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Revista de Psicologia da UNESP

On-line version ISSN 1984-9044

Rev. Psicol. UNESP vol.13 no.1 Assis Jan. 2014

 

Artigo

 

O Centro de Atenção Psicossocial como dispositivo social de produção de subjetividade

 

The Center for Psychosocial Care as a social device for producing subjectivity

 

 

Ana Flávia Dias Tanaka ShimoguiriI; Waldir PéricoII

I, II Universidade Estadual Paulista - Assis

 

 


RESUMO

Analisa-se o Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS ad) como dispositivo social de produção de subjetividade. Esta discussão foi baseada na análise de dados das internações psiquiátricas, discurso, ética e práticas de um CAPS ad, em um município de pequeno porte do Estado de São Paulo. Foram embasamentos para esse trabalho as perspectivas da Reforma Psiquiátrica, os princípios do Ministério da Saúde, a tese de Lacan sobre os discursos e ética como dispositivos sociais de produção e os estudos de Costa-Rosa sobre o Paradigma Psicossocial. Para o processo "investigatório" utilizamos a Intercessão-Pesquisa. Os resultados das análises revelam a identidade do CAPS ad, sua lógica como enunciado universal e suas práxis.

Palavras-chave: CAPS ad; Internações Psiquiátricas; Subjetividade.


ABSTRACT

The Center for Psychosocial Care for treatment of users of alcohol and other drugs (CAPS ad) is analyzed as a device for producing subjectivity. This discussion was based on analysis off psychiatric hospitalizations, speech, ethical and practices observed in a CAPS ad from a small town in São Paulo. For the basement of this work were used the Lacan's tese about speech and ethical as social devices for producing, the Costa-Rosa's studies about Psychosocial Paradigm and the Ministry of Health guidelines. The investigation was made using the dates off quotidian life's intercessions. The analysis results shows the CAPS ad identity, its logical as universal enunciation and its praxis.

Keywords: CAPS ad; psychiatric hospitalizations; subjectivity.


 

 

Tudo o que rompe a unidade social não vale nada: todas as instituições que colocam o homem em contradição consigo mesmo não valem nada (Rousseau).

 

Introdução

No atual campo da Saúde Mental Coletiva (SMC) há diversas representações sociais e modos de conceber os fenômenos psíquicos (concepções do 'objeto'). Segundo Costa-Rosa (2000, 2013e), dessas representações sociais e modos de conceber o 'objeto' derivam diferentes modalidades de dispositivos clínicos ('meios' de trabalho) capazes de responder aos impasses psíquicos apresentados pelos "sujeitos do sofrimento" configurando diferentes Modos de Produção da Atenção, que por sua vez, definirão as modalidades de consistências de subjetividade e saúde ("subjetividadessaúde"1) presentes no Território2. Diferentes formas de conceber as problemáticas psíquicas, e consequentemente de tratá-las, implicam em diferentes resultados produtivos, sendo que estes deverão ser analisados segundo o seu estatuto ético-político (Costa-Rosa, 2012). O objetivo desse artigo é discutir o papel dos Centros de Atenção Psicossocial enquanto dispositivos de produção social de "subjetividadessaúde" do Paradigma Psicossocial concebido para além da Reforma Psiquiátrica brasileira (Costa-Rosa, 1999; 2000; 2012; 2013b; Périco, 2014). Serão fundamentos para essa discussão os "dados" referentes às internações em hospitais psiquiátricos e comunidades terapêuticas realizadas por um CAPS ad de uma cidade de pequeno porte do Estado de São Paulo, durante o ano de 2011 – refletidos a posteriori por meio da "metodologia" de pesquisa dialética e da Intercessão-Pesquisa.

O CAPS ad será considerado um dispositivo de produção capaz de ofertar diferentes possibilidades transferenciais para os impasses de subjetivação apresentados pelos sujeitos que a ele recorrem, sendo ainda capaz, ou não, de interferir na Demanda Social3, dependendo da maneira como os impasses serão trabalhados a partir dos laços sociais discursivos4 específicos e da Ética adotados pela instituição de Saúde Mental (Costa-Rosa, 2012; Périco, 2014).

