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Psicologia em Pesquisa
On-line version ISSN 1982-1247
Psicol. pesq. vol.16 no.1 Juiz de Fora Jan./Apr. 2022
https://doi.org/10.34019/1982-1247.2022.v16.32719
ARTIGOS
Negociações Cotidianas de Travestis e Mulheres Trans Trabalhadoras Sexuais
Transvestites and Trans Women Sex Workers' Daily Negotiations
Negociaciones diarias de travestis y trabajadoras sexuales trans
Hellen Yuki Costa MiwaI; Andre Luiz Machado das NevesII; Munique TherenseIII
IUniversidade do Estado do Amazonas (UEA) e Universidade Federal do Amazonas (UFAM). E-mail: hellenmiwa@hotmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2781-2669
IIUniversidade do Estado do Amazonas (UEA) e Universidade Federal do Amazonas (UFAM). E-mail: andre_machadostm@hotmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7400-7596
IIIUniversidade do Estado do Amazonas (UEA). E-mail: mtherense@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5433-9267
RESUMO
Este artigo busca compreender as negociações cotidianas sobre "sexo seguro" e acesso aos serviços de saúde de travestis e mulheres transexuais trabalhadoras sexuais. Foi conduzida uma análise com suporte do método fenomenológico de pesquisa, sendo entrevistadas três travestis e duas mulheres trans profissionais do sexo. A análise compreensiva apresentou duas categorias: "Sexo seguro nas ruas: negociações de finanças, risco e desejo", que apresenta os elementos negociados nas vivências de rua, e "Outsiders e Estabelecidos: a visibilidade seletiva em instituições e seus efeitos no cuidado da saúde trans", que desvela os sentidos nas vivências negociadas no cotidiano das instituições de saúde.
Palavras-chave: Pessoas transgênero; Travesti; Acesso aos serviços de saúde; Trabalho sexual; Discriminação social.
ABSTRACT
This article seeks to understand transvestites and transsexual women sex workers' daily negotiations on "safe sex" and access to health services. An analysis was conducted with the support of the phenomenological research method, with three transvestites and two trans women sex workers being interviewed. The comprehensive analysis presented two categories: "Safe sex on the streets: negotiations of finances, risk and desire", which presents the elements negotiated in street experiences, and "Outsiders and Established: the selective visibility in institutions and their effects on trans health care", which unveils the senses in the experiences negotiated in the daily lives of health institutions.
Keywords: Transgender people; Transvestite; Access to health services; Sex work; Social discrimination.
RESUMEN
Este artículo busca comprender las negociaciones diarias sobre "sexo seguro" y acceso a servicios de salud de travestis y trabajadoras sexuales transexuales. Se realizó un análisis con el apoyo del método de investigación fenomenológico, siendo entrevistados tres travestis y dos trabajadoras sexuales trans. El análisis integral presentó dos categorías: "Sexo seguro en la calle: negociaciones de finanzas, riesgo y deseo" - que presenta los elementos que son acordados en las experiencias de la calle - y "Forasteros y Establecidos: la visibilidad selectiva en las instituciones y sus efectos en el cuidado de la salud trans", que desvela los sentidos en las experiencias negociadas en el día a día de las instituciones de salud.
Palabras clave: Personas transgéneras; Travestis; Acceso a los servicios de salud; Trabajo sexual; Discriminación social.
Em "A negociação da intimidade", Zelizer (2011) descreve uma série de diferenciações, proteções e concepções que operam incidindo nas negociações que permitem a coexistência entre trocas econômicas e relações sociais íntimas. Inspirados nessa obra, propõe-se neste trabalho o uso na noção de negociação para compreender os aspectos do modo de ser da travesti e da mulher trans durante o trabalho sexual sob o prisma de duas dimensões: "sexo seguro" e acesso aos serviços de saúde. As negociações desvelaram-se nas entrevistas fenomenológicas de forma autêntica e ofereceram contornos que contribuíram tanto para elucidar questões que atravessam nosso horizonte histórico, quanto para fomentar a discussão da pauta trans nos nichos de debates da fenomenologia hermenêutica.
A escolha deliberada pelo termo "negociação" também se deu em virtude de sua potência semântica, pois se refere tanto ao ato comercial quanto à formulação de acordos mediante concessões das partes envolvidas. Nas transações efetuadas no mundo vivido das travestis profissionais do sexo, quais elementos se mostraram negociáveis? Quais fenômenos apareceram estruturados na tensão entre o consentimento e a contraproposta? Neste estudo, as respostas a tais perguntas apareceram concentradas em dois eixos: na rua, com as transações envolvendo o ideal de "sexo seguro", e nas instituições de saúde, mediante interpelações que permeiam a sustentação do corpo-vivido.
Sobre a dimensão "sexo seguro", cabe situar que essa noção foi concebida no contexto da epidemia do vírus da imunodeficiência humana (HIV) e a síndrome da imunodeficiência adquirida (aids). Nesse sentido, convém situar o/a leitor/a de forma introdutória que, ainda desconhecida e pautada em discursos contraditórios e atravessados por moralidades, a ideia da aids foi produzida como uma doença sexualmente transmissível, apesar de haver outras formas de infecção. Isso significa que a aids poderia ter sido categorizada de outras maneiras, conforme assinala Pelúcio (2007), entretanto, a relação entre o (mau) sexo e o risco estava posta, estando representada pelas noções de que ". . . ter vários parceiros, fazer sexo anal, embebedar-se e fazer sexo, ter relações com homens gays, prostitutas, travestis, michês, são algumas dessas ameaças do sexo, sobretudo do sexo sem preservativo" (p. 136).
