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Psicologia em Pesquisa

On-line version ISSN 1982-1247

Psicol. pesq. vol.12 no.3 Juiz de Fora Sept./Dec. 2018

https://doi.org/10.24879/2018001200300506 

Artigo Original

10.24879/2018001200300506

 

Ideação suicida em assentamentos rurais no Piauí

 

Suicidal ideation in rural settlements in Piauí

 

João Paulo Macedo I; Brisana Índio do Brasil de Macedo Silva II; Laís Leal da Silva Bezerra III

I Doutor em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Professor adjunto da Universidade Federal do Piauí, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia e bolsista de produtividade do CNPq.

II Psicóloga pela Universidade Federal do Piauí. Mestranda em Psicologia pela UFPI. Bolsista FAPEPI.

III Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal do Piauí. Bolsista PIBIC pela UFPI.

 

 


Resumo

Objetiva investigar possíveis casos de ideação suicida em áreas de assentamentos rurais no Piauí. Para isso, realizou-se estudo de corte transversal em dois assentamentos rurais. Por meio de questionário sócio demográfico e o instrumento Self-Reporting Questionnaire (SRQ-20), identificou-se casos de transtorno mental comum na população investigada, com destaque para indivíduos que pontuaram o item do questionário que trata da presença de pensamentos suicidas. Para análise dos dados utilizou-se o pacote estatístico SPSS. Os resultados evidenciaram relação do indicativo de pensamentos com pessoas do sexo feminino, número de filhos, ocupação dona de casa e presença de transtorno mental comum. Tais variáveis por si só não são preditoras ao suicídio, mas evidenciam uma grande vulnerabilidade de mulheres ao comportamento suicida.

Palavras-chave: saúde mental, desejo de morte, ambiente rural, gênero.


Abstract

The study aimed to investigate possible cases of suicidal ideation in rural settlement areas in Piauí. Therefore, a cross-sectional study was conducted in two rural settlements. A demographic questionnaire and the Self-Reporting Questionnaire (SRQ-20) were used and we looked at cases of common mental disorder in the population investigated, with special note to individuals who scored higher in the item about suicidal thoughts. SPSS was used for data analysis. Results showed that suicidal thoughts were more strongly associated with women, the number of children, being a house wife and having a common mental disorder. These variables, by themselves, are not predictors of suicide, but they evidence the vulnerability of women to suicidal behaviour.

Keywords: mental health, healthdesire, rural environment, gender.

 

 

O comportamento suicida enquanto expressão de um conjunto de atitudes ligadas ao suicídio abarca desde ideias e desejos suicidas (ideação suicida), tentativas de suicídio sem resultado de morte e suicídios consumados (óbito) (Bertolote, Mello-Santos & Botega, 2010). Por atualmente ser considerado um problema de saúde pública, o fenômeno do suicídio tem chamado atenção das autoridades sanitárias de todo o mundo. Apesar de ser um ato individual, trata-se de um fenômeno complexo, multifacetado e multideterminado, que reúne fatores diversos: ambiental, antropológico, psicológico, econômico, social, cultural e religioso. Para Costa, Loureiro, Freitas e Santana (2015), esse entendimento tem suscitado estudos em todo o mundo que relacionam o suicídio e a sociedade, a partir de abordagens ecológicas, passando pela avaliação de fatores de risco e níveis de privação e vulnerabilidades sociais.

A Organização Mundial da Saúde [OMS] (WHO, 2017) considera que o suicídio representa 1,4% de todas as mortes em todo o mundo. Anualmente mais de 800 mil pessoas morrem por suicídio e para cada indivíduo que se suicida estima-se que pelo menos outros 20 atentam contra a própria vida. No ano de 2012, o suicídio tornou-se a 15ª causa de mortalidade na população geral e a segunda principal causa de morte entre os jovens de 15 a 29 anos. Na maioria dos países o suicídio está entre as duas ou três causas mais frequentes de morte entre adultos e jovens, e entre as dez causas mais frequentes de morte na população em geral (Botega, Werlang, Cais, & Macêdo, 2006). Os dados disponíveis em 53 países indicam que a taxa de mortes por suicídio é mais alta entre homens se comparado às mulheres, com proporção de três para um. Os países com maiores taxas são do Leste Europeu (Lituânia: 51,6 suicídios por grupo de 100 mil habitantes, Rússia: 43,1 por grupo de 100 mil habitantes) e com as menores taxas são da Europa Mediterrânea (Grécia: 4,2; Portugal: 5,4), América Latina (Colômbia: 4,5; Paraguai: 4,2) e Sudoeste da Ásia (Filipinas: 2,1; Tailândia: 5,6) (Fechio, 2008).