 

O Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador, a Reforma Psiquiátrica e o Paradigma Psicossocial

Podemos ver que ao longo da história o Paradigma Psiquiátrico instituiu-se hegemonicamente como detentor do Saber e do Poder responsáveis pela legitimação das respostas sociais à loucura, ou como também ficou conhecida, "doença mental" (Foucault, 1997). No decorrer dos anos, esse problema foi agenciado por diferentes instituições sociais, passando pelos hospitais gerais, instituições psiquiátricas, até chegar às instituições extra-hospitalares propostas pelas Reformas Psiquiátricas (Fleming, 1976).

Nos antigos hospitais gerais a internação tinha caráter de limpeza social. Eram internados aqueles que apresentavam comportamento desviante, e que, de alguma maneira, perturbavam a ordem pública; "é reclusa toda a sorte de marginalizados, pervertidos, miseráveis, delinquentes e, dentre eles, os loucos" (Amarante, 1996, p. 40). A internação era a resposta social para as tensões produzidas pela loucura, baseada na ideia de periculosidade do "louco" e dissociada de qualquer racionalidade clínica (Amarante, 1996; Foucault, 1997; Tenório, 2001).

Philippe Pinel (2007), através do conceito de "alienação mental", consolidou a prática sistemática do internamento da loucura. Alienado era aquele que em cuja razão existisse contradição, tido por incapaz de decidir, de ser livre e exercer sua cidadania, já que a mesma, segundo se define a partir do pensamento racionalista moderno, implica no direito e possibilidade de escolha. Encerrando o "período do grande internamento" (Foucault, 1997), Pinel liberta os loucos das correntes e os aprisiona nos significantes do discurso médico-psiquiátrico. Esse Modo de Produção da Atenção, ao qual Costa-Rosa (1999; 2000; 2012; 2013a; 2013c; 2013e) convencionou chamar de Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador (PPHM), calcou-se na tutela, vigilância, tratamento moral, disciplina, punição, custódia e interdição. O sujeito é visto como doente e centro do problema; há pouca ou nenhuma consideração de sua existência enquanto subjetividade desejante. No caso específico da nossa análise, nesse paradigma, o alcoolismo e a toxicomania são considerados "doenças" para as quais deve ser buscada a cura dentro da lógica biomédica sintomatológica. O manicômio arquitetônico é o Estabelecimento institucional típico do PPHM, funcionando como espaço depositário de tutoria e agenciador de suprimentos (Costa-Rosa, 2000).

Nesse contexto, as Reformas Psiquiátricas, tanto no Brasil como em vários outros países (Fleming, 1976), surgiram como tentativas de dar ao problema da loucura outra resposta social; uma resposta não asilar e opressiva/(re)produtiva, transformando a internação em apenas um recurso último, entendida mais como oferta de dispositivo capaz de fazer ponto de basta no gozo angustioso limítrofe, portanto, eventualmente necessária, somente quando a rede de Atenção Psicossocial ainda não está devidamente estruturada.

Importante frisar que Costa-Rosa propõe pensar o PPS – onde a Atenção Psicossocial é redefinida e passa a ser grafada com iniciais maiúsculas – para além da Reforma Psiquiátrica como esta vem sendo implantada no país nas últimas décadas. Apesar dos grandes avanços consolidados pela Reforma Psiquiátrica brasileira, sobremodo influenciada pela Reforma italiana, o autor sustenta a necessidade da criação de Estabelecimentos institucionais e dispositivos clínicos que possibilitem a implicação subjetiva e sociocultural dos sujeitos ante as conflitivas que os acometem. Tal horizonte tem na psicanálise do campo de Freud e Lacan e no Materialismo Histórico de Marx importantes e imprescindíveis referências teóricas técnicas e ético-políticas (Costa-Rosa, 1999; 2000; 2012; 2013e).