Nessa direção, ao sexo arriscado, ofereceu-se o "sexo seguro". Essa iniciativa emergiu mais da criatividade dos grupos gays organizados do que de formuladores de políticas públicas em saúde. No entanto, apesar de não ser gestada em âmbito oficial, foi incorporada, adaptada e conquistou equipes multidisciplinares ligadas aos diversos programas de prevenção em vários países. Com isso, o problema não foi mais ser prostituta, gay, travesti, transexual ou usuário de drogas injetáveis, mas possuir a autoconsciência de "querer ser" saudável. A questão passou a ser como fazer os "desviantes" adotarem condutas não arriscadas do "mau sexo" (Pelúcio & Miskolci, 2009).
Em tal cenário, surgem ações do então chamado Movimento Homossexual do Brasil, que passam a se desenvolver em íntima articulação com o poder público, potencializando sua visibilidade. Embora imprimisse uma tônica moralizante e de controle das sexualidades, a resposta à aids constituiu um marco na formação dos movimentos sociais que demandaram o direito à saúde e se comprometeram com a construção de políticas públicas capazes de prover um modelo de cuidado para as populações afetadas. Lançou-se mão de políticas públicas de saúde em parcerias com grupos gays, porém pautadas em um discurso de responsabilização do sujeito, que pode se autovigiar em prol de sua saúde (Pelúcio, 2007). Desloca-se, assim, a responsabilidade do Estado pelos procedimentos de saúde sobre o indivíduo e a coletividade para uma autogestão e autovigilância da saúde (Ortega & Zorzanelli, 2010).
"Como o olho do poder penetra nas mucosas, nos esfíncteres, nas ondas dos espasmos, nas irisações do gozo?" (Pelúcio & Miskolci, 2009, p. 138). Essa indagação de Perlongher, apresentada no artigo A Prevenção do Desvio, de Pelúcio e Miskolci (2009), orientou reflexões sobre como isso se tornou possível. Eles refletiram que isso se deu pela incitação médica em falar prolixa e exaustivamente de sexo, o que teve como efeito uma sistemática ordenação dos corpos e dos prazeres capazes de abranger todo o regime de vida do sujeito.
No contexto atual, novas diretrizes orientam também um novo modelo para a prevenção da "população-chave", que cada vez mais é responsabilizada pela adoção ou não das práticas do "sexo seguro". Decorrente de pesquisas e biotecnologias a serviço da redução das novas infecções, passou-se a recomendar, por exemplo, a circuncisão masculina, o uso do medicamento de profilaxia pré-exposição (PrEP), a adesão de 100% do tratamento dos antirretrovirais de pessoas que convivem com o vírus do HIV como prevenção etc. (Monteiro, Brigeiro, Vilella, Mora, & Parker, 2019). Em 2016, emerge a estratégia da "Prevenção Combinada". Essa estratégia orienta o uso simultâneo de múltiplas abordagens de prevenção (biomédica, comportamental e socioestrutural) aplicadas em múltiplos níveis (individual, nas parcerias/relacionamentos, comunitário, social) para contemplar as demandas específicas de determinados públicos e determinadas formas de transmissão do HIV (Ministério da Saúde, 2016). Nesse escopo, frente aos atuais repertórios oficiais que prescrevem estratégias de um "sexo seguro", consideramos relevante abordar a questão com base na experiência cotidiana do trabalho sexual à luz da leitura da fenomenologia hermenêutica.
Importa também esclarecer que para a estruturação da discussão sobre as negociações que ocorrem nas vivências de rua foi relevante compreender a categoria "Emoções" com base em sua dimensão micropolítica. Tal interpretação permitiu considerar os estados emocionais articulados às trocas sexuais, monetárias e afetivas, atravessados pela atual produção discursiva da prevenção para um grupo de pessoas que carrega a marca de ser "população-chave". Assim, entende-se que a emergência das emoções nos contatos sociais pode estar relacionada a hierarquias sociais e relações de poder. Sentimentos como o nojo, o desprezo e a indiferença, por vezes, podem evidenciar processos de inclusão/exclusão que orientam as relações entre certos grupos, assim como a fidelidade, a gratidão e a compaixão vão denotar a inconstância dos laços sociais que precisam ser continuamente constituídos e renovados (Rezende & Coelho, 2010).
Na segunda dimensão, que compreende as transações efetuadas no mundo vivido das travestis e mulheres trans profissionais do sexo, estão as negociações para o acesso aos serviços públicos de saúde pelas travestis e mulheres trans. Simpson (2016) afirma que a política pública para pessoas travestis e transexuais reconhece os serviços de saúde como um lugar estabelecido para elas.
Como resultado da trajetória de mobilização política de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT) junto a essa esfera de governo, o Ministério da Saúde [MS] instituiu a Política Nacional de Saúde Integral de LGBT (Ministério da Saúde, 2011). Essa política, em especial, o Processo Transexualizador do Sistema Único de Saúde (SUS), foi reivindicação antiga das pessoas trans do Brasil.
