquisa sobre as relações cotidianas de trabalho no cooperativismo (Oliveira, 2005), em que foram comparadas cooperativas surgidas a partir das duas vertentes acima apontadas, pôde-se perceber importantes nuances do fenômeno.

A pesquisa apontou pelo menos dois sentidos distintos do cooperativismo derivados das vivências de seus trabalhadores. Primeiro, um sentido ajustado ao discurso gerencial da “flexibilização”, especificamente, a flexibilização dos vínculos de trabalho (no caso das cooperativas de mão-de-obra, que são notadamente desprovidas das características próprias da autogestão) a serviço da terceirização de mão-de-obra (Lima, 2007; Oliveira, 2007). Segundo (no caso das cooperativas de trabalho em que existe de fato a gestão do negócio e do trabalho pelos próprios sócios-trabalhadores), um sentido de emancipação que, ao mesmo tempo, enfatiza uma capacidade auto-organizativa coletiva.

Quando tomadas na vertente da terceirização de mão-de-obra, as cooperativas seguem o mesmo receituário da flexibilização visto acima a propósito do toyotismo. Não se trata propriamente da flexibilização da produção nesse caso, mas especificamente da flexibilização das relações de trabalho: as cooperativas de mão-de-obra apresentam-se como uma alternativa dentro do quadro legal brasileiro para a contração de força de trabalho na medida da sua necessidade pela produção. Essas cooperativas são chamadas por Lima (2004) de cooperativas “pragmáticas”.

Lima (2004) opõe a esses empreendimentos as cooperativas “defensivas”, entre as quais inclui as fábricas recuperadas e as cooperativas ligadas à economia solidária. Segundo Oliveira (2007), elas são: “cooperativas que enfatizam os valores da autogestão e representam a defesa de interesses em comum entre os trabalhadores” (p. 76).

Também encontrou-se nas diferentes cooperativas pesquisadas uma ordem cotidiana negociada. No caso das cooperativas de mão-de-obra, uma ordem atravessada pelas estruturas hierárquicas e em que nada difere da estrutura das empresas tradicionais. Quanto às cooperativas autogeridas &– a redundância é necessária para marcar a distinção com a terceirização promovida pelo cooperativismo destacado acima &–, encontramos processos de negociação marcados pela horizontalidade das relações de poder e pelos conflitos próprios desses arranjos.

A novidade presente no cooperativismo autogerido está justamente na vivência de trabalho distinta que proporciona a seus membros. À vivência de empregado, subordinado a chefes ou patrões, as cooperativas autênticas opõem a vivência como sócio-trabalhador (Esteves, 2004). Segundo Oliveira (2007), ao analisar as cooperativas que investigou: “Enquanto sócios-trabalhadores, condição que caracteriza o trabalho associado, os entrevistados (...) reconhecem-se duplamente, com maior ou menor intensidade e clareza, como empreendedores (sentem-se sócios em um negócio coletivo e ao mesmo tempo seu) e como produtores, isto é, como trabalhadores. Vivenciam isso pela proximidade com a gestão e pelas preocupações que têm que ter simultaneamente com o negócio e com o cotidiano da produção, gostem disso ou não” (p. 80).

Essa vivência confere um outro sentido à realização de diversas atividades pelos trabalhadores entrevistados. Se na empresa toyotista a chamada “multifuncionalidade” é vivida como aumento da exploração ou como “desvio de função”, nas cooperativas autênticas, a realização de atividades diversas representa o envolvimento do trabalhador (na condição de sócio do empreendimento) com o sucesso do negócio.

Investigar as vivências, as relações de trabalho e os sentidos produzidos sobre o trabalho permitiu, primeiro, fazer a distinção entre cooperativas de trabalho e cooperativas de mão-de-obra (Oliveira, 2007). Segundo, permitiu encontrar nas cooperativas de fato autogeridas uma vivência no trabalho distinta daquela dos trabalhadores nas empresas tradicionais. Esse tipo de vivência, marcada pelas relações não-assimétricas, distancia-se do toyotismo analisado acima e guarda semelhança com a capacidade organizativa autônoma da feira livre.

 

3. Conclusão

As três pesquisas apresentadas acima partilham do olhar para o cotidiano e da análise do trabalho a partir da perspectiva dos trabalhadores, recortando o trabalho, nos diferentes contextos apresentados, como um fenômeno psicossocial. Elas ilustram, como anunciado no início, um modo de construir o trabalho como objeto da psicologia social.

Esses estudos apontam para a tensão entre as realidades de trabalho e a engenhosidade cotidiana necessária, de que lançam mão os trabalhadores, para fazer o trabalho acontecer. Essas realidades de trabalho aparecem para os trabalhadores por meio da articulação de variados elementos: as condições materiais, a maior ou menor assimetria das relações de poder, as possibilidades de agir autonomamente, os sentidos do trabalho.

