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Contextos Clínicos

Print version ISSN 1983-3482

Contextos Clínic vol.3 no.2 São Leopoldo Dec. 2010

 

ARTIGOS

 

A heterogeneidade do Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC): uma revisão seletiva da literatura

 

Heterogeneity of Obsessive-Compulsive Disorder (OCD): a selective review of the literature

 

 

Letícia de Studinski Ramos Brito CoutoI; Lidiane RodriguesI; Analise de Souza VivanII; Christian Haag KristensenIII

IPontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Av. Ipiranga, 6681, Prédio 11, 90619-900, Porto Alegre, RS, Brasil. leticiastudinski@hotmail.com, lidifrater@ibest.com.br
IIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul. Rua Ramiro Barcelos, 2400, 2º andar, 90035-003, Porto Alegre, RS, Brasil. anavivan@gmail.com
IIIPontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Av. Ipiranga, 6681, Prédio 11, Sala 933, 90619-900, Porto Alegre, RS, Brasil. christian.kristensen@pucrs.br

 

 


RESUMO

O Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC) é um dos transtornos mentais mais prevalentes. No entanto, há ainda a falta de reconhecimento dos sintomas característicos, e isso pode levar ao atraso no diagnóstico e no tratamento. Não obstante, a variabilidade na expressão clínica e a diversidade dos sintomas são fatores complicadores no momento do diagnóstico. Atualmente, este é feito com base nos manuais de classificação diagnóstica DSM-IV e CID-10 que descrevem o transtorno como uma entidade única. Contudo, o TOC é muitas vezes subdiagnosticado por ser um transtorno heterogêneo do ponto de vista clínico e pelos fatores etiológicos e de resposta ao tratamento. As comorbidades tornam o diagnóstico ainda mais complexo. Assim, o diagnóstico diferencial acurado é de suma importância. Desse modo, este artigo revisa a literatura científica sobre as diversas manifestações clínicas do transtorno, as comorbidades que dificultam o diagnóstico e os sintomas incomuns do TOC.

Palavras-chave: Transtorno Obsessivo-Compulsivo, psicopatologia, diagnóstico.


ABSTRACT

Obsessive-Compulsive Disorder (OCD) is one of the most prevalent mental disorders. In spite of this, the lack of recognition of its characteristic symptoms can lead to delay in the diagnosis and treatment. Moreover, the variability of clinical manifestations and the diversity of symptoms are confusing factors by the time of diagnosis. Currently, it is made based on the manuals of diagnostic classification DSM-IV and CID-10 that describes the disorder as one single entity. However, OCD is underdiagnosed due to its heterogeneity from a clinical viewpoint and considering etiological factors and response to treatment. Comorbidities also make the diagnosis even more complex. Therefore, the accurate differential diagnosis is extremely important. This paper intends to review the available scientific literature regarding the diversity of clinical expression, the comorbidities that complicate the diagnosis, and the uncommon symptoms of OCD.

Key words: obsessive-compulsive disorder, psychopathology, diagnosis.


 

 

Introdução

O Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC) é uma condição heterogênea nem sempre de simples identificação. Obsessões são pensamentos, imagens ou impulsos intrusivos que causam ansiedade ou desconforto emocional. Compulsões são comportamentos repetitivos ou atos realizados voluntariamente para neutralizar ou amenizar um desconforto ou para magicamente prevenir o evento temido. Os sintomas mais comuns são obsessões de contaminação, obsessões agressivas, sexuais e somáticas e compulsões de lavagem, contagem, verificação, ordem e simetria. Comumente, os pacientes apresentam simultaneamente múltiplos sintomas, os quais mudam com frequência. Esta variabilidade na apresentação acaba por dificultar a identificação, fazendo com que o transtorno seja subdiagnosticado e, consequentemente, subtratado. O TOC é um transtorno de fenomenologia diversificada, considerado uma doença mental grave e que está, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (2000), entre as dez principais causas de incapacitação das pessoas, acometendo um em cada 40 ou 50 indivíduos.

Inicialmente, o TOC era descrito como um transtorno "circular", ou seja, homogêneo. No entanto, com o avanço das pesquisas percebeuse que o TOC se tratava de uma doença com características heterogêneas, possivelmente devido às comorbidades presentes nesse transtorno que dificultam o seu diagnóstico. A característica heterogênea do TOC, além de trazer dificuldades diagnósticas, exige dos profissionais de saúde habilidades e conhecimentos aprofundados a respeito do transtorno.