Esse instrumento reconhece a orientação sexual e a identidade de gênero como determinantes sociais da saúde, visando a eliminação das iniquidades e desigualdades em saúde. A política se constituiu com o propósito de promover o acesso à saúde baseado no respeito à identidade de gênero, à orientação sexual e às necessidades de saúde das pessoas LGBT. Simpson (2016) avalia que, não obstante ser ainda longo o caminho para um atendimento em saúde com qualidade, que valorize os princípios de integralidade, universalidade e os preceitos da equidade no SUS, essas políticas específicas foram importantes para as travestis e transexuais, para além da retórica da aids - que até então era a única porta de entrada no SUS -, pois permitiram o trânsito delas nas dependências do SUS, para que tratassem da sua saúde em espaços que outrora seria impensável encontrar esses dois grupos populacionais: travestis e transexuais.
No Brasil, há vários levantamentos sobre pessoas travestis e transexuais. Estudos socioantropológicos, como a obra clássica de Kulick (2008), observaram como as travestis vivem, o que pensam e qual a sua trajetória pessoal. Pelúcio (2007), em sua tese de doutorado, descreve em sua etnografia que a prostituição é uma "atividade desprestigiosa" na visão de muitas travestis e motivada pela "necessidade" de recursos financeiros. Magno, Dourado e Silva (2018) relatam em seu estudo que o trabalho sexual nem sempre é o destino de todas as travestis e mulheres transexuais.
No âmbito de estudos psicológicos, outros estudos brasileiros, como o de Giongo, Menegotto e Petters (2012), focaram as demandas de travestis e transexuais profissionais do sexo com relação à saúde mental. O estudo destacou a fragilidade na rede de apoio social e afetiva das participantes, representada pelos sentimentos de abandono e solidão. Na pesquisa de Zucchi, Barros, Redoschi, Deus e Veras (2019), as/os autoras/es discutem que a atividade exercida como trabalho, independentemente do tipo de ocupação, tem impacto positivo sobre o bem-estar psicológico entre as travestis e as mulheres transexuais. No caso do trabalho sexual, o estudo apontou que, embora o envolvimento com a atividade de prostituição constitua um fator de risco para infecção por HIV, uso prejudicial de drogas, transtornos mentais, maior susceptibilidade a situações de violência física e sexual e a prisões arbitrárias, assumir a prostituição como identidade profissional apresentou características particulares, isto é, a prostituição assume um espaço de ativismo, reivindicação de protagonismo e defesa de direitos humanos para as travestis e mulheres transexuais que participaram da pesquisa.
Estudos internacionais (Cuadra-Hernández, Zarco-Mera, Infante-Xibillé, & Caballero-García, 2012; Melendez & Pinto, 2007; Palazzolo, Yamanis, De Jesus, Maguire-Marshall, & Barker, 2016), ao abordarem a experiência das travestis e mulheres transexuais no campo do trabalho sexual, focaram na discriminação, violência e exclusão como parte do cotidiano de muitas travestis e mulheres transexuais.
No que tange ao acesso aos serviços de saúde no contexto brasileiro, parte significativa das investigações científicas abordam que esses serviços, em sua maioria, atuam com discriminação e propiciam pouco acesso às travestis e transexuais (Neves, 2019; Monteiro & Brigeiro 2019; Rocon, Wandekoken, Barros, Duarte, & Sodré, 2020).
Levantamentos internacionais, como na África do Sul (Newman-Valentine & Duma, 2014), evidenciaram que também há preconceito no acolhimento e mau atendimento por parte dos profissionais de saúde. Nos Estados Unidos, Dietz e Halem (2016) revelaram que os profissionais tendem a acreditar que qualquer sintoma de saúde está associado a um efeito colateral da hormonização, e Whitehead, Shaver e Stephenson (2016) verificaram que pessoas trans relataram sofrer mais por estigma e ter menos acesso aos serviços de saúde que as pessoas que não são trans.
Frente a essas premissas, este estudo reconhece o mercado sexual como uma atividade legítima, para além da noção de risco e vulnerabilidade, tendo em vista que os profissionais que atuam nesse mercado precisam de políticas públicas que se alinhem às especificidades no processo de negociação cotidiana inerente da prática de sexo comercial. Para isso, lançamos mão do referencial da fenomenologia hermenêutica e teorias sociais críticas neste artigo, objetivando compreender as negociações cotidianas sobre "sexo seguro" e o acesso aos serviços de saúde de travestis e mulheres transexuais que realizam trabalho sexual na cidade de Manaus (AM).
Método
Participantes
Foi realizada uma pesquisa de campo com abordagem qualitativa. Participaram desta pesquisa, três travestis e duas mulheres trans. A amostra foi por conveniência, com o intuito de adaptar os pesquisadores ao universo do trabalho sexual, em que os horários, muitas vezes, tornaram-se incompatíveis. Em alguns casos, algumas participantes estavam em atendimento de algum cliente ou, em outros momentos, desmarcavam por necessitar descansar quando não estavam realizando a atividade sexual. Embora este estudo tenha limitações no que se refere à abrangência da amostra, os resultados permitiram conclamar a importância de criação de políticas públicas mais contextualizadas com as especificidades do público em tela. Os critérios de inclusão considerados foram: ser brasileira e maior de 18 anos; autoidentificar-se mulher transexual ou travesti e; ser profissional do sexo na cidade de Manaus. Para resguardar as identidades das participantes, foram utilizados pseudônimos.
