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Revista Psicologia Organizações e Trabalho
On-line version ISSN 1984-6657
Rev. Psicol., Organ. Trab. vol.2 no.2 Florianópolis Dec. 2002
ARTIGOS
Programa de demissão voluntária em uma instituição bancária: da gestão da adesão ao programa às complexas perdas psicossociais
Eduardo Pinto e Silva
Mestre em Educação e Trabalho. Doutorando pela Faculdade de Educação da UNICAMP. Professor na UNIMEP e UNIFIEO (dups@ig.com.br)
RESUMO
O artigo aborda aspectos subjetivos e psicossociais relacionados à trajetória profissional de ex-trabalhadores bancários que aderiram ao Programa de Demissão Voluntária de urna instituição bancária estatal. Aparecem explicitados os pressupostos e procedimentos da pesquisa, assim corno recortes do discurso dos sujeitos entrevistados (caixas, supervisores e gerentes), além das análises relativas aos processos de adesão e de busca de estratégias de reinserção profissional pelos exbancários. A análise aponta para a relação entre a instrumentalização da subjetividade (gestão do medo e da ameaça) e as decisões (incitadas) de adesão ao programa de demissão voluntária. Essas decisões foram sucedidas por complexas perdas psicossociais, assim corno por rearranjos familiares e subjetivos diversos e contraditórios.
Palavras-chave: programa de demissão voluntária; trabalho bancário; subjetividade; poder; aspectos psicossociais.
ABSTRACT
The article covers subjective and psychosocial aspects related to the professional trajectories of ex-banking workers who have decided adhere to the voluntary dismissal programme of a government financial institution. Assumptions and procedures ofthe research, such as some reports of the interviews (cashiers, supervisors and managers), besides the analysis related to the adherence processes have been made available. The analysis indicates a relation between subjectivity serving as instrument (fear and threat management) and the (incited) decisions to adhere to the voluntary dismissal programme. Those decisions have generated complex psychosocial losses and several and contradictory family and subjective rearrangements.
Keywords: voluntary dismissal programme; banking workers; subjectivity; power; pshycho-social aspects.
1. A pesquisa1
1.1 Pressupostos e hipóteses
A pesquisa que embasou a elaboração deste artigo originou-se de objetivos e hipóteses formulados no projeto de pesquisa Programa de demissão voluntária, desemprego e precarização do trabalho: uma análise das trajetórias de trabalhadores bancários (Silva, 1997)2. Esse, por sua vez, originou-se do projeto de pesquisa Desemprego e terceirização: trabalho qualificação e direitos(Segnini, 1997)3.
O projeto de pesquisa de Segnini (1997) tomou como objeto de estudo o processo de reestruturação do setor bancário nacional privado e estatal. O seu objetivo geral foi definido da seguinte forma: "(...) analisar as trajetórias e práticas sociais vivenciadas por trabalhadores bancários em situação de desemprego, bem como o possível retorno ao mercado de trabalho de um segmento destes trabalhadores através da terceirização dos serviços" (1997:25-26). Dito em outras palavras, o projeto de Segnini hipotetizava o desemprego de trabalhadores qualificados dos setores bancário privado e estatal, assim como a configuração de processos de precarização social e de perdas de direito do trabalho no contexto do capitalismo flexível.
Em relação ao setor estatal, esse projeto apresentava os objetivos específicos de analisar a "(...) escolaridade formal, qualificações e competências" dos bancários demitidos através de plano de demissão voluntária, assim como as suas "(...) estratégias de reinserção no mercado de trabalho" (Segnini, 1997:26-27). Tais objetivos tomavam como pressuposto a existência de múltiplas dimensões (sociais e econômicas) presentes nas hipotetizadas situações de desemprego e/ou de reinserção precarizada no mercado de trabalho.
O projeto de pesquisa Programa de demissão voluntária, desemprego e precarização do trabalho: uma análise das trajetórias de trabalhadores bancários(Silva, 1997) partilhava das hipóteses e pressupostos do projeto de pesquisa de Segnini. Por outro lado, apresentava objetivos e pressupostos mais específicos, assim como um objeto de análise mais delimitado (ex-bancários de uma instituição estatal que aderiram ao plano de demissão voluntária).
O objetivo desse projeto mais delimitado e que se constituiu a partir do projeto de Segnini era o de analisar as especificidades dos processos subjetivos, psicossociais e familiares presentes tanto nos processos de adesão ao programa de demissão como nas estratégias de reinserção profissional desses ex-bancários. As hipóteses correspondentes a tal objetivo eram as seguintes: a adesão ao programa de demissão poderia ter sido significativamente influenciada ou incitada pela gestão do banco estatal; as estratégias de reinserção profissional seriam passíveis de engendrar sofrimentos e conflitos psicossociais. Tais hipóteses, vale ressaltar, eram respaldadas pelos pressupostos teóricos adotados.
A pesquisa e análise sobre os aspectos subjetivos e psicossociais das trajetórias profissionais dos ex-trabalhadores bancários da instituição estatal (Silva, 2000) adotou um referencial teórico interdisciplinar. Se por um lado podemos compreender como ponto de partida da pesquisa o projeto de Segnini e o referencial da Sociologia do Trabalho e da Economia Política (Segnini, 1998a, 1998b, 1997, 1995; Sennett, 1999; Castel, 1998; Harvey, 1992; Chesnais, 1996; Cerqueira e Amorim, 1998), por outro podemos considerar que a especificidade da análise caracterizou-se sobretudo pela utilização do referencial da Psicanálise das Organizações (Pages, 1987; Aubert, 19991, 1994; Enriquez, 1996; Losicer, 1996; Leite, 1996; Volnovich, 1996) e da Psicopatologia do Trabalho (Dejours, 1987, 2000; Cardoso, 1997; Borges, 1997).
O pressuposto teórico era o de que haveria uma relação entre processos subjetivos, gestão institucional e relações de poder. A idéia central apreendida de tal pressuposto era a de que a gestão organizacional, na atualidade, caracteriza-se por uma instrumentalização da subjetividade. Isto significa dizer que sentimentos, emoções, desejos, pensamentos e defesas são manipulados pela gestão, geralmente no sentido do interesse organizacional e, não raramente, em detrimento do interesse e saúde dos trabalhadores4. Neste sentido, buscava-se, através da pesquisa e da análise dos dados, melhor elucidar e/ou demonstrar as relações, nem sempre visíveis - e por vezes até negligenciadas pelo viés organizacional (Borges, 1997: 199) - entre gestão, saúde mental e trabalho.
1.2 Método e procedimentos da pesquisa
A pesquisa foi realizada a partir de questionários objetivos (Silva, 2000, anexos: 279-281) e entrevistas semi-estruturadas com ex-trabalhadores bancários (caixas, supervisores e gerentes).