No Brasil, no período de 2011 a 2015, foram registrados 55.649 óbitos por suicídio, com uma taxa geral de 5,5/100 mil hab., variando de 5,3 em 2011 a 5,7 em 2015. As maiores taxas foram observadas na faixa etária de 70 anos ou mais (8,9/100 mil hab.) e na população indígena (15,2/100 mil hab.). Quanto ao perfil dos casos de morte por suicídio que tiveram maior destaque, ressalta-se os casos de indivíduos solteiros(as), viúvos(as) ou divorciados(as), sendo 60,7% do sexo feminino e 60,3% para pessoas do sexo masculino (Brasil, 2017).

Sobre a distribuição dos casos de suicídio por região do país, registrou-se, no período entre 2011 a 2015, os maiores números de óbitos ocorridos na região Sul, com destaque para o estado do Rio Grande do Sul (10,3/100 mil hab.) e Santa Catarina (8,8/100 mil hab.), seguido do Centro-Oeste com o estado do Mato Grosso do Sul (8,5/100 mil hab.). Na região Norte foram registradas as maiores variações da taxa de óbitos por 100 mil no sexo masculino, com o destaque para o estado de Roraima (5,1/100 mil hab.), Rondônia (3,1/100 mil hab.) e Amapá (2,2/100 mil hab.). No sexo feminino as maiores variações foram observadas no Centro-Oeste, com destaque para o Distrito Federal (1,1/100 mil hab.), seguido da região Norte, com os estados de Roraima e Amapá, e do Nordeste com o Piauí, tendo cada um o índice de 0,9/100 mil hab. (Brasil, 2017).

Embora o Nordeste brasileiro figure como a região com a menor escala de óbitos por suicídio em relação às regiões Sul e Centro-Oeste, são dados que precisam ser apreciados com atenção. Por exemplo, entre 1998 e 2008, o Nordeste duplicou o número de casos passando de 1.049 para 2.109. A Paraíba, o Piauí e Sergipe triplicaram o número de ocorrências. Na região Norte constatou-se um aumento dos índices no Tocantins, Amapá e Acre, onde os casos mais que duplicaram. Por outro lado, o crescimento de casos nas regiões Sul e Sudeste foram abaixo da média nacional. O estado de Minas Gerais foi à exceção, com crescimento de 78% dos casos (Waiselfisz, 2011).

Dentre os atos suicidas mais comuns destaca-se o predomínio de pessoas solteiras, mais jovens ou que possuem algum transtorno mental (Nock et al., 2008). Para Gaspari (2002), a presença de transtorno mental é um fator predominante em homens e mulheres. O risco de suicídio é de 3 a 12 vezes maior entre pacientes psiquiátricos, com destaque para casos de depressão e demais transtornos de humor, transtornos de personalidade, uso abusivo e dependente de álcool e drogas, psicoses ou doenças incapacitantes, situações de violência física, psicológica e sexual, como bullying, abuso sexual, dentre outros.

