Services on Demand
article
Indicators
Share
Contextos Clínicos
Print version ISSN 1983-3482
Contextos Clínic vol.11 no.3 São Leopoldo Sept./Dec. 2018
https://doi.org/10.4013/ctc.2018.113.01
ARTIGOS
Gravidez pós-estupro: considerações com base na Abordagem Bioecológica do Desenvolvimento Humano
Post-rape pregnancy: considerations based on the Bioecological Approach to Human Development
Mykaella Cristina Antunes Nunes; Normanda Araujo de Morais
Universidade de Fortaleza. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Av. Washington Soares, 1321, Edson Queiroz, 60811-905, Fortaleza, CE, Brasil. mykaellanunes@hotmail.com, normandaaraujo@gmail.com
RESUMO
Trata-se de uma pesquisa de estudo de caso realizada com uma vítima de violência sexual que engravidou e teve como desfecho a continuidade da gestação, após ter sido negada a interrupção legal. Teve-se como objetivo compreender os processos proximais vividos pela participante desde a rejeição à acolhida da gestação a partir dos pressupostos da Abordagem Bioecológica do Desenvolvimento Humano (ABDH). Os dados foram colhidos em hospital da cidade de Fortaleza (CE), por meio de duas entrevistas, de característica semiestruturada. Foram delimitadas quatro categorias de análise, que procuraram retratar desde as características da participante, as mudanças empreendidas ao longo do tempo, a interferência dos contextos até os processos proximais vividos da fase de rejeição à fase de maior vinculação com a gravidez/criança. Observou-se que, mesmo em situações adversas, como no caso de violência sexual e gravidez indesejada, é possível ressignificar a experiência e passar a olhar de outra forma para a gravidez/criança, principalmente por conta da interferência de outros sistemas envolvidos, como a família e a equipe de profissionais, e também que a compreensão desse fenômeno necessita contemplar os múltiplos aspectos envolvidos, como ocorreu no caso em estudo, ao ser interpretado à luz da ABDH.
Palavras-chave: estupro, gravidez, abordagem bioecológica do desenvolvimento humano.
ABSTRACT
This is a case study carried out with a victim of sexual violence who became pregnant and had, as a result, the continuity of pregnancy after being denied legal interruption. The objective was to understand the proximal processes lived by the participant from the rejection to the acceptance of gestation from the assumptions of the Bioecological Approach to Human Development (ABDH). Data were collected at a hospital in the city of Fortaleza (Ceará State), through two interviews, with semi-structured characteristics. Four categories of analysis were delineated, ranging from the characteristics of the participant, the changes undertaken over the time, the interference of the contexts to the proximal processes experienced from the phase of rejection to the phase of greater attachment to the pregnancy/child. It was observed that even in adverse situations, as in the case of sexual violence and unwanted pregnancy, it is possible to resignify the experience and to look at the pregnancy/child in another way, mainly due to the interference of other systems involved (family and professionals), also that the understanding of this phenomenon needs to contemplate the multiple aspects involved, as it happened in the case under study, when interpreted in the light of ABDH.
Keywords: rape, pregnancy, bioecological approach to human development.
Introdução
A respeito da violência sexual, a designação conceitual do Ministério da Saúde (2012) - ancorada na Lei 12.015, de 2009, que altera o Código Penal Brasileiro - conceitua tal violência como uma ação que obriga uma pessoa a manter contato sexual, físico ou verbal, ou participar de outras relações sexuais com uso da força, intimidação, coerção, chantagem, suborno, manipulação, ameaça ou qualquer outro mecanismo que anule ou limite a vontade pessoal. Pode manifestar-se através de expressões verbais ou corporais que não são do agrado da pessoa; toques e carícias não desejados; exibicionismo e voyerismo; prostituição forçada; participação forçada em pornografia; relações sexuais forçadas - coerção física ou por medo do que venha a ocorrer. As principais modificações decorrentes da Lei 12.015/2009 consistem na nova definição do estupro, que passou a ser definido como: "constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso", ampliando o entendimento da vítima como mulher ou homem e incorporando a prática de outros atos libidinosos, não somente restrito à conjunção carnal (Lima e Deslandes, 2014).
Atos sexualmente violentos podem ocorrer em diferentes circunstâncias e cenários, afetando pessoas de ambos os sexos; no entanto, as mulheres em todas as faixas etárias são as maiores vítimas (Lima e Deslandes, 2014; Machado et al., 2015). Mulheres que sofrem violência sexual estão mais propensas ao desenvolvimento de sintomas psiquiátricos como transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), depressão, somatizações, tentativas de suicídio e uso de substâncias psicoativas (Machado et al., 2015); além de estarem expostas a contrair doenças sexualmente transmissíveis (DSTs) e a engravidarem de forma indesejada (Faúndes et al., 2006). Por exemplo, cerca de 30% das vítimas adolescentes e mulheres desenvolvem doenças sexualmente transmissíveis e o risco de gravidez indesejada atinge até 5% delas, agravando o quadro já traumático (Rocha et al., 2015). Tais consequências, além de qualificar a violência sexual como questão de saúde pública, também a configura como uma grave violação dos direitos humanos e reprodutivos (Machado et al., 2015; Rocha et al., 2015).
O Brasil, por intermédio do Ministério da Saúde e da Norma Técnica -"Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes", editada pela primeira vez em 1999 e revista nos anos de 2005 e 2009, buscou padronizar o atendimento às vítimas de violência sexual (Ministério da Saúde, 2012). A Norma preconiza o atendimento emergencial, nas primeiras 72 horas após a violência, que tem por objetivo acolhimento e administração de anticoncepção de emergência e a profilaxia para as DST, doenças virais e bacterianas. Tal atendimento deve ser ofertado por uma equipe multidisciplinar, composta por médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, assistentes sociais e psicólogos. Além disso, a Norma Técnica também prevê atendimento às mulheres que solicitam interrupção legal da gestação, por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), nos casos de gravidez decorrente de estupro, situação prevista no Código Penal Brasileiro desde 1940 (Diniz et al., 2014; Machado et al., 2015; Rocha et al., 2015).
Nos casos de gravidez decorrente de estupro, as mulheres devem ser esclarecidas sobre as alternativas legais quanto ao destino da gestação e sobre as possibilidades de atenção nos serviços de saúde. Essas mulheres têm direito de serem informadas sobre a possibilidade de interrupção da gravidez, conforme Decreto-Lei nº 2848, art. 128, inciso II, do Código Penal (Lordello e Costa, 2014). Para o acesso ao aborto legal, o consentimento da mulher ou o de seu representante legal (no caso de crianças e adolescentes) são peças suficientes. Não cabe investigação policial ou judicial da verdade para que o testemunho da vítima seja reconhecido como legítimo para o acesso aos serviços de saúde. Desta forma, segundo o Ministério da Saúde (2012), a narrativa da vítima deve ser suficiente para a história do estupro e o acesso ao aborto legal nos serviços de saúde (Diniz et al., 2014).