Os aspectos subjetivos e familiares relacionados à trajetória profissional dos ex-bancários foram pesquisados primeiro através de questionários objetivos e, posteriormente, mediante entrevistas semi-abertas5
A coleta de dados através dos questionários foi precedida por uma coleta de dados na instituição bancária. Foram realizadas duas entrevistas no departamento de Recursos Humanos. Numa primeira entrevista verificou-se que a implantação dos programas de demissão acontecera no ano de 1995, quando já havia sido iniciado o processo de intervenção do Banco Central sobre a Administração do banco6. Em uma segunda entrevista foram abordados os seguintes temas: histórico e diferenciação das distintas etapas do programa de demissão; motivos da adesão ao programa; perfil do funcionário que aderiu7.
Foi possível verificar através de tais entrevistas que a proposição do Programa de Demissão Voluntária fôra acompanhada por mudanças institucionais bastante significativas, tanto do ponto de vista quantitativo (redução do quadro de empregados) como também do ponto de vista qualitativo (alterações nas relações de trabalho entre os empregados e nas relações destes com a instituição).
No mesmo ano em que foram realizadas essas entrevistas na Administração do banco ejá de posse de uma primeira versão do questionário objetivo, foi realizada uma entrevista com dois membros da Associação dos funcionários. Nessa entrevista foi obtida uma pequena listagem de nomes de ex-bancários que aderiram ao programa de demissão, como também foi realizada uma apreciação crítica do questionário objetivo então pré-elaborado. Após a entrevista foi aberto o acesso aos arquivos do jornal publicado pela Associação dos bancários. Foram selecionados artigos referentes ao período de 1995 a 1998. Foram verificadas nesses artigos freqüentes alusões às pressões em torno da adesão ao programa de demissão. Os artigos também continham mensagens de oposição dos bancários ao processo de intervenção do Banco Central e à perspectiva da privatização da instituição.
Posteriormente obteve-se, junto ao Sindicato dos Bancários do Município de São Paulo, uma lista de 330 nomes que aderiram ao plano de demissão. Tratava-se de trabalhadores que ainda mantinham vínculo com o sistema de previdência da instituição. Foram enviados questionários aos 330 nomes obtidos. Destes 330 questionários enviados, foram recebidos um total de 32. Dos 32 ex-bancários que enviaram o questionário, 18 se dispuseram a submeter-se às entrevistas semi-estruturadas. As entrevistas tiveram duração média de uma hora e meia e foram realizadas em São Paulo e no interior do Estado de São Paulo (somente uma delas foi realizada no interior do Rio de Janeiro).
1.3 Dados gerais da pesquisa
Somando-se questionários objetivos e entrevistas foram pesquisados 36 ex-bancários: 19 mulheres (52,78%) e 17 homens (47,22%).
Do total de 36 bancários pesquisados, 12 encontravam-se desempregados (33,33%) e outros 12 foram pressionados a aderir ao programa de demissão (33,33%)8. Dentre os ex-trabalhadores do banco estatal que foram entrevistados (total de 16), seis (37,5%) encontravam-se desempregados, ou seja, sem fonte de renda provinda de qualquer tipo de atividade remunerada (Silva, 2000:264-265).
Do ponto de vista estritamente financeiro, a atual renda mensal era vantajosa. em comparação com a situação anterior no banco, em três casos (5,33%). Desses três, dois desempenhavam, já há dez anos, a atividade que passaram a exercer com dedicação exclusiva.
O problema da diminuição de renda foi relatado por aproximadamente 80% dos entrevistados, sendo de forma mais drástica por cinco dos seis desempregados (31,25%) e de forma mais amena por outros oito entrevistados (50%). Nesses últimos casos, foram verbalizadas queixas relacionadas sobretudo à instabilidade da nova atividade remunerada.
As entrevistas individuais trouxeram importantes aprofundamentos aos dados gerais obtidos via questionário e coletas de dados preliminares. Nelas explicitou-se discursos que contribuíram significativamente aos objetivos da pesquisa. O presente artigo apresenta algumas falas dos entrevistados de forma a explicitar os seguintes argumentos centrais: a adesão ao programa de demissão se deu através da instrumentalização da subjetividade e de uma trajetória subjetiva paradigmática9; a busca de reinserção profissional envolveu complexas perdas psicossociais e distintos rearranjos subjetivos e familiares.
2. O contexto histórico da pesquisa
Castel (1993; 1998:467-611) considera a precarização social como expressão do desmantelamento da sociedade salarial, alertando que, para além da precariedade no trabalho, a reestruturação produtiva também cria situações de vulnerabilidade relacional. Os efeitos subjetivos e econômicos sobre os trabalhadores vítimas da precarização social ou da degradação da sociedade salarial são sintetizados pelo autor através dos seguintes significantes: "desfiliação"; "supranumerários"; "inúteis para o mundo"; "inempregáveis"; "vulnerabilidade de massa" e "individualismo negativo".
Para Castel (1998:521-529) a "(...) nova questão social", sob os auspícios da referida reestruturação, edita um "neopauperismo", diante do qual alguns se voltam à obrigação do trabalho enquanto meio de viver o dia-a-dia, enquanto que outros concretizam um problema novo: o da "(...) possível não empregabilidade dos qualificados".
Na atual fase do capitalismo, denominada por Harvey (1992) como "acumulação flexível" e por Sennett (1999) como "capitalismo flexível", a organização do trabalho lança mão de novas metodologias de gestão ou instrumentalização da subjetividade, denominando-as como flexibilização do trabalho. Tal se dá em um contexto social marcado pela referida precarização social e pela mundialização do capital, ou ainda, pelas reestruturações dos sistemas financeiros e produtivos em nível mundial e nacional. A flexibilização do trabalho, vale dizer, configura-se como estratégia fundamental para a concretização dos objetivos de minimização de custos e de aumento da lucratividade na atual reestruturação capitalista.
No setor financeiro mundial, tal como nos aponta Chesnais, (1996:242-264) a mundialização do capital torna as taxas de juros e de câmbio cada vez mais móveis e voláteis, de forma que os Estados-nação são submetidos a crescentes riscos de instabilidade macroeconômica. Em contrapartida, as fusões de instituições bancárias fortalecem ou favorecem as possibilidades de aumento dos lucros dos bancos configurando, historicamente, uma inédita concentração monetária.
Segnini (1998b:4-7), acompanhando Chesnais, considera que a reestruturação do sistema financeiro (nacional e internacional) caracteriza-se por um discurso favorável à idéia de desregulamentação. Ao tecer essa consideração Segnini ressalta que, apesar de tal idéia ter sido apregoada no Brasil por parte dos discursos do Banco Central e das instituições bancárias em geral, ela não teria se divorciado, efetivamente, de uma prática reguladora. A idéia de uma necessidade de "ajuste" do setor bancário, propagada pelo Banco Mundial e reiterada pelo Banco Central, conduziu o Estado brasileiro a adotar medidas intervencionistas sobre algumas instituições10.