Cabe salientar que apenas Catarina dispõe de outra fonte de renda, pois é aposentada; nenhuma das participantes possui filhos. Além disso, somente Emma tem um relacionamento afetivo, residindo junto com seu companheiro.
Técnica de Coleta de Dados
A coleta de dados foi feita por meio de entrevista fenomenológica, que, segundo Acharán e Sousa (2014), permite alcançar descrições do mundo experiencial, do mundo da vida das entrevistadas e de suas explicitações de significados sobre os fenômenos descritos. Dessa forma, no âmbito da investigação fenomenológica, buscou-se, tão completa quanto possível, a descrição das experiências vivenciadas pelas participantes acerca desse fenômeno.
A entrevista foi conduzida mediante os seguintes tópicos disparadores: Como acontece a abordagem durante a atividade realizada? Quem geralmente aborda? O que é mais pedido durante o programa? O pedido de sexo no "pelo" - atividade sexual sem preservativo - é muito solicitado? Os clientes geralmente são de que idade? Quais os principais sentimentos durante o programa? Você já precisou ir a um serviço de saúde depois de um programa ou no dia a dia? Como foi a experiência? Fale como você cuida da sua saúde sendo travesti/mulher trans profissional do sexo. As entrevistas duraram em média 40 a 50 minutos e foram realizadas presencialmente nas residências das participantes, a fim de resguardar o sigilo de cada uma delas.
Análise de Dados
Mediante a fala das entrevistadas e da situação hermenêutica que ali se estabeleceu, chegou-se às unidades de sentido. Isso foi possível tendo em vista que as interlocutoras, que narraram suas experiências das negociações cotidianas, disponibilizaram à/aos pesquisadora/es, as interpretações vislumbradas nos horizontes experienciais, como apontam Garcia e Jorge (2006), constituindo sentidos atribuídos às vivências singulares. Coube a/aos pesquisadora/es atentar às repetições das narrativas e reuni-las em unidades temáticas de sentido, articulando as aproximações e os distanciamentos entre elas para a apresentação do fenômeno.
Procedimentos
O projeto de pesquisa foi submetido ao Comitê de Ética e Pesquisa com Seres Humanos da Universidade do Estado do Amazonas, sendo aprovado para execução sob o número 3.068.470 - CAAE 02415118.6.0000.5016.
Após a aprovação, o caminho para obter-se as entrevistas foi iniciado por meio de uma travesti profissional do sexo, conhecida de um dos pesquisadores, que foi a primeira participante da pesquisa e que forneceu o contato das outras quatro participantes da pesquisa. Posteriormente ao contato inicial, via mensagem pelo telefone celular, foi apresentado o objetivo da pesquisa e a solicitação do agendamento da entrevista de acordo com a disponibilidade de cada uma delas. Na data marcada para a entrevista, foi lido e assinado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), que constava a anuência para a gravação da entrevista.
Resultados e Discussão
Os resultados da pesquisa foram organizados em duas categorias: "Sexo seguro nas ruas: finanças, risco e desejo", que apresenta os elementos negociados nas vivências de rua, e "Outsiders e Estabelecidos: a visibilidade seletiva em instituições e seus efeitos no cuidado da saúde trans", que desvela os sentidos atribuídos às vivências negociadas no cotidiano das instituições de saúde.
Sexo Seguro nas Ruas: Finanças, Risco e Desejo
"Tá na rua" é um termo nativo que significa a prática do trabalho sexual. Nas narrativas, as interlocutoras trouxeram de forma recorrente os sentimentos da experiência de quem "tá na rua" e as negociações vivenciadas pelas ambivalências entre sexo seguro, risco e desejo.
Dentre os elementos da rua, a "camisinha" emergiu como um termo presente em todas as falas das interlocutoras da pesquisa, sendo percebida como a principal forma de prevenção de HIV e de Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST), conforme trecho a seguir: "Até porque, a gente que tá na rua e tá acostumada lidar com prostituição, sabe que tem que usar uma camisinha, tem que fazer exame. . . . Eu acho que a principal é a camisinha" (Emma, 18/12/2018, Manaus - AM).
Nota-se que a fala de Emma é estruturada pelo discurso oficial das políticas de prevenção. Em sua fala, aparece a noção de Prevenção Combinada - testagem do HIV e uso do preservativo - narrativa vigente das políticas de prevenção (Ministério da Saúde, 2017). Seguindo a trilha de Pelúcio (2007) e Sabatine (2012), essa fala pode indicar uma suposta aceitação por parte de Emma do que se divulga nas políticas de prevenção ao HIV, aids e IST, bem como da credibilidade conferida às ações preventivas do sistema oficial de saúde. A princípio, as participantes informaram a "camisinha" como prática de cuidado de si durante o trabalho sexual. Entretanto, a continuidade da fala desvela a negociação em torno do item, permitindo reflexões a respeito dos sentidos conferidos ao preservativo.
