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Psicologia em Pesquisa
On-line version ISSN 1982-1247
Psicol. pesq. vol.16 no.2 Juiz de Fora May/Aug. 2022
https://doi.org/10.34019/1982-1247.2022.v16.31533
ARTIGOS
As pesquisas clínicas coordenadas por Carl Rogers: apontamentos metodológicos e repercussões
The clinical research coordinated by Carl Rogers: methodological considerations and repercussions
Las investigaciones clínicas coordinadas por Carl Rogers: notas metodológicas y repercusiones
Paulo Coelho Castelo Branco
Universidade Federal do Ceará (UFC). E-mail: pauloccbranco@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4071-3411
RESUMO
Este artigo analisa os programas universitários de pesquisas em intervenções clínicas voltadas à mudança da personalidade, desenvolvidos por Rogers. No Brasil, esse legado científico é pouco difundido pela falta de tradução de suas obras metodológicas. Apresenta como ele estruturou o programa em Chicago e, depois, avaliou sua terapia com pessoas esquizofrênicas em Wisconsin. Reflete as repercussões disso na carreira e no pensamento de Rogers. Aponta que esse legado é desenvolvido fora do Brasil e inspirou algumas correntes comportamentais e cognitivistas. Porém, nacionalmente, predomina outro legado experiencial-relacional, que restringe a herança científica de Rogers. Considera alguns caminhos para ampliar pesquisas rogerianas.
Palavras-chave: Carl Rogers; Metodologia; Pesquisa Científica; Psicologia Clínica; Terapia Centrada No Cliente.
ABSTRACT
This article analyzes the academic research programs on clinical interventions aimed at personality change, developed by Rogers. In Brazil, this scientific legacy is not very disseminated due to the lack of translation of his methodological works. It presents how he structured the program in Chicago and, then, evaluated his therapy with schizophrenics in Wisconsin. It reflects upon its repercussions on Rogers' career and thinking. It points out that this legacy is developed outside of Brazil and has inspired some behavioral and cognitive currents. However, nationally, another experiential-relational legacy predominates, which restricts Rogers' scientific heritage. It considers some ways to expand the Rogerian research.
Keywords: Carl Rogers; Methodology; Scientific research; Clinical psychology; Client centered therapy.
RESUMEN
Este artículo analiza los programas universitarios de investigaciones sobre intervenciones clínicas dirigidas al cambio de la personalidad, desarrollados por Rogers. En Brasil, este legado científico no está muy extendido debido a la falta de traducción de sus trabajos metodológicos. Se presenta cómo él estructuró el programa en Chicago y evaluó su terapia con esquizofrénicos en Wisconsin. Se reflexiona sobre las repercusiones de esto en la carrera y en el pensamiento de Rogers. Se indica que este legado se desarrolla internacionalmente e inspiró algunas corrientes conductuales y cognitivas. Sin embargo, nacionalmente, predomina otro legado experiencial-relacional que restringe la herencia científica de Rogers. Se consideran algunas formas de ampliar las investigaciones rogerianas.
Palabras clave: Carl Rogers; Metodología; Investigación Científica; Psicología Clínica; Terapia No Dirigida.
Carl Rogers foi um pesquisador que desenvolveu estudos concernentes aos campos do aconselhamento psicológico, da psicoterapia, da educação, das terapias grupais e das relações interpessoais. Esses estudos estão disseminados em um extenso lastro temporal e contam com diversos colaboradores que auxiliaram Rogers no desenvolvimento e na publicação de suas propostas de aconselhamento não-diretivo, terapia centrada no cliente e abordagem centrada na pessoa (Kirschenbaum, 2007).
Em seu doutorado na Universidade de Columbia, entre 1926-1931, Rogers elaborou um inventário para avaliar desajustamentos de personalidade em crianças na fase psicodiagnóstica do aconselhamento traço-fator (Rogers & Russell, 2002). Essa experiência foi o início do contato de Rogers com o discurso da Psicologia aplicada e científica, influenciado pelo paradigma positivista estadunidense (Castelo-Branco, 2019). Por isso, ao desenvolver suas propostas de aconselhamento não-diretivo e terapia centrada no cliente, Rogers (1942/2005, 1951/1992, 1959/1977, 1961/1997) estabeleceu que as suas proposições clínicas deveriam ser submetidas ao crivo de pesquisas, de modo que ele empregou variados instrumentos de avaliação psicológica em um delineamento quase-experimental para analisar os processos que estruturam a psicoterapia e a mudança de personalidade (Gordon, Grummon, Rogers, & Seeman, 1954), incluindo pessoas diagnosticadas com esquizofrenia (Gendlin & Rogers, 1967).
Dessa forma, ao firmar sua proposta não-diretiva, nas décadas de 1940-1950, Rogers (1942/2005, 1951/1992, 1959/1977) estabeleceu e aprimorou sua teoria e prática a partir de hipóteses a serem testadas e revisadas constantemente. Em suas elaborações teóricas, foi comum ele exemplificar seus argumentos pelas transcrições de atendimentos e fundamentá-los pelos resultados de suas pesquisas e estudos de outros. Credita-se a Rogers (1942/2005) a publicação do primeiro caso clínico, Herbert Bryan, transcrito na íntegra para exemplificar o que acontece na relação terapeuta-cliente (Kirschenbaum, 2007).