As mulheres também devem ser informadas quanto ao direito de manterem a gestação até o seu término, garantindo-se os cuidados pré-natais apropriados para a situação. Devem receber informações completas e precisas sobre as alternativas após o nascimento, que incluem a escolha entre permanecer com a criança e inseri-la na família, ou proceder com os mecanismos legais de adoção. Nessa última hipótese, os serviços de saúde devem providenciar as medidas necessárias junto às autoridades que compõem a rede de atendimento para garantir o processo regular de adoção (Faleiros, 2013; Lordello e Costa, 2014).
Nos casos em que há continuidade da gestação e a criança permanece junto à mãe travam-se dois importantes desafios para a relação mãe/bebê, que são preparar-se para a maternagem e minimizar os efeitos das projeções nas quais o(a) filho(a) pode se tornar depositário da violência sofrida, perpetuando-a por meio da transmissão geracional. A construção da relação afetiva entre mãe e bebê é processual e leva em consideração vários aspectos, inclusive o fato de o bebê ser desejado. Situações adversas que resultam na gestação, como é o caso do estupro, podem afetar de forma indelével o projeto de maternidade. No entanto, ainda que sob condições que aparentemente representem risco, a gravidez também pode representar um organizador da vida psíquica ou mesmo, dar visibilidade e lugar social à grávida (Lordello e Costa, 2014; Nunes, 2014).
Nessa linha de pensamento, acredita-se que a Abordagem Bioecológica do Desenvolvimento Humano (ABDH), enquanto uma visão sistêmica sobre o desenvolvimento humano pode ser valiosa para a compreensão da complexidade da experiência da vítima de violência sexual. Tal valor refere-se, sobretudo, à valorização dos significados atribuídos pelas pessoas sobre o mundo ao seu redor; à bidirecionalidade pessoa-ambiente, no sentido de que ambos exercem influência sobre o outro; à preocupação da ABDH em compreender cada pessoa e seus processos de desenvolvimento, antes que os resultados específicos; e, por fim, a relação entre níveis de contextos diferentes (do mais imediato - família, por exemplo - ao mais remoto - cultura e valores da sociedade) que também influenciam o desenvolvimento de cada pessoa (Narvaz e Koller, 2011; Nunes, 2014).
Violência sexual e gravidez à luz da Abordagem Bioecológica do Desenvolvimento Humano
A Abordagem Bioecológica, desenvolvida por Urie Bronfenbrenner, propõe que o desenvolvimento humano seja compreendido através da interação de quatro núcleos inter-relacionados: o processo, a pessoa, o contexto e o tempo (PPCT). Para a ABDH, o desenvolvimento é fruto de um conjunto de processos em que interagem a pessoa e o ambiente, produzindo estabilidade e mudança nas características da pessoa ao longo do curso da vida. O Processo ou processos proximais dizem respeito às formas particulares de interação entre o organismo e o ambiente, operando como motores do desenvolvimento. Aqueles podem produzir dois tipos de efeitos: (1) competência - aquisição e desenvolvimento de conhecimentos, habilidades e capacidade para conduzir e direcionar seu próprio comportamento; e, (2) disfunção - manifestação de dificuldades em manter o controle e a integração do comportamento (Narvaz e Koller, 2011).
O segundo componente do modelo bioecológico, a Pessoa, contempla tanto as características herdadas biologicamente quanto as adquiridas na interação com o ambiente. As características da pessoa são tanto produtoras como produto do desenvolvimento. O Contexto, terceiro componente, compreende a interação de quatro níveis ambientais, sendo: microssistema, mesossistema, exossistema e macrossistema. O microssistema se refere ao contexto de atividades, papéis sociais e relações interpessoais vivenciados face-a-face pela pessoa em desenvolvimento. O mesossistema consiste no conjunto de microssistemas dos quais uma pessoa participa e nas relações estabelecidas por eles. O exossistema diz respeito aos ambientes nos quais a pessoa não participa ativamente, mas que exerce uma influência indireta sob seu comportamento. O macrossistema é composto pelo conjunto de ideologias, valores, crenças, religiões, culturas e subculturas presentes no ambiente da pessoa que influenciam seu desenvolvimento. Por último, o Tempo, quarto componente do modelo bioecológico, diz respeito à influência sobre o desenvolvimento humano de mudanças e continuidades ao longo do ciclo de vida. É analisado a partir de três níveis, sendo o microtempo - o momento presente; o mesotempo - acontecimentos de dias, semanas e anos; e o macrotempo - tempo histórico e social no qual a pessoa se encontra (Narvaz e Koller, 2011).
A Abordagem Bioecológica do Desenvolvimento Humano tem sido utilizada em discussões diversas, como sobre: terapeutas familiares (Prati, 2009); violência física na família (De Antoni e Koller, 2010); estudos com crianças e famílias (Martins e Szymanski, 2004); vítimas de violência sexual (Lordello e Costa, 2014), entre outros. Acerca do último, destaca-se que Lordello e Costa (2014) descrevem a experiência de uma mulher vítima de violência sexual com um filho recém-nascido a fim de identificar os principais impactos psicológicos no desenvolvimento da relação mãe/bebê nessa situação adversa. O referente estudo é de grande valia para este e outros sobre violência sexual e gravidez por retratar um tipo de vivência sobre a gravidez fruto de violência sexual, no caso a respeito da relação mãe-bebê.
No entanto, o estudo atual diferencia-se por dar ênfase aos processos proximais vivenciados por uma mulher, grávida decorrente de estupro, que ao ser negada a interrupção legal da gestação teve que dar continuidade à mesma, tendo vivenciado processos de rejeição à gravidez e à criança e posteriormente de maior aproximação afetiva ao bebê enquanto ainda encontrava-se gestante. Também são poucos os estudos que retratam a experiência das mulheres grávidas decorrente de estupro, tendo sido localizados em pesquisa de revisão sistemática da literatura (RSL) nas bases de dados IndexPsi, SciELO, LILACS e PsycInfo, no ano de 2014, apenas seis produções na área. Estas versavam predominantemente sobre experiências de continuidade da gestação, sendo destacado nos estudos: os aspectos positivos (Cantelmo et al., 2011) e negativos na relação mãe/bebê (González et al., 1999), o manejo dos profissionais para com o caso (Moura et al., 2001; Santos, 2012) e a sugestão de parto cesárea (Vertamatti et al., 2009). Num estudo foram retratadas as experiências de mulheres que interromperam a gravidez, tendo sido abordados os fatores motivacionais indicados para isso: o repúdio pela gravidez; o vínculo da gravidez à violência; a lembrança da violência e do agressor, dentre outros (Drezett et al., 2011). Desta forma, verifica-se que são escassas as pesquisas que abordam as experiências das vítimas, especialmente articulando-se à ABDH como se propõe neste estudo.