É nesse contexto de fusões de organizações bancárias e de concentração de renda em nível mundial que inseriu-se, em algumas instituições dos setores bancários nacionais (públicos e privados), a panacéia dos programas de demissão voluntaria que: no caso dos bancos estatais, geralmente antecederam a concretização dos processos de privatização (Cardoso, 1997). Sendo assim, as inovações organizacionais no setor bancário relacionadas à "acumulação flexível" (Harvey, 1992) inauguraram, para além das benesses do incremento da automação e da pretensa qualificação dos bancários via funções polivalentes, gestões da subjetividade que se concretizaram em torno do binômio intensificação do trabalho/ameaça de demissão. A adoção de programas de demissão voluntária, nesse sentido, ilustram aquilo que Dejours (1999:40-59) conceituou como gestão do medo e da ameaça - gestão que engendra sofrimentos psíquicos no mundo do trabalho, sempre sob o pano de fundo da ameaça da demissão.
3. As demissões no setor bancário nacional
Cerqueira e Amorim (1998) apontam que a concentração de capital via fusões, aquisições, incorporações e privatizações no Brasil se deu, salvo exceções, envolvendo ampla redução dos postos de trabalho. Segundo esses autores, no final de 1995 o contingente de bancários era 30,8% inferior ao do ano de 1990 (apud Silva, 2000:26). O intenso processo de demissões nos bancos nos anos noventa foi acompanhado por queda do emprego nos demais setores da economia, tornando as oportunidades de recolocação dos bancários em outros setores cada vez mais limitadas (Segnini, 1998:7-12 e 146). Não obstante a evolução decrescente do emprego no setor bancário nacional observou-se, no período de 1994 a 1997, um aumento dos indicadores de produtividade, conforme nos informam dados do Dieese (apud Silva, 2000:28).
De acordo com a visão de Castel (1998), a argumentação de Segnini (1998: 16) é a de que as demissões no setor bancário inauguraram uma nova dimensão do processo de exclusão social brasileiro, aquela do desemprego de trabalhadores escolarizados e qualificados. A pesquisa realizada com os bancários que se desligaram do banco através do programa de demissão comprovou tal hipótese. O desemprego e as reinserções precárias no mercado de trabalho foram freqüentemente verificados, em detrimento de um número reduzido de trajetórias ascendentes. Tais aspectos podem ser compreendidos como a contraface da elevação da produtividade do trabalho bancário e da maximização dos lucros propiciadas pela gestão flexível, gestão cuja instrumentalização da subjetividade será agora abordada a partir dos dados obtidos na pesquisa.
4. A gestão da adesão ao plano de demissão: medo, desejo e vontade
A instrumentalização da subjetividade pela gestão utilizou-se de vários artifícios para atingir uma adesão significativa ao plano de demissão voluntária. Destacam-se, entre esses, a sedução, a ameaça e a pressão.
A sedução veiculava a possibilidade do sujeito bancário tornar-se um empreendedor após o seu desligamento institucional11. A sedução mobilizou fantasias e idealizações em relação às possibilidades concretas de reinserção profissional no mercado de trabalho. Dito de outra forma, o artifício da sedução acabou por capturar a dimensão do desejo.
(...) eu tinha a ilusão de que eu poderia estar associando os funcionários do banco à minha empresa. Isso não se configurou (...) eu não consegui os clientes e consumi todo o dinheiro do PDV ( José, 40 anos, ex-caixa, em Out. 1998)12.
A ameaça de demissão e a pressão para adesão ao plano também foram artifícios utilizados pela gestão com a finalidade de, ao mesmo tempo, intensificar o ritmo de trabalho nas agências e/ou induzir o bancário à opção de se desvincular da organização. Dessa forma, o sentimento de medo foi mobilizado em muitos bancários.
O medo e o desejo mobilizados pela gestão da subjetividade ensejaram um conflito que tendeu a ser resolvido de forma defensiva ou racionalizada. A racionalização do conflito teve o seu desfecho na "vontade" de aderir ao plano. Medo, desejo e vontade, eis a trajetória para digmática da subjetividade do trabalhador bancário face à propugnação do Programa de Demissão Voluntária13.
As pressões de todo tipo (diretas e indiretas, externas e internas, ou ainda, institucionais e subjetivas) para adesão ao plano, mencionadas tanto nos questionários como nas entrevistas, estavam relacionadas às metas de produtividade (nem sempre factíveis de serem atingidas), à deterioração das relações de trabalho (competitividade em detrimento da solidariedade) e à análise de situações concretas vivenciadas por outros bancários de outras instituições (casos daqueles que não aderiram a planos de demissão e que diante da concretização da privatização, foram sumariamente demitidos, sem receberem a indenização complementar oferecida naqueles planos). Ademais, segundo o relato de alguns bancários, houve também pressões para as adesões que se efetivaram através de listas de demissíveis por agências e até mesmo através de perseguições pessoais a alguns bancários. Seriam esses, portanto, os elementos ditos objetivos que induziram os bancários à adesão ao plano de demissão. Tais elementos, por sua vez, forjaram aspectos subjetivos que também se relacionaram à adesão (medo de demissão; sentimento de falta de perspectiva; insegurança). Esses aspectos subjetivos foram representados, não raramente, pelos pesquisados, como "pressões psicológicas" .
Do ponto de vista da análise teórica a "dicotomia aspectos subjetivos versus aspectos objetivos" é questionável (senão inútil) uma vez que se compreende que há uma relação dialética entre tais aspectos (Berger e Luckmann, 1978; Minayo, 1996; Losicer, 1996; Volnovich, 1996). Não obstante, tal dicotomia relacionase aos discursos manifestos dos sujeitos pesquisados, discursos que foram categorizados de forma temática e também analisados nas suas entrelinhas. O procedimento adotado permitiu ao pesquisador inferências genéricas sobre os mais variados processos (singulares) de adesão ao plano e, conseqüentemente, a formulação da referida trajetória subjetiva paradigmática.
O ex-bancário Maciel, ao ressaltar a dimensão objetiva da incerteza quanto aos desdobramentos da reestruturação organizacional em curso, evidenciou os efeitos subjetivos dialeticamente engendrados.
A perspectiva era a de um horizonte que estava se findando. A gente não estava enxergando um futuro bom para o banco, aquela luz no fim do túnel (...) Eu estava sentindo muito isso daí (Maciel, 42 anos, ex-supervisor, em Fev. 1999).
Em seu relato referiu-se à dúvida - relacionada às dimensões do medo e do conflito - vivenciada por ele e também pela maioria dos sujeitos pesquisados.
Porque não sair com algum benefício a mais? Depois querer sair e não dar mais tempo... (...) Hoje já estamos com esse problema: colegas que estáo querendo sair com alguma vantagem e que já não conseguem mais. (idem)14
Para Maciel e muitos dos entrevistados a possibilidade de demissão sumária após a privatização era dada como quase certa.
Eu acredito que, com a privatização, vai haver uma demissão em massa, o que eles não tiveram coragem de fazer no princípio (ibidem)
Nos casos onde as pressões e a gestão do medo conseguiram promover efeitos subjetivos comprometedores do equilíbrio psíquico a decisão de aderir à demissão foi também vivenciada como uma possibilidade de alivio ou válvula de escape do ambiente penoso e dos sofrimentos psíquicos que o acompanhava15.
As pressões advindas de uma gestão do medo e da ameaça, subjacente ao programa de demissão voluntária, acabou configurando um clima de competição, a ponto de romper com o ambiente mais solidário dos anos oitenta. A fala de uma ex-caixa revelou o efeito degradante que tal modalidade de gestão impôs às relações no trabalho.