A investigação das empresas toyotistas permitiu reconhecer as contradições do discurso da flexibilidade e, ao partir da vivência cotidiana dos trabalhadores, permitiu identificar tanto a intensificação da exploração dos trabalhadores, quanto as formas de resistência por eles desenvolvidas.

A partir do estudo etnográfico da feira livre, que revela que seus processos organizativos da ocorrem na tensão entre cooperação e competição, podemos reconsiderar a idéia de “organização” e chamar a atenção para aquilo que temos nomeado como processos organizativos, isto é, embora a feira livre não possa ser tomada como uma “organização” nos termos em que comumente são abordadas as empresas ou corporações &–, ela revela modos organizativos próprios, nos quais se entrecruzam diferentes processos que configuram o trabalho que lá se realiza.

O estudo das cooperativas, ao mesmo tempo em que permitiu identificar critérios de diferenciação dos diversos tipos de empreendimentos, tornou possível reconhecer a vivência muito peculiar dos trabalhadores que são sócios em um empreendimento coletivo autogerido no qual prevalecem as relações horizontais.

Neste ponto, valeria perguntar: o que o olhar para o cotidiano pode revelar? Ao que poderíamos arriscar responder: aquilo que está além do aparente ou, dito de outro modo, os processos que permitem a configuração de determinados arranjos. O toyotismo, como procurou-se argumentar acima, não é flexível como quer parecer. A feira livre não é nada simples e sua complexidade não é caótica, mas organizada. As cooperativas servem a dois propósitos muito distintos e, em sua configuração “defensiva”, encontramos novidades em termos das relações dos indivíduos com o trabalho.

 

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Endereço para correspondência
Leny Sato
E-mail: lenysato@usp.br

Marcia Hespanhol Bernardo
E-mail: marciahb@usp.br

Fábio de Oliveira
E-mail: faboli@uol.com.br

 

 

Docente do Departamento de Psicologia Social e do do Trabalho do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, Brasil. Livre Docente em Psicologia. Co-editora dos Cadernos de Psicologia Social do Trabalho. E-mail: lenysato@usp.br. Este artigo é resultado parcial de projeto de pesquisa desenvolvido com apoio do CNPq.

Psicóloga do Centro de Referência em Saúde do Trabalhador de Campinas (CEREST), Brasil. Doutora em psicologia social pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. E-mail: marciahb@usp.br.

Docente da Faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil. Psicólogo do Centro de Psicologia Aplicada ao Trabalho do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Doutor em psicologia social. Co-editor dos Cadernos de Psicologia Social do Trabalho. E-mail: faboli@uol.com.br.

importante dizer que, aqui, estamos nos referindo a uma psicologia social crítica que se aproxima das ciências sociais em busca de elementos que permitam “uma complementaridade integrativa entre os conceitos de pessoa e processos sociais em vez do distanciamento provocado pelo binômio tradicional indivíduo-sociedade” (Spink, 1996, p. 177).

Note-se que essa perspectiva é bastante diferente do discurso da “qualidade de vida no trabalho”, tal qual vem sendo usado no Brasil, sustentado no discurso humanista, mas que compreende a saúde a partir de uma leitura individualizante que aposta, sobretudo, na mudança de estilo de vida e desconsidera o possível papel dos contextos de trabalho no sofrimento dos trabalhadores.

Os ensinamentos de Milton Santos (2004) sobre a singularidade do processo de urbanização dos países subdesenvolvidos e sua estreita vinculação com o trabalho e com a atividade econômica merecem ser tomados de modo radical, o que nos ajuda a incorporar a singularidade do trabalho.

Ainda que devamos ressaltar que é bastante comum que os estudos que se incluem na vertente da psicologia social não sejam vistos como uma das perspectivas da psicologia do trabalho.

Feiras livres são mercados itinerantes a céu aberto montados nas ruas da maioria das cidades do Brasil.

Nesse sentido, Linhart e Linhart (1998) lembram que a institucionalização do controle e da pressão sobre os trabalhadores dentro do próprio processo de trabalho promovido pelo taylorismo foi um imenso ganho de poder para as empresas e, apesar de todo o discurso atual referente à autonomia, elas não têm nenhum interesse em perdê-lo, querem, sim, aperfeiçoá-lo.

Sobre as diferenças entre esses dois tipos de comércio, recomendamos ver a discussão de Milton Santos (2004) sobre a divisão do espaço urbano nos países subdesenvolvidos: circuito superior e circuito inferior da economia.

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