Os processos proximais vivenciados por uma mulher vítima de violência sexual e grávida tendem a ser mais negativos, a exemplo dos problemas de ordem física, social e emocional que podem ser desencadeados em razão da violência sofrida. Contudo, a experiência de atendimento, da primeira autora, a essas mulheres, bem como a literatura indicam que há casos em que as vítimas conseguem dar novos significados à experiência (Cantelmo et al., 2011; Lordello e Costa, 2014), fazendo muita diferença nesta mudança de sentido as características pessoais, a influência dos contextos e a ação do tempo.
Deste modo, o presente artigo tem como objetivo realizar um estudo de caso de uma vítima de violência sexual que engravidou e teve como desfecho a continuidade da gestação após ter sido negada a interrupção legal. Pretende-se compreender os processos proximais vividos pela participante desde a rejeição à acolhida da gestação. Para isso, o caso em questão será descrito com base nos pressupostos da Abordagem Bioecológica do Desenvolvimento Humano (ABDH) e, mais especificamente, tomando os quatro núcleos Processo-Pessoa-Contexto-Tempo (PPCT) como eixos de análise do mesmo.
Método
Delineamento
O estudo consistiu na realização de um Estudo de Caso de uma mulher que engravidou decorrente de Violência Sexual e teve como desfecho a continuidade da gestação. Utilizou-se a metodologia de Estudo de Caso Único por ser mais apropriada nas ocasiões de casos raros ou extremos, em que não existem muitas situações semelhantes para que sejam feitos outros estudos comparativos; e, quando na presença de casos reveladores, que permitem o acesso a informações não facilmente disponíveis (Stake, 2005).
A escolha pelo caso a ser explorado neste estudo deu-se em virtude da complexidade que o mesmo apresenta ao descrever a experiência de uma mulher grávida decorrente de estupro e que precisou dar continuidade à gestação por ter sido negado o direito à interrupção legal, em virtude do período gestacional excedido. Além disso, porque destoa das experiências de outras mulheres que foram assistidas pelo serviço de saúde por conta desse dilema (querer interromper versus ter que dar continuidade) e das recomendações da NT do Ministério da Saúde quando prescreve a assistência imediata à vítima quando da ocorrência da violência, a anticoncepção de emergência e a realização da interrupção legal da gestação (Ministério da Saúde, 2012).
Participante
A participante do estudo, chamada de Ana (nome fictício), engravidou como resultado de um estupro e foi localizada no Serviço de Atenção à Mulher Vítima de Violência Sexual e Doméstica de um hospital-maternidade da cidade de Fortaleza (CE).
Instrumentos
Foi utilizado o tipo de entrevista semiestruturada, tendo sido elaborado dois modelos diferentes de entrevistas pelas autoras desse artigo, os quais foram aplicados em dois momentos: quando da entrada da participante no hospital e após 30 dias (no mínimo) desse primeiro encontro. Estabeleceu-se que as entrevistas seriam aplicadas após um intervalo de 30 dias uma da outra, considerando que não podia ser de imediato a alta, visto o restabelecimento da participante nem tardar tanto em razão das dificuldades de localizá-la novamente.
O primeiro roteiro continha questões sobre: como chegou ao serviço hospitalar; o que tem pensado e sentido acerca da violência sofrida e da gestação não planejada; se contou para alguém o que lhe ocorreu; o que achava melhor para ela (interromper ou continuar a gestação). No segundo momento de entrevista, as perguntas do roteiro diziam respeito aos seguintes temas: percepção sobre mudanças acontecidas na vida da vítima; como avaliava a decisão que havia tomado; se tinha recebido ajuda de alguém; e quais os desejos que possuía para o futuro.
Além das entrevistas também se agregou ao estudo do caso a análise da ficha de Notificação/Investigação Individual da violência e do prontuário da paciente, a fim de colher mais informações sobre a participante. Ambas estavam disponíveis no hospital, pois fazem parte da rotina institucional de atendimento.
Procedimentos de coleta de dados
Conforme mencionado, as duas entrevistas aconteceram em tempos diferentes, com um intervalo de cerca de 40 dias entre uma e outra. A primeira (E1) feita quando a participante se encontrava com 22 semanas de gestação, tendo procurado o serviço hospitalar devido sangramento vaginal decorrente de tentativa de aborto; e a segunda (E2) com 27 semanas, quando já se encontrava em acompanhamento de pré-natal. As entrevistas estão representadas pelo nome da participante acompanhado da identificação (um e dois), da seguinte forma: Ana-E1, Ana-E2. Ocorreram nas dependências do hospital, em sala de atendimento, preservando-se a intimidade da participante.
As entrevistas duraram cerca de 20 e 40 minutos, respectivamente para a primeira e segunda entrevista, tendo sido gravadas e transcritas na íntegra. A escolha do caso para o estudo deve-se à complexidade e diversidade de variáveis que a experiência de Ana pôde oferecer para a área da violência sexual e gravidez fruto desta, como a questão dos procedimentos para a interrupção legal da gestação, o dilema de ter que continuar uma gestação indesejada, a relação mãe/bebê, a relação com a rede de apoio familiar e profissional, entre outras questões. O caso foi extraído do trabalho de dissertação de mestrado da primeira autora desse artigo, que também atuava no hospital como psicóloga na época.
Procedimentos de análise de dados
Para análise das entrevistas foi utilizado o método da análise da temática seguindo o modelo proposto por Bardin (2011), que consiste, operacionalmente, nas seguintes etapas: Leitura flutuante (pré-análise), Análise temática e Tratamento dos resultados. Também se utilizou a Abordagem Bioecológica do Desenvolvimento Humano (ABDH), como teoria para a compreensão dos processos vividos ao longo da experiência pela participante.
Procedimentos éticos
Foram atendidas as recomendações bioéticas para pesquisas com seres humanos no que diz respeito à Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde (CNS). A participante foi informada sobre os princípios bioéticos, também sobre os objetivos e procedimentos do estudo quando convidada a participar voluntariamente da pesquisa, tendo assinado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Também se assegurou a assistência à participante da pesquisa, caso necessitasse de apoio psicológico em virtude da memória de eventos emocionalmente tão mobilizadores, podendo ser atendida no próprio hospital. Todos os procedimentos éticos foram cuidadosamente analisados, desde o contato com a participante durante sua permanência no hospital que possibilitou que a mesma se sentisse segura e acolhida para falar de experiências tão delicadas numa situação de pesquisa; como em relação à condução da entrevista dias após a alta hospitalar da participante, quando ela dava sinais de maior vinculação com a criança. A pesquisa que originou este estudo foi submetida ao Comitê de Ética da Universidade de origem das autoras, tendo sido aprovado conforme parecer de nº 625.809 de 25/04/2014 e do hospital pesquisado de nº 2310094836735/2013.