O novo paradigma de "cuidados", o PPS, supõe que o indivíduo não seja excluído do corpo social e dos atos de sociabilidade (Costa-Rosa, 2000). Os 'meios' de trabalho do PPS serão necessariamente diversificados: para-além da medicação como resposta a priori, utiliza-se novos dispositivos clínicos (individuais e de grupo) como as psicoterapias e terapias ocupacionais singularizantes5, oficinas de reintegração sociocultural, oficinas de reconstrução subjetiva – em casos de sujeitos da estrutura subjetiva por foraclusão (Hainz & Costa-Rosa, 2009), espaços coletivos de "ambiência intercessora" nos Estabelecimentos, etc. Em relação à concepção do 'objeto' das práticas em Saúde Mental, não se deixa de considerar a dimensão orgânica do corpo; entretanto, a ênfase desloca-se para o sujeito, concebido tanto como um corpo em sua "existência-sofrimento" na sua relação com o corpo social (sujeito entre os homens), quanto como o sujeito conforme definido pela psicanálise, sujeito do [desejo] inconsciente (entre significantes), "compreendido como produção de saber inconsciente, como produção de sentido inconsciente" (Costa-Rosa, 2013c, p. 236).

No modo psicossocial é um reposicionamento do sujeito de tal modo que ele, em vez de apenas sofrer os efeitos desses conflitos, passe a se reconhecer, por um lado, também como um dos agentes implicados nesse 'sofrimento'; por outro, como um agente da possibilidade de mudanças. . . . O sujeito não é mais apenas o que sofre, embora possa continuar, ainda, atravessado pela mesma conflitiva. Essa implicação subjetiva é uma das inversões básicas dos meios de tratamento do modo psicossocial em relação aos meios típicos do modo asilar (Costa-Rosa, 2000, p. 155).

O PPS não deixa de alcançar a supressão sintomática, porém a mesma não é a prioridade nem a meta final – a "supressão", agora entendida como equacionamento simbólico, se dá como consequência, e não como objetivo a priori. As concepções do 'objeto' das práticas em Saúde Mental são ampliadas a partir da transposição do princípio mecanicista-médico "doença-cura" para o princípio dinâmico-processual "saúde-adoecimento-Atenção". Com isso, necessariamente, amplia-se o conjunto dos 'meios' de trabalho de intercessão (Costa-Rosa, 2000; Périco, 2014). Costa-Rosa (2000) define como metas do Paradigma Psicossocial quanto a esse parâmetro de análise (concepções do 'objeto' e dos 'meios' de trabalho)6: desospitalização, desmedicalização e implicação subjetiva e sociocultural por oposição à hospitalização, medicalização e objetificação, componentes do PPHM.

Conforme proposto por Costa-Rosa (2000), "a instituição nesse paradigma deve funcionar como espaço de interlocução e instância de suposto-saber; sustentar desde o primeiro encontro com a clientela a oferta de um tipo de possibilidade transferencial compatível com a ética da singularização" (p. 162). Uma instituição, para ser representativa do PPS, tem que superar o PPHM na dimensão político-ideológica e ética e em suas práticas. Essa nova perspectiva exige uma rede articulada de dispositivos na qual o CAPS tem papel central, sendo por excelência a instituição representante desse novo paradigma de "cuidados".