Salienta-se que essa postura foi necessária dado que Rogers (1942/2005), em 1940, hipotetizou que uma relação clínica de aconselhamento bem organizada não apresentava maiores distinções dos resultados da psicoterapia, ofício até então restrito a médicos de formação psicanalítica (Rogers, 1977/2001). Nesse sentido, a American Psychological Association (APA) fomentou que Rogers investisse em estudos, os quais culminaram no reconhecimento e validação de uma nova modalidade de aconselhamento psicológico (não-diretivo) e um modelo pioneiro de psicoterapia (centrada no cliente) desenvolvido por psicólogos dentro do cenário acadêmico e científico (Castelo-Branco, 2019). Rogers assumiu diversos cargos políticos de destaque, como as presidências da APA e da Academia Americana de Psicoterapeutas, recebeu premiações e publicou centenas de artigos em periódicos, além de compilar suas produções em múltiplos livros (Kirschenbaum, 2007), dos quais se destaca a obra Tornar-se pessoa (Rogers, 1961/1997), traduzida para vários idiomas.
A despeito de todos esses méritos, o legado rogeriano de pesquisas acadêmicas em intervenções clínicas sobre a personalidade é pouco difundido no Brasil. Argumenta-se que isso decorre pela falta da tradução de duas obras metodológicas organizadas por Rogers, Psychotherapy and personality change (1954) e The therapeutic relationship and its impact: A study of psychotherapy with schizophrenics (1967), sendo difícil o acesso delas, mesmo na língua inglesa, pela falta de edições correntes.
Isso torna parcial o acesso direto aos desenhos metodológicos propostos por Rogers, de modo que só podemos ter uma ideia geral do programa de pesquisas desenvolvido na Universidade de Chicago, pela leitura dos capítulos 11 e 12 do livro Tornar-se pessoa (Rogers, 1961/1997), e uma ideia vaga do programa empregado na Universidade de Wisconsin, pelos opúsculos de Shlien (1967/1976) e Rogers (1967/1976), dispostos na obra De pessoa para pessoa: O problema de ser humano - Uma nova tendência em psicologia (1967), que não está mais em edição. No que concerne a esta obra, o texto de Shlien (1967/1976) demonstra como ocorreram alguns atendimentos com psicóticos, e Rogers (1967/1976) apenas menciona que houve pesquisas sobre psicoterapia com esquizofrênicos, detendo-se à reflexão sobre a necessidade de ver esses pacientes como pessoas e apontando as dificuldades de comunicação que ocorreram nas terapias.
Destarte, este artigo objetiva analisar os programas de pesquisas clínicas sobre intervenções relacionadas à personalidade, coordenados por Rogers nas universidades de Chicago, em 1945-1957, e de Wisconsin, em 1957-1963. Em seguida, apresentam-se algumas repercussões desses trabalhos na carreira e no pensamento de Rogers. Finalmente, apontam-se as repercussões contemporâneas desse legado no mundo e no Brasil.
O Programa de Intervenções e Pesquisas Desenvolvido na Universidade de Chicago
Conquanto estivesse situado em uma abordagem terapêutica não-diretiva em contraste ao método clínico diretivo (Rogers, 1942/2005), para fins de pesquisa, Rogers especificou o seu objeto de estudo e intervenção. Foi nesse sentido que Rogers (1947/2008a), no discurso de final do seu mandato presidencial na APA, em 1947, estabeleceu a personalidade como via de acesso ao desenvolvimento de uma psicoterapia pesquisada e exercida por psicólogos. Rogers (1947/2008a) argumentou que os problemas de desajustamento psicológico são correlacionados à desorganização do self e que a sua proposta centrada no cliente objetiva compreender a dinâmica da personalidade para reorganizá-la. Logo, para mudar o comportamento do cliente é necessário adentrar a forma como a sua personalidade está organizada a partir de suas percepções.
Nesse sentido, em 1945-1957, Rogers (1959/1977) estabeleceu a prática centrada no cliente a partir de pesquisas no Centro de Aconselhamento da Universidade de Chicago. Com base em um conjunto de experiências clínicas e variados estudos, Rogers (1951/1992) elaborou uma teoria da personalidade e do comportamento, composta por dezenove proposições que fundamentam como, a partir da relação organismo-ambiente, o self é organizado (proposições I a IX); pelos desajustes dessa relação, o self se desorganiza (proposições X a XIV); pelo estabelecimento de uma postura relacional não-diretiva, o self pode ser reorganizado (proposições XV a XVII); os efeitos terapêuticos disso se manifestam nas esferas de funcionamento inter e intrapessoal (proposições XVIII e XIX).
No que concerne à organização da personalidade, Rogers (1959/1977) indica a experiência como a sua base constitutiva. Para ele, a experiência indica tudo aquilo que o cliente sente e se passa em seu organismo, seja em um âmbito perceptivo ou não. O que é percebido é figurado e se torna consciente, sendo simbolizado. Aquilo que não é percebido está no fundo e, potencialmente, pode ser percebido e se tornar consciente, desde que o cliente entre em contato com o que está sendo sentido em um dado momento. Assim, a consciência tem como função: voltar-se para o que se está experienciando (sentindo) em um dado momento; e atribuir um conteúdo (significado). O conjunto disso é organizado em um campo fenomenológico (ou perceptivo) que é composto por impressões que irão organizar a personalidade e a forma como o cliente percebe a si, os outros e o mundo, dando-lhe um senso de centralidade. As reações comportamentais disso se manifestam nas expressões e relações do cliente no mundo (Rogers, 1951/1992).
Com base nisso, Rogers (1951/1992, 1957/2008b, 1959/1977) definiu a personalidade como a percepção e conceituação de si-mesmo, eu ou self. Este é constituído pela intersecção entre as demandas internas do organismo (compostas por experiências, simbolizações pela consciência, retenção e organização do que foi sentido e significado em um campo fenomenológico, ou perceptivo, e a expressão comportamental disso no ambiente) e demandas externas (outros selves, sociedade e cultura). O self, também, é entendido como uma função simbolizadora e autorreguladora do organismo que se manifesta no ambiente pelos interesses pessoais, vontades e comportamentos. Essas expressões são perpassadas por uma tendência atualizante (ou tendência à autorrealização) em que os movimentos organísmicos e suas expressões, entendidas como movimentos de autorregulação, tendem à busca por autoconservação, autonomia, unidade e o desenvolvimento de todas as potencialidades do indivíduo (Rogers, 1951/1992). Logo,
considerando-se que a tendência atualizante rege todo o organismo, ela se exprime igualmente no setor da experiência que corresponde à estrutura do 'eu' - estrutura que se desenvolve à medida que o organismo se diferencia. Quando há um acordo entre o 'eu' e a 'experiência do organismo', na sua totalidade, a tendência atualizante funciona de maneira relativamente unificada. Ao contrário, se existe conflito entre os dados experienciais relativos ao 'eu' e os relativos ao 'organismo', a tendência à atualização do organismo pode ser contrária à tendência à atualização do 'eu' (Rogers, 1951/1992, p. 161).
