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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia
On-line version ISSN 1983-8220
Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.7 no.2 Juiz de fora Dec. 2014
ARTIGOS
Dinâmica familiar e violência a partir da análise do filme Precisamos falar sobre Kevin
Family dynamics and violence based on the analysis of the movie We need to talk about Kevin
Sabrina Daiana Cúnico1; Suane Pastoriza Faraj; Dorian Mônica Arpini; Silvio José Lemos Vasconcellos
Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, Brasil
RESUMO
O objetivo deste trabalho foi analisar as questões de violência e dinâmica familiar a partir do filme Precisamos falar sobre o Kevin. O filme retrata a história de Kevin, um adolescente que planeja e executa onze assassinatos na escola onde estuda. Para tanto, a partir de autores que discorrem sobre as temáticas apresentadas e utilizando-se da análise de conteúdo, elencaram-se da narrativa do filme as seguintes categorias de análise: 1) A história de Kevin: a relação mãe-bebê; 2) O contexto familiar; 3) A adolescência; 4) O massacre. A análise do filme permite apontar para a relevância de se manter um espaço de problematização dos episódios como o de Kevin, dando a eles a importância que certamente eles evocam.
Palavras-chave: Violência, Relações familiares, Adolescência
ABSTRACT
The aim of this study was to analyze the issue of violence and family dynamics based on the analysis of the film "We need to talk about Kevin". The movie portrays the story of Kevin, an adolescent who plans and commits eleven murders in the school where he studied. Therefore, based on authors who talk about the issues presented and using the content analysis, was elected the following categories in the narrative of the film: 1) The Story of Kevin: the mother and child relationship; 2) Family context; 3) Adolescence; 4) Massacre. The analysis of the film highlights the need for maintaining a space for questioning the episodes such as that of Kevin, giving them the importance they certainly evoke.
Keywords: Violence, Family Relations, Adolescence
Introdução
O filme Precisamos falar sobre Kevin (We Need to Talk About Kevin), de direção da escocesa Lynne Ramsay e lançado no ano de 2011, é uma adaptação do best-seller da escritora Lionel Shriver, que venceu o prêmio britânico Orange Prize, em 2005. A obra aborda a história fictícia do adolescente Kevin, que assassinou onze pessoas, dentre elas colegas, professores e funcionários da escola onde estudava, logo após ter matado o pai e a irmã.
A narrativa do filme pode retratar a vida de muitos outros jovens e adolescentes que também cometeram assassinatos em massa. No âmbito internacional, algumas histórias tiveram ampla repercussão, como o assassinato de 12 alunos e um professor em Littleton, cometido por dois jovens na Columbine High School, no ano de 1999; bem como o assassinato de 32 pessoas cometido por um estudante sulcoreano na Virginia Polytechnic Institute and State University, no ano de 2007 (Marin, 2002; Vieira, Mendes & Guimarães, 2009).
No Brasil, no ano de 2003, na cidade de Taiúva, interior de São Paulo, um jovem feriu oito pessoas e suicidou-se; e no ano seguinte, um adolescente deixou três pessoas feridas e matou duas na Bahia (Colovini, 2007). Mais recentemente, em 2011, um jovem de 24 anos efetuou vários disparos contra alunos de uma escola municipal em Realengo, Rio de Janeiro, matando ao menos 12 pessoas e suicidando-se logo em seguida.
Sabe-se que estes massacres ocorrem em diversos países do mundo e muitas são as hipóteses para a sua ocorrência, entre elas: o bullying na escola, transtorno mental, violência, ambiente familiar frágil, entre outras. O que se supõe é que tais fatos não resultem de um único fator, ou seja, diversos aspectos estão associados para que estes adolescentes cometam tais crimes, embora se entenda que nem sempre a associação de alguns fatores resultem nos mesmos efeitos.
Diante do exposto, este trabalho se propõe, através da narrativa Precisamos falar sobre Kevin, analisar as questões de violência e dinâmica familiar apresentadas no filme. Desse modo, pretende-se articular autores que discorrem sobre as temáticas apresentadas na narrativa, buscando fatores que possam estar implicados no comportamento de jovens que cometem assassinatos em série.