 

CAPS ad vs internações

Para substituir as internações psiquiátricas, em 2002, o Ministério da Saúde expediu as portarias 336/2002 (Brasil, 2002a) e 189/2002 (Brasil, 2002b), que regulamentam o credenciamento e financiamento de serviços de Saúde Mental que tenham a Atenção Psicossocial como base para a Atenção. Os CAPS, dentre todos os Estabelecimentos de Atenção em SMC, têm valor estratégico, pois a possibilidade de organização de uma rede substitutiva ao hospital psiquiátrico só foi possível a partir de sua criação. São Estabelecimentos municipais de Saúde comunitários, de Atenção integral, diária e multiprofissional, com o objetivo de realizar o acompanhamento clínico e a reinserção social7 pelo acesso ao trabalho, lazer, exercício dos direitos civis e fortalecimento dos laços familiares e comunitários. Para além de focar estritamente os impasses subjetivos, a Atenção Psicossocial consiste em intercessões junto ao contexto familiar e sociocultural do sujeito, indo além do que tradicionalmente caracteriza a clínica médica.

Os CAPS são instituições [entenda-se 'Estabelecimentos'] pequenas na estrutura, mas com múltiplas formas de atendimento, que incluem visitas domiciliares, atendimento médico com fornecimento de medicação, psicoterapia, oficinas, acompanhamento terapêutico, atendimento à família, trabalho assistido e atividades de lazer. . . . Não temos internação, que é justamente o que se pretende evitar, mas quando essa se faz necessária, não nos furtamos a intermediá-la e procuramos, sempre que possível, continuar o acompanhamento do paciente [entenda-se 'sujeito do tratamento'], compartilhando a assistência com os profissionais do hospital em que ele está (Amarante 2003, p. 123).

De acordo com as diretrizes do Ministério da Saúde (2002a; 2002b), e com os as metas de produção subjetiva do PPS, esses Estabelecimentos institucionais devem ser substitutivos e não complementares ao hospital psiquiátrico. De fato, os CAPS foram pensados para ser o núcleo de uma nova clínica, produtora de singularização, que convida o sujeito à responsabilização e protagonismo em toda a trajetória do seu tratamento. Um CAPS, conforme descrito por Amarante (2003), não deve ser apenas um serviço novo, mas um "serviço inovador" na medida em que se constitui como um espaço de produção de novas práticas sociais para lidar com o sofrimento psíquico. "Ao escutar, acolher, interagir e inserir (ao invés de sequestrar, disciplinar medicalizar, normalizar) estão sendo construídas novas relações entre a sociedade e a loucura" (Amarante, 2003, p. 62).

Em 2003, com a Política de Atenção Integral aos Usuários de Álcool e outras Drogas, o Ministério da Saúde propôs a criação do CAPS ad, Estabelecimento especializado para atendimentos a pessoas em sofrimento psíquico decorrente do uso do álcool e outras drogas. O CAPS ad, assim como os outros dispositivos da Atenção Psicossocial, devido ao seu caráter não hospitalar e recusa do modelo biomédico e sintomatológico (Ministério da Saúde, 2011) deve zelar para que o agenciamento da demanda na Saúde Mental caminhe no sentido contrário à institucionalização asilar. Desde os convênios de 1973, o modelo em Saúde Mental que tenta implantar-se no Brasil não aceita ser complementar ao modelo hospitalocêntrico medicalizador dominante (Costa-Rosa, 1987).

Apesar das diretrizes citadas acima, a Lei Federal 10.216/2001, que "dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental" (Brasil, 2001), define parâmetros legais para as internações psiquiátricas, e descreve no parágrafo único do artigo 6º suas modalidades: internação voluntária, internação involuntária e ainda internação compulsória. Barros e Serafim (2009) explicam que "a essência das justificativas de uma internação está na perda da autonomia do indivíduo, decorrente de sua doença mental, que o impede de compreender e entender o caráter desadaptativo de seu estado" (p. 1). Vê-se, aliás, que o Ministério da Saúde ainda não se apropriou da terminologia e, em muito, e principalmente, da ética do PPS – o texto da Lei ainda traz o significante "Doente Mental".

Se no PPHM as "internações psiquiátricas" operam o confinamento total, no PPS as "internações psicossociais", quando necessárias, se dão em enfermarias de hospitais gerais, em CAPS III (Estabelecimentos que funcionam 24 horas) ou, quando a rede de Atenção Psicossocial ainda não foi articulada no Território, em hospitais psiquiátricos de pequeno porte, sempre em curto período de tempo.