Com efeito, o que está organizado em termos de um quadro de personalidade não necessariamente condiz, ou está em acordo, com as experiências organísmicas diretas (Rogers, 1951/1992). Quando isso ocorre, sucedem tensões que podem impedir o cliente de se atentar para o fluxo do que acontece em sua experiência e o que parte dela. Nesse ponto, ocorrem mecanismos de defesa que funcionam como intercepções (negações) ou deformações da experiência em que o indivíduo evita contrariar a sua organização de self (Rogers, 1959/1977).
Destarte, a terapia centrada no cliente propõe uma clínica compreensiva e interventiva sobre as (des)organizações da personalidade em relação à experiência. Para Rogers (1957/2008b), a mudança de personalidade implica em uma modificação, superficial ou profunda, em direção a uma maior integração do que acontece consigo; percepção da situação problema e como ela o afeta; maior responsabilidade e menos conflito interno; diminuição de condutas imaturas e aproximação de posturas maduras.
Para operacionalizar como acessar o self do cliente, Rogers (1957/2008b) estabeleceu seis condições entendidas como necessárias e suficientes para gerar uma mudança terapêutica de personalidade. Sintetizam-se elas em seguida.
(1) Inicialmente, terapeuta e cliente precisam estar em contato um com o outro. Para essa condição ser estabelecida ambos precisam estar em algum meio comunicativo de modo que um possa perceber e ser afetado pela presença e expressões do outro, no momento atual da relação clínica (Rogers, 1957/2008b, 1959/1977).
(2) Cabe ao terapeuta perceber se o cliente está vivenciando um estado de incongruência (Rogers, 1957/2008b). Esta se trata de uma tensão que emerge a partir das discrepâncias entre a experiência, a consciência e o comportamento do cliente. Se há um desacordo entre o que o cliente sente (experiência), pensa (conscientiza) e faz (comporta-se) à luz do seu self (organizado a partir do seu campo fenomenológico), ele se distancia das suas experiências diretas e se autorregula idealmente em função de experiências e selves alheios (Rogers, 1959/1977). Se o cliente percebe o(s) objeto(s) de sua tensão, sua incongruência é manifesta em termos de ansiedade; se ele não tem uma percepção clara disso, incide um estado de vulnerabilidade (Rogers, 1957/2008b). Entendendo que a terapia é indicada quando há uma tensão que provoca a busca por ajuda (Rogers, 1942/2005), tal tensão pode ser expressa como uma incongruência (Rogers, 1957/2008b).
(3) Assim, o terapeuta sustenta uma atitude de congruência e, no momento atual da relação, esforçar-se para manter um acordo interno entre o que sente, pensa e faz, procurando ser autêntico, honesto, genuíno e espontâneo na relação com o cliente, ainda que em um grau mínimo (Rogers, 1957/2008b, 1959/1977). Esta atitude possibilita uma maior abertura para o terapeuta perceber o que acontece consigo e com o cliente no momento presente da relação.
(4) Com base nisso, o terapeuta sustenta, também, uma atitude de consideração positiva incondicional que consiste em apreciar as expressões do cliente como manifestações de sua personalidade (Rogers, 1957/2008b). Dessa forma, o terapeuta não impõe condições de valores para se relacionar com o cliente, possibilitando que este avalie suas próprias experiências e simbolizações (Rogers, 1959/1977). Esta é uma forma de reduzir as influências dos juízos de valores do terapeuta para acessar diretamente a personalidade do cliente na forma como ela está (des) organizada (Rogers, 1951/1992). Em outras palavras, essa condição clínica implica em o terapeuta reconhecer os afetos e os valores que emergem de sua experiência, distinguindo-os daquilo que se manifesta do cliente; não se prender a isso; direcionar a percepção para a expressão do cliente, sem julgá-la; trabalhar em supervisão os afetos e os juízos que dificultaram o acesso ao outro (Rogers & Kinget, 1962/1977).
(5) Além disso, concerne ao terapeuta sustentar uma atitude de compreensão empática (Rogers, 1957/2008b). Esta condição se trata de o terapeuta se colocar no mundo experiencial e perceptivo do cliente como se fosse o dele. A empatia possibilita o reconhecimento do que o cliente está experienciando (sentindo) e simbolizado (significando) em relação à sua demanda. Tais afetos são manifestos e sentidos em termos de emoções, sentimentos e percepções (Rogers, 1959/1977). Quando o cliente expressa isso na relação, o terapeuta apreende isso sendo capaz de reconhecer tais afetos e os seus conteúdos, embora não os esteja sentindo e significando diretamente (Rogers, 1951/1992). O que foi apreendido, entretanto, fica retido como uma impressão que deve ser considerada segundo a condição descrita anteriormente. No entanto, o terapeuta deve devolver o que ele apreendeu do cliente, de modo a refletir, reiterar ou expor suas considerações e impressões acerca do que foi expresso (Rogers & Kinget, 1962/1977). Nesse momento, se as colocações do terapeuta se aproximam da experiência e do campo fenomenológico do cliente, e este lhe confirma que tal apreensão foi acurada, acontece uma mútua apreensão (compreensão) sobre o sentido e o significado em tela. Eis o exercício comunicacional da empatia (Rogers, 1951/1992).