Atualmente, considerável esforço é colocado no estudo da heterogeneidade do TOC. Uma questão em aberto reside na manifestação de comorbidades. Seriam as manifestações sintomáticas que coocorrem ao TOC comorbidades de fato? Ou, como defendem alguns, seriam estas manifestações parte do próprio TOC? Pesquisas nessa direção vão possibilitar o entendimento mais apurado do transtorno e a conscientização da população geral de que o TOC é um problema de saúde sério, mas tratável com abordagens específicas. Portanto, a oferta de profissionais e de serviços de saúde capacitados para essa demanda é algo fundamental para a diminuição da gravidade dos casos, para o aumento da qualidade de vida dos portadores e para o rápido acesso ao tratamento adequado. Apresenta-se, assim, uma revisão seletiva da literatura, visando explorar as teorias e discussões acerca da heterogeneidade do TOC.

 

Da neurose obsessiva ao TOC

A denominação TOC é de uso corrente na psiquiatria atual. Porém, muito antes da adoção de tal nomenclatura, a patologia já havia sido descrita em textos de Sigmund Freud como Neurose Obsessiva. Anterior ao percurso traçado por Freud no terreno da Neurose Obsessiva está o Estudo das Obsessões pela Psiquiatria Clássica. Inicialmente associadas à loucura, as obsessões faziam parte do âmbito das psicoses e, expressões como loucura da dúvida, loucura obsessiva, delírio de contato, delírio de tocar e loucura lúcida eram utilizadas para defini-las. A primeira alusão ao termo "obsessão" encontrada na literatura foi feita pelo psiquiatra francês Jules Falret (1824-1902) (Falret, 1866 in Macedo, 2005) para designar categorias de manifestações psíquicas denominadas alienação parcial e hipocondria moral. Este autor descreveu ainda as obsessões como ideias ou atos compulsivos, ritualizados e repetitivos que provocavam, às pessoas acometidas por este mal, intenso sofrimento com pensamentos sempre sobre os mesmos temas. Tais indivíduos penavam pela convivência contínua com dúvidas e medo de cometerem atos impulsivos. Os pacientes eram situados no campo da loucura pelos comportamentos apresentados, apesar da diferença entre as demais patologias e as obsessões. Contudo, estudiosos elucidavam tratar-se de delírios parciais, loucuras parciais ou monomanias, uma vez que os acometidos por este mal não perdiam a razão.

Em 1886, Falret (in Macedo, 2005, p. 211) definiu esta afecção:

O verdadeiro transtorno desta enfermidade consiste, sobretudo, em envolver-se incessantemente sobre as mesmas ideias e sobre os mesmos atos, experimentando uma necessidade de repetir as mesmas palavras e de realizar os mesmos atos sem conseguir jamais satisfazer-se ou convencerse, nem sequer antes evidências.

A diferença fundamental entre as formulações de Falret e, posteriormente, de Freud está na substituição que a psicanálise faz do termo loucura por Neurose. Na segunda metade do século XIX, as obsessões faziam parte de um quadro abrangente de disfunções mentais com diversos sintomas em comum que não definiam, entretanto, uma estrutura psicopatológica autônoma, dentre elas a neurastenia e a degenerescência. Estas considerações da psiquiatria acerca das obsessões permaneceram até a formulação do conceito de Neurose Obsessiva, termo que, posteriormente, seria empregado como categoria exclusiva da clínica psicanalítica com a retomada do estudo das obsessões pelo campo da medicina (Macedo, 2005).

Cabe ressaltar ainda que, divergente da compreensão médica, o olhar psicanalítico proporcionou uma forma revolucionária de entendimento das manifestações clínicas, da origem e do funcionamento obsessivo. O termo Neurose Obsessiva é mencionado na obra de Freud, pela primeira vez, em seu trabalho de 1894, intitulado As neuropsicoses de defesa, no qual expõe nosologia que une obsessões e histeria. A partir de então, e até a década de 60, a teoria psicanalítica forneceu o modelo para tratamento do TOC baseando-se na formulação teórica proposta por Freud (1970 [1909]) em O homem dos ratos. Entretanto, a formulação psicanalítica, postulando que a neurose obsessiva seria uma manifestação de conflitos inconscientes ligados à fase anal do desenvolvimento, mostrou-se pouco eficaz para o tratamento de casos resistentes do TOC. Assim, a partir desta década, surge o uso da abordagem comportamental, descrita por Meyer, com as técnicas de dessensibilização sistemática para o tratamento de obsessões e compulsões propostas por Wolpe (Cordioli, 2008).

