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Psicologia em Pesquisa

On-line version ISSN 1982-1247

Psicol. pesq. vol.10 no.2 Juiz de Fora Dec. 2016

https://doi.org/10.24879/201600100020058 

ARTIGO ORIGINAL
10.24879/201600100020058

 

Significados de paternidade em famílias monoparentais femininas1

 

Meanings of paternity by female monoparental families

 

 

Sabrina Daiana CúnicoI; Dorian Mônica ArpiniI

IUniversidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, RS

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente estudo teve como objetivo conhecer os significados atribuídos à paternidade por mulheres chefes de família. Participaram deste estudo dez mulheres que compunham uma família monoparental e eram provenientes de grupos populares A entrevista, com roteiro semiestruturado, foi um dos instrumentos de coleta de dados assim como o grupo focal. O material coletado foi analisado por meio da análise de conteúdo, que sustentou o surgimento de categorias de análise. Os resultados indicaram, de modo geral, a coexistência de concepções tradicionais e modernas no que se refere aos significados atribuídos à paternidade. Ademais, evidenciou-se uma tendência a ampliação do modelo de paternidade, no qual o pai além de provedor da família é reconhecido por sua presença e afetividade, resgatando a sua importância no ambiente familiar.

Palavras chave: paternidade; relações familiares; parentalidade.


ABSTRACT

The present study aimed to know the meanings attributed to paternity by women heads of households. This study was composed by ten women from lower class groups, who constituted a monoparental family. The semi-structured interview was one of the data collection instruments, together with the focus groups. The material collected was evaluated by the content analysis, which supported the appearance of categories of analysis. The results showed, in a general way, the coexistence of traditional and modern conceptions relative to the meanings attributed to paternity. Furthermore, we evidenced a tendency to expansion of paternity model, in which the father as well as family provider is recognized by your presence and affection, in order to rescue the importance of the father’s presence in the family environment.

Keywords: fatherhood; family relations; parenthood.


 

 

Definir a família tem sido um desafio para todos aqueles que se debruçam sobre esta temática. Isto porque, inegavelmente, é cada vez mais comum o surgimento de arranjos familiares que contestam os modelos tradicionais e que revelam a construção de diferentes formas de relação. Nesse contexto, a paternidade tem ganhado visibilidade nas discussões sobre a família contemporânea, abrindo espaço para que o papel tradicionalmente atribuído ao pai no contexto do lar seja problematizado e flexibilizado.

Apesar da configuração familiar nuclear - a qual corresponde às famílias de casais heterossexuais com filhos - ser ainda identificada como um ideal de família preponderante no Brasil, ela representa, atualmente, menos da metade das famílias brasileiras, de acordo com o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010). Nesse sentido, é inegável reconhecer os demais modelos familiares que coexistem com a configuração nuclear, tais como: as famílias monoparentais, as famílias recompostas, as famílias de casais sem filhos, as famílias homoafetivas, dentre outras (Pereira & Arpini, 2012; Pinheiro, Galiza & Fontoura, 2009).

A família monoparental pode ser definida como um arranjo familiar composto pelo pai ou pela mãe, que podem estar na condição de solteiros, separados, divorciados ou viúvos, e seus filhos (Nixon, Greene & Hogan, 2012; Pinto et al., 2011). No que tange as especificidades das famílias provenientes de grupos populares, é possível perceber que muitas delas são chefiadas por mulheres que desempenham um papel indispensável para a estruturação do cotidiano, na educação dos filhos e na manutenção da casa. Nos casos em que o pai está ausente, a mãe é encontrada assumindo sozinha ou dividindo com os filhos, a responsabilidade de sobrevivência da família (Carloto, 2005; Ramos, 2003). Sobrevivência esta, que é facilitada pela mobilização cotidiana de uma rede familiar que ultrapassa o limite das casas (Sarti, 1994).