No Rio Grande do Sul, estado recordista de suicídio no Brasil, um estudo em Porto Alegre pesquisou 526 adolescentes e identificou que 36% apresentam ideação suicida, das quais 36% apresentaram sintomas de depressão e 28,6% de desesperança moderada e/ou grave (Borges & Werlang, 2006). Ademais, estima-se: que nos indivíduos com idade entre 15 a 44 anos, o suicídio é a sexta causa de incapacitação; dos casos que tentaram suicídio, pelo menos 15% obtém sucesso na primeira vez; cerca de 15% a 25% dos casos que tentaram suicídio em algum momento da vida farão nova tentativa no ano seguinte, podendo 10% ter êxito em dez anos; ao menos 5 ou 6 pessoas próximas podem sofrer consequências emocionais, sociais e econômicas diante da perda de alguém por suicídio; o risco do comportamento suicida entre familiares com histórico de casos de suicídio chega a ser 4,5 vezes maior do que indivíduos sem esse tipo de registro (Botega et al., 2006). Em hospitais psiquiátricos, o índice de suicídio é 3 a 12 vezes maior que na população geral. Os parentes de primeiro grau de pacientes psiquiátricos, em função da sobrecarga, codependência e intenso sofrimento, são quatro vezes mais propensos de atentar contra a própria vida (Engberg, 1994; Martelli, Awad & Hardy, 2010).

Por tudo isso entende-se como importante o trabalho de vigilância epidemiológica sobre o comportamento suicida no sentido de orientar ações e estratégias de prevenção, posvenção e cuidado. Porém, a subnotificação do suicídio nos registros oficiais encobre o número real de casos, diminuindo a extensão e as particularidades do problema. No caso dos dados sobre tentativas de suicídio, acredita-se que a fragilidade das informações seja ainda maior (Bertolote, 2012). Mesmo sob a sombra da subnotificação, os índices de tentativas de suicídio no Brasil indicam preocupação. No período de 2011 a 2016, segundo a Secretaria de Vigilância em Saúde (Brasil, 2017), foram notificados no Sistema de Informação de Agravos e Notificação (SINAN) 1.173.418 casos de violências interpessoais ou autoprovocadas. Desses casos, 176.226 (15,0%) foram relativos à prática de lesão autoprovocada, sendo 116.113 (65,9%) envolvendo mulheres e 60.098 (34,1%) homens.

Outro dado que exige atenção por parte das políticas públicas e dos profissionais de saúde é sobre o comportamento suicida em áreas rurais. Esse tem sido um problema relatado inclusive em outros países, a exemplo da China, Índia, Canadá, Espanha, Estados Unidos e Grã-Bretanha. Costa et al. (2015), em caso análogo relatam que devido à crise econômica em Portugal observou-se, nos últimos anos, um fenômeno de ruralização do suicídio no país, considerando maior exposição das comunidades rurais a situações de vulnerabilidade e privação. As condições de vida e de trabalho no campo e nas áreas das florestas guardam, muitas vezes, dura realidade que envolve situações de pobreza, falta de acesso à saúde e educação e até mesmo situações de exploração, violência, medo e insegurança, constituindo alguns fatores de risco ao comportamento suicida em populações rurais.

No caso da população indígena brasileira que a taxa de suicídio chega a 15,2/100 mil hab., chama atenção que 44,8% dos casos envolvem adolescentes (10 a 19 anos) (Brasil, 2017). Amazonas, Mato Grosso do Sul e Roraima são os estados que apresentam indicadores mais explícitos sobre mortalidade indígena por suicídio no país (Souza & Orellana, 2012). O suicídio entre populações indígenas encontra forte associação, entre outros pontos, à pobreza e uso dependente do álcool (Werlang, 2013). Quanto aos trabalhadores rurais, os estudos destacam a elevada incidência de suicídios vinculados a atividade agrícola, a carga física e psíquica relacionada ao trabalho e a exposição ocupacional a agrotóxicos (Werlang, 2013). Faria, Facchini, Fassa, & Tomasi (2000) chamam atenção para relação entre os sintomas atribuídos as doenças dos nervos, ocorrências de transtornos mentais comuns e a exposição sem controle a agrotóxicos. Tais aspectos ganham maior relevo em contextos em que se sofre com longos períodos de seca e estiagem, morte do gado, perda da plantação e a não permanência dos filhos na continuidade do trabalho na roça por terem se mudado para o núcleo urbano das cidades em busca de emprego e renda. Esse conjunto de fatores pode suscitar sentimentos de isolamento, desesperança, possibilidade de perdas, medo de ficar sem trabalho, medo de não ser reconhecido, humilhação, perda de confiança e sofrimento social (Werlang, 2013).