Começou a mudar tudo lá dentro. Começou haver uma porção de coisas que não existia anteriormente (...) muita concorrência, muita competição (...) As pessoas começaram a querer garantir da maneira mais burra o seu espaço lá dentro (Paula, 34 anos, ex-caixa, em Nov.1998).
No caso de José, houve pressão para adesão ao plano de demissão. O ex-bancário relatou que era militante sindical e que tal fato intensificou a pressão do gerente da agência para que ele aderisse à demissão. Neste caso, a situação após a demissão caracterizou-se por frustração, queda de rendimentos e insucesso no empreendimento próprio. Por outro lado, a desvinculação em relação ao banco também significou libertação em relação a um trabalho que vinha sendo experienciado como desgastante e repetitivo.
O trabalho era repetitivo em si e já estava pra lá de desgastado. Eu achei por bem sair e tentar outro projeto, outro emprego e mais saúde ( José, 40 anos, ex-caixa, em Out.1998).
Para Paulo, supervisor das atividades dos caixas e também da segurança da agência (vítima de repetidos assaltos) que se viu submetido às exigências organizacionais no sentido de angariar (senão fabricar) o maior número de bancários para o plano de demissão, o trabalho, tornado insuportável, o levou à decisão (irrefletida) de demissão que, aposteriori,foi compreendida como um erro (conjuntural e institucionalmente produzido).
Eu acabei saindo porque não tava dando. Eu não tava dormindo direito e chegava em casa estressado. Parecia que era uma coisa que eu tinha que me livrar de qualquer jeito. (...) Eu vi pessoas morrendo na minha frente! Foi muito violento! Aí, eu senti aquela vontade doida de sair (...). Então, foi uma válvula de escape pedir essa demissão (...) Eu tinha que ter tido uma idéia de tirar licença pra poder colocar as idéias em ordem. (...) Eu não deveria ter saído, de jeito nenhum. Aquelas vantagens que eu recebi de nada adiantou (...) Eu não pensei! Eu só via, só enxergava na minha frente que eu tinha que sair! (Paulo, 42 anos, ex-supervisor, em Fev. 1999).
Ana Paula, que relatou ter sido subaproveitada ("descartada") na agência onde trabalhava em função de ser portadora de lesões por esforços repetitivos (LER), também referiu-se a sentimentos negativos no período de sua pré-adesão ao plano.
Eu fui completamente descartada. Foi realmente um trauma. Foi uma coisa brutal o que foi feito comigo (...) Eu tive muito represália de todos os setores pra não voltar a trabalhar. O gerente da minha agência se recusava a me receber de volta, mesmo eu já estando apta e com alta do INSS (...) Quando eu voltei eu fui colocada pra trabalhar numa mesa do lado de fora da agência, completamente isolada ( ... ) Depois eu vim saber que a política do banco era mesmo a de reprimir, deixar a pessoa que tinha LER muito desestabilizada. Nesse sentido, o PDV acabou sendo a solução pra muita gente que tinha LER (Ana Paula, 43 anos, ex-caixa, em Mar.1999).
Na análise da verbalização dos ex-bancários, suas alusões às pressões, suas alegações racionais, seus desabafos emocionais e suas justificativas, pode-se dizer, seguindo Freud (1900), que conflitos de ordens consciente, pré-consciente e inconsciente foram vivenciados pelos sujeitos pesquisados em relação ã adesão e à demissão16. Esses conflitos, inseridos na lógica da gestão organizacional vigente, redundaram em uma manipulação do imaginário dos trabalhadores bancários e em decisões de adesão geralmente não reflexivas, mas sim defensivas.
Assim, foi possível considerar que causas múltiplas e diversificadas determinaram decisões mais ou menos (in)voluntárias de adesão ao plano de demissão. Ou seja, em todos os casos pesquisados, a despeito da ênfase dos discursos manifestos, ora mais centrados nas questões pessoais, ora mais centrados nas pressões da gestão, foi verificada a presença sempre constante de um intrincado e complexo interjogo de aspectos subjetivos (internos) e objetivos (externos) induzindo e influenciando as referidas (in)decisões (in)voluntárias. Dito de outra forma, a interiorização das pressões objetivas internalizadas como ameaçadoras - caracterizou-se como uma apropriação relativamente subjetiva, uma vez que sempre lastreada à realidade objetiva (Berger & Luckmann, 1978) da gestão ou instrumentalização da subjetividade.
O medo da demissão vivenciado a partir de um pano de fundo comum e compartilhado assumiu diferentes expressões e particularidades. O medo não suscitou apenas fantasias angustiantes. O medo mobilizou igualmente fantasias promissoras fomentadas pela sedução de um devir profissional mais autõnomo e mais satisfatório, como no caso de José. Desse modo é possível considerar que, de forma geral, as adesões concretizaram-se através de vontades, ou seja, através de um aspecto subjetivo ligado à racionalização ou intelectualização de conflitos, e não propriamente através de uma decisão de fato voluntária ou calcada em um desejo genuíno.
Os conflitos subjetivos em relação ao aderir ou não à demissão podem ser compreendidos como reflexos do dilema institucional "privatiza x não privatiza" - dilema este recorrentemente ilustrado nos artigos do jornal da Associação dos bancários. Heloani (1996), baseado em Pages (1987), considera que é comum ocorrerem introjeções das contradições da organização pelos trabalhadores, que acabam absorvendo os conflitos e descontinuidades organizacionais de forma individualizada, como se fossem essencialmente psicológicos. No caso da instituição bancária estatal, que vivia cotidianamente a contradição entre uma perspectiva de privatização e sucessivos adiamentos das datas previstas para sua efetivação, os trabalhadores de fato internalizaram de forma individualizada tal contradição, mediante expressões de dúvidas, hesitações, ansiedades, expectativas, medos, culpas e sentimentos de incompetência. Neste sentido, uma problemática da realidade objetiva (institucional) foi subjetivada, de modo a transformar (senão mascarar) uma contradição sócio-institucional em um conflito psicológico, facilitando, dessa forma, a ação demissional do poder organizacional (Pages, 1987).
Segundo Wanda, desempregada, o recurso à "guerra de nervos" foi o que possibilitou atingir as metas de redução do quadro. Segundo seu relato, tal recurso relacionava-se às (in)definições organizacionais em relação à privatização, assim como às pressões e às suas nefastas consequências emocionais.
Sempre ficava... (...) vai mandar embora, não vai; vai privatizar, não vai privatizar. Isso aí é uma guerra de nervos muito grande! E foi essa guerra de nervos que foi feita com a gente que foi o quê enxugou o quadro! (...) Eu achei que, se eu saísse, eu me daria melhor, até para a saúde. Eu tava ficando muito nervosa lá dentro, nervosa demais (...) Eu estava estressada ao máximo. Eu não sei... parece até que eu parei de dar risada (...) Então, eu aderi. Eu só saí porque ficou insustentável aquela pressão (Wanda, 41 anos, ex-caixa, em Jan.1999).