É neste sentido que Sarti (1994) afirma que as famílias de grupos populares não se constituem como um núcleo e sim como uma rede. Uma rede composta não só por parentes, mas sim por todos aqueles que retribuem ao que se dá, ou seja, aqueles para com quem se tem obrigações. São estas redes de obrigações que delimitam os vínculos e fazem com que as relações de afeto se desenvolvam. Além disso, ao mesmo tempo em que a situação concreta de muitas destas famílias - a falta do pai biológico, o papel da mulher na manutenção da casa e a desproteção das crianças - as afasta da realização familiar aos moldes do modelo nuclear burguês, ela também o legitima como sendo o modelo ideal de família, impedindo-o que desapareça (Peres, 2001).

Compreender o contexto atual de ascensão de diversos modelos familiares e formas de relação é também refletir acerca da própria concepção das atribuições parentais. Num contexto em que a maternidade mantém muitos de seus preceitos naturalizados, pode-se pensar que os significados atribuídos à paternidade são os que mais mudaram dentro no cenário familiar. Em outras palavras, a representação da paternidade tem assumido contornos diversos conforme o passar do tempo (Bossardi, Gomes, Vieira & Crepaldi, 2013; Gomes & Resende, 2004).

Até a década de 1970, o homem comumente ocupava um lugar de destaque na família, sendo a sua função primordial prover financeiramente a esposa e os filhos (Reis, 2010; Silva, 2010). No entanto, tem-se constatado que em muitas famílias contemporâneas o homem não é mais o único provedor, tampouco o principal. De fato, o número de lares chefiados por mulheres tem aumentado consideravelmente, o que demonstra que elas estão ocupando cada vez mais uma posição social outrora ocupada somente pelos homens: a de provedora do sustento da família (Carloto, 2005; Perucchi & Beirão, 2007; Pinto et al., 2011; Macedo, 2008), muito embora, nas camadas populares, muitas mulheres já exerciam, esta função de provedora.

O que se percebe, contudo, é que a crescente inserção das mulheres no mercado de trabalho não parece estar sendo acompanhado na mesma proporção pela inserção dos homens na esfera doméstica (Anderson & Hamilton, 2005; Staudt & Wagner, 2008; Pinheiro, Galiza & Fontoura, 2009). Esta situação reflete a crença socialmente compartilhada de que os cuidados com os filhos são de responsabilidade primordial da mãe, sendo a participação do pai neste cuidado secundária ou uma escolha dos homens (Lyra & Medrado, 2000; Vieira & Souza, 2010).

No entanto, parece haver um movimento que se fortalece na atualidade que tem possibilitado que muitos homens questionem antigos valores e definições, abrindo a possibilidade para uma nova forma de vivenciar o papel de pai (Warpechowski & Mosmann, 2012). Por outro lado, é notável que o modelo predominante ainda é aquele que atribui ao pai exclusivamente as funções tradicionais de prover materialmente a família (Oliveira & Silva, 2011). Esta afirmação se mostra particularmente evidente nos casos em que após a separação do casal, o pai tende a se afastar do convívio dos filhos limitando a sua participação ao pagamento da pensão alimentícia (Cúnico & Arpini, 2014; Ramos, 2003).

Considerando todos os aspectos já discutidos, entende-se que analisar as concepções sobre a paternidade em uma configuração familiar monoparental é uma oportunidade para entender quais as funções que os sujeitos desempenham nas relações que se estabelecem (Perucchi & Beirão, 2007) bem como para evidenciar as transformações no que tange a temática da paternidade na contemporaneidade (Warpechowski & Mosmann, 2012).

Assim, impende mencionar que o presente estudo foi costurado através da análise de alguns pontos que se intercomunicam, tais como: as transformações pelas quais a família tem passado e o estudo das atribuições parentais em uma unidade familiar monoparental, com foco na análise da paternidade. Tomando por base tais construções, chega-se ao objetivo deste trabalho, que é apresentar os significados atribuídos à paternidade por mulheres provenientes de grupos populares e que são chefes de família1.

 

Método

Participantes

Participaram deste estudo dez mulheres que compunham uma família monoparental e eram provenientes de grupos populares. Com relação ao número de sujeitos participantes, o mesmo foi definido em função do critério de saturação, isto é, o momento em que novas falas passam a ter acréscimos pouco significativos em vista dos objetivos inicialmente propostos pela pesquisa (Turato, 2003).

