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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia
On-line version ISSN 1983-8220
Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.12 no.2 Belo Horizonte July/Dec. 2019
https://doi.org/10.36298/gerais2019120213
ARTIGOS
Adulto autor de violência sexual: estudo exploratório de avaliação de risco de reincidência
Adult sexual offender: an exploratory study on recidivism risk assessment
Matheus de Costa Farage FonsecaI; Cássio Bravin SetubalII; Liana Fortunato CostaIII
IUniversidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil. E-mail: matheusfarage@gmail.com
IISecretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal, Brasília, DF, Brasil. E-mail: cassiosetubal@yahoo.com.br
IIIUniversidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil. E-mail: lianaf@terra.com.br
RESUMO
O presente texto trata de uma pesquisa qualitativa realizada no contexto de um programa de atendimento psicossocial grupal ao autor adulto de violência sexual. O objeto está centrado no estudo exploratório da avaliação de risco de reincidência do ato violento por meio da aplicação de um instrumento atuarial complementar ao instrumento da entrevista. O método de pesquisa foi a análise documental. O instrumento SVR-2.0 é um checklist composto por 20 questões relacionadas aos fatores de risco para a prática de violência sexual ou de sua reincidência e é preenchido pelos profissionais responsáveis pelos atendimentos ao autor de violência. A avaliação de risco de reincidência do comportamento violento sexual no exemplo estudado foi considerada como alto. Apontam-se ainda os cuidados e as limitações no uso do checklist devido à condição de pouca experiência do uso desse instrumento no país.
Palavras-chave: Ofensor sexual. Reincidência. Abuso da criança. Estupro.
ABSTRACT
This paper describes a qualitative research developed in the context of a group psychosocial program to adult sexual offenders. An exploratory study on recidivism risk assessment of violent offenses was made through the administration of an actuarial instrument, in addition to an interview instrument. The research method was the document analysis. The instrument SVR-2.0 is a checklist consisting of 20 questions related to the risk factors of sexual violence or its recurrence. It is filled by the professionals responsible for the adult sexual offenders' treatments. The recidivism risk assessment of violent sexual behavior in the case study was considered high. The cautions and limitations in the use of the checklist are also pointed out due to the little experience of its use in Brazil.
Keywords: Sexual offender. Recidivism. Child sexual abuse. Rape.
Introdução
Atualmente, a violência sexual e o abuso sexual têm tido uma repercussão cada vez maior, sendo que mais pesquisas têm sido publicadas sobre esses temas e cada vez mais é assunto nas redes sociais e na mídia. O tema da preocupação com a reincidência da violência sexual acompanha o estudo da vitimização sexual (Manderville-Norden & Beech, 2006). O presente texto busca explorar o tema da violência sexual a partir da avaliação de risco de reincidência do ato violento pelo autor e tem por objetivo apresentar o resultado de um estudo exploratório com a utilização de um instrumento atuarial - SVR-2.0. O estudo foi realizado no contexto de um programa de atendimento psicossocial grupal ao autor adulto de violência sexual, de uma secretaria de saúde de uma capital brasileira, visando à complementação de outras ações relativas ao cuidado da saúde do homem, conhecendo sua história criminal e suas características pessoais. No documento de implementação da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem (Brasil, 2008), foi apontada a situação de vulnerabilidade do homem à violência, seja como autor, seja como vítima. O presente texto pretende contribuir nessa direção.
O adulto autor de violência sexual
Violência sexual é a intenção, ameaça ou o ato real de contato sexual com uma pessoa que não tenha dado seu consentimento ou que não é capaz de dá-lo (Andrés-Pueyo & Hilterman, 2005). A condição de dominação e diferença de status de poder entre o vitimizador e a vítima é aspecto fundamental da relação (Miranda & Corcoran, 2000). A violência sexual inclui ainda a atividade sexual com ou sem contato físico entre as partes, por exemplo, a exploração sexual e o uso de crianças em materiais pornográficos.
Além da atenção e cuidados específicos com as vítimas, também é preciso uma atenção e intervenção qualificada aos autores da violência. É necessário conhecer suas características e poder ofensivo para que se possa melhor intervir, desde a prevenção da violência até a prevenção da reincidência. Os autores de violência sexual formam um grupo heterogêneo, sendo possível conhecê-los por suas características pessoais (traços de personalidade e habilidades interpessoais), suas experiências de vida ou pelo histórico criminal (Bickley & Beech, 2001; Bogaerts, Buschman, Kunst & Winkel, 2010). Porém, grupos diferentes devem receber intervenções também diferentes, adaptadas às suas características e ao seu grau de risco de reincidência. Essas diferenciações são importantes para que as intervenções sejam mais eficazes e não haja um excesso de tratamento ou uma intervenção inadequada, causando mais danos do que mudanças de comportamentos (Bogaerts et al., 2010; Manderville-Norden & Beech, 2006; Marshall, 2007).