Procedimentos Metodológicos
O cinema é uma ferramenta expressiva e significante para evidenciar os acontecimentos cotidianos, dando significado a estes (Fernandes & Siqueira, 2006). Dessa forma, se pode pensar diversas temáticas a partir de uma história fictícia, e encontrar sentido para as situações retratadas no contexto social. O presente estudo teve como objetivo de análise a narrativa do filme Precisamos falar sobre Kevin. A história envolve questões da infância, da adolescência e da dinâmica familiar de Kevin, o qual desde o nascimento apresenta comportamentos que revelam os conflitos vivenciados nas suas relações estabelecidas.
Procedimento de análise
A história do filme foi exposta em pequenos textos, nos quais foram elencados os elementos centrais de análise, a qual consistiu em destacar e comentar agrupamentos temáticos por meio da análise de conteúdo proposta por Bardin (1977). As seguintes categorias foram comentadas: 1) A história de Kevin: a relação mãe-bebê; 2) O contexto familiar; 3) A adolescência de Kevin; 4) O massacre.
Resultados e Discussão
1. A história de Kevin: a relação mãe-filho
A história de Kevin se inicia na gestação de Eva Katchadourian, uma mulher independente e bemsucedida profissionalmente que é avessa à vida de dona de casa e que receia em ser mãe. Eva é igualmente bem-sucedida no campo amoroso, vivendo um casamento estável e romântico. No entanto, a vida idealizada de mulher livre que parecia ser inabalável começa a desmoronar, não tendo início a partir dos crimes cometidos por Kevin, mas sim a partir do momento em que soube que seria mãe, já durante a gestação (Corso & Corso, 2008; 2011).
Após saber que estava grávida, Eva sente-se ambivalente em relação ao filho que espera, uma vez que sente que ele pode comprometer seus planos profissionais. Durante a gestação, não demonstra envolvimento emocional com o bebê e mostra-se, em muitos momentos, incomodada com a situação e com muitas dúvidas sobre seus sentimentos maternos. Na perspectiva de Winnicott (1958/2000), nas últimas semanas da gestação há uma preparação das mães psiquicamente saudáveis para o recebimento do bebê no que se refere à realização das tarefas específicas que deverão cumprir, dentre elas: trocar fraldas, amamentar, embalar, etc. Nesse sentido, pode-se dizer que Eva encontra dificuldades para receber este filho em sua vida.
O nascimento de Kevin foi marcado por muito sofrimento para Eva, que gestou e pariu com muita dor. A vida anterior, de mulher bem-sucedida e sem filhos não existe mais e ela passa a se dar conta de que suas prioridades agora serão as do filho que acaba de nascer. Nesse sentido, é interessante pensar que o sofrimento de Eva parta do princípio de ter que desempenhar o mais tradicional papel atribuído historicamente às mulheres: a maternidade (Corso & Corso, 2008; 2011), indo de encontro à concepção arraigada socialmente que transformou o amor materno-filial em instinto (Badinter, 1985).
Eva, no entanto, parece ter empreendido o projeto da maternidade contrariada, o que acabou dificultando a sua relação com o bebê e fazendo com que ela não conseguisse colocar-se no lugar do filho, identificar-se com ele e satisfazer as suas necessidades. Desde o nascimento, Kevin foi visto pela mãe como tendo uma personalidade própria e destinada a se desencontrar com a dela. Ao contrário do pai, Franklin, que esperava a chegada desta criança, para Eva não havia lugar nem para o bebê idealizado, ou seja, aquele bebê que é criado na fantasia dos pais antes e durante a gravidez (Corso & Corso, 2008; 2011).
Nesse sentido, pode-se dizer que a preocupação materna primária, descrita por Winnicott (1958/2000; 1987/2002) como um estado de sensibilidade exacerbada em que a mãe consegue colocar-se no lugar do bebê e identificar-se com ele, parece não ter existido na relação de Eva e Kevin. Esta identificação inicial com o bebê faz com que a mãe preocupe-se, adapte-se e atenda às suas necessidades, abandonando temporariamente qualquer outro interesse. Para Winicott (1958/2000), a linha de vida do bebê seria marcada por uma tendência à busca por uma continuidade de ser. Assim, é com o cuidado recebido da mãe que a continuidade da linha da vida do bebê se manteria.