As participantes tinham entre 22 e 49 anos, sendo sete delas solteiras, uma separada e duas divorciadas. Todas elas moravam com pelo menos um dos(as) filhos(as). O número de filhos(as) variou de um a seis, sendo que dez eram do sexo feminino e oito eram do sexo masculino. Das dez participantes, quatro delas não recebiam pensão alimentícia, sendo que destas, três já haviam entrado com uma ação judicial para solicitar o pagamento e apenas uma relatou não ter interesse em receber a pensão do ex-companheiro.

 

Instrumentos

Esta pesquisa de caráter qualitativo foi realizada a partir da utilização de dois instrumentos de coleta de dados: a entrevista semiestruturada e o grupo focal. A escolha pela entrevista se deu em função de ser um instrumento adequado para apreender e interpretar a realidade através do ponto de vista dos atores sociais (Poupart, 2008). Os grupos focais foram empregados em função de se esperar que no grupo, através da possibilidade de troca e da circulação das experiências vivenciadas pelas mães, elementos que por ventura possam não ter se revelado nas entrevistas viessem à tona neste momento, de forma a enriquecer a pesquisa através deste recurso técnico (Barbour, 2009).

 

Procedimentos

As participantes foram identificadas a partir de consulta ao cadastro do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) de uma cidade do interior do Rio Grande do Sul. As mães foram contatadas por telefone e as entrevistas realizaram-se conforme a disponibilidade de cada uma e a partir de consentimento verbal e escrito (assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido). Todas as entrevistas aconteceram nas dependências do CRAS, tendo sido gravadas e transcritas literalmente para posterior análise.

Todas as mulheres entrevistadas individualmente foram convidadas a participarem de um segundo momento da pesquisa que envolvia a participação em um grupo focal. Embora todas elas tenham concordado em dar seguimento a sua participação no estudo, das dez entrevistadas, seis foram as que compareceram aos grupos. Sendo assim, foram realizados dois encontros contendo três mães em cada um deles. Um dos grupos aconteceu nas dependências do CRAS, e o outro em uma sala do Departamento de Psicologia da instituição a qual as autoras estão vinculadas, uma vez que o horário que melhor atendia aos interesses das participantes era um horário em que o CRAS já se encontrava fechado.

Os grupos foram disparados por duas situações problemas, elaboradas a partir da realização e análise das entrevistas individuais. Uma das situações se referia ao afastamento paterno após o final da relação amorosa e a outra ao advento da gestação em um momento instável no relacionamento do casal. Do mesmo modo que as entrevistas, os grupos foram gravados e transcritos na íntegra.

 

Análise de dados

Utilizou-se como referência para a análise do material transcrito, a técnica da análise de conteúdo temática proposta por Bardin (2011). A análise de conteúdo caracteriza-se por ser um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores que permitem a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção destas mensagens (Bardin, 2011).

Inicialmente realizou-se a leitura exaustiva das entrevistas e dos grupos focais, possibilitando a familiarização das pesquisadoras com os dados obtidos. Após, realizou-se a decomposição do material coletado em temas-eixo, tal como indicado por Bardin (2011). Estes temas foram colocados em quadros de modo a facilitar a sua visualização, sendo as colunas preenchidas com os conteúdos retirados das entrevistas e dos grupos. Tais quadros forneceram a base das categorias estabelecidas para a análise.

 

Considerações éticas

Cabe mencionar que este estudo foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da instituição de origem das autoras e aprovado antes de sua execução, em conformidade com as diretrizes do Conselho Nacional de Saúde, sob o número CAAE 05021912.7.0000.5346. A fim de preservar a identidade das participantes, as falas serão apresentadas pela letra M (mãe), seguidas do número que representa a ordem da realização das entrevistas e serão diferenciadas pelas letras E (entrevista) e G (grupo) de modo a ilustrar em que momento tal narrativa veio à tona. Todos os nomes citados são fictícios.

 

Resultados e discussão

Os resultados serão apresentados a partir de duas categorias de análise, quais sejam: “Um bom pai é aquele que tá presente”: o ser pai na contemporaneidade e “Eu tenho como referência meu pai”: a vivência da paternidade.