A partir dos anos 70, múltiplos estudos vêm sendo realizados a fim de comprovar a eficácia da abordagem comportamental no tratamento do TOC, sobretudo utilizando a técnica da Exposição e Prevenção de Respostas. Mais recentemente, as limitações observadas neste modelo, referentes às compulsões mentais e obsessões puras, têm dado lugar ao estudo do papel das cognições no entendimento dos sintomas obsessivos e compulsivos. Dessa forma, surge o modelo cognitivo para complementar o modelo comportamental, valorizando a avaliação das crenças distorcidas e propondo a terapia cognitivo-comportamental (TCC) que, atualmente, é considerada o tratamento de primeira linha para os sintomas obsessivos e compulsivos (Cordioli, 2008).

 

Transtorno obsessivo-compulsivo: apresentação geral

Até a década de 80, o TOC era considerado raro, com estudos apontando uma prevalência de 0,05% da população. Mas, após a publicação dos dados de um importante estudo, o ECA (Epidemiological Catchment Area Study), o TOC começou a receber mais atenção de pesquisadores. O estudo, desenvolvido em diferentes comunidades americanas, avaliou 18.500 pessoas e encontrou taxa de prevalência de TOC ao longo da vida de 1,9 a 3,3% (Karno et al., 1988). Um estudo mais recente desenvolvido nos Estados Unidos, o National Comorbity Survey Replication, apontou estimativa de 1,6% na população geral (Kessler et al., 2005). No Brasil, a prevalência encontra-se entre 0,7 e 2,1% (Almeida-Filho et al., 1992).

A Associação Psiquiátrica Americana classifica o TOC como um transtorno mental, incluindo-o entre os transtornos de ansiedade, ao lado das Fobias Específicas, Fobia Social, Transtorno de Pânico, entre outros. Caracteriza-se pela presença de obsessões e/ou compulsões. Obsessões são pensamentos, imagens ou impulsos intrusivos, repetitivos e recorrentes que causam ansiedade. Para aliviar o desconforto, a pessoa tenta suprimir ou neutralizar as obsessões através de comportamentos repetitivos ou atos mentais, que são as compulsões (APA, 2002).

Outro sintoma que também pode estar presente são as evitações. Devido aos pensamen-tos obsessivos ou pelo medo de realizar atos compulsivos em público os indivíduos podem evitar determinados locais, objetos, pessoas ou situações (evitar tocar em trincos, torneiras, talheres utilizados por outras pessoas ou de lugares públicos, sentar em ônibus, bancos de praças; encostar-se em outras pessoas, pisar em tapetes com sapatos da rua, pisar em rejuntes de azulejos). Outros sintomas associados ao transtorno são a indecisão, senso de responsabilidade supervalorizado, lentidão e dúvida patológica (Calvocoressi et al., 1999).

É uma doença crônica, de evolução variável e que pode aparecer abruptamente, desencadeada ou não por evento estressor. A sintomatologia é grave em 10% dos casos, intensificando-se progressivamente, podendo acarretar incapacitação para o trabalho, limitações e grande sofrimento aos portadores. A possibilidade de remissão dos sintomas sem tratamento é considerada extremamente rara, assim como seu início após os 40 anos de idade. Um estudo multicêntrico brasileiro apresentou a média de idade de início dos sintomas obsessivos de 13,6 anos e dos compulsivos de 13,2 anos. No entanto, não é raro encontrar casos da doença ainda na infância, com pesquisas apontando que mais de 50% dos pacientes referem o surgimento dos sintomas quando crianças. Além disso, o tempo médio entre o início dos sintomas e a busca por tratamento chega a 18,1 anos (Miguel et al., 2008; Diler e Avci, 2002).