Desta forma, nesta fase inicial do desenvolvimento, a falha materna provoca reações que interrompem o "continuar a ser", provocando uma ameaça de aniquilação. Esta falha é sentida como uma ameaça à existência pessoal, não como uma falha da mãe. As mães que não conseguem entrar nesse estágio inicial do desenvolvimento do filho acabam muitas vezes por tentar compensar posteriormente o que ficou perdido, através de mimos, por exemplo, o que pode prejudicar o desenvolvimento dos limites na criança (Winnicott, 1958/2000).
Kevin, quando bebê, chora constantemente despertando na mãe um sentimento de incômodo e frustração, uma vez que Eva não consegue acalmar o filho. Vale mencionar que os desapontamentos e as frustrações são inerentes à relação mãe-bebê (Winnicott, 1958/2000), no entanto, no caso de Eva, identifica-se em vários momentos que esta não sabe "como agir" e "o que fazer" com Kevin. Uma das cenas mais marcantes mostra Eva parada no meio da rua diante das britadeiras de uma construção, após várias tentativas, sem sucesso, de cessar o choro de Kevin, muito satisfeita ao perceber que o choro constante do filho é amenizado pelo barulho das máquinas.
Outro momento da trama mostra a dificuldade que Eva possui em segurar o filho. A mãe segura seu bebê distante de si, chacoalhando-o para cima e para baixo, não demonstrando nenhuma habilidade em embalá-lo. Esta situação evidencia a preocupação já sinalizada por Winnicott (1987/2002) de que as mães devem segurar os filhos com segurança e firmeza, pois assim a "a base da personalidade estará sendo bem assentada" (p. 54). O autor refere ainda que "a partir de serem bem segurados os bebês adquirem confiança, tornam-se capazes de atravessar bem todas as fases do seu desenvolvimento emocional muito rápido" (p. 54). Nessas circunstâncias, pode-se dizer que um ponto significante da história de Kevin parece ser a dificuldade que Eva possui em suprir as necessidade do filho e cuidar do mesmo.
No decorrer do desenvolvimento de Kevin, Eva não consegue brincar e se comunicar com o filho, impondo muitas vezes a sua vontade e não levando em consideração o desejo de Kevin. Isto fica claro na cena em que ela se revolta com o filho, quando este não se predispõe a brincar de bola com ela. Ele, por sua vez, ainda que pequeno, parece ter consciência da revolta que sua atitude de não empurrar a bola para a mãe irá provocar e parece se divertir com isso.
Eva também não consegue em muitas situações concluir suas conversas com Kevin e tem dificuldades em investir emocionalmente no mesmo. Em um momento do filme quando Kevin, insistentemente, tenta irritá-la, a mãe lhe responde: "Eu era feliz antes de você nascer". Em outro momento, Kevin deixa claro para Eva que sabe dos sentimentos que a mãe nutre por ele ao afirmar "não se gosta de alguma coisa porque se está acostumado" e complementa "você está acostumada comigo", querendo dizer: você não gosta de mim, apenas está acostumada comigo.
É sabido que a saúde mental do indivíduo está sendo construída desde o inicio pela mãe, que oferece o que Winnicott (1987/2002) nomeia como ambiente facilitador, ou seja, "ambiente em que os processos evolutivos e as interações naturais do bebê com o meio podem desenvolverse de acordo com o padrão hereditário do indivíduo" (p. 20). Eva não parece ter conseguido oferecer tal ambiente para o filho.
Por volta dos quatro anos de idade, o menino apresentava sinais de que não estava bem, negando-se a falar - embora Eva suspeitasse que ele já estaria pronto para fazê-lo -, e não conseguindo - ou não querendo - controlar os esfíncteres. Diante disso, há uma preocupação da mãe frente aos sintomas apresentados por Kevin. Assim, leva-o ao médico e consegue verbalizar a sua preocupação em relação ao filho, evidenciando a percepção de que algo não estava bem com ele ou com eles.
Entretanto, ela mostra-se, muitas vezes, indiferente e agressiva, como pode ser identificado na cena em que Kevin pinta a sala da mãe com tinta, destruindo tudo que ela havia feito, e ela reage descontroladamente jogando o menino à parede, o que faz com que ele quebre o braço. A partir desta situação Kevin mente para o pai que se machucou sozinho e Eva passa a fazer as vontades do filho, sendo manipulada por ele. Isso é percebido quando Kevin manda a mãe desligar o som do carro e ir para a casa e ela atente às suas vontades.