“Um bom pai é aquele que tá presente”: o ser pai na contemporaneidade

Como já apontado anteriormente, uma das principais mudanças atribuídas ao “novo pai”, de acordo com pesquisas contemporâneas, diz respeito ao desempenho do papel paterno de forma mais participativa e afetiva (Bottoli & Arpini, 2011; Warpechowski & Mosmann, 2012). Para as participantes deste estudo, a paternidade pareceu se constituir como sendo uma prática diária de atenção, carinho e preocupação com os filhos. “Ai, um bom pai é aquele que tá presente, aquele que tu não precisa dizer o que que tá faltando...aquele que olha e vê, sabe? Aquele que conversa, que abraça, que beija” (M1-E). “Ser um bom pai é um pai que tá ali pra dá carinho, pra conversar, pra jogar uma bola com o filho, essas coisas, sabe?” (M8-E)

Nesse sentido, a paternidade foi definida pelas mães a partir de seu exercício, isto é, a partir de funções que elas acreditam que devem ser desempenhadas pelos pais. Funções estas, que independem do laço biológico, já que pressupõem o convívio, a cumplicidade e o amor, vínculos que não são respaldados unicamente pelos laços sanguíneos (Vieira & Souza, 2010).

Ser um bom pai? Pode ser até assim aquele padrasto, pode ser... mas que crie o filho, não que só visite, que dê um presente e que nem pague a pensão (...) aquele amigo que tá sempre...que tá com ele ou quando não tá, tá sempre ligando, né? (M4-E)

Agora quando eles tiveram aqui, a irmã dele pegou e falou “ah, meu irmão é irresponsável, é cabeça dura, mas ele é pai”, ai a minha mãe disse “que que adianta ser pai, ser pai é só botar no mundo? isso qualquer um bota”, ela falou, “não adianta só falar que é pai, mas não ajudar, não educar, não participar da vida do filho, então isso é pai? Isso não é pai! (M5-G)

A análise dos relatos anteriores ratifica a atribuição, por parte das participantes, da paternidade não enquanto condição biológica, mas sim enquanto função desempenhada. Assim, ser pai vai além de “só botar no mundo”, uma vez que o lugar paterno só se materializa pela participação cotidiana e estabelecimento de vínculo afetivo (Cúnico, Arpini & Cantele, 2013).

É importante observar que nos relatos das mães se faz presente uma concepção de paternidade na qual as funções do pai estariam sendo ampliadas, para além daquelas tradicionalmente a ele impostas (autoridade e sustento econômico). A ênfase apresentada pelas mães foi, em especial, a valorização da presença do pai e de seu envolvimento afetivo. Esse entendimento, por parte das mães, parece indicar uma transição com relação à paternidade, a qual embora ainda não seja uma realidade para as mães participantes desse estudo, se encontra presente como uma referência do que deveria ser essa vivência.

Ser um bom pai... Eu pra mim, pra ser um bom pai tinha que...cuidar bem dos filhos, ficar...sempre assim, né? Junto com os filhos, nas horas boas, nas horas ruins. Não só ajudar assim, né...com dinheiro, com isso, com aquilo...mas, ser mais presente, ficar junto, né? (M7-E)

Eu acho que ser um bom pai, primeiramente, é tá presente sempre, em todos os momentos né? Se importar com a educação, com a saúde, acho que é o principal também, né, com o futuro do filho. Não tanto acho que na parte financeira, eu acho que isso não tem tanta importância, né? (M5-E)

Estes resultados coincidem com os encontrados por Perucchi e Beirão (2007) que, após terem entrevistado mulheres chefes de família a respeito da temática da paternidade, identificaram que, para as participantes, a tarefa do pai de educar se sobressaía à de prover. No estudo citado, a paternidade foi colocada como tendo uma função de participação efetiva em tudo o que envolve a dinâmica socioafetiva da família.