Frequentemente, os sintomas do TOC são vistos como egodistônicos e parecem absurdos ou ridículos para a própria pessoa. Mas, mesmo com crítica a respeito das manifestações clínicas e marcados prejuízos nas atividades ocupacionais, sociais e rotinas diárias, ainda é baixa a procura por tratamento. Muitas vezes, os pacientes apresentam receio de expor seus sintomas pelas crenças de que os pensamentos se tornem realidade ou por motivos relacionados à vergonha, na tentativa de evitar possíveis humilhações. No caso de obsessões de conteúdo sexual ou agressivo, alguns temem que possam ser vistos como loucos ou perigosos pelos outros (Heyman et al., 2001; Presta et al., 2003; Torres e Lima, 2005).

Atualmente, pesquisadores abordam de forma mais ampla a psicopatologia do TOC, investigando experiências subjetivas que acompanham os comportamentos repetitivos, como as crenças e fenômenos sensoriais. As crenças disfuncionais são descritas por diferentes autores e entendidas como um fator que pode influenciar para o agravamento e manutenção dos sintomas. O Obsessive-Compulsive Cognitions Working Group (1997), grupo composto por especialistas, apresenta uma relação das principais crenças: (a) exagerar a responsabilidade, (b) valorizar de forma excessiva os pensamentos, (c) necessidade de controlar os pensamentos, (d) exagerar o risco, (e) necessidade de ter certeza, e (f) perfeccionismo.

Em relação aos fenômenos sensoriais, muitos pacientes relatam sensações corporais precedendo seus rituais (ao invés de obsessões). Elas se apresentam de forma focal ou generalizada e ocorrem antes da realização do comportamento repetitivo. Os fenômenos sensoriais dividem-se em físicos e mentais. Dentre os físicos estão os táteis (por exemplo: "eu uso um batom 20 vezes por dia para aliviar uma sensação de secura nos lábios") e músculo-esqueléticos ou viscerais (por exemplo: "quando eu como sinto meu estômago aumentado e isto me incomoda. Eu tenho uma sensação estranha nele e tenho que checar várias vezes como ele está para me livrar dessa sensação desconfortável"). As sensações mentais, por sua vez, são definidas como percepções que ocorrem antes ou durante a realização de um comportamento repetitivo. Dentre elas estão apenas a necessidade ou premência, o "ter de" realizar (por exemplo: "eu não sei o motivo que me leva a checar as portas. Eu não tenho nenhum pensamento ruim, imagem ou medo, eu apenas tenho de voltar e checar várias e várias vezes"), liberação de energia (por exemplo: "eu sinto uma tensão mental crescendo se eu não confiro os meus armários. Não é uma sensação física, sinto uma energia na minha mente. Eu tenho de checar para aliviar essa tensão"), incompletude (por exemplo: "pior que as obsessões é o sentimento de que sempre falta alguma coisa em mim; muito raramente eu me livro desde sentimento quando faço algumas coisas várias e várias vezes") e percepções just right (por exemplo: "eu levo horas para me vestir por que as coisas têm de parecer visualmente certas ou quando eu toco minha roupa ela tem de ter uma textura certa; eu tiro e coloco as roupas várias e várias vezes para que as coisas pareçam certas") (Hounie et al., 2001).

Apesar de ter sido descrito há mais de um século e dos vários estudos publicados até o momento, o TOC ainda é considerado um enigma. Questões como a descoberta de possíveis fatores etiológicos, diversidade de sintomas e como respondem aos tratamentos continuam sendo um desafio para os pesquisadores. Uma dificuldade para encontrar essas respostas deve-se ao caráter heterogêneo do transtorno.É devido a esta fenomenologia rica e diversificada, com múltiplas possibilidades de apresentação, que ocorre a dificuldade de sua identificação. Atrelado a isto, nem todos os pacientes respondem ao tratamento (medicamentoso ou psicoterápico), a ponto de ainda hoje haver o questionamento se existe de fato um único transtorno ou se o TOC constitui um grupo de transtornos (Castle e Phillips, 2006; Hounie et al., 2001; Ravindran et al., 2009).

 

A heterogeneidade do TOC

Os sintomas presentes no TOC, como obsessões, compulsões e evitações, costumam apresentar-se de diferentes formas, com conteúdos diversos. Estudos propõem uma divisão dimensional dos sintomas, podendo alguns tipos de obsessões e compulsões ocorrerem de forma concomitante (Abramowitz et al., 2010; Calamari et al., 1999; Rosário-Campos et al., 2006; Van Oppen et al., 1995). Achados científicos atuais apontam que as dimensões do TOC estão associadas a diferentes questões genéticas, neurobiológicas, comorbidades e resposta ao tratamento (Schruers et al., 2005).