Além disso, a população rural ou aquelas que vivem em localidades mais periféricas das cidades ainda sofrem com baixa cobertura e fragilidade na organização da rede de saúde, consequentemente, no desenvolvimento de programas específicos no âmbito da saúde mental como forma de prevenir os altos índices de suicídio do país (Dimenstein, Leite, Macedo, & Dantas, 2016). Estudos mais recentes que tratam sobre saúde mental em contextos rurais no nordeste brasileiro e, particularmente, no Piauí, em áreas de assentamento rural, realizado por Dimenstein et al. (2016), indicam que essas condições são favoráveis ao aparecimento de transtorno mental comum (do tipo não psicótico, com presença de irritação, cansaço, esquecimento, redução da capacidade de concentração, ansiedade e depressão, além de sintomas somáticos) e ao uso problemático de álcool, tornando assim os moradores rurais mais vulneráveis ao sofrimento mental.

Diante tais considerações, entende-se como importante refletir sobre possíveis casos que apresentem características de ideação suicida em assentamentos rurais no Piauí, considerando as particularidades dos territórios e análises situacionais das necessidades sociais e em saúde da população para ampliação das ações de prevenção e cuidado ao suicídio pelas equipes de saúde na comunidade.

 

MÉTODO

Trata-se de um recorte de um estudo mais amplo, de corte transversal, que tratou sobre as estratégias de cuidado e suporte social em assentamentos rurais no Piauí. De acordo com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), há no Piauí 31.193 famílias que vivem em 497 assentamentos rurais. A distribuição espacial dos assentamentos no estado está organizada em quatro macrorregiões, que por sua vez é subdividida em 11 territórios de reforma agrária. Circunscrevemos o estudo no Território “Planície Litorânea” (Macro Norte do Piauí), no assentamento Reserva Extrativista da Marinha do Delta do Parnaíba (RESEX), mais especificamente na Comunidade Canárias; e o outro situado no Território “Carnaubais” (Macro Centro-Norte Piauiense), conhecido como Santo Antônio do Campo Verde, localizado no município de Sigefredo Pacheco.

A RESEX fica localizada no Delta das Américas. Apesar de vinculada administrativamente ao município de Araioses no Maranhão, o INCRA a considera como área de assentamento pertencente ao estado do Piauí. O assentamento é composto por um aglomerado de comunidades dispersas em ilhas no Delta do Rio Parnaíba. O acesso é feito por embarcações grandes e pequenas. O Delta do Parnaíba é uma área de proteção ambiental, criada em 2005, gerenciada pelo INCRA e pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), embora já fosse ocupada há muito tempo pelos moradores. O estudo na RESEX deteve-se na comunidade das Ilhas das Canárias, em função dos seguintes critérios: grande quantidade populacional (maior ilha do Delta), área de grande vulnerabilidade socioeconômica e facilidade no acesso, se comparado as demais comunidades da região.

Quanto ao assentamento Santo Antônio do Campo Verde, este se localiza no centro-oeste do Estado do Piauí, no município de Sigefredo Pacheco, a 8 km da sede do município. Foi criado por meio das lutas do Movimento dos Sem Terra (MST) em parceria com o Sindicato dos Trabalhadores Rurais, num período de grande mobilização dos movimentos sociais rurais e sindical, por se tratar de uma área de grande extensão territorial improdutiva, com cerca de dez mil hectares de terra. No ano de 1996 foi decretado à desapropriação dessa área, e em 1997 foi dado início aos primeiros cadastramentos para formação do assentamento, pelo INCRA. Somente em 1998 começaram a serem construídas as casas.

Participaram do estudo todos os moradores maiores de 18 anos dos dois assentamentos (amostra censitária). Constitui critério de não elegibilidade para compor a amostra do estudo a recusa em participar da pesquisa e a existência de condição médica ou psicológica que impossibilitasse a participação. Os participantes foram entrevistados em seus domicílios pela equipe de pesquisadores (estudantes do Curso de Psicologia da Universidade Federal do Piauí, Campus Ministro Reis Velloso, previamente treinados para a atividade).