Não obstante seja esse o modelo de paternidade almejado pelas mães deste estudo, a realidade - ao menos aquela apresentada em seus relatos - é diametralmente oposta ao que desejariam. Ou seja, todas foram unânimes em afirmar que a paternidade desempenhada por seus ex-companheiros é, de modo geral, insuficiente em inúmeros aspectos, tais como: distanciamento, falta de comprometimento com o cotidiano dos filhos e com as questões que envolvem saúde e educação, além dos aspectos econômicos como o não pagamento da pensão alimentícia, por exemplo.

Efetivamente, após a dissolução do vínculo amoroso, o ex-casal pode começar a apresentar inúmeras críticas sobre o papel parental desempenhado pelo ex, sendo o pai, não raro, considerado ausente aos olhos da mãe nesse contexto (Décoret, 2001). Neste estudo, a demanda pela atenção e participação cotidiana na vida dos filhos foram algumas das questões apontadas pelas participantes, tal como verificado nas falas que se seguem.

Não é suficiente [a participação dele na vida do filho] Acho que ele teria que tá mais presente, assim, em saber mais as coisas do dia-a-dia, do que acontece (...) Que ele ligasse mais, saísse mais com elas, tivesse mais contato com elas...assim, conversar, que elas já são praticamente umas adolescentes, né? Saber mais do dia-a-dia, o que que elas acham das coisas (M6-E)

Talvez eu exija demais dele, mas eu queria que ele tivesse a mesma participação que eu tenho, sabe, tudo...vamo dizer assim, a rotina delas, meio a meio, tipo levar pra creche, buscar na creche, reunião, material escolar, roupa, uniforme, sabe, tudo meio a meio, sabe, tipo cada um fazer a sua parte, sabe? (M10-E)

Os relatos parecem indicar uma busca por parte das mães em fortalecer o lugar deste pai dentro da família, na medida em que anseiam maior diálogo e presença do ex-companheiro na vida dos filhos em comum. Além disso, as falas remetem ao sentimento de sobrecarga vivenciado por muitas mães após a separação conjugal (Grzybowski & Wagner, 2010; Hernández & Pérez, 2009). O pai, no entendimento das mães, teria que “fazer a sua parte”. Assim, pode-se compreender que a sobrecarga venha justamente quando ele não realiza as atribuições que lhe competem, fazendo com que a mãe tenha que dar conta de tudo aquilo que se faz necessário no dia-a-dia dos filhos.

Cabe mencionar que foram tais considerações que impulsionaram a criação da lei da guarda compartilhada no ordenamento jurídico brasileiro, a qual demarca a importância de ambos os pais para a vida da criança, buscando que as relações que se tinha antes da separação sejam mantidas. Tal modelo de guarda busca quebrar com a lógica de um genitor guardião e um visitante na medida em que aponta que todas as decisões importantes sobre o(s) filho(s) devem ser tomadas por ambos os pais, mesmo a criança residindo com um dos cônjuges (Grisard Filho, 2009).

Outro aspecto que interessa observar foi que a qualidade de tempo dispensado aos filhos pareceu assumir maior importância para as participantes do que a frequência com que os encontros entre pais e filhos deveriam possuir. Este dado coincide com outros estudos que apontam a premência de sustentar a relação pai/filho pela qualidade em detrimento da quantidade (Grzybowski & Wagner, 2010; Warpechowski & Mosmann, 2012).

Ah, eu gostaria assim ó, mesmo que eles não convivessem assim sempre junto, mas que eles viessem, buscassem eles, saíssem, fizessem o papel de pai, sabe, fizessem eles felizes, né, com a presença deles, nem que não fosse sempre, toda hora, né, eu gostaria que fosse assim. É que nem eu sempre falo assim, não é por pensão alimentícia que eu brigo na justiça, eu brigo que ele mude, entendeu, que ele procure o filho com vontade mesmo, com carinho, sabe? (M8-E)

Assim, identificou-se que a busca das mães em resgatarem a presença do pai dentro do cenário familiar estava, de certa forma, diretamente vinculada ao reconhecimento da importância que esta figura tem, sobretudo, para os filhos. Ademais, pode-se pensar que se trata da aceitação de que o outro genitor continuará a existir na vida dos filhos, ainda que o casal esteja separado e independentemente da relação que os ex-cônjuges possuam entre si (Décoret, 2001).