5. As complexas perdas psicossociais e as nuances da realidade pós-demissional
A análise das tentativas de reinserção profissional dos exbancários revelou que os empreendimentos próprios - de pequeno ou médio porte -sucumbem facilmente diante da concorrência com os grandes grupos empresariais. Maciel relatou sucesso inicial em seu empreendimento que, no entanto, foi seguido de um impasse relacionado à dificuldade de concorrência com dois grandes grupos: ESSO e PETROFORTE. Na época, pensava em vender o posto, mudar de atividade e até mesmo mudar de cidade, já que se sentia constrangido pelas reiteradas perguntas da comunidade acerca de sua nova atividade.
A competição com grandes grupos foi relatada de forma mais drástica pelo paulistano José, ex-caixa que montou empreendimento de menor porte, uma empresa de acesso à Internet. Para ele, não havia uma mera situação de incerteza quanto ao negócio, mas, concretamente, dívidas e ausência de rendimento. José relatou que estava realizando concurso para professor estadual, emprego cujo salário seria bastante inferior ao que tinha no banco. O fato acarretou sentimento de inferioridade e baixa auto-estima, que manifestou ao se referir à concorrência.
O projeto não pagou os seus custos e eu não estou tendo fonte de renda há mais de um ano. Os meus concorrentes são gigantescos. Eu sou isso (aproxima o polegar ao dedo indicador)perto do que é grande por aí ( José, 40 anos, ex-caixa, em Dut. 1998).
Assim, verifica-se que as perdas não foram exclusivamente financeiras, uma vez que o desligamento em relação ao banco envolveu implicações subjetivas. Dito de outra forma, complexas perdas psicossociais atingiram de forma mais ou menos dura as esferas econômica e subjetiva, ou ainda, rendimentos e auto-estima.
Em alguns casos, o sofrimento derivado da perda da referência do pertencimento institucional pareceu mais ressaltada do que a perda do aspecto econômico.
Todo mundo que eu encontro parece que perdeu o ponto de referência que era ser funcionário Banespa. Eu vejo um pessoal muito mal, muito pra baixo, gente que não se encontrou e muita gente que se arrependeu de ter saído. O referencial de vida que eles tinham era trabalhar no Banespa (Ana Paula, 43 anos, ex-caixa, em Mar. 1999).
Por outro lado, muitas foram as referências em relação à libertação frente a um "comodismo" ou "acomodação" diante da instituição. Neste sentido, a ruptura com o trabalho, através da auto-demissão, também pôde ser caracterizada como a tentativa de uma nova vida, de um recomeçar, de um voltar-se aos desejos mais ou menos abdicados ao longo de anos de submissão a trabalhos rotineiros e monótonos. Em um número limitado de casos, esta expectativa emancipatória foi realizada. Na maior parte dos casos, porém, o recomeçar foi permeado por traços depressivos e dificuldades financeiras ou ainda, nos casos mais desafortunados, por profundos arrependimentos e ausência de renda (desemprego), assim como por desestabilização das relações familiares.
Não obstante, os aspectos econômicos e profissionais mais ou menos (des)favorecidos não se expressaram subjetivamente de forma proporcional ou causal direta. Dito de outra forma, perdas de renda e precarização nem sempre redundaram em reações subjetivas desfavoráveis, ou ainda, não se limitaram apenas a engendrar decepções, traços depressivos e ansiedade, mas também, concomitante e contraditoriamente, sentimentos de alívio e vivências de desafios que, apesar de angustiantes, revelaram-se também mobilizadores de sensações psíquicas positivas. Dentre estas, destacaram-se as que foram expressas por falas que se referiam às satisfações por voltar a aprender, voltar a estudar, voltar a sentir-se capaz, entre outros.
Do mesmo modo, até mesmo nos casos bem menos numerosos, onde o aspecto sócio-económico e profissional se estabilizou ou progrediu, não se verificaram apenas sentimentos de satisfação, mas também angústia e medo, assim como sentimentos mais ou menos nostálgicos em relação ao banco.
As referências nostálgicas e os sentimentos de perda também foram relatados no caso de Maciel, cujo empreendimento pessoal, o posto de gasolina, havia sido inicialmente bem sucedido. Para Maciel, o processo de privatização foi vivido com dor emocional, já que o banco sempre foi sua fonte de referência e de orgulho.
Era muito gostoso trabalhar com uma placa atrás de você, que era o Banespa. Era muito bom isso (...) daí porque dava muita retaguarda, era um nome muito forte (...) Nós não vestíamos a camisa do Banespa, nós fazíamos o sangue da empresa correr dentro das nossas veias, de tanto que a gente gostava daquilo, de tanto amor com que a gente trabalhava (...) Mas o pessoal foi fazendo, foi fazendo e acabou...a gente sente isso até hoje (Maciel, 42 anos, ex-supervisor, em Fev.1999).
Portanto, a noção de complexas perdas psicossociais permite realçar algumas nuances dos processos subjetivos. Neste sentido, é possível afirmar que condiçóes financeiras reais e mais ou menos (des)favoráveis tiveram ecos subjetivos diversificados e aparentemente paradoxais. Na realidade, tal diversificação revelou a complexidade da dimensão subjetiva, inevitavelmente conflitiva, ambígua e irredutível a uma direção única e inequívoca.
6. Das complexas perdas psicossociais aos rearranjos subjetivos e familiares
De modo geral, os rearranjos familiares foram acompanhados de instabilidades financeiras significativas e por conflitos conjugais e/ou familiares de intensidade variável. Essa generalização, no entanto, não deve sufocar a percepção das complexidades, nuances e contra-exemplos, ou ainda, a percepção dos aspectos singulares e específicos de cada dinâmica familiar em relação às mudanças de papeis (sociais e/ou familiares) e ao interjogo entre o econômico e o subjetivo.
A análise dos rearranjos familiares revelou a presença de diversificados efeitos individuais ou familiares concorrentes entre si. Tais rearranjos mobilizaram fantasias de onipotência, assim como de abandono e/ou dependência; de inferioridade, assim como de superioridade. Essas fantasias distintas articulavam-se a diversas formas de rearranjos familiares. Foram observadas tanto dinâmicas sustentadas por solidariedade como dinâmicas sustentadas por culpabilização. Desse modo, tanto integração como conflito foram elementos caracterizadores dos distintos processos de rearranjos familiares.
Para Rita, que relatou uma série de perdas psicossociais (financeiras, emocionais e sócio-comunitárias) as restrições de renda foram associadas à queda do padrão de vida, ao passo que a perda do vínculo institucional foi vivida, do ponto de vista emocional, sob a predominância do sentimento de ter sido lesada. Para a ex-caixa, então desempregada e sobrevivendo do INSS por conta de uma hérnia de disco, a conjunção das problemáticas econômicas e subjetivas resultou em um afastamento por parte das pessoas com as quais convivia socialmente, além de culpabilização por parte do marido (por sua vez também desempregado, fazendo "bicos"). Esse quadro veio agravar sua situação emocional.