Dentre as ferramentas para coleta dos dados foram utilizados:

a) Questionário social demográfico ambiental (QSDA), versão modificada do material elaborado pelo Departamento de Geologia da UFRN, organizado em torno dos seguintes aspectos: sexo, faixa etária, estado civil, números de filhos, renda familiar, escolaridade, ocupação, além de questões referentes à infraestrutura dos assentamentos, condições de vida, acesso aos serviços públicos de saúde, bem como aos programas de transferência de renda, crédito e assistência rurais.

b) Self-ReportingQuestionnaire (SRQ-20) para a detecção dos casos de Transtorno Mental Comum (TMC). É composto por 20 itens, com possibilidade de resposta do tipo sim/não. Os escores obtidos sinalizam a probabilidade de presença de TMC ou desconforto emocional (construto avaliado), variando de 0 (nenhuma probabilidade) a 20 (extrema probabilidade). Adotou-se como ponto de corte o quantitativo de 07 ou mais respostas positivas como indicativo de TMC.

Por se tratar de uma ferramenta de rastreamento em saúde mental validada no Brasil (Mari & Williams, 1986) e recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para estudos comunitários e na Atenção Primária à Saúde (AP), entende-se que mesmo não sendo um instrumento específico para identificar casos de ideação suicida, o SRQ-20 conta com quatro dimensões (Humor Depressivo-Ansioso, Sintomas Somáticos, Decréscimo de Energia Vital, Pensamentos Depressivos), portanto, com potencial de identificação de possíveis casos que apresentem ideias, pensamentos e desejos suicidas, e que podem ser melhor avaliados, posteriormente, por meio do trabalho de aprofundamento clínico com instrumentos específicos para avançar em ações preventivas ao comportamento suicida (Silva et al., 2006; Souza et al., 2010).

Para efeito do presente estudo, que objetiva refletir casos que apresentem características de ideação suicida nos assentamentos investigados, tomamos os seguintes procedimentos de análise: a) centramos nas respostas ao item 17 do SRQ-20 que trata do quesito: “Tem pensado em dar fim a sua vida?”, para, a partir dele, comparar a relação com as demais variáveis da dimensão “Pensamentos Depressivos”; b) verificamos se a distribuição dos indivíduos que pontuaram no item 17 do SRQ-20 evidencia relação com as características investigadas pelo QSDA; c) para inferirmos sobre a associação ou não entre as variáveis foi utilizado o teste qui-quadrado (x2) de independência, sendo os casos com significância menor do que 0,05 (p < 0,05) indicam a existência de associação entre as variáveis na distribuição das respostas. Para a análise dos dados utilizamos o Software Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) for Windows, versão 20.

Ressaltamos que todos os procedimentos éticos da Resolução do Conselho Nacional de Saúde de nº 466/12 foram cumpridos. A pesquisa foi submetida à apreciação ao Comitê de Ética da UFPI, tendo aprovação com a CAAE Nº 54297716.6.0000.5214. Além disso, todos aqueles que aceitaram participar da pesquisa preencheram e assinaram o Termo de Consentimento Livre Esclarecido.

 

RESULTADO E DISCUSSÃO

De acordo com os dados coletados nos assentamentos rurais no Piauí, um total de 762 pessoas acima de dezoito anos responderam o instrumento SRQ-20, sendo que 160 (21%) ficaram acima do ponto de corte, configurando, portanto, possível indicativo de TMC. Quanto aos casos que assinalaram “sim” para pergunta do item 17, “tem pensado em dar fim a sua vida? ”, pontuaram 102 (13,4%) indivíduos.

Apesar do SRQ-20 não constituir um instrumento específico para avaliação da ideação suicida e de não podermos tomar a resposta de um único item como preditor de ideação suicida, entendemos que este dado merece atenção. É nesse sentido que Silva et al (2006) e Souza et al (2010) evidenciam o potencial do SRQ-20 para o rastreamento de casos de sofrimento mental na comunidade em serviços de Atenção Primária, mas também de possíveis situações que indiquem a presença de pensamento suicida. No estudo realizado por Silva et al (2006), por exemplo, os indivíduos com indicativo de TMC pelo SRQ-20 apresentaram quatro vezes mais chance para ideação suicida que seus controles.