A análise das narrativas parece indicar que o pedido do cliente para a retirada da camisinha constitui-se elemento de tensão da experiência do trabalho sexual. Logo, quando o cliente solicita a abdicação do preservativo, as participantes acionam gramáticas emocionais conjugadas por meio do nojo, a culpa e o tesão. Nesse contexto, identificou-se nas falas de Catarina e Elizabete como funciona a prática de negociação, quando é solicitado que o programa seja realizado sem alguma barreira preventiva, seja oral e/ou anal, receptivo ou insertivo:
Tem clientes que gosta sem camisinha. . . . Aí, eu digo, 'ah menino, tu vai me pagar mais?' Aí, ele vai abrindo a carteira e vai dando, e vai dando, e vai dando, e vai dando (Elizabete, 18/12/2018, Manaus - AM).
Era no oral também, no oral. Mas tinha muito cliente que não queria, queria sem. . . . Às vezes chegava lá e o pau tava sujo, e queria porque queria, que fizesse. Era horrível, porque até o carro ficava fedendo quando ele tirava. . . . Aí quando esfolava, mana, tava só aquele queijo [risos]. . . . Mas a maioria queria sem mesmo (Catarina, 09/01/2019, Manaus - AM).
Nas falas de Catarina e Elizabete, esse tipo de solicitação e negociação pareceu ser recorrente por muitos clientes. Pelúcio (2007) observou que muitas vezes o ato de aceitar um programa sem "camisinha" é regido pelas necessidades cotidianas, seja para ganhar mais ou simplesmente para conseguir o programa. Esse tipo de prática é mais comum quando as travestis estabelecem algum tipo de afinidade com seus clientes e isso acarreta um afrouxamento na prevenção.
As narrativas permitem a compreensão de que o mundo vivido pelas travestis e mulheres trans que realizam trabalhos sexuais encontra-se descolado dos modelos preventivos, densamente demarcado por práticas de prevenção ancoradas em um sexo prescritivo, autovigilante e pânico moral (Sabatine, 2012). Esses modelos parecem não coadunar com a prática laboral de quem "tá na rua". Ao narrar sobre a vivência de fazer sexo oral sem camisinha, Catarina usa o nojo ("pau fedendo e sujo") como a emoção que circula sua experiência negociada. Assim, o fenômeno do trabalho sexual parece ser constituído muito mais por sentidos oriundos das emoções que organizam a vivência do que, de fato, por autogestão e autovigilância.
Esses últimos dois itens surgem, principalmente, quando evidenciada a perspectiva de ameaça. Ao falar sobre o risco de adquirir algum tipo de doença, no caso na garganta, Catarina demarca a inviabilidade da prática de sexo oral sem camisinha: "Eles ofereciam, se a gente tivesse coragem de chupar do jeito que tava. Eles davam mais. Mas eu dispensava, que além de ficar com mau hálito, podia pegar uma doença na garganta, como uma amiga minha pegou, né?" (Catarina, 09/01/2019, Manaus - AM).
Nesse sentido, seu corpo é o cenário sobre os quais se centram os efeitos das emoções repulsivas (Menninghaus, 2003). Segundo Assis, Soares e Motta (2018), a experiência do trabalho sexual é marcada por polaridades. Os sentidos conferidos às vivências de risco e nojo, por vezes, podem ser esvaziados diante de outros elementos que confrontam o vivido. Nas narrativas apareceram referências ao "tesão" como elemento presente quando se "tá na rua". São situações que desvelam sentidos que prevalecem àqueles relacionados aos benefícios monetários, evidenciando outros elementos na negociação para o afrouxamento da atividade sexual sem camisinha. Logo, apesar de algumas participantes desta pesquisa reproduzirem o discurso oficial sobre a importância do uso da camisinha, a fronteira entre o risco e o prazer se mostra tênue quando o elemento "tesão" se insere na arena da negociação:
Às vezes, a sensação tá gostosa, e a carne é fraca, nós somos humanos e o bofe é gostosinho, tem uma picona gostosa... E a garota vai na fraca, né? [risos] às vezes, às vezes... Não são todos. São contados nos dedos. Mas, às vezes, a tentação vem, como tô falando pra vocês e, depois que termina tudo, eu entro num mundo totalmente "uó". Desprezível. Por que eu fiz aquilo? (Elizabete, 18/12/2018, Manaus - AM).
É possível identificarmos na fala de Elizabete emoções para além do valor monetário: o prazer e a culpa. Quando há uma "picona gostosa" ou um "boy gostosinho", a carne enfraquece, isto é, as transações passam a se estruturar por meio de sentidos diferentes dos apontados até então, movidos por afetos que, atmosféricos, irrompem em situações-limite. No caso do prazer, em relação " aos aspectos preventivos, é justamente com os 'homens de verdade' que as travestis acabam fazendo sexo sem camisinha, ou porque é com eles que irão ter relações afetivas, ou por serem eles os clientes gostosos" (Pelúcio, 2007, p. 87).
Para além de desleixo ou ignorância - interpretações fáceis muitas vezes atribuídas àquelas que não seguem exatamente as normas propostas -, há a necessidade de "ser-com-o-outro", uma relação em que, independentemente das condições que nos fazem diferentes entre nós, estamos em igualdade, construindo em conjunto uma relação, especificamente nesse caso do "ser-erótico". Davi e Bruns (2017) enfatizam que essas relações são trajetórias nas quais são construídos os mundos totalizados de sentido.