Diante do exposto, pode-se pensar que a relação estabelecida entre Eva e Kevin foi marcada desde o início por sentimentos de ambivalência, falta de cuidados, pouco investimento emocional e pouca compreensão das necessidades do filho. Além disso, Eva não contou com o apoio do marido para superar suas dificuldades como mãe, o que pode ter contribuído para piorar sua relação com Kevin.
2. O contexto familiar
A família pode ser definida como um sistema que tem a função de proteção, tanto física quanto emocional, em decorrência do desamparo próprio da espécie humana (Groeninga, 2003). É precisamente a partir das referências familiares que o sujeito se constitui socialmente. Dessa forma, a família desempenha papel essencial na formação e no desenvolvimento da criança e do adolescente, uma vez que ela é o lugar em que se ouvem as primeiras falas com as quais se constroem a autoimagem e a imagem do mundo exterior (Sarti, 2004).
Kevin mora com a mãe, o pai e a irmã mais nova, e é um menino proveniente de uma família americana tipicamente nuclear, de classe média. No entanto, a família de Kevin possui algumas peculiaridades, principalmente porque Eva (mãe) não se encarrega de maneira amorosa dos cuidados maternos, e Franklin (pai) não representa a lei para o filho. Franklin, por mais que tentasse demonstrar carinho e afetividade pelo menino, era na verdade ausente no que se refere ao exercício de suas funções. Isto porque ainda que ele se preocupasse que Kevin tivesse mais espaço para brincar, chegando a propor uma mudança de residência para a família, ele não percebia de fato as necessidades do menino, como por exemplo, o pedido de limites. Ademais, Franklin negava o comportamento violento e desafiador manifestado pelo filho, dizendo que Kevin era só um menino e que os meninos fazem isso mesmo.
Constata-se que além de Eva, Franklin também desampara o filho ao se negar a ver seus comportamentos agressivos e as dificuldades na relação estabelecida desde o início entre Kevin e sua mãe. Franklin, muitas vezes foi, de certa forma, omisso ao não perceber que Eva precisava de ajuda e que não conseguia cuidar do filho sozinha, além de naturalizar as atitudes do menino. É certo que o adolescente é, tradicionalmente, um desafiador da Lei. Contudo, ele precisa que a Lei se mantenha, tanto para dar sentido à sua rebeldia, como para barrar os excessos que ele quer ou não quer cometer (Kehl, 2004).
Pode-se pensar que as atitudes agressivas de Kevin eram, na verdade, um apelo para que tanto Eva quanto Franklin manifestasse alguma forma de autoridade e fizessem restrição ao seu gozo, o que não aconteceu. Concorda-se com Goldenberg (1998) quando afirma que "a presença paterna tem a função de capacitar a criança a ter domínio da realidade, de não praticar o incesto, de não matar, de não roubar e aceitar que não pode fazer tudo que deseja sem consequências" (p. 117).
Outro ponto que pode ser destacado se refere à dificuldade de comunicação entre os membros da família. Eva está sempre tentando conversar com o esposo sobre Kevin e expor suas preocupações com o comportamento apresentado pelo filho, mas nunca consegue ter um diálogo com o marido. Em uma cena em que ela tenta dizer para o marido que Kevin pode ser responsável pelo acidente em que a filha menor perdeu um olho, ele apenas lhe diz: "você precisa conversar com alguém", isentando-se da responsabilidade de conversar sobre o filho e demonstrando a sua dificuldade em assumir uma posição frente às atitudes do mesmo.
Nesse contexto, pode-se pensar que esta omissão de Franklin em dividir com Eva as responsabilidades pela educação de Kevin está relacionada com a ideia amplamente difundida socialmente de que tais atribuições são de responsabilidade materna, tendo o pai somente a função de cooperar. Com efeito, percebe-se as antigas concepções e expectativas naturalizadas em relação à maternidade e à paternidade ainda povoam o imaginário coletivo, isto é, a maternidade segue sendo cercada por uma série de deveres, funções e prerrogativas e ainda parece assumir uma função maior de grandeza se comparada à paternidade (Badinter, 1985).