Deste modo, ao relacionarmos o resultado das respostas positivas ao item 17 (n = 102) com as respostas positivas para os itens da dimensão “Pensamentos Depressivos” notamos que a distribuição dos escores possui significância de 0,001, apontada pelo teste qui-quadrado, tanto com a dimensão como um todo, quanto com o item 15 “tem perdido o interesse pelas coisas? ” e o item 16 “sente-se inútil em sua vida? ”.

Na análise realizada testamos a hipótese de que a distribuição das respostas é aleatória. Nesse sentido, era esperado que 7,2 respondessem “sim” aos itens 15 e 17 e que 5,6 indivíduos pontuassem da mesma forma nos itens 16 e 17 do SRQ-20. Porém, observamos nos valores encontrados na Tabela 1 que os resultados superaram a distribuição esperada, sendo 19 casos que pontuaram simultaneamente nos itens 15 e 17; e 16 casos que pontuaram simultaneamente nos itens 16 e 17. É possível fazer a mesma inferência de associação entre responder “sim” ao item que trata de “ideação suicida” e pontuar na dimensão “Pensamentos Depressivos”, uma vez que os resultados encontrados (n = 38) superam os 7,1 indivíduos esperados indicados pelo teste estatístico. Assim, é possível perceber que pontuar na dimensão supracitada aumenta em cinco vezes a chance de responder “sim” ao item que trata sobre ideação suicida, conforme significância de ?,???. Isso ajuda a explicar o fato de o item 17 estar relacionado com outros dois itens da dimensão.

 

 

Por outro lado, tomando a problemática do comportamento suicida enquanto fenômeno multideterminado é preciso relacionar os casos identificados com ideação suicida com o perfil social demográfico e as particularidades das condições de vida nos assentamentos investigados. Essa leitura auxilia na avaliação de fatores de risco e possíveis níveis de privação e vulnerabilidades dos casos identificados para planejamento de ações de prevenção e cuidado pelas equipes de saúde.

Quanto ao perfil dos indivíduos que apresentam características de ideação suicida, observa-se que 73 (71,6%) são moradores da Reserva Extrativista do Delta do Parnaíba e 29 (28,4%) do assentamento rural Santo Antônio do Campo Verde. Do total de indivíduos identificados, a maioria é do sexo feminino, com faixa etária entre 30 a 49 anos, estado civil casado, que possuem filhos, com renda familiar de ½ salário mínimo, escolaridade fundamental incompleto/completo e ocupação de pescador/agricultor e dona de casa, conforme ilustrado na tabela 2.

 

 

Embora registre uma melhoria nos indicadores sociais nas áreas rurais do Brasil, resultado da implantação e expansão de projetos sociais e agrários, ainda é possível observar nos assentamentos investigados um restrito acesso aos serviços públicos de saúde, educação, assistência social, transporte público, lazer e convivência, bem como poucas oportunidades de emprego e de atividades complementares à renda familiar, precárias condições de trabalho e dependência dos programas de transferência de renda e manutenção de migração rural-urbana.

Nesse sentido, retomamos alguns estudos que partem de uma abordagem ecológica em saúde, a partir de reflexões com base no território e na determinação social do processo saúde-doença-sofrimento-cuidado para problematizar o perfil encontrado (Loureiro, Costa & Santana, 2016). Por determinação social da saúde entendemos a forma de procurar apreender as múltiplas determinações que incidem sobre uma realidade concreta e, consequentemente, sobre as condições de saúde de uma coletividade. Deste modo, o conjunto de determinantes não envolve apenas indicadores de desigualdade social e pobreza, mas contempla também questões como presença, qualidade e acessibilidade dos/aos serviços e ações de saúde pública e recursos comunitários (Barcellos, 2009).