A gente ficou muito decepcionada, lesada. É uma rasteira que você leva na vida, né? Meu padrão de vida caiu mais de 100%, caiu 200%. Então, todo mundo se afasta, todo mundo... Isso é muito triste (...) O meu marido me culpava muito (...) você que pediu, você que é culpada (Rita, 41 anos, ex-caixa, em Mar. 1999).
Os conflitos familiares e a culpabilização fomentada pela atitude do marido, associados ao arrependimento internalizado e reforçado pelas dificuldades de sua reinserção no mercado de trabalho, levaram-na a buscar, na atividade religiosa, uma alternativa às perdas então vivenciadas.
Observou-se em Rita basicamente dois processos defensivos caracterizados por racionalização ou intelectualismo: negação ou minimização da frustração afetiva derivada da perda da fonte identitária do pertencimento institucional e valorização excessiva dos benefícios de sua conversão religiosa.
Rita negou por diversas vezes sentir saudades do banco, afirmando que a perda era meramente econômica ("salário, cupom e benefícios") sem entrar no mérito da desvinculação como perda de referência. Tal negação, porém, caracterizou-se enquanto tal pela própria reação da ex-bancária ao receber o questionário objetivo a ela enviado antes da entrevista. Rita presumiu que o banco quisesse readmitir funcionários. Sendo assim, escreveu uma espécie de desabafo no verso, onde solicitava uma "nova oportunidade" de retornar ao banco para aqueles que haviam aderido ao "maldito PDV".
A identidade evangélica surgiu-lhe como defesa frente ao seu desespero inicial. Deu-lhe melhores condições para lidar com as limitações de consumo e para "segurar o casamento", então imerso em intensos conflitos. Rita considerou que seu "encontro com Deus e Jesus" lhe deu maior espiritualização e valores mais elevados. Do ponto de vista do funcionamento psíquico, podemos considerar que sua estruturação defensiva se caracterizou por uma preservação egóica, atenuando seu sentimento de culpa e ansiedade, ainda que às custas da formação identitária sintomática e inibitória de desejos e prazeres.
A religião me ajudou muito, Deus me ajudou muito, né. Hoje eu tenho consciência de que você tem que passar coisas na vida para poder mudar os seus valores. Você se espiritualiza mais, tem encontro com Deus, né? Nesse lado, foi muito bom. Hoje eu só tenho tranqüilidade. A minha casa tem harmonia. Os meus filhos têm harmonia. Hoje eu tenho, mas eu não tinha. Eu vivia desesperada (...) Você passa a dar valor às coisas pequenininhas. A nossa vida era Cabo Frio, Búzios, tênis de qualquer marca, brinquedo. Hoje não! Hoje eles têm consciência do que pode e o que não pode. A vída não é só isso; não é sexo, drogas e rock-in-roll. A vida tem um outro lado, espiritual (...) Eu sempre fui católica e hoje eu sou evangélica. Tem três anos que eu me converti. Na religião evangélica realmente eu me encontrei com Deus. Eu sinto prazer de ir à Igreja, de ter certeza que Ele está com você. Está me dando muita força, ajudando a segurar o casamento e uma série de coisas (Rita, 41 anos, ex-caixa, em Mar.1999).
A perda do emprego foi articulada ao sentimento de arrependimento no caso de Paulo. Ele, que vivenciou situação conjugal, subjetiva e econômica semelhante em gravidade à de Rita, não apresentou, entretanto, a mesma postura defensiva. Paulo revelou sentir saudades do banco e profundo arrependimento. Desprovido da couraça defensiva, manifestou à flor da pele a sua emoção. A auto-explicação encontrada para sua decisão de adesão ao plano de demissão foi a de uma suspensão da faculdade de pensar em meio às ameaças e exigências da gestão do medo: "uma vontade louca de sair". Tal como Rita, mas deixando transparecer emoção, Paulo falou de seu desejo de retornar ao banco, referindo-se explicitamente ao trabalho bancário como o que o definia sua identidade profissional. O vínculo afetivo em relação banco manteve-se e assumiu características nostálgicas, a despeito de sua desvinculação concreta.
Foi uma perda muito grande. Eu sinto muitas saudades. Eu gostava demais do banco e nunca mais vou poder voltar. Eu tenho que esquecer! Mas não dá pra esquecer... Pra quem trabalhou dezenove anos... (Paulo, 42 anos, ex-supervisor, em Fev.1999).
Ainda segundo seu relato conflitos conjugais foram acirrados devido à situação subjetiva e econômica desfavorável. O ex-supervisor comentou que sua mulher o teria considerado culpado em relação à decisão de adesão e à conseqüente precarização econômica. O projeto de ter um filho foi colocado de lado pelo casal. A dificuldade de Paulo para encontrar uma atividade remunerada foi interpretada com certa desconfiança pela família da esposa. Além disso, do ponto de vista subjetivo, ele se sentiu inferiorizado por não poder mais contribuir no pagamento das despesas de sua mãe.
No caso da dinâmica familiar de Ana Paula, a falta do salário após a demissão não provocou conflitos, promovendo um rearranjo singular dos papéis familiares. Do ponto de vista mais pessoal, a saída do banco permitiu atenuar a sua tensão cotidiana (até então vivenciada enquanto funcionária com LER que era desqualificada pela gerência). Essa mudança repercutiu favoravelmente nos relacionamentos familiares, ainda que não imediatamente, já que Ana Paula relata ter se sentido deprimida logo após a sua demissão.
A minha família já estava cansada do meu problema, pois tudo eu despejava em casa, todos os dias (...) Eu fiquei muito deprimida no começo. Tive depressão e um quadro de estresse. Eu não dormia e tive que tomar medicamentos (...) Eu tive muito apoio da minha família (...) O fato de eu não ter dinheiro pela primeira vez na minha vida, um salário, deu ao meu marido uma sensação de protetor que ele não tinha. Então, não foi ruim não. Foi bom para todos nós! (...) Cada um assumiu o seu papel dentro de casa, coisa que eu nunca havia permitido. Eu sempre fazia tudo, tudo! (Ana Paula, 43 anos, ex-caixa, em Mar.1999).
A trajetória de Raimundo, um dos poucos ex-bancários bem sucedidos encontrados durante a pesquisa, nos remete a rearranjos familiares e subjetivos dignos de nota. A auto-obrigatoriedade de crescer profissionalmente conduziu-o a um trabalho sem previsão de descanso, além de trazer dificuldades para o convívio familiar cotidiano. Uma situação, aliás, intensificada pelo fato da sua esposa ter começado a trabalhar (face às incertezas do novo trabalho de Raimundo). A despeito da sua empolgação com o novo emprego e elevação dos rendimentos familiares, os aspectos familiares rearranjados não foram relatados pelo entrevistado como necessariamente satisfatórios.
Hoje, pra eu tirar uma semana de férias é uma coisa muito dificil. Não dá pra você ter essa flexibilidade. Nesse sentido, você perde um pouco da qualidade (...) Às vezes você está querendo ficar com a família, mas não dá, não tem jeito porque você tem os seus afazeres profissionais (Raimundo, 39 anos, ex-gerente, em Fev. 1999).