Sarti (2004) pontua que
as condições favoráveis para que uma criança 'cresça' ou um jovem se desenvolva na família se ampliam quando seu pai, sua mãe ou quem deles cuide possam se pensar, eles mesmos, como pessoas em permanente crescimento, em cada novo lugar que ocupem na família. (p. 121)
Na família de Kevin, no entanto, ambos os pais parecem não se sentirem confortáveis com as atribuições que os papéis de pai e mãe comportam. Assim, parecem ter dificuldades para assumir as responsabilidades pelo menino, uma vez que as regras não eram estabelecidas, as suas necessidades não eram ouvidas e seus problemas muitas vezes negados. Os pais não assumiam os riscos de educar o filho, assim pode-se pensar que Kevin parece ter sido vítima de um abandono materno e paterno (Kehl, 2003).
Destaca-se que, quando o lugar do adulto encontra-se "vazio", se produz o adolescente "sem lei" ou "à margem da lei". Pois a função principal do adulto é introduzir a lei, representá-la, ou seja, ser capaz de assumir a responsabilidade de tomar as decisões, sustentar a autoridade e as regras impostas (Kehl, 2003). O ambiente familiar capaz de ser afetivo e suprir as necessidades da criança e do adolescente constitui a base para o desenvolvimento saudável do sujeito. O cuidado e a efetividade, assim como a imposição do limite, da autoridade, da realidade são de extrema importância para a constituição da subjetividade e o desenvolvimento das habilidades dos sujeitos necessárias à vida em sociedade (Winnicott, 1987/2002). Desta forma, pode-se pensar que o ambiente familiar em que Kevin vivia talvez não suprisse suas necessidades, nem de afeto (por parte da mãe), nem de limite (por parte do pai).
Nessas circunstâncias, Sarti (2004) reforça que a família não se define por indivíduos ligados por laços biológicos, mas sim pelos elos de sentido nas relações. Infere-se, baseando-se nesta definição que, por não ter sido investido suficientemente por estes pais, a relação entre Kevin e os mesmos carece também de sentido.
3. A adolescência de Kevin
De acordo com Outeiral (2008), a adolescência pode ser compreendida como um "fenômeno psicológico e social" (p. 3). Dessa forma, há diferentes tipos de adolescentes conforme o ambiente social, econômico e cultura em que estão inseridos. De maneira geral, a adolescência é caracterizada pelas transformações corporais, alterações psíquicas, estabelecimento de novos vínculos com os pais.
Conforme já exposto, Kevin não tem um bom relacionamento com a mãe, apresentando um comportamento agressivo com a mesma e com a sua irmã, situação que se estende até a adolescência. Eva faz algumas tentativas de aproximação com o filho adolescente, mas similar ao que acontecia na infância de Kevin, não consegue compreender suas vontades, o que gostaria de fazer, e assim impõe ao filho, por exemplo, que vão jantar e jogar mini-golfe.
Na adolescência, Kevin pratica a brincadeira de arco e flecha, como fazia na infância. Ele ganha do pai o melhor arco e fica a maior parte do tempo sozinho, envolvido com esta prática. O adolescente, além de apresentar um isolamento social, manifesta um comportamento desafiador quanto às regras e normas. Demonstra sentimentos de indiferença frente aos sentimentos dos outros e não se responsabiliza pelos seus atos. Tais aspectos podem ser evidenciados uma vez que o filme deixa a entender que Kevin matou o coelhinho da irmã, além de ter provocado o acidente em que a irmã perdeu o olho.
Na verdade, Kevin já apresentava um comportamento agressivo desde a infância, o que leva a pensar que o menino possuía tendências antissociais desde muito pequeno. Em uma cena do filme, Kevin explica para Eva que o gato aprende a não fazer "merda" -no lugar errado pela dor, ou seja, quando o dono esfrega a cara do animal nas fezes para depois esfregá-la na areia. No mesmo momento, a edição mostra uma cena em que Eva tenta ensinar Kevin a usar o banheiro agredindo-o. Na sequência, ela ouve do andar de baixo o menino dando a descarga sozinho após ter feito suas necessidades no lugar correto, ou seja, Kevin sabia usar o banheiro e poderia tirar as fraldas, mas parecia sentir prazer em contrariar a mãe e vê-la realizando tal tarefa.