No caso da saúde mental, as características do território produzem impactos positivos e negativos na saúde do indivíduo e da comunidade, que a depender das condições de vida e das vulnerabilidades sociais, econômicas e físicas podem representar maiores ou menores riscos de desenvolvimento e agravo de adoecimentos/sofrimentos psíquicos a determinados grupos sociais (WHO & Calouste Gulbenkian, 2014). Loureiro et al. (2016) apontam como determinantes contextuais da saúde mental: as características do ambiente físico e construído, características do ambiente socioeconômico e características do ambiente de interação social. Além disso, registra-se outros determinantes, tão importantes quanto na determinação da saúde mental, que são os marcadores de gênero, classe, étnico-raciais, culturais e geracionais.

O estudo de Ludermir (2008) é um dos pioneiros nesse tipo de abordagem ao relacionar saúde mental, gênero e classe social na incidência de TMC em mulheres de áreas urbanas. De acordo com a autora, relações baseadas em formas de dominação, subordinação e opressão, estabelecidas por tais marcadores, se expressam na forma de sofrimento mental. Especificamente sobre as relações de gênero e saúde mental, para Zanello (2014), a implicação de um no outro “leva-nos a refletir como os valores e papéis de gênero participam da constituição subjetiva do sujeito, não apenas no modo como ele se expressa, mas também sofre” (p.44).

A partir da tabela 2 podemos refletir sobre algumas dessas particularidades quanto as condições de vida dos assentamentos investigados donde identificamos os casos que apresentaram características de ideação suicida. A primeira é quanto à variável sexo (x2=9,995; p=0,002). Observamos que dentre os indivíduos que pontuaram no item 17, 69,6% foram do sexo feminino. As mulheres têm pensado, em uma maior proporção, em termos da possibilidade de tirar a própria vida mais do que os homens nos assentamentos estudados. Tal dado é condizente com o cenário mundial e nacional em que as mulheres apresentam maior prevalência de comportamentos relacionados a ideação/tentativas de suicídio, embora a taxa de mortalidade por óbito por suicídio seja mais elevada nos homens, já que utilizam meios mais agressivos em suas tentativas. (Brasil, 2017; Costa, Dimenstein & Leite, 2014; Rabasquinho & Pereira, 2007).

Para compreendermos o fenômeno em áreas de contextos rurais, é importante recorrermos ao estudo realizado por Dimenstein et al. (2016) que retrata as particularidades quanto ao sofrimento psíquico entre homens e mulheres em área de assentamentos rurais. Enquanto o adoecimento dos homens está associado à carga do trabalho agrícola, à precariedade das condições de trabalho, à perda da vitalidade física, bem como ao surgimento de doenças crônicas, nas mulheres relaciona-se ao trabalho doméstico, à dupla jornada de trabalho, ao número de filhos, à violência de gênero praticada por parceiro íntimo, e aos eventos de vida estressantes como perdas de parentes próximos ou a separação conjugal.

O fato de lidarem com elevada carga de trabalho, desdobrando-se entre as atividades de cuidar de casa, dos filhos, do marido, da atividade agrícola ou pesqueira, além de assumirem o papel de cuidadora, tudo isso resulta em uma intensa sobrecarga física e emocional nessas mulheres, o que constitui em um fator de risco frente à intencionalidade de atentar contra própria vida (x2=14,147; p=0,049). Basta ver que, dentre as mulheres que pontuaram no item indicativo de “pensamento suicida”, 74% delas têm filhos numa média de dois, enquanto os homens com “pensamentos suicidas”, em sua maioria, não possuem filhos (51,6%), e se possuírem a média é de somente um.

Para Zanello (2016), os papéis de gênero atribuídos, sobretudo, no casamento, constituem fator de proteção à saúde mental muito mais para os homens do que para mulheres. O cuidado com os filhos, marido, familiares, bem como a invisibilidade do trabalho doméstico, que em grande medida diz de uma continuidade entre o roçado-quintal-casa, têm levado muitas mulheres ao esgotamento físico e sintomas de sofrimento psíquico. Apesar de todos os avanços em relação aos direitos das mulheres, a desigualdade de gênero ainda permeia a sociedade de forma naturalizada, resquício do patriarcado enraizado historicamente na sociedade que instituiu, às mulheres, o espaço doméstico, sem direito à vida pública, à participação política e restringidas a dominação e a tutela dos homens.