A mais consistente divisão em dimensões de sintomas inclui: (a) obsessões de contaminação e compulsões de lavagem/limpeza; (b) obsessões sobre responsabilidade por causar prejuízos ou erros e compulsões de checagem; (c) obsessões sobre ordem e simetria e compulsões de ordenamento e arranjo; e (d) pensamentos obsessivos repugnantes sobre sexo, religião e violência com rituais mentais e outras estratégias de neutralização (Mataix-Cols et al., 2005).

No entanto, a maior limitação para adotar a abordagem dimensional tem sido a falta de instrumentos capazes de englobar a diversidade dos sintomas obsessivo-compulsivos de forma adequada e com dados precisos (Leckman et al., 2010). Algumas escalas, como a Dimensional Yale-Brown Obsessive-Compulsive Scale (DY-BOCS) e a Dimensional Obsessive-Compulsive Scale (DOCS), vêm sendo estudadas (Rosário-Campos et al., 2006; Abramowitz et al., 2010). A DY-BOCS compreende 88 itens, divididos em seis categorias: (i) obsessões sobre agressão, violência, desastres naturais e compulsões relacionadas; (ii) obsessões sexuais e religiosas e compulsões relacionadas; (iii) obsessões e compulsões de simetria, ordem, contagem e arranjo; (iv) obsessões de contaminação e compulsões de limpeza, (v) obsessões e compulsões de colecionismo; e (vi) obsessões e compulsões diversas. A DOCS apresenta 20 itens que contemplam quatro dimensões: (i) contaminação, (ii) responsabilidade por dano, (iii) pensamentos indesejáveis e (iv) simetria.

O colecionismo, frequentemente considerado como uma dimensão do TOC, presente inclusive em alguns questionários sobre sintomas obsessivo-compulsivos (Rosário-Campos et al., 2006; Foa et al., 2002), vem sendo amplamente discutido. Alguns pesquisadores sugerem que o colecionismo, em razão de suas características distintas, deveria apresentar seus próprios critérios diagnósticos e definir-se como um transtorno independente no DSM-V (Pertusa et al., 2010; Leckman et al., 2010).

Além disso, a ideia do TOC como uma entidade única tem sido substituída no pensamento psiquiátrico atual pela noção de um espectro obsessivo-compulsivo, considerando a similaridade do transtorno com várias categorias nosográficas que, embora classificadas como categorias distintas, podem se distribuírem em um continuum (Castle e Phillips, 2006; Lochner e Stein, 2006; Phillips, 2002; Ravindran et al., 2009). O TOC possui características clínicas que o tornam um transtorno de difícil diagnóstico. Uma delas diz respeito às fronteiras com outros transtornos mentais, sendo que estas precisam ser consideradas na avaliação de pacientes com TOC. A noção de um espectro considera ainda as comorbidades, a idade de início dos sintomas, a etiologia, o curso clínico e a resposta ao tratamento. Fazem parte deste espectro, além do TOC, os transtornos de tiques, Transtorno Dismórfico Corporal, Tricotilomania, Jogo Compulsivo, Comprar Com pulsivo e demais transtornos de controle de impulsos (Miguel, 1996).

Como proposta para a definição de subgrupos mais homogêneos, leva-se em consideração as comorbidades associadas ao TOC. Miguel et al. (2008) encontraram em sua amostra altos índices de comorbidade com Transtorno Depressivo Maior (69,7%), Fobia Social (36,8%), Transtorno de Ansiedade Generalizada (35,4%), Fobia Específica (32,4%) e Transtorno de Estresse Pós-Traumático (15,6%). Os transtornos de tique também se revelaram frequentes, com prevalência de 28,7% da população estudada. Além disso, os transtornos do controle dos impulsos aparecem comumente associados ao TOC, mais especificamente as grooming disorders (Tricotilomania, skin-picking e nail-biting) (Grant, 2006). Quanto aos trans-tornos de Eixo II, o Transtorno da Personalidade Obsessivo-Compulsivo, comumente confundido com o TOC, pode aparecer em até 24,7% dos indivíduos (Pinto et al., 2006).