Segundo Lanning (2010), é possível observar dois grandes padrões comportamentais de autores de violência sexual contra crianças. O primeiro é o padrão "situacional", que compreende indivíduos com padrão de comportamentos abusivos e impulsivos. Nesse grupo, as crianças são mais uma das suas opções. São moralmente indiscriminados, ou seja, são manipulativos e agressivos em busca das próprias satisfações. Esse padrão também compreende sujeitos inadequados socialmente, que são inseguros, curiosos e também impulsivos, que acabam abusando pela situação. Esse grupo não tem preferência sexual por crianças, por diferentes motivos, abusam favorecendo-se da situação em que se encontram. O outro grupo são os autores "preferenciais", que apresentam fantasias e desejos sexuais relacionadas às crianças, e se caracterizam pelas parafilias majoritariamente pedófilas ou pedófilas somadas a alguma outra condição (voyeurismo, exibicionismo ou sadismo, por exemplo). Dividem-se em sedutores, introvertidos, sádicos e os diversos. Cada um tem estratégias e "alvos" distintos, abusando de crianças de idades e características diferentes (Lanning, 2010).
Uma outra visão do cometimento da ofensa sexual pode estar centrada no modus operandis em relação a crianças e adolescentes, bem como a pessoas adultas. Bogaerts et al. (2010) identificam diferentes tipos. O oportunista agressivo e criminal, o molestador situacional ou fixo, e o perpetrador intra ou extrafamiliar. Há, ainda, o ofensor que escolhe a vítima pelo pertencimento ao gênero, de acordo com a idade, ou as características físicas e emocionais. Nessa perspectiva têm função determinante as vulnerabilidades presentes nos ambientes. Os ofensores e as ofensas constituem-se em matéria heterogênea, em concordância com Lanning (2010) e Marshall (2001).
É importante ressaltar que a pedofilia não é uma certeza quando se trata de violência sexual contra crianças. Muitos autores estudiosos de violência sexual não apresentam indicações de características diagnósticas de pedofilia (Seto, 2009). A pedofilia se caracteriza por um interesse sexual preferencial por crianças, refletindo-se em fantasias, desejos, pensamentos e excitação, acrescido de um não interesse sexual por adultos. A violência sexual ou o comportamento sexual envolvendo crianças não é requisito para o diagnóstico de pedófilo, que tem sua classificação como CID - 10 (American Psychiatric Association, 2000; Organização Mundial da Saúde, 2007). Quando comparados, os ofensores sexuais não pedófilos apresentam mais traços de hipersexualidade, interesse sexual indiscriminado e mais desinibição (Seto, 2009). A tendência atual é que se considere primordialmente a presença de interesse pedofílico no agressor (Bogaerts et al., 2010).
Quando a relação do agressor e da vítima é colocada em foco, dividem-se as agressões entre os modos intrafamiliar e extrafamiliar. Nessa categorização, é possível identificar transtornos de personalidade comuns entre os grupos. Transtornos de personalidade esquizoide e evitativo são mais comuns em ofensores sexuais intrafamiliares. Já os ofensores extrafamiliares apresentam transtornos de personalidade antissocial e narcisista (Bogaerts et al., 2010). Finkelhor (1984) elenca quatro precondições que levam um indivíduo a cometer o abuso sexual infantil - motivação pelo ato, superação de barreiras internas, superação de barreiras externas e superação da possível resistência da criança. Esse ciclo compreende tanto fatores individuais, socioculturais, as questões de gênero, as dinâmicas familiares quanto a educação sexual. Diversas estratégias de superação de barreiras podem ser utilizadas em cada uma das etapas, porém, atualmente, considera-se que a qualidade das relações estabelecidas no contexto sociocomunitário é fundamental para a construção de um ambiente favorável ou não à exposição de violência, que, por sua vez, se conecta com a violência intrafamiliar e/ou violência sexual (Turner, Schattuck, Hamby & Finkelhor, 2013).
Percebe-se então que, para compreender o ofensor sexual, é necessário um olhar contextual, apurado e ampliado, observando-se dimensões sociais, subjetivas, psíquicas, patológicas e históricas (Finkelhor, Ormrod, Turner & Holt, 2009). A avaliação do autor de violência deve ser pautada pelo entendimento de que o fenômeno da violência sexual é complexo e multideterminado, não se restringindo ao levantamento de características psicopatológicas ou a situações específicas no curso de desenvolvimento.
O SVR-2.0
A reincidência do ato violento é definida como o retorno à prisão como resultado de voltar a ofender (Holland, Pointon & Ross, 2007). No contexto prisional, tem sido importante conhecer os autores de violência para predizer e prevenir a reincidência de violência (Gonçalves & Vieira, 2004, 2005; Rebocho, 2007). Para isso, existem diversos procedimentos de avaliação de risco que podem ser utilizados. Echeburúa, Muñoz e Loinaz (2011) listam sete instrumentos de avaliação de violência futura específicos para o contexto. Como as entrevistas e os testes podem apresentar limitações pelas possibilidades de manipulação e respostas influenciadas pela desejabilidade social, os inventários listados se focam em reunir informações das mais diversas fontes possíveis. Entre eles há instrumentos para avaliação de violência interpessoal específica - HCR-20, que avalia o risco de condutas violentas em delinquentes adultos (Hilterman & Andrés-Pueyo, 2005), avaliação de violência conjugal - EPV-R, que avalia o risco de homicídio ou violência grave contra parceira ou ex-parceira (Echeburúa, Amor, Loinaz & Corral, 2010) e de violência de adolescentes - SAVRY, que avalia o risco de violência física, sexual e de ameaça grave em delinquentes jovens (Hilterman & Vallés, 2007).