Por outro lado, Raimundo apresentava uma tendência a racionalizar os seus esforços e o distanciamento da família a partir de sua nova atividade. O ex-gerente mencionou que, apesar do seu sofrimento, a sua situação serviria como um exemplo ou modelo positivo a ser oferecido às suas filhas. "(...) Serve até de exemplo pras filhas (...) mostra que quem quer crescer e vencer tem que batalhar". Para Raimundo, importante seria que as filhas percebessem que o crescimento profissional exige esforço e renúncia. Nesses termos, pode-se dizer, acompanhando Sennett (1999:31) que "(...) a flexibilidade forçou-o a afirmar a pura força de vontade como a essência de seu próprio caráter ético".
Portanto, tal como a dimensão subjetiva, a dimensão familiar também revelou-se complexa e inevitavelmente conflitiva e ambígua e, a despeito dos sofrimentos recorrentemente relatados, irredutível a uma direção única e inequívoca.
7. Conclusões
O banco, como instituição, não se preocupou com o nosso bem estar. Nós entramos sãos e saímos doentes, muito doentes (Ana Paula, 43 anos, ex-caixa, em Mar. 1999).
Dejours (1987) considera que o poder no campo do trabalho efetiva uma instrumentalização ou exploração do sofrimento psíquico, da ansiedade, da angústia, do medo e do narcisismo. Essa exploração é suscetível de produzir variadas sintomatologias que envolvem problemáticas corporais, psíquicas e psicossomáticas. De modo geral, Dejours (1987) aponta para a fadiga, sobrecarga psíquica e estresse.
A análise da saúde (física e mental) dos ex-bancários evidenciou doenças psicossomáticas tal como a LER17 e graus variados de estresse. Este último quadro, composto pelo componente corporal (fadiga), psíquico (ansiedade, irritabilidade) e por pressão no trabalho (medo de demissão, pressão por metas) parece acompanhar problemáticas psíquicas mais ou menos estruturadas como, respectivamente, a depressão e a culpa. Além disso, foi possível perceber que a variabilidade dos problemas subjetivos ou de saúde não é necessariamente proporcional aos aspectos objetivos que foram relatados (desemprego, precarização social, decréscimo de renda). Cada estrutura de personalidade torna o indivíduo mais oumenos sujeito ao poder patogênico da gestão instrumental da subjetividade (Dejours, 1987; Albert, 1994).
Aubert (1994), autora cujas argumentações se situam na fronteira entre a Psicanálise das Organizações e a Psicopatologia do Trabalho, discute a questão da tênue e nem sempré nítida fronleira enlre as problenláticas psicológicas mais associadas à estrutura psíquica, daquelas mais associadas e mais fortemente influenciadas pela realidade institucional propriamente dita. A pesquisadora francesa considera que os conflitos psíquicos que emergem no mundo do trabalho ora se caracterizam por aspectos subjetivos sobredeterminados pela organização do trabalho (psiconeurose profissional atual), ora se caracterizam por aspectos da estrutura psíquica que são apenas mobilizados pela mesma (psiconeurose profissional). As categorias clínicas descritas são passíveis de transposição à realidade pesquisada.
O conceito de neurose profissional atual mostrou-se compatível com as dinâmicas psicológicas de Wanda (estresse; depressão), Ana Paula (LER; estresse; depressão) e Rita (estresse). Já o conceito de psiconeurose profissional mostrou-se relativamente compatível com um outro caso, o de Maria. Nele, inferiu-se que, desde épocas muito anteriores à do enfrentamento das adversidades da organização do trabalho, já havia problemáticas psicológicas mais arcaicas, relacionadas à educação, à dinâmica familiar e à constituição subjetiva de caráter neurótico. Desta forma, a sintomatologia não teria sido mobilizada exatamente a partir do trabalho, mas teria sido pelo trabalho reeditada, senão agravada.
O caso de Paulo situa-se entre a neurose profissional atual e a psiconeurose profissional. Em tal caso foi possível considerar, por outro lado, a ocorrência de neurose traumática pós-assalto. O episódio do assalto, aliado ao contexto da gestão do medo e da ameaça, influenciou sua decisão "vontade louca", nas suas palavras de adesão ao plano de demissão.
De maneira geral é possível afirmar que a realidade clínica dos bancários pesquisados não apresentou um contorno nitidamente definido. Assim, torna-se necessário explicitar as considerações de Silva Filho para quem - excetuando-se as particularidades do sofrimento psíquico da LER e da neurose traumática pós-assalto - " (...) o sofrimento mental dos trabalhadores bancários é inespecífico" (1993:88).
Não obstante, é plausível considerar que, no que diz respeito especificamente à gestão do medo e da ameaça, prevaleceram a emergência de sintomatologias e/ou traços de depressão e estresse, mesclados, em alguns casos, a doenças ocupacionais específicas (LER e neurose pós-assalto), ou mesmo a uma variedade de sofrimentos mentais inespecíficos (casos de José e Maciel).
Em relação ao estado de saúde na situação pós-demissional - nos quais foram detectados acirramentos, permanências ou até mesmo atenuações de distintas sintomatologias - as variações encontradas relacionaram-se às (im)possibilidades de reinserção profissional, às características de personalidade e à diversidade das dinâmicas dos rearranjos familiares de cada caso em particular.
A análise dos processos de adesão ao programa de demissão voluntária e das tentativas de reinserção profissional de extrabalhadores bancários permitiu que fossem demonstradas relevantes relações entre gestão, poder, subjetividade e os processos saúde/doença. Tais relações já haviam sido anteriormente apontadas por outros autores (Dejours, 1987, 2000; Enriquez, 1996; Aubert, 1991, 1994; Losicer, 1996; Heloani, 1996; Ribeiro, 1997; Pages, 1987).
Concluindo, a análise dos dados possibilitou importantes reflexões acerca da dinâmica dos fenômenos psicossociais e das relações (dialéticas) entre o objetivo e o subjetivo, o coletivo e o individual e o psíquico e o social (Volnovich, 1996; Losicer, 1996; Minayo, 1996; Berger e Luckmann, 1979). Verificou-se que, na reestruturação capitalista, os processos psicossociais, ainda que não sejam passíveis de generalizações inequívocas, tendem a relacionar-se a complexas perdas psicossociais e a uma precarização social.
Portanto, a análise dos discursos dos ex-bancários e dos demais dados da pesquisa possibilitaram explicitar e desenvolver o conceito de gestão ou instrumentalização da subjetividade. Segundo o referencial teórico e ético adotado, a instrumentalização da subjetividade, relacionada à manipulação das emoções, desejos e defesas, deve ser intensamente combatida e criticada. Compreende-se, assim, que as formas de gestão devam ser transformadas. Dito de outra forma, a crítica à gestão do medo e da ameaça aponta para a necessidade de construção de formas de gestão que sejam humanas, socialmente responsáveis e sensíveis aos processos de saúde/doença presentes no mundo do trabalho.