No que concerne à culpa, Douglas (1991), ao discutir as noções de "Pureza e Perigo", destaca que as percepções de poluição, pureza e perigo estão ligadas à relação entre ordem e desordem social. Assim, no sexo sem preservativo parece haver o enaltecimento de um prazer sensorial em consequência do próprio risco, rompendo com as regulações estabelecidas pelos modelos preventivos apesar da possibilidade de infecção de doenças. Ainda, pode-se compreender o risco como um modo de desafiar ou afrontar a própria finitude, a fim de dar sentido à existência (Silva, 2010). A culpa aparece tanto como elemento de reprodução do modelo de prevenção centrado na autogestão e autovigilância quanto indicador de busca, por conferir significados ao mundo vivido.
Os sentidos dados ao modelo de prevenção também aparecem quando as participantes pontuam a desconfiança que possuem na tecnologia Profilaxia Pós-Exposição, a "piulazinha":
Aí, a gata louca por médico, querida. Louca por hospital, porque, eu não sei se vocês sabem, mas tem o "depre" agora. Tem uma 'piulazinha' que eles inventaram agora, que a tecnologia tá cada dia mais avançada né, mulher? Aí, agora tem uma 'piulazinha', que se você transar, que no caso, se você transou hoje, amanhã você comparece lá no hospital, que eles te dão essa 'piula'. . . . Diz que elimina, mas eu não confio muito, não (Elizabete, 18/12/2018, Manaus - AM).
A "piulazinha", descrita pelas políticas públicas de prevenção como mecanismo de cuidado em saúde, é compreendida fenomenologicamente como não confiável. Podemos compreender, na fala de Elizabeth, que a desconfiança na tecnologia permite que seu uso seja negociável.
Seguindo a trilha da narrativa de Elizabeth, compreende-se que o processo estabelecido pelas políticas públicas é de verticalização do cuidado, pois se propõem a controlar corpos e prescrever práticas de sexualidade e gênero dessa população, sem o envolvimento do público-alvo. A assistência pode ser entendida como estruturada no aspecto da ocupação. No cuidado da ocupação, o Dasein1 estabelece relações com entes que possuem seu ser determinado previamente - as coisas, os objetos - se ocupando do mundo circundante (Heidegger, 2013). Desse modo, quando a política pública é implementada sem a participação do público-alvo e de suas especificidades, há desconfiança do que está sendo proposto. As nuances desveladas pela negociação do uso da tecnologia mostram o aspecto da impropriedade do ser, que, nos termos fenomenológicos, indica a impessoalidade presente na relação entre as participantes e as instituições de saúde (representando aqui o polo das políticas de prevenção). A desconfiança na "piula" pode ser interpretada à luz da angústia existencial que move o Dasein a se apropriar da existência, conferindo-lhes sentidos diferentes daqueles que surgem numa relação de objetificação.
Outsiders e Estabelecidos: a Visibilidade Seletiva em Instituições e seus Efeitos no Cuidado da Saúde Trans
Para Merleau-Ponty (2006), é no corpo que o mundo é vivido, o que nos permite propor que o nome social anuncie o corpo-mundo que adentra a instituição de saúde. No Brasil, o uso do nome social nos serviços de saúde é garantido por lei, contudo, ter direitos assegurados por lei não significa que serão respeitados e cumpridos no dia a dia. Nas falas das participantes, identificou-se o constrangimento que elas passam nas situações em que deveria haver o uso do nome social e, destas experiências, emergiram os sentidos que desvelam os elementos postos ou não nos jogos de negociação.
Quais sentidos circulam o nome social? Como eles tecem a rede de cuidados das participantes? As participantes descreveram que, ao serem chamadas pelo nome no masculino, vieram à tona percepções de não aceitação pelo outro, negação do seu próprio eu, além da falta de respeito a si. Têm-se como exemplo os trechos a seguir:
Às vezes, a gente é tratada no feminino, às vezes ficam desconfiado que é masculino. No caso, é certo que minha identidade ainda não troquei. Mas, é... Meu nome é Fulano [nome da carteira de identidade], num tem? Aí, aí, na hora de chamar o nome [fala o nome que está na identidade]. Aí, eu fico constrangida. Eu lá toda de mulher, né... E o povo tudo olharam. . . . E olha pra travesti e vê uma mulher (Elizabete, 18/12/2018, Manaus - AM).
Nome social pra eles não existe. É o João, João e pronto. Eles não tratam a gente como Maria. São poucas pessoas que tratam a gente como a gente quer, com o nome social. . . . Aqui em Manaus, se eu for no aeroporto, é o João. Se for no hospital, é o João. Não me trata como deve, aqui em Manaus tá muito atrasada. É horrível, sabe (Marianne, 10/01/2019, Manaus - AM).
A recusa do uso do nome social parece indicar a recusa em reconhecer a existência feminina corporificada. Se o corpo-mundo das participantes constitui a descrição do vivido, a insistência pelos profissionais no uso do nome masculino parece indicar a tentativa de reduzir as pessoas sob um olhar biologicista, invisibilizando aspectos culturais e sociais.