Para avaliar o risco de reincidência em adultos ofensores sexuais, o Sexual Violence Risk (SVR-2.0) é um instrumento que sistematiza a informação recolhida sobre um indivíduo, identificando áreas problemáticas (Andrés-Pueyo & Hilterman, 2005; Gonçalves & Vieira, 2004). O instrumento é composto por um conjunto de fatores de risco para violência e, principalmente, para violência sexual, listados de forma objetiva e pragmática. O preenchimento é realizado pelos profissionais em forma de checklist, marcando-se "presença" do fator de risco (S), "possível presença" - se não há informações suficientes para afirmar a presença (?), "ausência" do fator (N) ou se ele está "oculto" (O), ou seja, não há informações sobre o fato. As informações são recolhidas a partir do máximo de fontes possíveis, como entrevistas clínicas, depoimentos, relatórios judiciais, histórico de vida e depoimentos familiares.
O SVR-2.0 é dividido em três grandes eixos que devem ser observados em relação ao indivíduo avaliado. São eles: a) o Funcionamento Psicossocial, observando desvios sexuais, seu funcionamento psíquico e o histórico individual; b) os Antecedentes Criminais de ofensas sexuais, observando as ofensas sexuais praticadas, frequência, gravidade e progressões; e c) os Planos para o Futuro, considerando a atitude diante da intervenção e dos eventos de vida posteriores. Ao final, resume-se o grau do risco de reincidência de violência sexual entre baixo, médio e alto. Em uma avaliação longitudinal, é possível marcar a melhora ou piora de cada fator de risco.
O SVR-2.0 não é um teste ou uma escala psicológica por não estar suficientemente estruturado e não gerar pontuações normativas. Além disso, ele se limita a avaliar somente o risco de violência sexual futura em indivíduos que já tenham cometido algum delito ou agressão sexual (Andrés-Pueyo & Hilterman, 2005). Dessa forma, pode-se classificar o SVR-2.0 como um instrumento de avaliação atuarial. Os parâmetros de avaliação em instrumentos atuariais são baseados em estudos longitudinais com centenas de autores de violência, nos quais uma variedade de características são analisadas para se ter conhecimento daquelas que mais predizem novas violências (Marshall, 2007).
O histórico desse instrumento resgata um processo de estudo e construção realizado no Canadá, mais especificamente na universidade Simón Fraser em Vancouver, no Mental Health, Law, and Policy Institute, a partir da investigação de comportamentos violentos reincidentes. Posteriormente, esse instrumento foi validado e adaptado na Espanha e em Portugal (Andrés-Pueyo & Hilterman, 2005). A utilização em Portugal enfocou avaliação e acompanhamento de ofensores sexuais no âmbito da avaliação judicial, avaliação psicológica e acompanhamento de processos terapêuticos (Gonçalves & Vieira, 2004). Esses autores defendem seu uso a partir de uma aplicação criteriosa e crítica, em vista de uma tendência internacional reconhecida de se poder agregar esse tipo de avaliação (mais objetiva) com a soma de outras informações advindas de várias fontes, como relatórios e observações de diferentes contextos nos quais o ofensor venha transitando (Bickley & Beech, 2001; Marshall, 2007).
O SVR-2.0 é um instrumento construído para avaliação de risco de adultos que cometeram violência sexual, não sendo indicado para avaliação em outras faixas etárias. Para avaliação de risco de reincidência de violência sexual para adolescentes, pode-se citar o Estimate of Risk of Adolescent Sexual Offense Recidivism - Erasor (Worling & Curwen, 2001; Worling & Langton, 2012a; Worling & Langton, 2012b). Do mesmo modo que o SVR-2.0, o Erasor é um instrumento a ser preenchido pelos profissionais, porém apresenta um diferencial em relação ao instrumento relativo aos ofensores adultos, que é a avaliação da interdependência do adolescente em relação aos membros da família. No contexto brasileiro, o Erasor já tem um estudo exploratório, descrito em Domingues (2016). A avaliação do risco de reincidência de ofensa sexual cometida por adolescente ou por um adulto necessita de diferenciação e de uso adequado à escolha do instrumento. Os instrumentos apontados neste texto oferecem itens formulados para avaliação específica considerando-se as diferentes etapas de vida.
Em relação à ofensora sexual do sexo feminino, McKeown (2010) faz uma análise da importância desse dispositivo de avaliação de risco de reincidência da violência sexual e aponta dois instrumentos, o Historical, Clinical and Risk Management (HCR-20) e o Violence Risk Scale (VRS-2), que têm sido utilizados largamente em programas do Reino Unido. Embora haja essa assertiva, o uso desses instrumentos ainda carece de mais pesquisas no sentido de validar e/ou compreender seu uso com essa população. Isso porque os fatores de risco mostram-se bastante distintos em relação ao ofensor e à ofensora (Elliot, Eldridge, Ashfield & Beech, 2010).
Ressalta-se que no Brasil a elaboração de documentos para subsidiar decisões judiciais com fins de prognósticos criminológicos de reincidência e aferição de periculosidade é vedada pela Resolução n º 12 de 2011 do Conselho Federal de Psicologia. Ademais, o uso de qualquer instrumento ou teste psicológico deve ser validado no contexto brasileiro, reconhecido cientificamente e aprovado pelo Conselho Federal de Psicologia por meio do Sistema de Avaliação de Testes Psicológicos - Satepsi (CFP, 2018).