Resultados e discussão
Esta seção está organizada em dois momentos. No primeiro, faz-se uma síntese do caso; e no segundo, descreve-se as categorias identificadas a partir dos núcleos da ABDH: o processo, a pessoa, o contexto e o tempo (PPCT), estando organizados por: (1) A pessoa Ana: suas forças, recursos e demandas; (2) as mudanças empreendidas na história de Ana ao longo do tempo; (3) a interferência dos Microssistemas família e equipe multiprofissional nos processos vitais de Ana; e, (4) da rejeição à fase de maior vinculação à gravidez e ao bebê.
Síntese do caso
Ana, 20 anos, raça/cor parda, de religião católica, é solteira, possui ensino médio completo e trabalhava na época da primeira entrevista na área de comércio/serviços. Chegou ao hospital acompanhada de uma amiga, que logo foi embora ao saber da tentativa de aborto por Ana. Foi internada devido sangramento vaginal decorrente de tentativa ilegal de aborto por uso de medicamento que tem como efeito secundário a função abortiva. Ana, como outras mulheres atendidas no hospital, chegou ao serviço com os efeitos adversos da tentativa ilegal do aborto. Foi internada e só posteriormente relatou ao médico que havia sofrido violência sexual e havia engravidado como decorrência disso. A família de Ana ao saber de sua gravidez a expulsou de casa, tendo a mesma buscado ajuda com a amiga referida anteriormente. A jovem não revelou a violência à família por medo de retaliações por parte dos agressores (dois conhecidos) que a ameaçaram de morte e por temor à forma como a família poderia reagir.
Segundo registros do primeiro atendimento psicológico de Ana, esta se descrevia como desesperada e desprotegida. Ana permaneceu no hospital por cerca de cinco dias, tendo neste período manifestado o desejo de interromper a gestação. No entanto, devido sua gestação concentrar-se na 22ª semana, a autorização para o aborto legal foi negada. Segundo a Organização Mundial de Saúde, abortamento é a interrupção da gravidez até a 20ª ou 22ª semana e com produto da concepção pesando menos que 500g (Ministério da Saúde, 2012) não havendo indicação para interrupção legal após a 20ª semana, mas sim orientação quanto aos procedimentos para a adoção da criança. Diante da impossibilidade de realização do aborto, Ana possuía duas possibilidades - continuar a gestação e ficar com a criança ou continuar e encaminhar para a adoção.
Durante a primeira entrevista no hospital, a participante mencionava e transparecia seu sofrimento intenso, de quem não queria levar a gravidez adiante e tinha a vida como terminada. Após cerca de 40 dias, Ana foi novamente entrevistada e também no hospital de acordo com sua escolha. Segundo a mesma, já era a segunda vez que retornava ao hospital para as consultas referentes ao pré-natal, após a internação. Ana com vestido rosa e sorriso no rosto se encontrava emocionalmente melhor. Ela estava na casa dos pais, que passaram a apoiá-la em sua gravidez e na ocasião preocupava-se com a maternidade e com a chegada da filha, pois já sabia o sexo da criança. Segundo informações posteriores, Ana retornou ao hospital ainda outras vezes para consultas e meses depois para ter a criança por parto cesárea. Sempre que possível faz contato com o Serviço de Psicologia do hospital e envia fotos da filha.
A pessoa Ana: suas forças, recursos e demandas
A pessoa em desenvolvimento apresenta grande destaque no modelo bioecológico. De acordo com Bronfenbrenner e Morris (1998), as características da pessoa não são estáticas e podem ser transformadas, ainda que esteja submetida a condições adversas. A capacidade de influenciar os processos proximais está diretamente ligada a três grupos de características pessoais, como disposição, recurso e demanda.
As disposições dizem respeito às forças que impulsionam ou dificultam os processos proximais e podem apresentar-se em dois grupos: forças geradoras ou generativas e forças desorganizadoras ou inibidoras. No caso de Ana pôde-se observar a presença de ambas as forças, interferindo em seus processos vitais ao longo da permanência hospitalar e posteriormente à sua alta. Inicialmente, destacavam-se as forças desorganizadoras ou inibidoras, manifestadas pelo desespero e descontrole emocional diante da situação da violência sexual, da gravidez, da impossibilidade de não mais interromper a gestação e do desamparo decorrente da ausência de seus entes familiares. Posteriormente, com o suporte emocional recebido pela equipe de saúde do hospital, enquanto permanecia internada e também com seu retorno à casa dos pais, Ana deu indícios da presença de forças generativas em seu desenvolvimento, tais como a vontade de viver. Sugere-se que o suporte recebido por parte dos profissionais durante a internação e a acolhida recebida por parte da família ao aceitá-la novamente em casa potencializaram novas perspectivas de vida em Ana que foram essenciais para as mudanças ocorridas.
As demandas dizem respeito aos atributos da pessoa e fazem menção aos aspectos que estimulam ou desencorajam as reações do ambiente social imediato, de maneira a manter ou romper as conexões com o processo proximal. Desta maneira, tanto a equipe multiprofissional como a família de Ana ao recebê-la em casa novamente foram essenciais para o seu restabelecimento, tendo estimulado novas formas de lidar com a situação da gravidez e com a criança. Os atendimentos da equipe multiprofissional possibilitaram acalmar e acolher Ana, enquanto permanecia internada, tendo sido muito importante para sua recuperação.
Só a única coisa que eu tenho certeza é que eu perdi tudo, que todos os meus sonhos foram embora. (Ana-E1)
Eu sempre converso com as psicólogas, com as assistentes sociais, elas são muito legais, todo dia me procuram para conversar. (Ana-E1)
É... me ajudaram em todos os sentidos. Foi, como se fosse uma família mesmo pra mim naquele momento, que tava tudo tava tão difícil (Ana-E2)
Também o contato com a família ao retornar ao lar foi capaz de gerar sensações positivas em Ana, sinalizadas na forma como ela se reportava à atenção que à família passou a dar em relação à criança.
Todo dia eu penso num nome diferente! Aí... é a minha mãe, minhas irmãs, meu pai, aí quando um gosta, os outros não gostam... É sempre assim. Aí eu nunca consigo decidir sozinha. Eu sempre tenho que esperar pela opinião deles. Eu tenho medo de escolher e me arrepender. Aí por isso que eu não escolhi ainda. (Ana-E2)
Ao passo que as condições para a vivência da maternidade foram dadas, ou seja; o acolhimento e não julgamento por parte da equipe; e, a aceitação da gravidez por parte da família, a relação de Ana com a criança foi sendo construída. Percebe-se claramente a mudança de sentido dada à criança quando Ana vivencia uma situação que para ela era de risco à vida da criança, fazendo-a dar conta de que existiam mais laços entre ela e a criança do que poderia imaginar.