As fronteiras diagnósticas com outros transtornos mentais suscitam a grande dúvida a respeito do TOC: são realmente comorbidades ou fazem parte do quadro clínico? A ocorrência de sintomas obsessivos e de comportamentos compulsivos não é determinante no diagnóstico. Pacientes diagnosticados dentro do espectro dos transtornos de ansiedade, e que manifestam preocupações excessivas com doença, podem ter seus sintomas confundidos com o Transtorno de Pânico, por exemplo. Além disso, os sintomas obsessivos também podem fazer parte de quadros como Esquizofrenia, depressões e demências (Torres, 2001).

Relativo à depressão, pode-se observar que, além de se apresentar como sintoma secundário ao TOC, revela aspectos em comum com o transtorno, como a manifestação da culpa, a preocupação excessiva, o medo, a baixa autoestima, as ruminações obsessivas, a avaliação exagerada dos riscos e o viés cognitivo catastrófico (Heyman et al., 2006). Entretanto, no TOC, o paciente sofre para evitar que algo de ruim ocorra no futuro, enquanto que na depressão o sofrimento se dá por algo já ocorrido. A lentidão também é comum a ambos os transtornos, porém na depressão há um estupor pelo portador apresentar maior fatigabilidade e diminuição de energia. No TOC, a lentidão consiste em dificuldade para realizar tarefas corriqueiras como escovar os dentes, banhar-se, vestir-se pela demora que se dá tanto pela dificuldade de iniciá-las como por serem realizadas de modo lento e meticuloso.

Existem superposições entre as fobias e as obsessões no que se refere aos medos irracionais de situações ou objetos fobígenos. No TOC, não há a necessidade de exposição à situação ou objeto temido, pois um pensamento ou uma dúvida podem desencadear comportamentos de esquiva. Nas obsessões, os estímulos geradores de ansiedade são internos e as cognições associadas são mais complexas, evolvendo pensamentos mágicos. Um fóbico associa o estímulo externo (cachorro, altura, multidão) ao medo e à ansiedade, enquanto no obsessivo o estímulo é associado a vários sentimentos como nojo, desconforto, vergonha. Como exemplo, a pessoa com TOC pode esquivar-se de entrar ou mesmo de passar na frente de supermercados pela existência de produtos de limpeza ou gosmentos com os quais tem medo de se contaminar ou de se sujar (Torres, 2001).

Outras condições consideradas dentro do espectro obsessivo-compulsivo são a Tricotilomania, o Transtorno Dismórfico Corporal e a hipocondria. A Tricotilomania é um impulso desencadeado por uma situação de tensão ou ansiedade, mas que também pode se manifestar em momentos de relaxamento. Arrancar os próprios cabelos e pelos, bem como o de outras pessoas, de animais de estimação ou fios de tapetes proporciona a sensação de alívio, de liberação da energia, de prazer e satisfação. Já o Transtorno Dismórfico Corporal faz parte do espectro obsessivo pelo fato de os portadores apresentarem preocupações excessivas com defeitos na aparência. Demonstram incômodo exagerado com alguma característica e a crença de que possuem deformações na aparência. Os portadores têm uma distorção da autoimagem e veem a si mesmo como extremamente feios. No que concerne à hipocondria, considerada um transtorno somatoforme, há uma preocupação exagerada e persistente com ter uma doença grave. A preocupação não desaparece diante de evidências como exames clínicos (Cordioli, 2008).

No que diz respeito ao Transtorno da Personalidade Obsessivo-Compulsivo, este se caracteriza por um padrão global de preocupações excessivas com organização, perfeccionismo, escrupulosidade, inflexibilidade, autoritarismo, avareza, exigências exageradas, dedicação excessiva ao trabalho, preocupações com regras, normas, valores e preceitos morais. O essencial é a rigidez, não se caracterizando pela presença de obsessões e compulsões. O diagnóstico diferencial em relação ao TOC deve levar em consideração os traços de personalidade duradouros, estáveis, de início precoce e o atributo egossintônico do Transtorno da Personalidade Obsessivo-Compulsivo (APA, 2002).

Em alguns quadros, como Jogo Patológico, transtornos alimentares, cleptomania, comprar e comer compulsivos, o termo compulsão não deve ser entendido no sentido de evitar riscos ou aliviar riscos como no TOC e sim como atos impulsivos, não premeditados, sem levar em consideração as consequências (Lochner e Stein, 2006). Nesse contexto situa-se ainda a Anorexia Nervosa, que se aproxima do TOC pelos comportamentos ritualísticos para evitar ganhar peso, a consequência temida. Alguns rituais do TOC implicam o comportamento alimentar, fator que pode dificultar o diagnóstico diferencial (Torres, 2001).