Assim, o objetivo deste texto é a apresentação da experiência do uso exploratório de um instrumento de avaliação de adultos autores de violência sexual, o SVR-2.0. Para melhor compreensão da experiência, agregou-se um exemplo prático dessa utilização, como já o fez Gonçalves e Vieira (2004).
Método
Trata-se de uma pesquisa qualitativa, um estudo exploratório sobre um instrumento atuarial, o SVR-2.0, que é indicado para a avaliação de adultos com histórico de cometimento de ofensas sexuais. Por se tratar de um instrumento ainda não conhecido no Brasil, optou-se, no momento, por um estudo exploratório que pode oferecer uma introdução ao seu conhecimento, e uma experiência prática em sua aplicação por uma equipe profissional que esteja envolvida no atendimento a essa população. O estudo exploratório é um teste realizado em pequena escala que serve para apontar as possibilidades e limitações do uso de um item (no caso, um instrumento) indicando áreas de atenção em seu manuseio (Bailer, Tomich & D'Ely, 2011).
O contexto da pesquisa
A pesquisa tem sido desenvolvida em contexto de atendimento ao adulto ofensor sexual em uma instituição pública. A iniciativa de atendimento a essa população surgiu a partir de uma ação intersetorial envolvendo a vara de execuções penais da região, dois programas de pós-graduação em Psicologia, e essa instituição pública. A definição da clientela a ser atendida por esse programa foi o autor de violência sexual intrafamiliar que já havia sido sentenciado e cumprido a pena, ou seja, já havia passado pelo regime fechado do sistema prisional, ou regime semiaberto.
Necessário apontar que se está lidando aqui com dois aspectos pouco conhecidos no país: atendimento psicológico ao ofensor sexual adulto e aplicação de instrumento de avaliação de reincidência de ato sexual violento. Assim, justifica-se a adoção do estudo exploratório no caminho metodológico. Por essas razões, outra opção realizada foi a de utilizar a pesquisa documental, por meio dos documentos constantes do prontuário do cliente, em face de que esses sujeitos não aceitam contato direto com pesquisadores. Essa condição se deve ao fato de que há recusa em assinar um Termo de Consentimento por parte dos adultos ofensores sexuais, em vista de não admitirem ser identificados como ofensores sexuais, mesmo que já tenham sido sentenciados e/ou cumprido pena (Wolff, Oliveira, Marra & Costa, 2016).
Os procedimentos de avaliação do programa
Os clientes atendidos no programa chegam por meio de um encaminhamento realizado pelo juiz de vara criminal. A equipe do programa de intervenção constitui-se de duas assistentes sociais, uma psicóloga, um psicólogo, duas psicólogas supervisoras, e em relação à pesquisa há ainda a participação de uma auxiliar de pesquisa. Os autores de violência encaminhados passam por entrevistas individuais, entrevista psiquiátrica, entrevistas familiares que fornecem as informações necessárias para o preenchimento do roteiro de entrevista e do instrumento. Durante a realização das entrevistas individual e familiar, são coletadas informações transgeracionais por meio da construção do Genograma e da Linha da Vida. O Genograma (McGoldrick, Gerson & Petry, 2012) consiste em uma representação gráfica dos membros da família de suas várias gerações e da qualidade dessas relações entres os diferentes membros. A Linha da Vida (Nascimento, Rocha & Hayes, 2005) é uma representação cronológica dos acontecimentos com a intenção de buscar conhecimento da trajetória de vida da pessoa atendida. Em ambos os instrumentos, busca-se levantar a presença e as repetições de envolvimento em situações violentas e de violência sexual, tanto do ponto de vista dos atos violentos sobre terceiros como da própria vitimização do ofensor sexual. Em seguida, são encaminhados para a intervenção psicossocial grupal, que tem duração de oito encontros de três horas cada, em um tempo aproximado de três a quatro meses.
Um instrumento escolhido para a avaliação desses sujeitos, clientes do programa, foi a entrevista individual, que é considerada instrumento não atuarial. Reconhece-se o valor da entrevista individual pela oportunidade da interação com o sujeito, bem como de se preservar sua fala e sua observação. Porém, autores como Marshall (2007) enfatizam a importância de se somar a aplicação de dois tipos de instrumentos: atuarial e não atuarial. Assim, a aplicação do instrumento SVR-2.0, atuarial, foi inserida como uma proposta inovadora de análise dos sujeitos atendidos pelo programa, avaliando de forma mais consistente os fatores de intervenção e o risco de violência sexual. O interesse pelo SVR-2.0 se justifica pelo fato de já estar traduzido para o português, de ter simplicidade em sua aplicação, de ser utilizado unicamente pela equipe profissional, e de não ter necessidade de nenhuma modificação semântica em seu formato original utilizado por Gonçalves e Vieira (2004).