Eu pensei assim que eu... até naquele dia mesmo eu pensei que eu nunca conseguiria gostar... Mas... a partir assim do dia mesmo que eu, é... tipo assim, eu tive quase assim um choque mesmo de realidade [...] Aconteceu uma confusão, vizinho à minha casa né... ai foi naquele dia mesmo ali que eu descobri que eu gostava tanto, que eu, sei lá... nem imaginava, eu preferia morrer do que perder... Foi, porque aconteceu uma confusão muito grande, aí eu fiquei muito nervosa e tive um sangramento. Aí eu fiquei tão nervosa que eu não sentia mais se mexer, ai... meu Deus do céu, eu enlouqueci. Fui pro hospital, chorava... aí quando a médica colocou um aparelho pra escutar o coração, que eu escutei, aí aquilo ali me deu um alívio tão grande. Aí foi naquele dia que eu caí na real, que eu vi que eu não ia conseguir dar pra ninguém. Que eu vi que... que eu gostava tanto e não sabia. (Ana-E2)
Os recursos são aspectos biopsicológicos que englobam experiências, habilidades, conhecimentos e capacidades necessárias para o funcionamento eficaz dos processos proximais em um determinado estágio de desenvolvimento. A capacidade comunicacional e interacional de Ana com os profissionais da equipe de saúde durante sua permanência no hospital foi muito importante para que ela conseguisse suportar os dias de internação, sem a presença de seus familiares, nem informações sobre eles e em datas comemorativas importantes (Natal e Ano Novo). Também o bom nível intelectual possibilitou a compreensão das informações transmitidas pela equipe, que permitiu estar ciente de todos os procedimentos de saúde atenuando o desequilíbrio emocional inicial.
As mudanças empreendidas na história de Ana ao longo do tempo
O tempo diz respeito tanto ao tempo atual, recente ou remoto e identifica mudanças e permanências que ocorrem ao longo do ciclo vital (Bronfenbrenner e Ceci, 1994). No tempo da primeira entrevista, Ana encontrava-se sozinha no hospital, sem o apoio da família, que ao saber da gravidez a expulsou de casa. No entanto, a família de Ana desconhecia ser a gestação fruto de violência sexual. Ana apresentava muito sofrimento e revolta pelo ocorrido da violência e da gestação, que não mais poderia ser interrompida. Além disso, a participante não vislumbrava perspectivas de futuro, alegando que seu único desejo era o de interromper a gestação. Fazia referências de desprezo e repugna ao ser que gerava.
Eu não consigo ver nada melhor pra mim agora. Porque eu vejo que eu perdi tudo, que eu não posso fazer nada pra mudar isso. Porque a única coisa que eu queria era tirar essa criança e eu não posso mudar isso [...] Eu sinto uma grande vontade de morrer. Era tudo que eu queria nesse momento [...] Eu me sinto horrível. Eu me sinto mal com tudo. Eu tô carregando uma vida que eu não sinto nada por ela. Que até tem momentos que eu chego até a ter raiva. Eu me sinto mal por não gostar dela [...] Eu me sinto mal por eu tá me modificando totalmente por uma coisa que eu não desejo ter, que eu não planejei. Eu vendo meu corpo se transformando, a minha vida... Eu sinto muito uma revolta. Se eu pudesse eu tiraria com minhas próprias mãos. Mas eu não posso [choro]. Eu não consigo aceitar. Cada dia fica mais difícil. (Ana-E1)
Compreende-se que, frente a situações adversas como da violência sexual e da gravidez fruto desta, há uma natural propensão a vulnerabilidades (psíquicas, sociais e físicas), que se apresentam no momento vivido e desencadeiam processos a partir dessa experiência. Nesse primeiro momento, tomada pelas vulnerabilidades, a solução percebida por Ana como melhor para a situação vivida era a interrupção da gestação, corroborando o estudo de Machado et al. (2015), em que nas mulheres entrevistadas a ideia sobre o aborto apareceu como única saída para retomarem as suas vidas. No entanto, essa medida não é mais possível e Ana não consegue aceitar o fato de ter que gerar a criança. Somado a isso, Ana encontrava-se num contexto de desamparo, sem o apoio da família ou de outros que pudessem suprir esta falta e tendo que reagir da forma mais adaptativa possível numa situação de extrema fragilidade em meio a uma internação hospitalar e com um ser que não desejava gerar.
No tempo da segunda entrevista, Ana encontrava-se emocionalmente melhor, ainda ressentida com a violência sofrida, mas já dando sinais de aceitação da gestação e da criança. Ressalta-se que o tempo decorrido entre a primeira e a segunda entrevista foi importante para que Ana pudesse dar um novo sentido à gravidez e à criança, considerando que a influência dos sistemas família e equipe de saúde foram primordiais para que ela conseguisse estabelecer novas relações a partir de então.
Assim eu, eu ainda tenho assim, é, não vou dizer que eu ainda não tenho aquela mágoa né... porque ainda tá muito recente. Um dia eu posso até, chegar o dia que eu posso até perdoar, mas hoje não. Mas eu vejo que aquela criança, ela não pediu pra estar ali, ela não pediu. Ela não sabe como foi que aconteceu, não foi culpa dela. Aí, agora eu comecei a entender isso. Aí tá sendo mais fácil, pra mim [...] Porque antes eu nem, assim, eu nem imaginava a ideia de criar né... Aí quando é agora que tá crescendo, que fica mexendo na minha barriga, eu fico vendo coisinha de criança... Assim, a gente já começa a descobrir aquele amor que a gente achava que não ia descobrir nunca. Aí, quando eu tô em algum lugar que tem uma coisinha de criança, um sapatinho... uma coisa, eu já fico imaginando, fico imaginando o rostinho quando nascer como seria. (Ana-E2)
A interferência dos microssistemas família e equipe multiprofissional nos processos vitais de Ana
Entende-se as diversas mudanças ocasionadas na vida de Ana, da primeira entrevista para a segunda, principalmente decorrente do contexto, sobretudo a presença da família como rede de apoio protetiva e do suporte dos profissionais do hospital quando Ana ainda se encontrava sem o contato familiar. Acerca do microssistema família, este pode tanto funcionar como um fator de risco ou de proteção (Koller et al., 2012). No caso específico analisado teve as duas funções, negligenciando inicialmente o sofrimento de Ana e, ao fim, dando o apoio necessário para a situação.
Tem me dado apoio que eu pensei que eu não teria [risos]. Eu imaginava tudo menos que eles iam aceitar e iam me ajudar. Foi totalmente sem esperar. Hoje eu vejo que todo mundo tá se unindo pra... unindo todos pra poder ajudar pra poder ser da forma melhor. (Ana-E2)
O novo contexto de proteção para com a díade mãe-bebê possibilitado pela família foi extremamente importante para Ana ressignificar a experiência da gravidez fruto de violência sexual e modificar os pensamentos e sentimentos para com a gestação e a criança. Apesar disso, a família continuava sem saber da história da violência sexual e a gravidez tomava a cena. Ana não conseguiu abordar com a família a questão da violência sexual. Os silenciamentos presentes no microssistema confirmam a presença de um alto grau de poder hierárquico entre os membros e a capacidade reduzida de diálogo em ambientes familiares em que o abuso sexual está presente, neste caso, de forma extrafamiliar (Lordello e Costa, 2014).