(6) Por fim, a última condição indica que o cliente precisa perceber, em um grau mínimo, que o terapeuta está se esforçando para considerá-lo e compreendê-lo, expressando essas atitudes (Rogers, 1957/2008b).
Com efeito, Rogers (1959/1977) enuncia que "Se são dadas certas condições (variáveis independentes), então um processo determinado (variável dependente) se produzirá. Se este processo (transformado em variável independente) se produz, então certas modificações da personalidade e do comportamento (variáveis dependentes) se seguirão" (p. 182, grifos do autor). Eis como ele pensou as correlações entre as seis condições anteriormente descritas, suas eficiências em desencadear um processo terapêutico e os efeitos disso sobre a personalidade e o comportamento.
No transcurso dessas elaborações interventivas e teóricas sobre a personalidade, Rogers utilizou um delineamento quase-experimental em um programa de intervenções e pesquisas (Gordon et al., 1954; Grummon, 1954; Rogers, 1961/1997). Salienta-se que esse foi o caminho usado por ele para validar o seu método psicoterapêutico, por se tratar de um modelo de pesquisa consolidado e amplamente empregado em diversos estudos de avaliação psicológica (Grummon, 1954).
Segundo Gordon et al. (1954), o campo da psicoterapia é complexo em razão de ser composto por vários elementos que são correlacionados. Esses componentes envolvem funções emotivas e cognitivas, valores, atitudes, postura ética, processos de aprendizagens e fatores biológicos e sociais que afetam o self e o comportamento. Todos eles podem ser estudados e mensurados em suas nuances. Nesse sentido, Rogers coordenou e sumarizou diferentes áreas de pesquisa, cada qual com um sub-coordenador. Basicamente, ele dividiu o seu programa de pesquisas em dois blocos: estudos sobre o que acontece na terapia; e estudos sobre os resultados do processo terapêutico (Gordon et al., 1954).
Nos estudos sobre o que ocorre na terapia centrada no cliente (Gordon et al., 1954), subdividem-se as seguintes investigações. 1) Estudos sobre o método não-diretivo: o desenvolvimento e a avaliação de procedimentos de aconselhamento e psicoterapia; o comportamento do conselheiro e psicoterapeuta não-diretivo. 2) Investigações sobre o processo no cliente: a referência de si-mesmo nas entrevistas; a relação entre as atitudes em relação a si-mesmo e aos outros; o desenvolvimento de insights terapêuticos; os tipos de comportamentos defensivos; o lócus de avaliação na terapia; o emprego de categorias gramaticais e psicogramaticais da linguagem na terapia; a comunicação das mudanças comportamentais na terapia. 3) Análises das interações entre terapeuta e cliente: a dimensão da responsabilidade pelo processo e pelo método terapêutico; a relação desenvolvida por pessoas experientes e não experientes.
O outro grupo estuda os efeitos da terapia centrada no cliente, com base em (Gordon et al., 1954): 1) elaboração de testes de personalidade que mensuram as mudanças em terapia; 2) tipos de mudanças perceptivas que ocorrem durante o processo; 3) percepções sobre a psicoterapia; 4) avaliações sobre a mudança de personalidade, após o término da terapia; 5) mensurações de respostas fisiológicas de frustração antes e depois da terapia; 6) tipos de ajustamentos psicossociais após o processo terapêutico com veteranos da Segunda-Guerra Mundial; 7) efeitos da terapia em crianças.
Os objetivos desse programa de estudos foram investigar (Gordon et al., 1954): 1) as dimensões internas da psicoterapia pela descoberta de leis e princípios relacionais que envolvem a reorganização da personalidade; 2) as dimensões externas da psicoterapia por aquilo que ela gera de correlatos fisiológicos e sociais no indivíduo; 3) a relação desses achados com a teoria da personalidade (Rogers, 1951/1992). A equipe de pesquisas foi composta por doutorandos, mestrandos e graduandos orientados por Rogers, oscilando entre 15-30 psicoterapeutas-pesquisadores (Gordon et al., 1954).
Assim, foi estabelecido um grupo experimental, ou grupo em terapia, de clientes que se submeteram a uma bateria de testes dois meses antes da terapia, durante o processo (pelo menos seis sessões) e 6-12 meses depois do término. Os instrumentos de avaliação empregados foram o Teste de Acepção Temática com algumas modificações para se adequar à noção rogeriana de self, Escala de Maturidade Emocional, Inventário de Relações, Escala de Atitudes em Relação a Si-Mesmo e aos Outros, eletrodos e polígrafo para registro de reflexos psicogalvânicos, Escala de Processos e a Técnica Q de Stephenson - também com alguns itens modificados. Salienta-se que estes testes foram usados como recursos de pesquisa para avaliar a eficiência da intervenção e não foram condições para uma mudança de personalidade (Grummon, 1954; Rogers, 1961/1997).
A amostra de participantes foi selecionada a partir de clientes cadastrados no Centro de Aconselhamento que foram considerados aptos à psicoterapia. Foram excluídas pessoas com problemas de drogadição, déficit intelectual, psicose, estresse e maiores dificuldades de ajustamento. Ou seja, pessoas com problemas mais severos de personalidade não entraram na pesquisa. Sob os mesmos procedimentos avaliativos, porém sem se submeter à terapia centrada no cliente, foi acompanhado outro bloco amostral, nomeado como grupo controle, composto pelo número aproximado de pessoas do mesmo sexo, idade, nível educacional e estado socioeconômico. Assim, o primeiro desenho contou com 18 homens e 11 mulheres no grupo experimental (em terapia); além de 12 homens e 11 mulheres compartes no grupo controle.