O cliente exemplo para o preenchimento do instrumento
Para tal etapa, escolheu-se um cliente atendido na instituição que já possuía o instrumento preenchido. Esse cliente é um homem adulto autor de violência sexual intrafamiliar, sendo resguardado o anonimato e as informações que possam identificá-lo. O autor cumpriu pena por ofensa sexual (art. 214 do Código Penal Brasileiro, Decreto Lei nº 2848/1940) e está inscrito no programa. O participante tem 49 anos, é solteiro e estudou até o 6º ano do ensino fundamental. É o quarto filho de sete irmãos, e não tem uma relação próxima com nenhum deles. Com a mãe, teve uma relação ruim [sic] até ser preso, quando houve uma aproximação entre eles. Trabalha desde os oito anos de idade e hoje é mecânico autônomo. Teve um relacionamento por seis anos, que gerou um filho, que ele desconhece o paradeiro. As vítimas foram três meninas com idades de quatro, seis e sete anos, em sua própria casa. Elas eram filhas dos inquilinos que alugavam parte do lote onde ele morava. Os fatos ocorreram diversas vezes e sempre na presença das três crianças. O participante nega o fato e diz que seu inquilino o denunciou para poder vender o seu terreno. Ele já foi condenado por lesão corporal e cumpriu pena alternativa. Antes de ser preso, bebia com muita frequência e hoje bebe somente nos fins de semana. Diz não usar drogas ilícitas e tem fumado tabaco de forma excessiva. A consulta psiquiátrica não indicou transtorno mental, somente traços de agressividade e impulsividade. O participante relata que aprendeu a se controlar na prisão e, como estratégia para se acalmar, faz uso de bebida alcoólica.
O instrumento
O foco do estudo recai sobre a aplicação exploratória do instrumento SVR-2.0 sobre o participante. O SVR-2.0 é composto por 20 questões relacionadas aos fatores de risco para a prática de violência sexual ou de sua reincidência (Andrés-Pueyo & Hilterman, 2005). O formulário em forma de checklist é preenchido pelos profissionais responsáveis pelos atendimentos, e para os fins da pesquisa, o formulário foi preenchido a partir de discussão ocorrida com a presença de todos os profissionais. O prontuário de cada cliente do programa contém os seguintes documentos: a) o Roteiro de Entrevista preenchido durante os primeiros atendimentos, composto pela identificação, núcleo familiar, situação social, condição de saúde, histórico da violência sexual, expectativas do atendimento e indicações terapêuticas; b) o Genograma e a Linha da Vida, feitos juntamente com o ofensor e, se possível, com seus familiares; c) o Relatório da Denúncia feito pelo Ministério Público, que explicita os depoimentos da(s) vítima(s) e das testemunhas; d) o Laudo do Exame Criminológico, encaminhado pela penitenciária onde o ofensor cumpriu pena, abordando o histórico criminal, histórico de vida, exames psíquicos e psicológicos e diagnose criminal; e) os Registros dos Atendimentos realizados individualmente com cada usuário e das atividades em grupo. Em relação a esse participante, todas as informações advindas do sistema justiça estavam presentes no prontuário.
Os procedimentos de aplicação do instrumento no participante
O preenchimento do formulário do SVR-2.0 do participante foi realizado pelo coletivo dos profissionais do programa e pelos pesquisadores, ocasião na qual se discutiu se o fator estaria presente ou ausente, recorrendo-se às informações constantes em todos os documentos do prontuário. O preenchimento desse instrumento é processual, ou seja, vai-se agregando informações até que se consiga completá-lo, com dados estáticos (como são chamadas as informações perenes contidas nos prontuários) e com dados dinâmicos (como são chamadas as informações que se modificam ao longo do tempo).
O presente projeto de pesquisa foi submetido à avaliação por comitê de ética e recebeu a aprovação em 4 de março de 2015.
Resultados
Apresenta-se, no Quadro 1, o instrumento preenchido.
A primeira parte do instrumento - Ajustamento psicossocial - foi preenchida a partir das informações contidas na entrevista individual e na entrevista familiar, além do exame criminológico. O fato de o participante trabalhar desde muito pequeno e passar por situações de violência física na infância constitui-se em indicativo de marcação do item 2, sobre ter sido vítima de abuso na infância, que segundo o manual (Andrés-Pueyo & Hilterman, 2005) refere-se à violência sexual ou não com danos físicos ou psicológicos substanciais. A referência ao uso de álcool e tabaco é relevante. O Genograma e a Linha da vida trouxeram um panorama da história de vida e da família, podendo-se observar principalmente questões problemáticas sobre abusos na infância, uso de substâncias, relacionamentos conflituosos e dificuldades em relação a emprego. De forma complementar, o Exame Criminológico ofereceu informações sobre a história de vida do sujeito, auxiliando tanto no âmbito comparativo como adicionando novas informações. Foi nesse exame que o participante relatou ter sido condenado por lesão corporal, o que não foi relatado nas entrevistas realizadas no programa. Um relatório de antecedentes criminais auxiliaria no acesso mais detalhado a essas informações, porém, no caso do participante, não foi disponibilizado.
A segunda parte do instrumento - Desvio sexual - foi preenchida por meio das informações provenientes do Relatório da Denúncia, documento original do Ministério Público, no qual são descritos os depoimentos das vítimas. O participante não usou de violência física adicional para cometer os abusos, e sim de estratégias de manipulação e ganho de confiança. O abuso sexual com as três crianças consistiu em beijos no pescoço e costas e carícias nos órgãos genitais. O item sobre minimização do ato praticado surgiu como informação constante na entrevista e ao longo dos atendimentos grupais, quando ele permaneceu negando o ocorrido e se colocando como vítima de uma acusação infundada.