Não. Não sabem exatamente do que ocorreu, de como foi né... sabem da gravidez só [...] E eu tenho medo de contar pra eles. Eu não sei o que é que eles... eu tenho dois irmãos mais velhos... eu não sei o que é que eles seriam capazes de fazer e isso só ia tornar a história mais visível pra... pra várias outras pessoas. Eu prefiro esconder o que aconteceu. (Ana-E2)
A comunicação intrafamiliar precária e a posição hierarquicamente inferiorizada na configuração familiar são fatores de risco que o eu ecológico percebe de forma ameaçadora em seu desenvolvimento, fazendo com que procure novos apoios em outros sistemas, mais acolhedores. Inicialmente, Ana buscou a ajuda de uma amiga, mas não obteve o suporte que esperava e posteriormente nas dependências do hospital pôde receber o conforto de que necessitava.
A equipe multiprofissional foi substancial para a melhora do estado emocional de Ana no tempo em que ela se encontrava sozinha e tendo que continuar uma gestação indesejada. Em relação a essa assistência, todos os dias Ana recebeu atendimento por diversos profissionais da equipe (médicos, enfermeiros, psicólogos e assistentes sociais), destacando-se nessa assistência a psicologia que realizava mais de uma visita ao leito por dia, por compreender a complexidade de fatores emocionais e sociais envolvidos neste momento de vida da paciente. Nestes atendimentos eram feitas intervenções que visavam amenizar a situação vivida, através de acolhimento, da validação das emoções, da clarificação das ideias e do propiciamento de informações à paciente.
Isso só comprova como a atenção profissional pode minimizar os efeitos da violência sexual e gravidez por meio de intervenções que sejam realmente acolhedoras e empáticas ao sofrimento da vítima, não meramente burocráticas e impessoais. A experiência gravídica de Ana, fruto de violência sexual, pôde ser acolhida e trabalhada em seus aspectos pela equipe de saúde do hospital ao longo dos atendimentos, permitindo a elaboração dos aspectos emocionais na hora manifestados.
Naquele... antes de... de eu vir pro hospital, eu tava tão mal que eu não conseguia mais ver minha vida assim é... se eu não resolver esses problemas. Eu tinha vontade até de... eu tinha vontade, só não tinha coragem de... é... tentar assim, alguma coisa, pra... até em suicídio eu pensava mas... A sorte é que eu vim pra cá. Pensava muita besteira. É... me ajudaram a enxergar aquilo que eu não tava vendo naquela hora. Que naquela hora eu conseguia ver só a tristeza, só o ruim. Eu não conseguia ver que eu tinha... que eu conseguia passar por aquilo. Agora eu consigo, por mais difícil que seja, eu consigo. Hoje eu vejo que isso é coisas que acontecem, que Deus é maior. E a gente sempre consegue. (Ana-E2)
Na experiência de Ana é possível apreender como os processos podem ser estimulados ou dificultados pelo microssistema, que é indubitavelmente um contexto transformador e que promove impactos inegáveis no desenvolvimento da pessoa que dele participa (Bronfenbrenner, 1999; Bronfenbrenner e Ceci, 1994; Bronfenbrenner e Morris, 1998). Tanto a família como a equipe de saúde foram primordiais para a vivência de novos processos, mais positivos, na vida de Ana. Esta, de forma distinta da primeira entrevista, passou a manifestar pensamentos e sentimentos mais positivos em relação à gestação e à criança. Demonstrava interesse pela maternidade e vínculo com o bebê.
Da rejeição à fase de maior vinculação à gravidez e ao bebê
Sobre os processos proximais vivenciados por Ana tem-se se uma primeira fase de rejeição à gestação e ao bebê e a segunda fase de uma maior aproximação a estes. Essa última fase culmina com a construção da maternidade e outros processos existenciais voltados a novas formas de pensar a ocorrência da violência sexual e novos projetos de vida.
Os processos proximais variam sistematicamente em função das características da pessoa, dos contextos nos quais interagiu ou interage, da natureza dos resultados evolutivos, das mudanças e continuidades sociais do período sócio histórico em que a pessoa está inserida (Bronfenbrenner, 1999). Deste modo, Ana vivenciou processosproximais específicos (aceitação e apoio) no contexto da família e hospitalar que a fizeram estabelecer uma nova relação com a criança que gestava. Também o tempo decorrido entre a primeira e segunda entrevista contribuiu para uma mudança de percepção e sentimentos de Ana e favoreceu a melhor compreensão do processo de aceitação por ela. A partir do novo contexto,processos vivenciados e tempo transcorrido nascem perspectivas que dizem respeito a vivenciar a maternidade, vincular-se a filha, configurando-se como tema principal na vida de Ana. O relato a seguir retrata um pouco dos processos relacionados à maternidade.
Eu fico assim, imaginando que... o que vai acontecer, como é que eu vou... é, como é que vai ser depois que nascer, fica passando muita coisa assim pela minha cabeça que na hora nem eu consigo mesmo responder, assim, pra mim, sabe? Eu sei que são coisas que só vão ser esclarecidas só quando chegar o momento de acontecer mesmo. [...] A minha ansiedade é de... eu queria logo, que chegasse logo pra mim ver como é que vai ser depois que ela nascer, eu tenho muito medo das responsabilidades [...] Eu quero que Deus me dê coragem pra cuidar dela... Que ela durma... não passe a noite toda acordada... [risos] A única coisa que eu quero, assim agora mesmo, é que nasça assim, com saúde, e que Deus me dê forças pra mim... pra mim suportar tudo que tá acontecendo. (Ana-E2)
Também se destaca o fator organizador que a maternidade ocupou na vida de Ana, dando lugar e visibilidade social à mulher grávida e deslocando o acontecimento da violência, principalmente nesse caso em que a família não sabe da ocorrência da mesma. A vivência da maternidade sobressaiu à violência e também possibilitou dar novos sentidos ao acontecimento desta e a estimular novos projetos de vida, apesar de parecerem ainda confusos na experiência de Ana.