Em suma, o programa coordenado por Rogers foi desenvolvido mediante (Gordon et al., 1954) o constante levantamento de hipóteses com base nas experiências clínicas; aplicação, adaptação e elaboração de instrumentos de avaliação psicológica, julgados como apropriados para verificar cada hipótese; consideração e reflexão dos seus resultados, a partir de consultores internos e externos à abordagem não-diretiva; apontamentos sobre a utilidade das evidências obtidas para uma teoria baseada em novas hipóteses; publicação dos estudos para que outros pudessem replicá-los e colocá-los à prova. Esse circuito possibilitou um constante aprimoramento e revisão da teoria e prática rogeriana.
Foi, portanto, a partir desse programa de intervenções e pesquisas que Rogers validou o ofício da psicoterapia no campo da Psicologia Clínica, inaugurando uma perspectiva pioneira de pesquisa em psicoterapia, distante dos modelos psicanalíticos (Kirschenbaum, 2007). Rogers e Kinget (1962/1977) desenvolveram, ainda, um material baseado nesses estudos para auxiliar a formação de terapeutas não-diretivos a partir de exercícios clínicos.
As Pesquisas sobre Intervenções em Pessoas Diagnosticadas com Esquizofrenia na Universidade de Wisconsin
Com a popularização dos seus achados, Rogers recebeu uma proposta atraente para trabalhar na Universidade de Wisconsin e viu nisso uma oportunidade para testar a sua terapia em clientes com agravos de personalidade. Isso foi fomentado pela persuasão do seu amigo, Virgil Herrick, que saíra da Universidade de Chicago para a de Wisconsin. Rogers tinha, ainda, um vínculo afetivo com o lugar, dado que se graduou lá, entre 1920-1924. Ademais, a universidade contava com mais comitês que supostamente lhe proveriam mais recursos (Rogers & Russell, 2002). Nessa empreitada em Wisonsin, Rogers coordenou um programa semelhante ao de Chicago para testar e desenvolver sua prática no Departamento de Psiquiatria e Psicologia, segundo a pergunta: "como podemos determinar empiricamente se certas qualidades sutis no relacionamento terapêutico estão associadas a um processo, igualmente sutil, de mudança na personalidade e comportamento de uma pessoa esquizofrênica hospitalizada?" (Gendlin & Rogers, 1967, p. 23, tradução nossa).
Ainda que Rogers (1957/2008b) não trabalhasse com categorias diagnósticas e as visse com ressalvas no processo terapêutico, para fins de pesquisa, ele precisou estabelecer uma definição de esquizofrenia. Nesse sentido, optou por uma visão geral sobre o que é esquizofrenia, dada uma falta de consenso diante de várias acepções possíveis. Assim, a esquizofrenia simplesmente foi acentuada como uma doença e se destacou que o programa não se interessava em aprofundar uma noção pormenorizada disso, dado que o enfoque não era a esquizofrenia em si, mas o processo de terapia centrada no cliente em um grupo de pessoas com esse diagnóstico (Gendlin & Rogers, 1967).
Logo, o critério de inclusão foi de os pacientes estarem conscientemente diagnosticados como esquizofrênicos, por profissionais do Hospital Estadual de Mendota, os quais trabalhavam em parceria com a Universidade de Wisconsin; serem considerados aptos à psicoterapia com base em uma avaliação psicológica mediada pela Luborsky Health-Sickness Rating 0-100 Scale (Gendlin & Rogers, 1967). Os critérios de exclusão foram pessoas esquizofrênicas com problemas de drogadição; algum comprometimento no sistema nervoso central; deficiência mental; maiores incapacidades psíquicas - como dissociação da realidade e falhas na linguagem; alguma cirurgia cerebral. Gendlin e Rogers (1967) frisaram que a pessoa vinha antes do diagnóstico e da avaliação psicológica, de modo que os terapeutas deveriam se concentrar na relação terapêutica conforme ela acontecia e deixar suas avaliações e reflexões para outro momento.
Assim, foram estabelecidos dois grupos experimentais, um composto por pessoas com esquizofrenia aguda e outro com esquizofrenia crônica (com mais de oito meses de manifestação), e um grupo controle formado por pessoas normais que não passaram pelo hospital psiquiátrico, não tinham o diagnóstico de esquizofrenia, estavam sem evidências de mau funcionamento psíquico e não buscavam por uma relação de ajuda. O grupo controle foi montado a partir de voluntários das igrejas locais, trabalhadores rurais e empregados das redondezas. Cada grupo contou com 16 indivíduos, totalizando 48 pessoas, com equivalência etária, de sexo e nível socioeducacional (Gendlin & Rogers, 1967). Esse desenho foi repetido diversas vezes, ao passo que 55 terapeutas atenderam cerca de 800-900 pessoas no Hospital Psiquiátrico da universidade. Assim como em Chicago, as sessões eram gravadas, transcritas, e os achados clínicos e os resultados das avaliações eram discutidos pelo grupo de pesquisa e consultores internos e externos à abordagem rogeriana.
Salienta-se que a terapia centrada no cliente já estava validada em sua eficiência na mudança da personalidade, não havendo mais a necessidade de estabelecer um grupo controle de pessoas não submetidas à psicoterapia. O interesse desse novo programa era testar essa eficácia com problemas de personalidade em nível de esquizofrenia e comparar esse tipo de terapia com àquela empregada em pessoas "normais", ou seja, com um sofrimento psicológico não agravado em termos de psicopatologia.
Os instrumentos usados para avaliar essa eficácia foram os seguintes (Rogers, Gendlin, Kiesler, & Truax, 1967): Inventário Minnesota de Personalidades Múltiplas; Teste Rorschach; Teste de Acepção Temática (TAT); Escala Wechsler de Inteligência Adulta; Teste de Interferência Stroop; e Técnica Q. Ressalta-se que estes instrumentos não procedem do escopo centrado no cliente, e que o TAT e a Técnica Q foram modificados para se adequarem à perspectiva rogeriana.