Como já mencionado, a caracterização do pai contemporâneo diz respeito ao desempenho da função de modo mais envolvido afetivamente (Bossardi et al., 2013; Gomes & Resende, 2004). No entanto, é importante se pensar na dificuldade que alguns pais possam ter em vivenciar efetivamente este “novo” papel que lhe foi atribuído (Cúnico, Arpini & Cantele, 2013; Staudt & Wagner, 2008), uma vez que, historicamente, a demonstração de vinculo afetivo na relação entre pai e filho era identificada como algo que poderia fragilizar a autoridade paterna, tão evidenciada dentro da família (Dantas, Jablonski & Féres-Carneiro, 2004).

É evidente que não se pode afirmar que os pais aqui citados são de fato falhos no exercício de sua função, ainda que tenham sido assim apresentados pelas mães entrevistadas. No entanto, pode-se perceber que as mães mencionaram uma série de expectativas em relação à paternidade e ao seu exercício. Essas expectativas viriam, por certo, compor a paternidade ideal para elas. Nesse ensejo, entende-se que a paternidade, frequentemente, se configura como uma experiência de grandes transformações na vida de um homem (Corso & Corso, 2011). Desse modo, se ser pai atualmente parece não se constituir numa tarefa fácil, pode-se pensar que talvez nunca tenha sido.

Dito isto, entende-se ser relevante destacar a importância da presença desses novos olhares sobre a paternidade, os quais puderam ser evidenciados pelas mães desse estudo. Salienta-se que não existe um modelo único de paternidade, mas sim que ser pai é uma experiência que se constrói em vários níveis. Assim, reconhecer a relevância de uma concepção ampliada atribuída às funções do pai dentro do espaço familiar é apontar para um novo olhar sobre a paternidade, buscando quebrar alguns tabus que outrora teriam distanciado o pai do envolvimento afetivo com os filhos.

“Eu tenho como referência meu pai”: a vivência da paternidade

A visão que as mulheres que são “chefes” de suas famílias possuem sobre a paternidade está vinculada com as vivências constituídas nas relações estabelecidas e acumuladas ao longo de sua história (Perucchi & Beirão, 2007; Pinto et al., 2011). Nesta pesquisa, as mães entrevistadas parecem ter se embasado na sua própria vivência de paternidade ao exporem suas percepções a respeito do que é ser um bom pai e como o ex-companheiro deveria ser como pai.

Convivi [com seu pai] e eu vou te dizer... esse era o modelo que eu queria ter, sabe? Daquele pai que sentava, daquele pai que conversava, que botava os filhos na perna pra contar história, sabe? (...) Então eu falei isso pra ele [referindo-se ao ex-companheiro], eu sinto falta disso, é assim que eu queria (M1-E)

Um bom pai? Assim ó... eu tenho como referência meu pai... ele sempre foi mulherengo, né, mas assim no momento que ele está com a gente ele é diferente, né, ele é pai [fica emocionada] Não tenho assim queixa dele, a minha mãe tem porque ela teve relacionamento com ele, mas assim ele pra mim não é o melhor pai do mundo porque isso não existe, a gente nunca vai alcançar o que o filho da gente queria (M3-E)

É interessante notar aqui dois aspectos ressaltados pela fala da participante M3. O primeiro diz respeito à separação dos conflitos vividos pelo casal conjugal da relação dos genitores com os filhos. Isto fica claro quando a participante relata que as queixas referentes ao comportamento de seu pai como marido não lhe competem, uma vez que ele desempenhava bem o papel paterno. Este entendimento de que o casal parental deve sobreviver ao casal conjugal é evidenciado em inúmeros estudos (Cúnico, Arpini & Cantele, 2013; Décoret, 2001; Warpechowski & Mosmann, 2012). O segundo aspecto apresentado pela fala anterior é referente a clareza que esta participante possui a respeito das expectativas que envolvem o desempenho das atribuições parentais, fato que foi abordado com maior ênfase na categoria anterior.