No ano de 2011, o governo federal lançou um programa de R$ 410 milhões a fim de dobrar o número de vagas para internação de usuários de drogas. O psiquiatra Ronaldo Laranjeira (comunicação pessoal, 9 de set.), cujo instituto foi selecionado para tornar-se o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Políticas do Álcool e Outras Drogas, defende que a desospitalização, proposta pela Reforma Psiquiátrica e pelo PPS (como primeiro passo à desinstitucionalização), prejudica o tratamento dos toxicômanos. Segundo Laranjeira, instigador do movimento da Contra-Reforma Psiquiátrica brasileira, é um grande problema o fato dos CAPS não proporcionarem a internação psiquiátrica dos pacientes. Neste sentido, a equipe da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (UNIAD) firmou uma parceria com o governo do Estado de São Paulo para a construção de novos leitos. Segundo Laranjeira, as unidades são caras, mas necessárias, principalmente nos casos mais graves, como na dependência do crack (Uniad, 2010). Não obstante, a Secretaria Nacional Antidrogas (Senad, 1999) apresentou uma obra sobre aspectos básicos do tratamento da chamada "síndrome de dependência de substâncias psicoativas"; nela a mesma é considerada uma síndrome médica bem definida entre os "transtornos psiquiátricos", uma "doença crônica". O objetivo do tratamento, segundo esse guia de Atenção, é indiscutivelmente a [suposta] cura da doença.

O tratamento é uma das formas de minimizar os prejuízos que costumam ocorrer na vida do indivíduo, de seus familiares, de seus vizinhos e possíveis empregadores, do município onde este reside, enfim, da comunidade em que vive, de seu Estado bem como de seu País. Os custos da dependência exercem um peso importante no orçamento nacional. Tratar a dependência significa investir para redução destes gastos já citados. Os resultados do tratamento mais frequentemente citados são a redução do consumo de substâncias, a diminuição na utilização dos sistemas de saúde e a menor participação em comportamentos ilícitos (Senad, 1999, p. 2).

O início do tratamento segundo esse guia se dá pela promoção da abstinência: "internação pode ser aceita como a definição concreta da promoção de abstinência, por afastar o indivíduo de seu habitat, que inclui os ambientes de consumo e a própria droga" (Senad, 1999, p. 4). Marcos da Costa Leite (1999), autor da publicação, defende ainda que há situações em que a internação é obrigatória, são elas: paciente com ameaça de suicídio/comportamento autodestrutivo ou que ativamente ameaça a integridade física de outros; com sintomas psiquiátricos graves (psicose, depressão, mania); com complicações clínicas importantes; necessidade de internação por dependência de outra substância, por exemplo, a desintoxicação do álcool; falhas recorrentes na promoção da abstinência em nível ambulatorial e para aqueles que não possuem suporte social algum, ou seja, seus relacionamentos são exclusivamente com outros usuários. "A internação é indicada por se constituir em refúgio mais seguro para pacientes menos capazes de resistir por conta própria às fissuras pelo consumo de drogas" (Senad, 1999, p. 5).

Podemos ver o quanto os discursos ideológicos dos órgãos governamentais são repletos de lacunas; vemos paradigmas dialeticamente opostos operando concomitantemente, com diferenças essenciais nas concepções do 'objeto' e dos 'meios' de trabalho, assim como nos efeitos típicos em termos terapêuticos e ético-políticos. Isso ilustra o quanto a Reforma Psiquiátrica brasileira tem sido um processo complexo, um conjunto de práticas ainda intermediárias entre o PPHM e o PPS (Costa-Rosa, 2013b), visando, na melhor das possibilidades, uma transposição. Nesse ponto (d)enunciamos a natureza do PPHM enquanto instituição, que nem sempre se manifesta em sua forma concreta (manicômios, correntes e muros), mas que opera como uma "lógica de assistência", segundo o estabelecimento de normas, de regras: "manicomial" é bem menos um efeito de certas instituições com muros e correntes e mais referente a uma lógica paradigmática de tratamento.