Por fim, a terceira parte do instrumento - Planos futuros - foi preenchida por informações contidas nas entrevistas iniciais e pelas observações realizadas durante as sessões da intervenção grupal, considerando-se falas e reações durante a discussão dos temas. No exame criminológico, o participante disse que pretendia voltar a trabalhar quando saísse do regime fechado, sem mais especificações realistas de como isso iria se realizar. Participou de bom grado das sessões da intervenção grupal, não comparecendo somente ao primeiro encontro. Porém, após o término dos encontros em grupo, ele não quis mais retornar ao programa, agindo de forma explosiva e nervosa ao telefone, em um contato com um membro da equipe.
Discussão
O cliente exemplo obteve seis fatores de risco ausentes (N=6), dois com possível presença (?=2), dez presentes (S=10) e dois ocultos (O=2), resultando em risco de violência sexual classificado como alto. Em relação ao preenchimento do instrumento, é necessário apontar que foi possível responder a todas as questões presentes, em função da condição de discussão grupal da equipe, porque assim se pode agregar várias observações de todos os membros. Além disso, todos os documentos constantes do prontuário ofereceram informações imprescindíveis para o preenchimento do instrumento, sendo que o caráter processual do preenchimento tem que ser enfatizado. A intervenção grupal que se seguiu à avaliação inicial ajudou na configuração e confirmação de várias informações.
Itens como desvio sexual, psicopatia, perturbação mental grave e ideação suicida/homicida devem ser avaliados com mais cautela por serem fatores um pouco mais complexos e muitas vezes ocultados pelo próprio sujeito. As características do abuso podem sugerir marcações desses itens, mas não são suficientes. O caso do participante é um exemplo, por conta de o abuso ter sido praticado diversas vezes e sem o uso de violência física, sugerindo um desvio sexual, mas não é suficiente para um diagnóstico conclusivo. No entanto, há que se reconhecer a presença de violência psicológica implícita. A entrevista psiquiátrica é ponto fundamental do processo de coleta dessas informações.
A utilização do SVR-2.0 como instrumento adicional de avaliação mostrou-se bastante eficaz para aprofundamento dos fatores estáticos e dinâmicos sobre o sujeito. É necessário recorrer a diversas fontes, e mesmo assim algumas informações ficam ocultas ou não são possíveis de comparação. No caso analisado, por exemplo, na construção do Genograma, o participante relatou ter tido seis filhas com seis mulheres diferentes, enquanto no laudo de exame criminológico somente um filho com o qual não tem contato há algum tempo.
A avaliação de autores de violência deve ser cautelosa, tanto no contexto jurídico como no clínico. Essa preocupação se deve à complexidade observada nas situações de crimes de natureza sexual, que traz à tona condições de pobreza, de falta de recursos materiais, de falta de apoio psicológico e social na trajetória de vida dos sujeitos em questão. Um estudo analítico das informações contidas nos processos judiciais evidencia uma carência na perspectiva da aplicação dos direitos humanos em relação a esses indivíduos (Alves, Oliveira & Carvalho, 2013).
Os mais diversos tipos de instrumentos podem sofrer distorções, como a ocultação de informações e de estados psicológicos, na tentativa de se passar uma imagem positiva de si mesmo ou alegar um transtorno mental. Chama-se atenção especial aqui para a manipulação de informações, que é uma característica do contexto de acesso a esse sujeito (Holland et al., 2007; Marshall, 2001, 2007). Vários autores chamam atenção para a presença da distorção cognitiva nos contatos com adultos ofensores sexuais, o que dificulta o conhecimento real da participação do ofensor na ofensa cometida. A distorção cognitiva é uma alteração de percepção sobre a responsabilização do ato ofensivo cometido, para amenizar os sentimentos de culpa e vergonha, tanto quanto reconhecer um mal feito contra outra pessoa (Gonçalves & Vieira, 2005; Marshall, 2007). Por isso, é muito importante o uso de diferentes métodos de acesso e múltiplas fontes de informação (Echeburúa et al., 2011).
Acrescenta-se o fato de que, no contexto prisional, os homens que são condenados por violência sexual são alvo de retaliações pelos outros presos devido a outros crimes, tendo que, muitas vezes, serem colocadas em local específico para terem preservada sua integridade física. Ocorre ainda que, mesmo entre os envolvidos em crimes sexuais, há mais retaliação àqueles que cometeram violência sexual contra crianças. Há que se considerar que nessas circunstâncias a negação e a manipulação podem também significar estratégias de sobrevivência.
Outros fatores como questões de gênero, condições socioeconômicas, situação do sistema prisional devem ser considerados e inseridos como aspectos importantes na avaliação do ofensor sexual. Relatório do Conselho Nacional de Justiça (Ministério da Justiça, 2014) indica que a população carcerária brasileira é a maior, considerando-se países da América Latina, Europa e África, sendo que o Brasil é o país com o quarto maior contingente de presos. Por outro lado, Borges e Guimarães (2013) questionam como esses números e as condições de aprisionamento desses sujeitos indicam um grau de danos e prejuízos consideráveis a essa experiência. Autores que buscam avaliar o contexto prisional brasileiro, assim como avaliações oficiais do Ministério da Justiça (2014), apontam que a execução penal apenas agrava as condições anteriores ao sentenciamento, além de que o objetivo de ressocialização não se cumpre. Do mesmo modo, sabe-se que o maior contingente da população carcerária brasileira é a do sexo masculino, indicando que o homem negro, pobre, morador de periferia e sem escolarização torna-se o maior alvo do sistema prisional (Ministério da Justiça, 2014; Monteiro & Cardoso, 2013).