A única coisa que eu quero é conseguir colocar, conseguir um bom emprego ainda, conseguir me formar. Pronto, e o resto, a gente deixa acontecer. (Ana-E2)
Assim, agora mesmo de momento, eu não consigo, assim é... imaginar nada assim, certo. Eu não sei mais quando é que eu vou poder estudar, não sei quando é que eu vou... fazer alguma coisa mesmo dos meus planos que eu tinha antes. Eu vejo que tá tudo mudado. Não quero dizer que sejam ruins, mas são mudanças que eu tô sendo obrigada a aceitar, não foi uma mudança que eu quis, que eu queria, que eu pensava agora. (Ana-E2)
Quanto às mudanças de pensamentos e comportamentos em torno da violência e dos projetos de vida também estão relacionados à vivência da maternidade e dizem respeito a processos proximais. Tais modificações devem-se à necessidade percebida pela jovem de voltar-se para a maternidade em detrimento de outros projetos. Apesar de predominar conteúdos que dizem respeito à vivência da maternidade, percebe-se também a existência de pensamentos que indicam angústia diante da incerteza de se conseguirá retomar as atividades anteriores à gestação. Verifica-se que essa ambivalência de pensamentos e sentimentos manifestam-se mais pela ocorrência da gestação em si, são comuns a este processo vital, do que pelos sentimentos iniciais de rejeição à gravidez/criança quando não desejava incluir em seus projetos de vida.
Considerações Finais
Foi realizado o estudo de caso de uma vítima de violência sexual que engravidou e teve como desfecho a continuidade da gestação, após ter sido negada a interrupção legal. Tomou-se como base a Abordagem Bioecológica do Desenvolvimento Humano (ABDH), a fim de compreender os processos proximais vividos por Ana, participante do estudo. Ana ao chegar ao serviço hospitalar logo manifestou o desejo de interromper a gestação, no entanto por encontrar-se na 22ª semana gestacional, a interrupção não foi concedida. Durante o tempo transcorrido no hospital e posteriormente à alta hospitalar Ana pôde vivenciar novos processos proximais, sobretudo a respeito da mudança de percepção sobre a gravidez, sua evolução e o bebê que gerava.
As experiências de mulheres que engravidaram decorrente de estupro e o desfecho da gestação (a interrupção legal ou a continuidade) precisam ser compreendidas à luz de teorias sistêmicas, como a ABDH, que contemplem os diversos fatores envolvidos (a mulher, os serviços, a família, entre outros) e a interferência entre eles para que se atinja um nível mais aprofundado de entendimento das vivências, ajudando a compreender as mudanças dadas na vida da mulher ao longo do tempo. É muito importante procurar ter uma visão contextualizada do fenômeno, contemplando as partes e o todo do processo ao invés de uma visão centrada no indivíduo, visto que para além dos aspectos individuais, há um conjunto de outros fatores que condicionam os comportamentos individuais, a exemplo dos contextos envolvidos e do tempo decorrido na experiência que agem sistemicamente nos processos vividos pela vítima (Esteves-de-Vasconcellos, 2012; Narvaz e Koller, 2011).
Deste modo, os processos vividos por Ana de uma entrevista para a outra (intervalo de cerca de 40 dias) apontam o quanto foi importante para as mudanças empreendidas em relação à gravidez e à criança, a interferência dos profissionais do hospital e de sua família. Sugere-se que o suporte recebido por parte desses dois sistemas deu maiores condições para Ana poder vivenciar o progresso da gestação, a maternidade e vincular-se à criança.
Ressalta-se que a perspectiva bioecológica favoreceu o entendimento da trajetória de desenvolvimento de Ana como um ser ativo que recebe influências dos sistemas nos quais está inserida ao mesmo tempo em que neles também exerce influência. Os resultados dessa interação permitem que Ana encare a gravidez e a maternidade sem desconsiderar sua história de violência, mas recorrendo à rede social e afetiva de forma a encontrar e potencializar seus recursos para lidar de forma mais saudável com os desafios e construir uma forma mais positiva de enfrentar as adversidades.
Nesse sentido, espera-se com esse estudo contribuir para o campo de estudo e intervenções com vítimas de violência sexual e daquelas que engravidam, sobretudo pela mudança paradigmática na forma como as vítimas, a violência e a gravidez são vistas a partir da perspectiva da Abordagem Bioecológica, ou seja, compreendendo o fenômeno em sua amplitude (pessoa, contexto, tempo, processos vividos), ao invés de destacar somente uma parte do problema (e.g., a vítima). Somente uma abordagem teórica que considere a importância dos significados atribuídos por cada pessoa aos acontecimentos, que considere a múltipla influência dos contextos sobre o desenvolvimento e que tenha um foco de análise nos processos desenvolvimentais poderá, de fato, se aproximar de uma visão que considere a VS com a complexidade que esta exige.
As situações de gravidez decorrente de VS desencadeiam muito sofrimento e angústia às vítimas, pois são muitos aspectos envolvidos, seja pela violência e descoberta da gravidez, por ter que tomar uma decisão quanto à interrupção ou continuidade da gestação ou como apresenta este estudo, por ter que aceitar a continuidade da gestação após ter sido negada por aspectos médicos e legais. Por isso, requer por parte dos profissionais que trabalham na área, sensibilidade para com essas experiências, inclusive no sentido de que estejam abertos para acolher mudanças de pensamentos e de sentimentos não raras de acontecer nas vivências das vítimas, como tentou-se ilustrar neste estudo a partir do caso de Ana, no que se refere ao seu processo inicial de rejeição e posterior de maior vinculação à criança.
Por isso, considera-se imprescindível aos profissionais que trabalham na rede de assistência às mulheres vítimas de violência sexual e que engravidaram decorrente desta, uma compreensão mais ampla da mulher vitimada, segundo sua história pessoal, familiar e social que interfere sistemicamente no desenrolar da experiência de vida daquela. Entender a complexidade dessa vivência é compreender que a pessoa e seu entorno estão em constante movimento e as emoções e comportamentos são motivados por inúmeras interações.
Em termos de sugestões para estudos futuros, recomenda-se a realização de pesquisas que busquem acompanhar as mulheres que engravidaram e deram continuidade ou interromperam a gestação por um período mais amplo de tempo. O acompanhamento longitudinal permitirá uma análise ainda mais adequada das condições de vida e de saúde da vítima de violência e de seu bebê, independente do desfecho que tenha optado.
Ressalta-se que por mais que o apoio previsto na Norma Técnica não determine período mínimo para acompanhamento das vítimas, é necessário que as mulheres vítimas de violência que engravidaram sejam acompanhadas por uma equipe técnica devidamente preparada também após o nascimento da criança e nos meses/anos subsequentes à opção pela interrupção da gravidez. Ademais, ainda que tenha sido mencionada a partir da fala de Ana passagens que representam a família dela ou a equipe de profissionais do hospital, considera-se uma limitação do estudo a carência de informações tecidas pela própria família ou equipe, as quais enriqueceriam ainda mais o estudo de caso proposto.