Esta pesquisa, ao apresentar a realidade concreta de um CAPS ad, pretende ser importante para a discussão sobre a "assistência" prestada na SMC no contexto da Atenção Psicossocial, particularmente no tocante ao alcoolismo e às toxicomanias. Pretende ser relevante também para o aprimoramento dos dispositivos institucionais que buscam superar o PPHM dominante.

Na grande maioria dos CAPS ad, seguindo o princípio doença-cura, a toxicomania ainda é concebida pelo viés biomédico-curativo do DSM IV, sendo denominada como "dependência química"; por isso o foco das ações tem sido a abstinência da droga como via de adaptação ao social e recuperação adaptada da saúde. Por um viés Outro, o PPS, pautado principalmente nos referenciais da psicanálise, não "trata" a "dependência química", já que concebe essa problemática como "impasse da subjetivação" que demanda equacionamento simbólico; atenta, sim, à fala de um sujeito que sofre, abrindo possibilidades para a produção de subjetividadessaúde singularizada. Assim, encontraremos nos trabalhos de Costa-Rosa (1999; 2000; 2012; 2013c; 2013e) ao propor o Paradigma Psicossocial e, portanto, os referenciais teórico-técnicos e ético-políticos que possibilitem tal superação. No PPS, para além da Clínica do Cuidado proposta pela Reforma Psiquiátrica, que trata estritamente do sujeito de direitos, sujeito da consciência, Costa-Rosa (2012) propõe uma Clínica do Sujeito do [desejo] inconsciente, em que mesmo a chamada loucura e as "doenças mentais" são re-nomedas. Trata-se, agora, de impasses da subjetivação em processamentos subjetivos específicos que demandam intercessão.

 

O Discurso do Mestre e a Ética da Tutela como laços sociais de produção

Na experiência e realidade do CAPS ad em questão, assim como também constatou Jurandir Freire Costa (1996) ao pensar sobre outras instituições, as éticas e discursos que organizam a assistência prestada não se apresentam de modo estanque, misturam-se e até mesmo adquirem configuração outra mediante outro enquadre. Todavia, para além da análise proposta por esse autor, pretendemos ainda mostrar que, mesmo nas psiquiatrias reformadas, a dominante continua sendo a Ética da Tutela paramentada pelos Discursos da Mestria (Costa-Rosa, 2012).

De acordo com a tese de Jacques Lacan sobre a ética e os discursos como laços sociais (Costa-Rosa, 2013c) – na qual os discursos são, mais além da sua consistência de enunciados, concebidos como modos de produção –, toda relação, toda forma de fazer enlace social, vai ocorrer a partir de um desses discursos: o Discurso do Mestre, o Discurso da Universidade, o Discurso da Histeria e o Discurso do Analista. Consideremos que esses discursos direcionarão a ética e, portanto, serão decisivos para os tipos de "cuidados" oferecidos e os efeitos ético-políticos obtidos.