Outros instrumentos de estirpe rogeriana foram desenvolvidos pelos pesquisadores, tais como (Rogers et al., 1967): Escala de Ansiedade de Truax; Inventário de Relacionamento de Barret-Lennard; Escala de Processos de Gendlin; Escala de Empatia Acurada e Escala de Consideração Positiva Incondicional de Truax; Escala de Congruência de Kiesler; Escala de Experienciação de Gendlin e Tomlinson; Escala de Avaliação dos Construtos Pessoais de Tomlinson; Escala da Maneira de Expressar um Problema de Van der Veen e Tomlinson; Escala da Maneira de se Relacionar de Gendlin.
Finalmente, observa-se que, em distinção ao programa executado na Universidade de Chicago; em Wisconsin, os colaboradores de Rogers desenvolveram meios de avaliação mais condizentes à terapia centrada no cliente - possivelmente, em razão da consolidação desse referencial. Os mencionados instrumentos avaliativos contaram com a orientação e supervisão de Rogers e, outra vez, tratavam-se de recursos de pesquisa e não de psicoterapia.
Repercussões dos Programas de Chicago e Wisconsin na Carreira de Rogers
Apresentados o panorama de intervenções e estudos clínicos coordenados por Rogers em sua estada nas universidades de Chicago e Wisconsin, passemos a analisar as repercussões desses trabalhos em sua carreira. Em relação à Universidade de Chicago, Rogers lembra que recebeu uma infraestrutura satisfatória de testes psicológicos, secretariado, recursos financeiros e registro audiovisual. Além disso, teve liberdade para montar uma equipe de psicólogos e pesquisadores para criativamente exercer e estudar a sua prática como bem quisesse (Rogers & Russell, 2002).
Não à toa, os anos de Chicago foram profícuos em termos de pesquisa, produção e formação clínica, isso foi possível por Rogers adotar uma estrutura democrática de gestão em pesquisa, dando liberdade para os seus estudantes proporem estudos nos diversos âmbitos da relação terapêutica e subcoordenarem os seus projetos. Mesmo em Wisconsin, Rogers continuou publicando trabalhos referentes a Chicago. Contudo, as publicações concernentes aos seus programas (desenhos) de estudos tiveram reações discretas, dado que havia mais interesse em seus achados clínicos e relacionais do que na forma como ele acessou isso pela pesquisa (Rogers & Russell, 2002).
O ofusque das produções metodológicas, possivelmente, ocorreu devido à carência de publicações sobre as nuances do que acontece na relação clínica e processo terapêutico. Apesar disso, Rogers considera o livro Psychoterapy and personality change (1954) como inovador em termos de pesquisa, dado que havia poucos artigos sobre avaliação de psicoterapias. Sobre essa obra, ele comenta: "(...) nunca houve um estudo abrangente de psicoterapia que fosse melhor do que aquele [programa]. Houve melhorias - pequenos estudos significativos foram feitos - mas, em relação a um estudo abrangente de resultados e processos, ainda acho que este livro foi bastante notável" (Rogers & Russell, 2002, p. 156, tradução nossa).
Outro motivo de resistência na comunidade científica foi o uso da Técnica Q, um procedimento de avaliação sobre a percepção de si-mesmo (self), consolidado desde 1935. Um de seus criadores, William Stephenson, era docente da mesma universidade. Ele e os seus seguidores criticaram as modificações feitas por Rogers, o qual entendeu o instrumento como um tipo de pesquisa fenomenológica, contrariando o que o criador postulava como uma análise fatorial do self (Rogers & Russell, 2002).
Em referência à Universidade de Wisconsin, Rogers recorda que, no decorrer dos anos de pesquisa, tornou-se desiludido com o cenário acadêmico. Em suas palavras: "O maior erro que cometemos em Wisconsin (...) foi tentar fazer pesquisas que não tivessem falhas, o que significava que era tão oneroso em seus aspectos técnicos que a metodologia de pesquisa sobrepujava os aspectos pessoais" (Rogers & Russell, 2002, p. 156-157, tradução nossa).
Outro fator de desilusão acadêmica foi que os alunos que buscaram uma pós-graduação com Rogers tinham de passar por um difícil exame de admissão na universidade. Em se tratando do ingresso no programa de Rogers, era necessário se submeter a um exame extra, com uma comissão que interrogava os pretendentes antes da matrícula final. A maioria dos interessados era reprovada no certame, de modo que Rogers só conseguiu formar seis doutores em Wisconsin. Essa postura institucional era destoante do que ele viveu em Chicago e o desencorajou a seguir com a formação científica e universitária de estudantes em nível de pós-graduação (Rogers & Russell, 2002).
Outra desilusão se refere à relação de Rogers com a Psicologia. Em suas palavras: "(...) meus relacionamentos no departamento de psiquiatria eram melhores do que no departamento de psicologia. Mas, no geral, não foi um período profissional feliz e a pesquisa sobre esquizofrênicos só foi escrita depois que eu deixei Wisconsin" (Rogers & Russell, 2002, p. 179, tradução nossa). Ou seja, embora tentasse unificar psiquiatras e psicólogos de modo a repensar suas atuações diante dos pacientes diagnosticados com esquizofrenia, buscando estabelecer ideais mais humanos de pesquisa, avaliação psicológica e ajuda terapêutica, Rogers teve dificuldades por não obter muita cooperação dos psicólogos daquela universidade, sendo mais bem recebido pelos psiquiatras que estavam abertos à sua proposta (Rogers & Russell, 2002).