Referências
BARDIN, L. 2011. Análise de Conteúdo. Brasil, Edições 70, 280 p. [ Links ]
BRONFENBRENNER, U. 1999. Environments in developmental perspective: Theorical and operational models. In: S.L. FRIEDMANN; T.D. WACKS (eds.), Measuring environment across the life span: Emerging methods and concepts. Washington, DC, American Psychological Association, p. 3-30. https://doi.org/10.1037/10317-001 [ Links ]
BRONFENBRENNER, U.; CECI, S. 1994. Nature-Nurture reconceptualized in developmental perspective: A bioecological model. Psychological Review, 101(4):568-586. https://doi.org/10.1037/0033-295X.101.4.568 [ Links ]
BRONFENBRENNER, U.; MORRIS, P.A. 1998. The ecology of developmental process. In: W. DAMON; R.M. LERNER (eds.), Handbook of child psychology: Vol. 1. Theoretical models of human development. New York, Wiley, p. 993-1028. [ Links ]
CANTELMO, C.; CAVALCANTE, T.; COSTA, L. 2011. A menina mãe: incesto e maternidade. Fractal: Revista de Psicologia, 23(1):137-154. https://doi.org/10.1590/S1984-02922011000100010 [ Links ]
DE ANTONI, C.; KOLLER, S.H. 2010. Uma família fisicamente violenta: uma visão pela teoria bioecológica do desenvolvimento humano. Temas em Psicologia, 18(1):17-30. [ Links ]
DINIZ, D.; DIOS, V.C.; MASTRELLA, M.; MADEIRO, A.P. 2014. A verdade do estupro nos serviços de aborto legal no Brasil. Revista Bioética, 22(2):291-298. https://doi.org/10.1590/1983-80422014222010 [ Links ]
DREZETT, J.; PEDROSO, D.; GEBRIM, L.H.; MATIAS, M.L.; MACEDO JÚNIOR, H.; ABREU, L.C. 2011. Motivos para interromper legalmente a gravidez decorrente de estupro e efeitos do abortamento nos relacionamentos cotidianos das mulheres. Reprodução & Climatério, 26(3):85-91. https://doi.org/10.1016/j.recli.2015.05.001 [ Links ]
ESTEVES-DE-VASCONCELLOS, M.J.E. 2012. Pensamento sistêmico: o novo paradigma da ciência. Campinas, Papirus, 268 p. [ Links ]
FALEIROS, V.P. 2013. Políticas de saúde para adolescentes mulheres: uma visão feminista. Interacções, 25:74-89. [ Links ]
FAÚNDES, A.; ROSAS, C.F.; BEDONE, A.J.; OROZCO, L.T. 2006. Violência sexual: procedimentos indicados e seus resultados no atendimento de urgência de mulheres vítimas de estupro. Revista Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia, 28(2):126-135. https://doi.org/10.1590/S0100-72032006000200009 [ Links ]
GONZÁLEZ, E.; LUENGO, X.; CABA, F.; MOLINA, T. 1999. El contexto sociofamiliar de_los hijos de madres adolescentes cuyos embarazos fueron consecuencia de violación. Cuadernos Médicos Sociales, 40(2):25-32. [ Links ]
KOLLER, S.H.; DE ANTONI, C.; CARPENA, M.E.F. 2012. Famílias de crianças em situação de vulnerabilidade social. In: M.N. BAPTISTA; M.L.M. TEODORO (orgs.), Psicologia de Família: teoria, avaliação e intervenção. Porto Alegre, Artmed, p. 156-165. [ Links ]
LIMA, C.A.; DESLANDES, S.F. 2014. Violência sexual contra mulheres no Brasil: conquistas e desafios do setor saúde na década de 2000. Saúde e Sociedade, 23(3):787-800. https://doi.org/10.1590/S0104-12902014000300005 [ Links ]
LORDELLO, S.R.; COSTA, L.F. 2014. Gestação decorrente de violência sexual:um estudo de caso à luz do modelo bioecológico. Contextos Clínicos, 7(1):94-104. https://doi.org/10.4013/ctc.2014.71.09 [ Links ]
MACHADO, C.L.; FERNANDES, A.M.S.; OSIS, M.J.D.; MAKUCH, M.Y. 2015. Gravidez após violência sexual: vivências de mulheres em busca da interrupção legal. Cadernos de Saúde Pública, 31(2):345-353. https://doi.org/10.1590/0102-311X00051714 [ Links ]
MARTINS, E.; SZYMANSKI, H. 2004. A Abordagem Ecológica de Urie Bronfenbrenner em estudos com famílias. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 4(1):63-77. [ Links ]
MINISTÉRIO DA SAÚDE. 2012. Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes: norma técnica. 3ª ed., Brasília, Ministério da Saúde/Secretaria de Atenção à Saúde/Departamento de Ações Programáticas Estratégicas, 123 p. [ Links ]
MOURA, E.R.F.; SILVEIRA, L.C.; NOGUEIRA, R.A. 2001. A realidade do abuso sexual na vida de uma adolescente: relato de caso. Revista da Rede de Enfermagem do Nordeste, 2(1):15-19. [ Links ]
NARVAZ, M.G.; KOLLER, S.H. 2011. O Modelo Bioecológico do Desenvolvimento Humano. In: S.H. KOLLER (org.), Ecologia do desenvolvimento humano: pesquisa e intervenção no Brasil. São Paulo, Casa do Psicólogo, p. 55-69. [ Links ]
NUNES, M.C.A. 2014. Gravidez advinda de estupro e seus desfechos: Uma análise das vivências das mulheres que interromperam ou continuaram a gestação. Fortaleza, CE. Dissertação de Mestrado. Universidade de Fortaleza, 188 p.
PRATI, L.E. 2009. Práticas dos terapeutas familiares brasileiros: a perspectiva da abordagem bioecológica do desenvolvimento humano. Porto Alegre, RS. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 149 p.
ROCHA, W.B.; SILVA, A.C.; LEITE, S.M.L.; CUNHA, T. 2015. Percepção de profissionais da saúde sobre abortamento legal. Revista Bioética, 23(2):387-399. https://doi.org/10.1590/1983-80422015232077 [ Links ]
SANTOS, A.P. 2012. Violência sexual infantojuvenil: problematizando os desafios do_atendimento a partir da análise de um caso clínico. Mental, 10(18):89-108. [ Links ]
STAKE, R.E. 2005. Qualitative case studies. In: N.K. DENZIN; Y.S. LINCOLN, The SAGE handbook of qualitative research. 3ª ed., Thousand Oaks, Sage, p. 443-466 [ Links ]
VERTAMATTI, M.A.F.; SOUZA, J.V.L.; VIEIRA, S.; OHATA, A.P.; SANCOVSKI, M.; ABREU, L.C.; BARBOSA, C.P. 2009. Parto cesárea em gravidez decorrente de estupro. Revista Brasileira de Crescimento e Desenvolvimento Humano, 19(2):327-331. https://doi.org/10.7322/jhgd.19922 [ Links ]
Submetido: 14/02/2017
Aceito: 21/11/2017