Na posição de angústia e sofrimento em que o sujeito chega ao CAPS é comum sua tendência em considerar os trabalhadores a quem se dirige como portadores de um saber de mestria sobre o que lhe acontece. Segundo Costa-Rosa (2013c), o futuro do tratamento dependerá do lugar ocupado pelo outro a quem se dirige esse sujeito. Se o trabalhador se posiciona como agente de saber, que pode rapidamente prover um "suprimento" para sua queixa, ocorre apenas o tamponamento da divisão subjetiva inicial que fez com que o sujeito buscasse ajuda. Assim, no laço social Discurso do Mestre, temos o mestre que agencia o outro (sujeito do sofrimento) como detentor de um saber-fazer consciente, impulsionando-o a produzir um saber que lhe será expropriado e útil apenas ao mestre. É a partir desse saber (consciente) que uma ordem, uma intervenção terapêutica disciplinar, será proferida; nota-se que é o profissional-mestre quem trabalha, o que nos leva à conclusão imediata de que no Discurso do Mestre a consequência é um cura ativo para o sujeito (Périco, 2014). A ação de mestres supridores sempre implica na administração imediata de algum tipo de objeto-suprimento, que pode ser o medicamento, a internação, uma orientação, dentre outros, comumente com a finalidade de buscar, pela des-implicação subjetiva do sujeito, o funcionalismo e a adaptação ao instituído social dominante (Costa-Rosa, 1999, 2000, 2013a, 2013c; 2013e).

Para melhor compreensão, tomemos como exemplo o que cotidianamente acontece no CAPS ad no contexto do PPHM: o sujeito (toxicômano ou alcoolista) chega à instituição dilacerado pelos conflitos que atravessa e pelos quais é também atravessado; nesse momento especialmente difícil, coloca o profissional que o atende num lugar "transferencial" imaginário de quem detém o saber e o poder para curar. O trabalhador, valendo-se dos seus saberes enciclopédicos e pedagógicos, crente de que conhece tanto o problema quanto a solução, responde à expectativa do sujeito do sofrimento, assumindo a postura de mestre; e no papel de ator principal, prescreve uma intervenção, comumente o encaminhamento para internação e/ou a medicação. Ao lado do Discurso do Mestre está a Ética da Tutela que contempla a causalidade fisiológica do sofrimento psíquico em detrimento da subjetividade do sujeito que sofre. Este é visto como destituído de razão, demanda ou vontade. Na Ética da Tutela e no Discurso do Mestre, pilares do PPHM, não há espaço para o protagonismo necessário do sujeito no processo de "tratar-se" e, ainda, na dimensão da produção do saber novo (inconsciente) sobre o sofrimento do qual se queixa (Costa-Rosa, 2013c).

Como não ver que a ética tutelar, ao tomar, em ato, como objeto o indivíduo que procura a psiquiatria nos momentos críticos de sua vida, acaba por inseri-lo irreversivelmente na mais cruel objetificação? . . . essa psiquiatria insere o sujeito a um só tempo nas cadeias do lucro (consumidor dos produtos da gigantesca e próspera indústria químico-farmacêutica) e nas cadeias da produção-reprodução da subjetividade serializada em suas diferentes modalidades da massa alienada (Costa-Rosa, 2012, p. 747).

Na psicanálise de Freud desdobrada por Lacan fica esclarecido que a cura, entendida como a possibilidade de "cuidar-se" (Lacan, 2005 citado por Costa-Rosa, 2013c), advém desse saber, inicialmente vislumbrado como pertencente ao trabalhador da Saúde Mental. Ao ser colocado no lugar de mestre supridor, é necessário que o trabalhador compreenda que a suposição de seu saber-poder é consequência da alienação daquele que sofre e demanda. Só assim ocorrerá o que entendemos por "transferência de trabalho" e o protagonismo será devolvido ao "sujeito do sofrimento". Trata-se aqui de vislumbrar a instalação da transferência na sua dimensão Simbólica, como transferência de trabalho, para além da sua versão imaginária inicial (Miller, 1989).

Como propõe Costa-Rosa (2012; 2013c), as transformações discursivas abrem espaço para possibilidades de mudanças nos diferentes modos de organizar o processo de produção da Atenção ao sofrimento psíquico. "Diferentes modos de produzir implicam em diferentes resultados produtivos, isto é, em diferentes formas dos produtos" (Costa-Rosa, 2012, p. 750).