Se, no âmbito acadêmico, Rogers estava frustrado, na vida pessoal ele estava realizado. Os artigos oriundos das experiências de Chicago, e uma parte das de Wisconsin, foram compilados e publicados no livro Tornar-se pessoa (1961). Com isso, Rogers ganhou notoriedade entre outros profissionais, como educadores, assistentes sociais e o público em geral. Pelo reconhecimento do seu trabalho ele estava vivendo uma vida financeira confortável, sendo convidado para prestar consultorias, palestrar e demonstrar a sua intervenção terapêutica em diversos países e centros acadêmicos e não-acadêmicos. Rogers e os seus colaboradores passaram a formar pessoas fora do cenário de graduação e pós-graduação, enfatizando somente a formação teórica e prática do método terapêutico sem precisar submetê-lo a estudos (Rogers & Russell, 2002).
Repercussões dos Anos de Pesquisas Clínicas no Pensamento de Rogers
As experiências frustrantes em Wisconsin geraram em Rogers uma postura avessa à rigidez institucional universitária. Em 1963, após a sua aposentadoria ele se mudou para a Califórnia, onde, com liberdade profissional, buscou desenvolver sua proposta não-diretiva nas esferas educacionais, grupais, comunitárias e institucionais, fora do domínio da intervenção e pesquisa clínica sobre a personalidade (Kirschenbaum, 2007). Isso possibilitou uma nova fase no pensamento rogeriano, que transitou da terapia centrada no cliente para a abordagem centrada na pessoa - ACP (Castelo-Branco, 2019).
Embora não estivesse mais vinculado à universidade e submetido aos seus imperativos científicos, focando-se mais em um jeito de ser e de se relacionar, Rogers (1970/2002, 1977/2001, 1980/1983, 1983/1985b) manteve uma cultura acadêmica que lhe era familiar ao continuar se valendo de diversos trechos de falas para exemplificar a sua prática e citações de estudos para amparar os seus argumentos teóricos, sejam eles oriundos de suas antigas pesquisas ou das investigações de outros.
Outra repercussão remete à crença e à militância de Rogers (1968) por um modelo de ciência mais humana, que considera as bases experienciais e os aspectos subjetivos presentes na constituição do conhecimento. Rogers (1964) foi simpático ao movimento da Fenomenologia empírica que estava se constituindo nos EUA, entendendo essa vertente como um paradigma alternativo ao positivismo dominante nas universidades e nas ciências do comportamento daquela época. Para ele, "Sem dúvida, há alguns indivíduos nessa corrente de pensamento que mantêm a esperança de que o ponto de vista fenomenológico suplante a tendência behaviorista, mas para mim isso é altamente indesejável e altamente improvável" (Rogers, 1964, p. 118, tradução nossa). Rogers (1964) manifestou a crença de que o paradigma fenomenológico poderia ser conciliado com as ciências comportamentais ao suplementar suas pesquisas empíricas e experimentais, trazendo uma consideração pela dimensão dos sentidos que constituem a experiência humana.
No final da década de 1950, houve o advento da Escola de Chicago na assunção da abordagem qualitativa de pesquisa nas ciências sociais e humanas (Giorgi, 2018). Neste movimento, destaca-se Adrian Van Kaam, criador do método fenomenológico empírico, que fez um intercâmbio doutoral para aprender a terapia centrada no cliente no programa da Universidade de Chicago. Em 1958, Rogers participou da banca de exame da tese de Van Kaam, intitulada The experience of really felling understood by a person: a phenomenological study of the necessary and sufficient constituents of this subjective experience as described by 365 subjects, posteriormente editada e publicada como artigo (Van Kaam, 1959/2018).
Na Universidade de Duquesne, Van Kaam e Amedeo Giorgi coordenaram um programa de pesquisas onde desenvolveram um desenho de coleta e análise de dados, norteado pelo método fenomenológico empírico (Giorgi, 2018). Este procedimento foi salientado por Rogers (1985a) como um caminho para uma ciência mais humana, além de citar outros tipos de metodologias qualitativas como opções de pesquisa empírica para tornar a Psicologia Humanista reconhecida no cenário acadêmico. Conquanto fosse simpático a essas perspectivas, Rogers não chegou a desenvolver um extenso programa de estudos como fez em Chicago e Wisconsin. Contudo, incentivou que os seus estudantes e colaboradores transcrevessem e pesquisassem os trabalhos grupais e educacionais norteados pela ACP, citando-os em seus livros (Rogers, 1970/2002, 1983/1985b).
O fato de Rogers não desenvolver mais intervenções e pesquisas clínicas sobre a personalidade decorre, também, de uma maior ênfase nos processos experienciais diretos da pessoa, pelo argumento de que o self e a incongruência derivam da mesma fonte, a saber, as tensões entre organismo e ambiente. Na escala evolutiva do ser humano, o self é uma função adaptativa e simbólica relativamente recente, havendo uma sabedoria organísmica que é pré-verbal, mais basilar e, se acessada, expressa os movimentos mais genuínos da pessoa. Nesse sentido, o enfoque relacional deve se dirigir mais para uma experiência organísmica direta, do que para os seus conteúdos (Rogers, 1977/2001). Por isso, Rogers (1980/1983) buscou suporte nas perspectivas holísticas, sistêmicas e de conhecimento tácito, desenvolvidas nos campos da Química, Física e Biologia, para fundamentar suas ideias sobre as tendências que perpassam a pessoa (Castelo-Branco, 2019).
Outra razão para a falta de ênfase no self ocorre pelo motivo de que as terapias grupais de encontro e o ensino centrado no estudante, modalidades representativas da ACP, não objetivam diretamente uma reorganização da personalidade, pois intencionam, respectivamente, promover crescimento intra e interpessoal e possibilitar aprendizagens significativas (Rogers, 1977/2001).