Muito comum é o TOC associado a transtornos de tiques e à Síndrome de Tourette. Os tiques são movimentos involuntários repetitivos, rápidos e estereotipados de certos grupos musculares, podendo também se apresentar como uma vocalização súbita. Na Síndrome de Tourette existe múltiplos tiques motores tais como piscar os olhos, fazer caretas, pular, agachar-se, girar o tronco, tocar e vocais, como proferir palavras, sons como grunhidos, tosses, espirros, estalos e coprolalia. Quanto mais complexos os tiques motores, mais se assemelham a uma compulsão. A diferença está no fato de que as compulsões são realizadas voluntariamente e desencadeadas pela ansiedade ou medo e os tiques buscam aliviar sensações incômodas físicas. Entretanto, a maior dificuldade da diferenciação deve-se aos casos em que as compulsões não possuem obsessões associadas e os portadores as realizam para obter a sensação just right ou para preencher a sensação interna de incompletude (Hounie et al., 2001).

Alguns indivíduos com TOC podem ter como comorbidade a Esquizofrenia. O pensamento mágico obsessivo e as características bizarras dos comportamentos ritualísticos podem complicar o diagnóstico. Não obstante, os pensamentos delirantes e comportamentos bizarros da Esquizofrenia são egossintônicos e não estão sujeitos ao teste de realidade (APA, 2002).

Os transtornos de Pânico, de Ansiedade Generalizada e do Estresse Pós-Traumático envolvem, assim como o TOC, manifestações patológicas de ansiedade. No Transtorno de Pânico, há um viés interpretativo catastrófico de sensações físicas e comportamentos evitativos, assim como no TOC. Aliado a isto, os portadores do TOC podem ter crises de pânico quando expostos a alguma situação temida ou como resposta a uma obsessão, o que confunde o diagnóstico. No Transtorno de Ansiedade Generalizada, existem do mesmo modo as preocupações exageradas, porém referentes a eventos do cotidiano, diferentemente do TOC, em que as preocupações excessivas configuram-se como intrusões ego-distônicas sob a forma de impulsos ou imagens e que levam a uma ação neutralizadora ou de alívio da ansiedade (APA, 2002; Barahmand, 2009). No Transtorno de Estresse Pós-Traumático, a ocorrência de sintomas desenvolve-se após a experiência de um evento traumático. As imagens, pensamentos intrusivos obsessivos e a esquiva persistente relacionam-se ao trauma, mas nem sempre são facilmente diferenciados do TOC (APA, 2002; Kristensen et al., 2005).

Em vista da heterogeneidade da apresentação clínica do TOC, observa-se que o diagnóstico não se constitui em uma tarefa fácil, pois, recentemente vem sendo considerado mais do que uma unidade nosológica, caracterizando-se como síndrome devido aos vários subgrupos de pacientes (Miguel, 1996). Outro fator importante diz respeito ao fato de que o TOC, por diversas vezes, não é visto, tanto pelos portadores quanto pelos profissionais da saúde como o quadro grave e crônico que é, revelando-se mais incapacitante que outras doenças mentais (Torresan et al., 2008). Assim, é indispensável que os profissionais estejam capacitados para reconhecer a heterogeneidade na apresentação do TOC, levando em consideração sua complexidade, a riqueza e a diversidade das manifestações clínicas, além das comorbidades associadas que podem fazer com que o TOC permaneça como uma condição oculta, impedindo a execução das abordagens terapêuticas adequadas.

 

Considerações finais

Apesar do crescente número de pesquisas na área, o TOC continua sendo um desafio para os profissionais. Estudos apontam que nem todos os pacientes respondem ao tratamento, fato que vem levantando questionamentos a respeito das diferentes apresentações clínicas do transtorno. O TOC, em sua diversidade, constituiria um único transtorno ou grupos distintos de transtornos? Assim, a tentativa de buscar grupos mais homogêneos, no que se refere à sintomatologia, idade de início, curso evolutivo, comorbidades e resposta ao tratamento poderia contribuir para o desenvolvimento de tratamentos específicos, visando uma maior eficácia nas intervenções psicoterápicas e farmacológicas.

 

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Submetido em: 05/08/2009
Aceito em: 10/08/2010

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