Os significados atribuídos à paternidade pelas entrevistadas também estavam, de certa maneira, atravessadas por experiências que marcaram a trajetória familiar destas mulheres (Perucchi & Beirão, 2007). A fala a seguir traz uma importante contribuição neste aspecto. “Meu pai sempre bebeu, fumou, abusou da minha irmã quando era pequena [fica emocionada] foi péssimo, péssimo...péssimo pai, até hoje ele é uma péssima pessoa” (M4-E). Assim, ao ser questionada sobre qual a importância de um pai no ambiente familiar, a mesma participante respondeu:

As vezes eu nem sei, nem sei mais,[importância do pai] por que? Porque meu pai nunca foi o pai, ele foi pior, ele é um padrasto. Pior! Padrasto pode ser muito bom e o pai é pior que isso, o meu pai é pior as vezes que um pior padrasto pode ser, né? (M4-E)

A partir da análise dos recortes anteriores, pode-se observar o quanto o entendimento da participante M4 a respeito da importância de um pai no ambiente familiar esteja, talvez, influenciado pelo modo como seu próprio pai desempenhou o papel paterno. Assim, a entrevistada tendo um modelo de paternidade que, segundo ela, foi falho em inúmeros aspectos, tem dificuldades em pensar o papel de pai de modo diferente do que aquele vivenciado por ela, hesitando ao atribuir importância a figura do pai no cenário familiar.

A correlação que as participantes fazem da sua vivência familiar atual com aquela experimentada em sua família de origem, não é incomum. De fato, o fenômeno da transmissão familiar, definido como transgeracionalidade, é responsável pela perpetuação dos legados, valores e crenças que ocorrem entre as gerações sucessivas de uma família (Falcke & Wagner, 2005). Assim, muitas das vivências tidas na família de origem podem ser repetidas na família atual, ainda que as expectativas tenham sido outras (Falcke & Wagner, 2005; Peres, 2001).

Muitas das entrevistadas retrataram seus pais como distantes afetivamente e pouco envolvidos no cotidiano dos filhos em função de terem como função primordial na família o sustento material, evidenciando um modelo paterno tipicamente patriarcal (Reis, 2010; Silva, 2010). As falas a seguir são ilustrativas nesse sentido:

Na minha infância eu tive um pai que trabalhou bastante pra nos criar porque era 14 pessoas, né, numa casa (...) ele nunca foi uma pessoa... de pegar assim os filhos no colo, de brincar, de sair, né, muito com nós assim, mas foi um bom pai, né, nunca deixou nos faltar nada (M2-E)

O meu pai, eles moravam pra fora, pra fora é outro tipo de criação, eles são mais rígido, eles são mais seco, não são de tá dando carinho, afagando o filho, sabe, mais é de dar comida e aquela coisa assim, não tem muito afeto, né?(...) a gente teve uma infância bem diferente da infância que hoje em dia as crianças tem né? (M8-E)

A análise dos extratos anteriores permite apontar que ao mesmo tempo em que as mães parecem se apoiar na sua própria vivência no que se refere à paternidade, é deste passado que buscam se distinguir. Isto é, as participantes parecem compreender que a paternidade desempenhada por seus pais, ainda que algumas delas tenham referido ao seu pai como um bom pai, não corresponde mais as demandas atuais, em especial, no que tange ao âmbito afetivo.

As mães também recorreram às histórias de vida de seus ex-companheiros de modo a justificar a paternidade desempenhada por ele. Nesse aspecto, a falta do referencial paterno foi um dos principais pontos apontados pelas entrevistadas, tal como as falas a seguir bem o demonstram.