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Recebido em 20/08/2002
Revisado em 11/12/2002
Aceito em 11/12/2002
1. Este artigo é uma síntese da dissertação de mestrado "Demissões(in)voluntárias e subjtividade"(Silva, 2000) defendida na Faculdade de Educação da UNICAMP em fevereiro de 2000 sob Orientação da Prof. Dra. Liliana Rolfsen Petrilli Segnini.
2. Este projeto de pesquisa foi aprovado pela FAPESP para recebimento de bolsa de mestrado. Por motivos profissionais, abriu-se mão do recebimento da bolsa após o segundo mês do cotrato.
3. Este projeto de pesquisa foi aprovado e financiado, em suas diferentes etapas, pela FAPESP(1997 a 1998), Fundação Carlos Chagas (verba Ford, 1998 a 1999), FAEP (Fundo de Apoio ao Ensino e à Pesquisa da UNICAMP, 1999) e CNPq (2001).
4. Vale aqui considerarque, do ponto de vista psicanalítico, desejo e pensamento são aspectos psíquicos que merecem uma distinção: os desejos possuem relação com o inconsciente, com o princípio do prazer e com as fantasias de onipotência (ilusões narcísicas) e/ou de morte (medo, ansiedade persecutória); já o pensamento possui relação com os processos racionais e consciente, defensivos ou reflexivos. Ó pensamento que se configura como processo defensivo distingue-se do pensamento que se configura como processo reflexivo ou elaborativo. Isso ocorre quando o pensamento se constitui como uma racionalização de um conflito psíquico. A racionalização do conflito psíquico é compreendida como uma solução oposta à da elaboração das emoções e ansiedades àquele inerentes. Dito de outra forma, a racionalização diz respeito a uma intelectualização das emoções e, dessa forma, geralmente substitui o insight (elaboração psíquica dos conflitos) por sintomas psicológicos ou psicossomáticos. Vide Freud (1900; 1923). RJ; Imago (Edição Standard), v.4/5, p.11-566, v.19, p.13-83, 1987.
5. Os dados obtidos pelo questionário objetivo, acrescidos por dados coletados preliminarmente no Departamento de Recursos Humanos da instituição e na Associação de representação dos funcionários, serviram como importante parâmetro para elaboração de um roteiro semi-estmturado de entrevista.
6. O banco estatal sofreu intervenção do Banco Central em dezembro de 1994, quando foi implantado um regime administrativo temporário (RAET). Tal processo caracterizou-se pela recomposição das diretorias, pela meta de privatização e pelos objetivos de redução dos custos e do quadro de pessoal.
7. O entrevistado forneceu documentos oficiais do banco a respeito das condições e normas para adesão ao programa de demissão em suas distintas edições, assim como um resumo informativo a respeito do contigente de trabalhadores (um total de 5.014) que aderiram à demissão consentida no período de 1995 a 1998 (Silva, 2000, anexos: 282-297).
8. As porcentagens indicadas não correspondem à totalidade dos trabalhadores bancários que aderiram à demissão, mas sim à totalidade da amostra aleatória selecionada. O item "fui pressionado" constava entre as alternativas do questionário objetivo relativas aos motivos de adesão ao plano de demissão. Dentre as razões alegadas para a adesão ao programa de demissão pelos pesquisados nos questionários, destacaram-se as seguintes: "ambiente insuportável"; "decepção"; "ausência de perspectiva de carreira"; "privatização"; "demissões"; "estagnação de salários"; "dez anos sem possibilidade de ascensão de cargo"; "descontente com a qualidade do serviço"; "ia me aposentar e não estava querendo sofrer"; "pressão psicológica"; "pressões psicológicas constantes, ameaças de transferências e/ou demissões"; "stress"; "doença" (tireóide); "desvalorização do profissional da área bancária"; "acreditava na expansão da cidade, onde minha fimilia tem imóveis"; "insegurança e falta de perspectiva no banco"; "impossibilidade de trabalhar com diretores indicados"; "o problema da privatização do banco"; "desapontamento com a estrutura do banco e falta de perspectiva de crescimento"; "insegurança com a situação do banco, perda de benefícios e falta de perspectiva"; "doença" (LER).
9. A trajetória subjetiva paradigmática incluiu medo, desejo e vontade. A vontade é aqui entendida como um processo racional e defensivo, ou seja, como uma solução sintomática e intelectualizada de um conflito psíquico caracterizado pela co-existência de medo e desejo. Vide tal discussão mais adiante (item IV).
10. Algumas medidas intervencionistas do Estado brasileiro nos anos noventa merecem ser mencionadas, tais como: a do socorro aos bancos privados através do PROER (Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional); a intervenção do Banco Central junto ao banco estatal de São Paulo em 1995 e suas posteriores federalização e privatização; a privatização de outros bancos estatais.
11. Aos demitidos eram oferecidos cursos e palestras no SEBRAE, taís como: "Como abrir uma empresa" e "O desafio do trabalho em casa", "Iniciação Empresarial". (Silva, 2000, anexos:294).
12. Todos os depoimentos deste artigo trazem nomes fictícios.
13. Esta trajetória paradigmática não foi vivida de forma linear pelos ex-bancários. Medo, desejo e vontade são elementos psicodinâmicos em constante interação. O que se ressalta aqui é o caráter defensivo e intelectualizado da vontade de aderir ao plano de demissão. Tratava-se de uma intelectualização de um conflito psíquico incitado pela gestão e instrumentalização da subjetividade.
14. O banco estatal não abriu mais demissões voluntárias após 1998. Após a privatização do banco estatal, o banco espanhol que o adquiriu lançou, no primeiro semestre de 2001, um novo programa de demissão.
15. Exemplos: casos de bancárias com LER; caso de um supervisor que sofreu recorrentes assaltos na agência onde trabalhava e que, além disto, não se sentia eticamente confortável em sua função de angariar adesões ao plano via o artificio das pressões ou metas de produtividade; caso de bancária com personalidade psiconeurótica cuja sintomalogia foi aguçada pela piora das condições e relações de trabalho; entre outros.
16. Freud aponta para as distintas graduações dos conflitos psíquicos e para as suas respectivas dinâmicas de expressão e/ou de mascaramento. Vide FREUD, Sigmund (1900) .A interpretação dos sonhos. 2.ed. RJ: Imago. p.11-566, v.IV-V, Edição Standard, 1987.
17. A Lesão por Esforços Repetitivos (LER) é uma doença ocupacional que envolve um ciclo complexo de desenvolvimento, no qual a ansiedade e o perfeccionismo, inseridos em uma organização de trabalho desfavorável, são fatores causais relevantes. Como estabelecimento da LER, são agravadas as seguintes condiçães psíquicas: temor de invalidez, sentimentos de culpa e de incapacidade mais ou menos inconscientes traços depressivos de graus variáveis. Assim, gradativa e progressivamente, uma doença corporal e reconhecidamente ocupacional revela-se como doença igualmente psíquica. Neste sentido, podemos compreendê-la, sobretudo em sua fase mais adiantada, não como mera doença ocupacional, mas sim como doença psicossomática específica, onde a dimensão psicológica deve ser sempre considerada (ainda que não deva ser superdimensionada). Vide: RIBEIRO, Herval Pina(1997).