A tentativa apareceu mesmo quando a participante não era o alvo principal do atendimento médico hospitalar:
Dia desses eu fui com a mamãe no SPA [Serviços de Pronto Atendimento], na área que ela ficou, fui acompanhar. Na hora que ela, ela não tava se aguentando em pé, aí ela queria se deitar... Aí, a amapô jogou ela prum... prum lugar, assim reservado. Mas que só poderia ficar mulher, entendeu? Aí, ela olhou pra mim, ela disse que eu não poderia ficar lá. Porque eu não era mulher, e lá só tinha mulher, entendeu? Aí, eu disse: 'não vou largar minha mãe'. E fiquei lá (Elizabete, 18/12/2018, Manaus - AM).
Ao não ser autorizada para acompanhar sua mãe em uma ala em que supostamente homens não são permitidos, a presença de Elizabete não foi vista como ela se compreende: uma filha acompanhando sua mãe. Sua fala, entretanto, desvela o sentido de itens que parecem ser inegociáveis naquele momento. Ao afirmar que não largaria a mãe, a participante também "segurou" sua experiência corporificada. A fala de Elizabete denota sua apropriação da condição de filha, mulher e corpo-mundo de presença legítima na área do SPA.
Tais práticas, porém, violentam as entrevistadas e minam a confiança nas instituições de saúde. As pesquisadas foram colocadas como outsiders, termo cunhado por Elias e Scotson (2000), que denota a concessão de valores a certos membros de um grupo (no caso, os agentes de saúde, os estabelecidos) e a designação de estigmas a outros (travestis e mulheres trans), resultando em uma relação de estabelecidos e outsiders, respectivamente. Na recusa de chamá-las pelo nome social e de reconhecê-las como mulheres em todos os espaços, os agentes de saúde podem ser considerados como estabelecidos em uma suposta superioridade por serem "detentores do saber biomédico", enquanto elas são excluídas e estigmatizadas, vivenciando um sentimento de inferioridade humana.
Outra situação vivenciada por elas diz respeito aos médicos especialistas. No imaginário social há a suposição de uma ordem compulsória, em que há uma inter-relação entre sexo, gênero e desejo (Butler, 2017), e apenas mulheres cis utilizam os serviços de ginecologia; isso desencadeia mais preconceitos e constrangimentos para as travestis e as mulheres trans nas unidades de saúde. No caso delas, muitas ainda procuram se consultar com urologista, pois nem todas querem ou passaram pela cirurgia de redesignação genital.
As entrevistadas descreveram ainda o fato de serem confundidas com homens gays, evidenciando novamente o despreparo das equipes de saúde em não saber diferenciar identidade de gênero de orientação sexual, como demonstra o depoimento de Emma:
Eu acho que não tá preparada pra receber nem o cidadão comum, quanto mais a vir receber o cidadão transexual como nós. . . . Saber que uma mulher trans foi no urologista, independente de ter vagina ou não e o homem trans, independente de ter pênis ou não, vai continuar indo no ginecologista normalmente . . . A gente ainda é tratado como gay. Além da gente ser trans, ainda é tratado como gay. Porque chega um gay num local público, ele é tratado como transsex. Tem isso... Não só no hospital, em qualquer lugar (Emma, 18/12/2018, Manaus - AM).
A relação de cuidado com a equipe médica vai além do saber biomédico, mas é traçada por normatizações de gênero e sexualidade, transcende a área da saúde, e contribui para a manutenção de concepções hegemônicas, a saber, as construções de gênero. Logo, isso traz o apagamento de demandas, pois as reduz a estereótipos de binarismo de gênero, com visibilidade seletiva para as suas necessidades em saúde ou mesmo invisibilizando-as (Moscheta, Febole, & Anzolin, 2016).
Nas falas da maioria das participantes, é perceptível a falta de preparo e de capacitação das equipes de saúde, que, por consequência, acabam por afastá-las das instituições de saúde, mesmo precisando de assistência.
Eu não gosto de ir. Eu sofri um acidente, daí não fui ao SPA. . . . Pela forma que eu sei que vou ser tratada lá . . . já aconteceu várias vezes também. Como se alguma coisa fosse, alguma coisa do nosso corpo tivesse alguma bactéria, alguma coisa que fosse afetar (Emma, 18/12/2018, Manaus - AM).
Assim, a gente via num lugar as pessoas não quererem atender a gente porque a gente é assim desse jeito, aí a pessoa pensa que porque a gente é daquele jeito, a gente tem alguma fama, né. A gente num é ladrão, num é nada. A gente apenas é... a gente tá num corpo duma mulher, né... sendo homem, daquele jeito. Tem gente que fala... mais fácil ter um filho assim do que ter um filho ladrão, né... ter matador, assassino (Anne, 10/01/2019, Manaus - AM).
As relações com as instituições de saúde as violentam, ocupando-se delas como algo que não são, coisificando-as em prol de controles morais. A coisificação limita as possibilidades de porvir das pessoas, fazendo dessas relações um processo impessoal e inautêntico (Heidegger, 2013).
As instituições se ocupam da mulher trans e das travestis em uma relação que desconsidera suas subjetividades, tirando-as do mundo humano e colocando-as no mundo circundante. Esse afastamento não se dá apenas nas decisões que remetem ao seu próprio cuidado em saúde, mas da própria humanidade, resulta num medo de buscar ajuda quando necessitam (seja por adoecimento ou violências advindas da atividade profissional) e até mesmo em uma negação desses espaços enquanto possibilidade de apoio.