Essas características destinadas ao lugar de homem e de mulher implicam na distribuição de tarefas que vão ao encontro com a representação dos sujeitos, conferindo-lhes papéis bem definidos, que são tomados como referenciais para a construção de um ideário do que é ser mulher e do que é ser homem em áreas de contextos rurais. Tais atravessamentos também refletem nos dados encontrados no presente estudo quanto às atividades desempenhadas por homens e mulheres. Nos homens há um maior percentual de agricultores e pescadores (54,9%), enquanto nas mulheres sobressaem as atividades de cunho doméstico (39,4%), exercidas exclusivamente por elas. Com as demais análises, observamos que à medida que as mulheres desempenhavam mais de uma atividade, para além daquelas de cunho doméstico, diminuía o percentual de respostas positivas quanto à intencionalidade de atentar contra a própria vida (x2= 51,964; p=0,001). Tal relação convida a pensar o quanto essas atribuições sociais e a sobrecarga de trabalho predispõem ao adoecimento psíquico e o surgimento de pensamentos que sinalizem intenção de atentar contra própria vida, principalmente no universo feminino.

A literatura destaca como um dos principais fatores predisponente para o comportamento suicida a existência de algum transtorno mental, como depressão, transtorno de ansiedade, de humor, uso abusivo de álcool e de outras drogas (Braga & Dell’aglio, 2013). De encontro ao exposto, 58,8% dos investigados apresentaram indicativo de transtorno mental comum. Além disso, 63,4% das mulheres que pontuaram positivamente no item que indica presença de “pensamento suicida” também apresentaram indicativo de transtorno mental comum. No caso dos homens, o percentual daqueles que apresentaram relação significativa (x2= 51, 964; p=0, 001) entre transtorno mental e comportamento suicida foi de 48,4%.

Estudos retratam que a alta prevalência de transtorno mental comum em mulheres rurais está relacionada a diversos fatores como a elevada carga de trabalho doméstico, cuidado com os filhos, condições precárias de moradia, baixa remuneração, desemprego/informalidade nas relações de trabalho, bem como a falta de reconhecimento e a invisibilidade em torno das atividades de cunho doméstico, violência de gênero, falta de apoio social (Costa & Ludermir, 2005; Costa, Dimenstein & Leite, 2014; Dimenstein et al., 2016; Pinho & Araújo, 2012).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Entendendo o comportamento suicida como resultado da interação de múltiplos fatores, ao incluirmos também as relações de gênero neste bojo, destacamos a importância de aprofundar a temática no debate sobre a determinação social da saúde mental em áreas rurais.

O indicativo de pensamento suicida esteve associado significativamente ao sexo feminino, ao número de filhos, a ocupação dona de casa e a presença de transtorno mental comum. Reflexo, talvez, dos papéis atribuídos, socialmente, às mulheres frente a dois dispositivos: o casamento e a maternidade. Cabe ressaltar que tais variáveis por si só não são preditoras de ideação suicida, mas evidencia uma grande vulnerabilidade das moradoras de assentamentos rurais a situações que podem contribuir mais adiante no surgimento de um quadro de transtorno mental comum acompanhado ou de pensamentos suicidas.

Apesar dos limites desse estudo, por ter sido realizado em somente dois assentamentos rurais do estado do Piauí, portanto, não é passível de generalização, para efeito de aprofundamento, faz-se necessário realizar um trabalho de entrevista clínica em profundidade para melhor conhecimento e rastreamento de possíveis casos de ideação suicida na população investigada.

Situar preliminarmente uma primeira abordagem sobre a problemática investigada em realidades rurais, além de conhecer algumas particularidades da determinação social que atravessa o comportamento suicida em áreas rurais constitui-se em um importante passo para pensar estratégias e ações de programas de prevenção, visto serem realidades marcadas por inúmeras vulnerabilidades territoriais e acesso restrito aos serviços de saúde mental e oferta de profissionais especializados.

 

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Endereço para correspondência:

Departamento de Psicologia,

Universidade Federal do Piauí - UFPI Campus Universitário Ministro Petrônio Portella.

Bairro Ininga – Teresina – PI – CEP: 64049-550

 

Recebido em 06/06/2018

Aceito em 05/07/2018

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