Por outro lado, o SVR-2.0 avalia se o projeto de vida do sujeito analisado é realista. Sendo a ressocialização de qualquer egresso do sistema prisional brasileiro uma questão problemática para o país, a análise desse item deve ser mais ampla. Segundo o manual do instrumento (Andrés-Pueyo & Hilterman, 2005, p. 90) os planos futuros são "as intenções do indivíduo acerca de seu projeto de adaptação à comunidade". Os planos futuros indicados e que têm importância nesse item são considerados aqueles sobre relacionamentos, emprego, residência, autocuidado e cumprimento do restante das medidas. O manual ainda sugere analisar os planos do sujeito realizados no passado. Porém, no contexto prisional brasileiro, o trabalho é entendido como uma direção de vida contrária ao crime, principalmente para crimes não sexuais, e isso precisa ser analisada com cuidado, visto que os crimes sexuais vão além da ausência de trabalho. Logo, por esse não ser um item objetivo, ele deve ser bem discutido com o sujeito, observando-se o contexto social no qual ele está inserido e as considerações do manual.
O SVR-2.0 reúne fatores de risco estáticos e dinâmicos. Os fatores estáticos são informações objetivas. Esses fatores não permitem interferências, pois se constituem em aspectos permanentes. São exemplos claros de fatores estáticos as informações sociodemográficas, história criminal e as características das ofensas sexuais. Por outro lado, os fatores dinâmicos não se extinguem em sua pura existência e podem ser foco de intervenção e apresentar mudanças e reestruturações, por exemplo, os desvios sexuais, transtornos mentais e os planos futuros (Andrés-Pueyo & Hilterman, 2005). Essa característica do instrumento, em reunir fatores de risco estáticos e dinâmicos, auxilia na categorização e também na elaboração de possíveis focos de intervenções com o autor de violência.
Marshall (2007), trabalhando diretamente com autores de violência sexual, apresenta os principais alvos de tratamento que devem ser enfocados com esse grupo. Esses alvos são divididos em específicos e relacionados e devem ser o foco principal do tratamento com esse público. Os alvos específicos são resumidos em: autoestima, estilo de enfrentamento das emoções, intimidade e sexualidade, as distorções cognitivas (como a negação, minimização, atitude que justifiquem o ato e culpabilização da vítima), a aceitação da responsividade pelo que foi feito e objetivos de vida. E os alvos relacionados ao tratamento são: uso de substâncias, manejo da raiva, violência familiar, estilo parental, transtornos psiquiátricos, habilidades cognitivas e metas espirituais. É possível perceber que o SVR-2.0 avalia boa parte desses focos de tratamento, podendo auxiliar tanto na sua avaliação como no andamento do tratamento.
Como mostra a literatura, o perfil do autor de violência sexual é heterogêneo (Andrés-Pueyo & Hilterman, 2005; Lanning, 2010; Vieira, 2010). O SVR-2.0, por si só, não é capaz de traçar um perfil completo do autor. Além disso, demanda antes de seu preenchimento completo uma grande diversidade de informações. Ou seja, o SVR-2.0 é um instrumento auxiliar, e assim foi proposto, sintetizando as informações existentes e sugerindo informações importantes a serem buscadas.
A heterogeneidade dos perfis dos ofensores sexuais demanda intervenções distintas para cada grupo. A relação com vítima, a frequência e intensidade das ofensas e o grau de risco de reincidência são exemplos de divisões que sugerem perfis distintos (Bickley & Beech, 2001; Bogaerts et al., 2010). O caso analisado, à primeira vista, pode ser classificado como um abuso extrafamiliar, entretanto, levando-se em conta que o participante morava no mesmo lote que as crianças, mesmo que sem vínculos familiares, pode-se inferir que as crianças transitavam livremente entre as construções dentro das fronteiras do lote. Nessa situação, ele se torna uma pessoa de "confiança" para as famílias e que, de certa forma, auxilia no cuidado das crianças dentro do terreno. Há estudos qualitativos sobre essa realidade (Costa, Junqueira, Ribeiro & Meneses, 2011; Costa et al., 2014; Pincolini & Hutz, 2014) apontando uma organização familiar que habita dentro de residência construída em lote no qual existem outras residências (com familiares ou não) e que se constituem em verdadeiras famílias extensas, porque os moradores de uma residência participam do cuidado com as crianças e adolescentes de outra residência. Essa organização faz parte do contexto geográfico regional no qual a pesquisa se insere.
O uso de álcool também é um fator de risco presente no participante analisado. Marini, Leibowitz, Burton e Stickler (2013) entendem que o uso de álcool é uma circunstância precipitante para a violência sexual, assim como o uso de drogas. Sob o efeito de certas substâncias, os indivíduos têm ainda menos capacidade de controlar o comportamento de inibição da agressão (Marshall, 2001). No caso estudado, o uso de álcool se torna um fator de risco ainda maior, visto que o participante relatou que utiliza álcool como estratégia para se acalmar, ou seja, sua tentativa de regulação eficaz das emoções e o controle do comportamento ficam ambas comprometidas sob os efeitos do álcool.