Se a temporalidade permeia a existência do Dasein, pois, a todo momento, em suas relações de cuidado, atribui sentidos distintos ao que já foi e ao que pretende ser (Heidegger, 2013), quando as entrevistadas decidem não procurar os serviços de saúde, mesmo precisando de assistência médica, elas relembram e revivem todo o histórico de violência e preconceitos que sofreram nesses espaços, redimensionando o olhar sobre si, sobre o mundo e dando um sentido de desconfiança e de não pertencimento. Logo, a construção das redes de apoio e de atenção em saúde, formais e informais, precisa olhar para além do que já foi feito no âmbito da saúde física, para possibilitar trazer essas mulheres para a própria construção política e dinâmica dos cuidados.
Conforme exposto anteriormente, quase todas as entrevistadas relataram as vivências ruins que sofrem nas instituições de saúde de Manaus. Entretanto, Catarina narra uma percepção distinta, contrastando com as demais. Segue trecho:
Aqui em Manaus eu me sinto bem. . . . Eu não sinto não, preconceito. Te juro, maninha . . . eles já sabem que a gente é travesti, gays e então não tem essas coisas assim, não. Aquela coisa de ficar assim, se sentindo discriminada. Eu não me sinto discriminada. . . . Aí eles perguntam: 'Qual seu nome?' aí eu digo, né: 'Fulano de tal!' que tá lá na minha identidade, né? Aí, olha assim: 'Não, o seu nome mesmo!' Aí eu tenho que falar, né. Eles perguntam como você perguntou: 'Você prefere ser chamada como?' Hoje no hospital já tem isso, né. Antigamente não tinha. Eles faziam questão de gritar o nome da gente [risos], o nome da gente alto, o nome masculino (Catarina, 09/01/2019, Manaus - AM).
O contraponto apresentado sinaliza um avanço no tratamento destinado a essa população. Longe de ser o ideal, serve como indicativo de avanços na rede assistencial, no que se refere ao entendimento das diversidades sexuais e questões de identidade de gênero.
Na perspectiva fenomenológica, tais situações denotam um cuidado de preocupação, que pode ser entendido como o modo básico de se relacionar com os outros seres humanos, considerando o outro ente como alguém que não está pronto, outro Dasein (Heidegger, 2013). Quando Catarina apresenta que há possibilidade de um cuidado preocupado, isso mostra que não se pode generalizar as experiências, pois estaríamos nos ocupando delas, afirmando que suas histórias e relações são todas iguais, embora, é preciso enfatizar, as experiências não violentas sejam pontuais.
As trajetórias se apresentam permeadas de negociações da experiência vivida. Nos relatos, é possível perceber que as participantes, para além de uma mera categoria identitária homogênea, possuem consciência das facticidades que se apresentam em suas vidas - identidade de gênero, orientação sexual, condições financeiras, estruturas institucionais de poder, momento histórico-cultural - e, com base nelas, constroem-se em apropriação. Enquanto "ser-no-mundo", suas existências estão sempre permeadas por uma gama de relações que facilitam ou dificultam sua própria abertura - o horizonte de possibilidades de escolha. Assim, identifica-se elementos negociados (ou não) a fim de evidenciar quais fatores pertencentes aos seus mundos de relações dificultam ou facilitam suas aberturas enquanto mulheres trans/travestis profissionais do sexo.
Sugere-se pensar novas formas de atendimento em saúde que sejam construídas junto com a população trans, saber como elas enxergam as políticas públicas e até que ponto essas políticas são eficazes no que se propõem a fazer. Grupos focais, rodas de conversas, educação em pares podem ser caminhos para compreender os conhecimentos adquiridos intracomunidade, sempre tendo em vista o mundo em que elas estão inseridas. No entanto, surge o desafio de não transformar esse modelo de construção de cuidado em saúde conjunta em uma estratégia de controle e culpabilização dessa população, principalmente das que atuam no trabalho sexual.
Para tal, compreender as transações tecidas nas relações das travestis e mulheres trans que trabalham com sexo torna-se indispensável para a construção de políticas não apenas eficazes, mas eficientes, capazes de - em conjunto com elas próprias - transformar as formas de cuidado continuamente construídas. Dessa forma, faz-se necessário considerar as emoções como o nojo do "pau fedendo e sujo" no ato de realizar o sexo oral, ou mesmo a dupla emoção de prazer/culpa ao ter uma relação sexual prazerosa sem camisinha, bem como o sentimento de pertencer ou não aos espaços públicos de saúde que podem gerar confiança/desconfiança e estranheza direcionadas às pessoas que trabalham nestes espaços, pois são aspectos fundamentais para o alcance singular dos indivíduos em um cuidado de preocupação.
A pesquisa fez suscitar também questionamentos a respeito dos fatores que permitem essas mulheres terem corpo-mundo reconhecidos dentro dos espaços em saúde. Na perspectiva dos profissionais, quais itens compõem suas negociações? Quais elementos estruturam as transações profissionais e constroem uma performance de assistência sustentada na condição de cuidado por preocupação? São excelentes questões para novas pesquisas.
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Endereço para correspondência:
Andre Luiz Machado das Neves
andre_machadostm@hotmail.com
Recebido em: 03/11/2020
Aceito em: 11/12/2020
1 Termo alemão utilizado pelo filósofo Martin Heidegger para designar o ser-no-mundo ou o ser-aí-no-mundo, expressão que pode ser entendida como ser existente.