Winnicott (1958/2000) explica que a tendência antissocial ocorre após ter ocorrido uma deprivação (não uma simples privação) na vida da criança. Ela é destituída de algum aspecto essencial em sua vida familiar, ou seja, deu-se a perda de algo bom, de caráter positivo, na experiência da criança. No caso de Kevin, pode-se pensar que esta de-privação se remete à perda (falha) do amor da mãe.
Vale mencionar que é nos momentos de esperança que a criança manifesta a tendência antissocial. Isto equivale dizer que tais tendências são uma expressão de esperança explicitada por aquela criança que se tornou de-privada. Sendo assim, o tratamento destas tendências antissociais seria ir ao encontro deste momento de esperança e corresponder-lhe (Winnicott, 1958/2000). Eva, no entanto, embora tema o comportamento do filho, não reconhece seu pedido de ajuda e, portanto, nada faz diante disso.
4. O massacre
Kevin, aos 16 anos de idade, comete os assassinatos de seu pai e sua irmã, além de colegas e funcionários da escola onde estudava. Por conta disso, pode-se afirmar que Kevin é um "assassino em massa" (Mass Murder), isto é, alguém que, a rigor não se insere na categoria Serial Killer e nem é um assassino comum. Meloy, Hempel, Mohandie, Shiva e Gray (2001) definem o adolescente Mass Murder como alguém de 19 anos ou menos que tenha matado intencionalmente pelo menos três vítimas em um mesmo acontecimento.
Após o massacre, Kevin vai preso. Nesse sentido, Goldenberg (1998) demarca que "num desenvolvimento em que ocorreram muitas perturbações e falhas ambientais, o juiz passa a exercer a função paterna no inconsciente da criança e do adolescente" (p. 113). Ressalta-se que a infração cometida pela criança ou adolescente representa a denúncia da ausência do pai simbólico e que para continuar vivendo necessita de alguém que represente este pai (Goldenberg, 1998).
Kevin, sem ter encontrado no ambiente familiar a interdição paterna, se depara com a Lei ao ser julgado e condenado por seu crime. Estudos que abordam a problemática do adolescente em conflito com a lei apontam a relação entre a prática do ato infracional e a fragilidade nas relações familiares (Dias, Arpini & Simon, 2011; Nardi & Dell'Aglio, 2012; Zappe & Dias, 2012). A impotência dos pais quanto à oferta de regras ou limites para o adolescente é apontada no estudo de Dias et. al (2011), segundo o qual, os familiares não sabem como agir e o que fazer diante do comportamento agressivo apresentado pelo adolescente.
Para além do exposto, o filme não traz respostas para a violência cometida pelo adolescente, mas provoca reflexões e questionamentos não apenas das vivências infantis e do contexto familiar, mas também sobre a psicopatologia na infância e adolescência. A psicopatia é um transtorno de personalidade caracterizado por comportamentos desviantes em relação a aspectos afetivos e relacionais, entretanto a etiologia e o desenvolvimento do transtorno ainda carecem de conhecimento. A compreensão de traços latentes e características associadas à personalidade psicopática em populações jovens é um desafio aos pesquisadores (Davoglio, 2012).
Uma série de transtornos de alteração da conduta caracterizados por um comportamento socialmente destrutivo e frequentemente mais doloroso para as pessoas do que para o sujeito é descrito pelo Manual Diagnóstico de Transtornos Mentais (DSM-IV). Entre eles estão: o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, marcado por graus de desatenção progressivamente inapropriados, impulsividade e hiperatividade; o transtorno de conduta, caracterizado por um padrão de conduta persistente em que são violados os direitos básicos dos outros e as principais regras ou normas sociais apropriadas para a sua idade; e o transtorno desafiador de oposição, que se refere a um padrão de conduta negativa, hostil e desafiante sem graves violações dos direitos das demais pessoas (Hare, 2003).