Repercussões Contemporâneas do Legado de Rogers
O desenho quase-experimental de pesquisa clínica, até hoje, é difundido em avaliações sobre a efetividade e eficácia de intervenções, técnicas e posturas terapêuticas, assim como na (co)validação de instrumentos psicológicos como inventários, escalas e testes (Ramos, 2019). Assim, a tradição rogeriana de aplicação, avaliação e aprimoramento da teoria e prática não-diretiva continua a ser desenvolvida nos EUA e na Europa (Joseph, 2017). Alguns dos colaboradores de Rogers continuam a ampliar o seu legado de pesquisas, a partir do uso de instrumentos para avaliar a eficiência da relação terapêutica nos mais diversos campos (Barrett-Lennard, 2015).
Salienta-se, também, que os programas de intervenções e pesquisas clínicas coordenados por Rogers, sobretudo em Chicago, serviram como um ponto de inspiração para outras abordagens psicoterapêuticas, como a análise funcional do comportamento (Samson & McDonnell, 1990) e a terapia do esquema (Rafaeli, Bernstein & Young, 2011), que ainda assimilaram e adaptaram algumas noções e atitudes rogerianas.
Conforme foi explanado anteriormente, Rogers viajou o mundo divulgando a sua proposta de ACP, demonstrando-a em atendimentos públicos, entrevistas, grupos de encontro e comunidades centradas na pessoa (Kirschenbaum, 2007). Foi nesse ímpeto que ele visitou o Brasil em 1977, 1978 e 1985, deixando um legado de ideias, formação e intervenções que enfocavam mais a perspectiva subjetiva, experiencial e relacional do encontro (Castelo-Branco & Farias, 2020), distinta daquela vertente objetiva, quase-experimental e rigorosa de fazer ciência, presente nos anos de Chicago e Wisconsin.
Com efeito, existem dois legados rogerianos: um, científico de pesquisa clínica e intervenção psicoterapêutica sobre a personalidade e; outro, extra-acadêmico de intervenção relacional (individual, grupal e educacional) que transcende os muros tradicionais da clínica, da ciência e da universidade para se focar na experiência. Ambos provocaram uma tensão em Rogers (1961/1997), partem do axioma da não-diretividade como desencadeadora de uma relação de ajuda e estão disponíveis para serem acessados e desenvolvidos.
Em específico, no Brasil, o cenário extra-acadêmico e a perspectiva experiencial e relacional parecem ser os polos que mais popularizam e disseminam as ideias de Rogers, em contraste a um cenário mais restrito de psicólogos humanistas rogerianos que buscam situar os seus conhecimentos em um contexto científico e acadêmico de produções e formação em nível stricto sensu (Castelo-Branco & Farias, 2020). Se considerado somente o legado experiencial-relacional, pela repercussão das críticas de Rogers é possível compreender sua aversão ao cenário acadêmico e aos ditames da ciência; contudo, considerando-se que boa parte da carreira de Rogers foi submetida a esse panorama e que há diversas repercussões disso, do mesmo modo, torna-se razoável entender que essa herança científica é tão legítima e necessária quanto à outra.
Embora seja possível destacar o desenvolvimento e a testagem de validação favorável do Inventário Strathclyde (Freire, 2008), instrumento baseado na teoria rogeriana que avalia a eficiência da terapia em processos de mudança de personalidade, as pesquisas nacionais meneiam para o uso de metodologias mais qualitativas, a partir de recursos como, por exemplo, a entrevista não-estruturada e a análise fenomenológica empírica (Castelo-Branco & Cirino, 2017). Estas investigações desenvolvem uma perspectiva à qual Rogers (1985a) foi simpático; entretanto, elas são mais compreensivas sobre algum tipo de experiência do que avaliam a intervenção psicoterapêutica e os seus efeitos.
Considerações Finais
Diante do transcurso aqui apresentado, incorre em equívoco, ou desconhecimento, afigurar o trabalho de Rogers como destituído de rigor científico, dado a sua competência para gerir pesquisas e as repercussões delas. Infere-se que, se esse legado fosse mais difundido e aplicado no Brasil, talvez, no cenário universitário, existissem mais interessados em seguir com o programa de estudos clínicos de Rogers, ainda que atualizados segundo aportes mais qualitativos e relacionados ao que foi desenvolvido pela ACP. Além disso, o aumento de avaliações e produções acadêmicas sobre intervenções centradas em pessoas com variadas demandas (tipos de experiência ou manifestações do self) possibilitaria pontes para metanálises, metassínteses qualitativas e psicologia baseada em evidências. Essa postura metodológica e científica poderia gerar aprimoramentos teórico-interventivos e maior reconhecimento da abordagem na Psicologia nacional. Existem, portanto, recursos e possibilidades para isso.
Como proposta para futuras análises relacionadas às repercussões dos programas de Chicago e Wisconsin no pensamento de Rogers, considerando que as investigações dos seus estudantes lhe proporcionaram (re) elaborações teóricas, indica-se a construção de um mapa conceitual que sumarize, explicite e especifique a contribuição de cada colaborador, para examinar o que foi incorporado pela teoria rogeriana. Recomendam-se, do mesmo modo, estudos que aprofundem os instrumentos rogerianos utilizados naqueles programas e como eles foram validados. Em vias empíricas, propõe-se o emprego de outros delineamentos mais qualitativos, como a pesquisa-ação, em um programa que avalie intervenções centradas na pessoa em dispositivos clínicos, de saúde mental e atenção psicossocial. Finalmente, sugerem-se estudos que traduzam, adaptem, validem e apliquem os instrumentos de base rogeriana, para que estes possam ser considerados favoráveis pelo Conselho Federal de Psicologia e sejam aproveitados por profissionais e pesquisadores da ACP. Eis alguns caminhos para ampliar a herança científica de Rogers no Brasil.
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Endereço para correspondência:
Paulo Coelho Castelo Branco
pauloccbranco@gmail.com
Recebido em: 10/08/2020
Aceito em: 05/02/2021