Uma pesquisa descritiva de autores de violência sexual no Rio de Janeiro apresenta a variedade de perfis que podem ser encontrados. Dos 44 sujeitos analisados, 43% não tinham diagnóstico psiquiátrico algum, enquanto 36% tinham um diagnóstico (entre eles epilepsia, abuso de substâncias ou esquizofrenia), e 20%, algum retardo ou atraso cognitivo. O diagnóstico psiquiátrico do ofensor sexual tem um papel importante na justiça brasileira, podendo ser considerado inimputável (não responsável pelo crime), dependendo do diagnóstico. Quando se considera a relação com a vítima, 29,5% tinham violentado alguém da família (filha, sobrinha e enteada, por exemplo), 27% conhecia a vítima de alguma forma, mas não tinha vínculo ou relação próxima com ela, e 34% não conhecia a vítima. Por fim, somente 11% dos participantes tinham mais de uma acusação, o que sugere a maioria de autores de violência do tipo "situacional" (Valença, Meyer, Freire, Mendlowicz & Nardi, 2015).
Sobre as mulheres que cometem ofensas sexuais, no contexto de intervenção psicossocial com o adulto ofensor sexual, ainda se está muito longe de se ter acesso à população de mulheres ofensoras sexuais. As publicações internacionais sobre esse tema, com essas mulheres (Cauffman, 2008; Goldhill, 2013; Grattagliano et al., 2012; Peter, 2006) enfocam grandes dificuldades de contato com elas, bem como a presença de barreiras e preconceitos, demonizando-as ou não, e formando uma caixa de segredos e reticências.
A possível utilização desse instrumento para fins não clínicos (jurídico ou criminal) deve ser feita com cautela, de forma crítica e auxiliar, não se resumindo a fins de prognósticos criminológicos de reincidência. Por ser um instrumento atuarial, os fatores de risco são baseados em estatísticas no que se refere à prática de violência sexual ou a sua reincidência, sendo que o risco de reincidência também se torna uma estimativa (Gonçalves & Vieira, 2004). Sua utilização é mais proveitosa como um dos auxiliares das avaliações e das intervenções, visto que estas, em muitos casos, não têm função preditiva. A violência sexual ocorre por uma conjugação de fatores (Vieira, 2010), além dos individuais que motivam o sujeito ao ato, fatores ambientais são muito importantes para que ocorra ou não a violência e, consequentemente, a reincidência. Assim, não é possível determinar a partir de um instrumento se de fato uma nova violência sexual ocorrerá.
Considerações finais
É importante ressaltar que o SVR-2.0, como instrumento para a avaliação do risco de reincidência de violência sexual, tem limitações (Andrés-Pueyo & Hilterman, 2005; Gonçalves & Vieira, 2004). Não é possível utilizá-lo para analisar o risco de violência que não seja sexual, muito menos investigar se uma pessoa é ou não um ofensor, sendo necessário, para sua aplicação, que o sujeito já tenha cometido algum crime sexual. Por não estar padronizado, o SVR-2.0 não produz resultados estandardizados, ficando a cargo de o avaliador medir o risco de reincidência. Para ser utilizado no Brasil, é necessária sua aprovação pelo Satepsi (CFP, 2018), sendo esta pesquisa apenas seu estudo exploratório.
Os objetivos da pesquisa ficaram limitados pela dificuldade de se completar o instrumento e pela análise documental. Não foi possível obter todas as informações sobre o participante e a análise documental não permite buscar essas informações diretamente com ele. Algumas informações importantes, como os antecedentes criminais, não foram disponibilizadas pelo sistema justiça. Outra limitação refere-se à pouca experiência da equipe no manejo com o instrumento. Afinal, este estudo trata de uma pesquisa com caráter exploratório que pretende se constituir em um recurso para futuras pesquisas no campo da saúde pública e da preocupação com a saúde do homem (Mello & Viana, 2016).
Ainda cabe comentar sobre as implicações éticas de seu uso. O preenchimento do instrumento deve ser utilizado para informação e discussão interna ao serviço que oferece a intervenção. Uma dificuldade observada no atendimento a essa população atendida, e que é encaminhada pelo setor psicossocial das varas criminais, deve-se ao fato de que esses ofensores têm muita dificuldade em perceber se tratarem de contextos distintos: o jurídico (responsabilização) e o da saúde (atendimento). Dessa forma, eles não aceitam a assinatura do TCLE, pois entendem que essa condição significa um reconhecimento de sua identidade como ofensor sexual (Wolff et al., 2016). Tal impasse, no entanto, não deve se constituir em impedimento para o oferecimento de intervenções e de pesquisas voltadas para a melhor compreensão desses homens, em uma perspectiva da aplicação dos Direitos Humanos (Ward, Gannon & Vess, 2009).
Ainda assim, o SVR-2.0 se mostrou um instrumento auxiliar eficiente no trabalho com autores de violência sexual, pois elenca diferentes áreas importantes de serem avaliadas na intervenção com esse público. Sugere-se um espaço para comentários sob cada fator de risco, preenchendo-se, por exemplo, com mais detalhes sobre o fator de risco e onde cada informação foi encontrada. Por fim, pode-se concluir que o SVR-2.0 auxiliou na análise do participante, ao considerar como alto seu risco de reincidência. Mais pesquisas precisam ser feitas sobre esse grupo de autores de violência sexual, visto que cada vez mais casos são denunciados e que somente compreendendo de forma profunda esse processo de produção da violência pelos autores será possível construir intervenções efetivas no combate à violência sexual.
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Recebido em: 25/09/2017
Aprovado em: 26/06/2018