Kevin apresenta algumas características do transtorno de conduta com inicio na infância, devido a seu comportamento desafiador antes dos 10 anos de idade. O transtorno de conduta é definido pelo DSM-IV como um padrão repetitivo e persistente de comportamento, no qual os direitos básicos dos outros ou normas ou regras sociais importantes e apropriadas à idade são desrespeitadas. Dentre as características apresentadas por este transtorno destaca-se: pouca empatia, pouca preocupação com o sentimento, desejo e bem-estar alheios, ausência ou prejuízo de sentimento de culpa, remorso inautêntico, responsabilidade de outras pessoas pelos seus atos, fraca tolerância à frustração, acesso de raiva e irritabilidade, imprudência (Trindade, 2004). Destaca-se que a maior parte dos psicopatas adultos apresentaram características essenciais do transtorno de conduta na infância ou adolescência (Hare, 2003).
É importante mencionar que a Psicopatia e o transtorno de Personalidade Antissocial (TPA) são fenômenos distintos, sendo que a distinção está baseada no tipo de abordagem da avaliação. O diagnóstico de TPA está relacionado a critérios de comportamentos, enquanto o diagnostico de psicopatia aos traços de personalidade, geralmente avaliados por meio de um instrumento. Além disso, o TPA só pode ser diagnosticado após os 18 anos de idade, pois a criança e o adolescente ainda estão em processo de desenvolvimento (Trindade, 2004).
Há controvérsias sobre as causas da psicopatia, entretanto sugere-se que as atitudes e os comportamentos característicos da psicopatia são resultados de uma combinação de fatores biológicos e forças ambientais. Assim sendo, pode-se refletir que o ambiente ao qual Kevin estava exposto desde o nascimento pode ter contribuído para o desenvolvimento de suas atitudes e comportamentos, mas não se pode afirmar que Kevin fosse psicopata.
Nesse sentido, concorda-se com Meloy et. al. (2001) quando afirmam que, embora o ato em si de um assassinato em massa seja difícil de ser previsto, certos comportamentos - como: histórico de abuso de álcool ou outras drogas, comportamentos antissociais, bullying ou sintomas depressivos podem servir de alerta para que a família, a escola e a sociedade de modo geral intensifiquem os cuidados às crianças e aos adolescentes a fim de prevenir que tais massacres aconteçam.
Conclusão
A história de Kevin retrata a trajetória de uma criança desamparada emocionalmente por seus pais desde a mais tenra infância e que apresenta tendências antissociais desde cedo. Kevin não consegue estabelecer um vínculo afetivo com a mãe e possui um pai que parece ter dificuldades em estabelecer limites, além de ser omisso em algumas situações às suas necessidades. Kevin se torna um adolescente com comportamentos desafiadores.
Importante mencionar que a ideia deste trabalho não é afirmar que Eva "criou um monstro" devido à sua dificuldade em maternar, mesmo porque ela parece se encontrar de fato com a maternidade com o nascimento da segunda filha. Ainda que o filme mostre claramente a hostilidade lançada contra Eva após o massacre, entende-se que é preciso haver um cuidado ao culpabilizar a mãe pelo que aconteceu. Isto porque, se assim o fizermos, entraremos novamente na perspectiva que considera que somente a mãe é responsável pela formação psíquica do filho e que prejudicada esta relação, não há esperança para um crescimento psiquicamente saudável.
Evidentemente, existem muitos outros casos de mães e pais com atitudes semelhantes aos de Eva e Franklin cujos filhos não cometeram crimes. No caso de Kevin, pareceu haver influências do ambiente familiar para que o massacre tenha acontecido -uma vez que seu principal objetivo com as mortes pareceu ter sido atingir e fazer sofrer esta mãe devido aos problemas relacionais que possuía com ela desde seu nascimento.
Vale lembrar que a análise apresentada neste estudo se refere a uma personagem e não a um caso concreto, embora - como referido no início do texto - existam casos reais similares a este. Por fim, reforça-se que este trabalho não tem a pretensão de dar uma resposta sobre as razões de tais massacres, mas sim demarcar a importância de se pensar e falar sobre "os possíveis Kevins" que encontram-se, muitas vezes desamparados, fazendo-se notar apenas através da produção do ato. Assim, parecer ser importante manter um espaço de problematização desses episódios, dando a eles a importância que certamente eles evocam.
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Recebido em: 30/07/13
Aceito em: 10/07/14
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