Eu acho que ele [ex-companheiro] teve a relação com o pai dele diferente também, ele não tinha uma conversa em casa com o pai, entende? E o pai dele não era assim muito amoroso, eu acho assim...muito carinhoso, sabe?(M1-E)

Olha, até o Pedro [ex-companheiro] tem bastante problema com a vida dele... porque ele foi criado com o pai, só que por madrasta, o pai saía e deixava, ele não teve essa criação assim (...)Na verdade ele não tem nem noção do que que é ser pai porque ele não teve isso como referência, né, então...(M3-E)

Nesse sentido, vale mencionar que as mães pareceram ter dificuldade em considerar a possibilidade de ressignificação por parte destes pais, ou seja, de ver a possibilidade deles desempenharem uma paternidade diferente do modelo em que foram criados. Tal afirmação pode ser visualizada a partir da fala a seguir:

Aí o meu medo com o Mateus é que, lá adiante, seja assim também, né, então assim sempre que eu posso, eu sento e converso com ele, né, “teu pai não teve isso, isso e isso, né, então tu não pode cobrar dele que ele tenha porque isso é aquela coisa: tu ganha, tu sabe dar...se tu não ganha...né”? (M3-G)

Nota-se na fala anterior a preocupação da mãe M3 de que o filho desempenhe uma paternidade semelhante àquela que o pai dele desempenhou e que, na visão da mãe, é insatisfatória. A respeito disto, Falcke e Wagner (2005) entendem que, embora frequentemente as histórias vivenciadas na família de origem se repitam na família atual, esta experiência passada pode ser modificada no futuro a partir da compreensão por parte do adulto de suas experiências passadas.

Ficou evidente, a partir das falas explicitadas, que as participantes tendem a associar os significados que atribuem à paternidade tanto com as suas próprias vivências quanto com a história de vida do ex-companheiro. Seus relatos parecem estar atravessados pelas formas de relação estabelecidas na sua família de origem e pelas formas como essas mulheres se constituíram a partir daí (Peres, 2001; Perucchi & Beirão, 2007).

Ademais, observou-se neste estudo que, para além destas vivências familiares, as mães parecem ter esboçado o desejo de um pai diferente, principalmente mais afetuoso e que pudesse compartilhar mais as responsabilidades com os filhos, aspectos que têm sido apontados para identificar o “novo pai”. Tal situação indica a presença em suas falas, tanto do tradicional - representado por um pai mais distante - como também de uma expectativa que traduz uma nova construção de ser pai, a qual inclui maior afetividade e presença.

 

Considerações finais

o aspecto que se apresentou de forma contundente neste estudo foi a coexistência de concepções tradicionais e modernas no que se refere aos significados atribuídos à paternidade pelas participantes deste estudo. Ao mesmo tempo em que referiram que o pai é o alicerce da casa, o chefe da família, aquele que impõe respeito, as mães afirmaram que gostariam que o ex-companheiro fosse mais carinhoso com os filhos e que dividissem com elas os cuidados básicos com as crianças.

Evidentemente, os resultados desta pesquisa dizem respeito a uma parcela de mulheres, mães, inseridas numa cultura singular, o que impede generalizações. No entanto, cabe mencionar que, neste estudo, todas as participantes retrataram o pai como uma figura fundamental dentro da família, sendo a sua ausência sentida e não desejada. Assim, a valorização da paternidade por parte destas mães ficou evidente na medida em que problematizaram o distanciamento e a falta de comprometimento do pai após o fim do relacionamento amoroso. Esta situação aponta para a transição e a ampliação da concepção da paternidade, não restringindo os pais somente ao modelo pai/provedor.

Entende-se que resgatar a presença do pai no ambiente familiar, problematizando sua ausência, contribui para se ultrapassar alguns paradigmas que permeiam a maternidade e a paternidade, dissolvendo, em especial, as perspectivas esperadas em relação à mãe ser sempre a melhor cuidadora, e ao pai ser secundário na relação com os filhos. Esta é, certamente, uma tarefa que desafia pais, mães e todos aqueles que se encontram implicados nas questões que envolvem a família. Por esta razão, defende-se que a paternidade seja incluída nas discussões que permeiam as práticas e as políticas de orientação à família, nos âmbitos jurídico, de saúde e de educação, de modo a acompanhar o movimento de fortalecimento do lugar do pai no cotidiano familiar.

 

Referências

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Recebido em 24/07/2015
Aceito em 10/01/2016

Endereço para correspondência:
Sabrina Daiana Cúnico
Av. Ipiranga, 6681 - Partenon - Porto Alegre/RS
CEP: 90619-900.
E-mail: sabrinacunico@yahoo.com.br

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