A Ética da Atenção Psicossocial, como ética do desejo, isto é, do bem-dizer(-se), supõe que o sujeito possa situar-se no lugar do trabalhador principal do processo de produção da Atenção. Para isso, ele deve ser considerado "como indivíduo com inconsciente, e como possibilidade de produzir constantemente sentido novo para diferentes injunções sociais e subjetivas do cotidiano" (Costa-Rosa, 2012, p. 750). A visão de sujeito consoante com a ética singularizante do desejo ruma no sentido da recuperação da capacidade autopoiética, contemplando a possibilidade de produção de novos sentidos, de novas formas do sujeito se relacionar com seu sofrimento/sintoma, e com a "dor de existir", ou seja, com "isso" que na subjetividade demanda interminavelmente um ato de subjetivação. Significa ainda, por consequência, outras formas do sujeito se posicionar crítica e socioculturalmente (Costa-Rosa, 2012): implicação subjetiva e implicação sociocultural.

Pois consideramos que na produção de saúde psíquica, ou seja, na produção de sentidos para as injunções e impasses da vida cotidiana e da subjetividade, só os sujeitos do sofrimento podem ser os principais produtores, redobrando-se, desse modo, esses efeitos de subjetivação. Onde há protagonismo pode-se abrir a possibilidade de escolha; escolha dos sentidos para subjetivação. Pode-se abrir a dimensão desejante (Costa-Rosa, 2013c, p. 234).

Na Estratégia Atenção Psicossocial, a "saúde" é tida como resultado dos processos de produção social da vida cotidiana num Território, de maneira que nunca será uma resposta pronta disponível nos Estabelecimentos institucionais de Atenção (Costa-Rosa, 2013d). Mesmo o ideário do SUS já deixa evidente que toda prática em Saúde supõe lidar com a dimensão subjetiva, e é exatamente esta a exigência que se faz para superarmos as falhas neste campo. Desde já, podemos esboçar a conclusão de que o CAPS ad funcionando no Discurso do Mestre e na Ética da Tutela não pode recuperar a subjetividade que interessa à ética da Atenção Psicossocial em termos de produção de "subjetividadessaúde" singularizada.

 

O CAPS ad como dispositivo de produção social de subjetividade

As instituições são agenciamento das pulsações da Demanda Social, são locais para tratamentos de saúde, educação, assistência social, entre outros; um conjunto de mobiliários e arquitetônicos articulados por um discurso ideológico que enuncia a função da instituição em questão (Costa-Rosa, 1987).

Baremblitt (2002) sugere-nos pensar as instituições também como lógicas, normas que compõem um paradigma de assistência ou de tratamento. Um pouco mais além, entendendo a instituição resultado da Formação Social, Luz (1979) a define como "palco de luta social". Aqui, recorremos ao conceito de Processo de Estratégia de Hegemonia (PEH) de Gramsci (Gruppi, 1978; Costa-Rosa, 1987), mecanismo no qual uma classe social, o polo dominante, mantém a hegemonia de seus interesses em detrimento dos interesses de outra classe social, o polo subordinado. Neste sentido, Costa-Rosa (1987) situa as instituições como peças fundamentais do PEH, pois, no âmbito de suas práticas, podem tanto garantir a (re)produção das relações sociais dominantes, ou seja, manter o instituído (caso das instituições do PPHM), quanto produzir novas relações intersubjetivas, e assim imprimir um movimento Outro, uma transição paradigmática, uma revolução discursiva (caso das instituições do PPS).

Em sua proposta de Análise Institucional, partindo da filosofia de Hegel, Lourau (1975) aponta três momentos do conceito de instituição: universalidade, particularidade e singularidade. Por universal temos o discurso ideológico, por exemplo, no caso dos CAPS ad: "substituir as internações em hospitais psiquiátricos" – temos a função institucional positiva; como particularidade temos as práticas, que podem apontar as lacunas do discurso e serem contraditórias entre si, revelando a negatividade: internações psiquiátricas frequentes. Por último, a singularidade que é resultante da articulação do universal com o particular – discurso e práticas. Como enunciado no parágrafo anterior, é no âmbito das práticas que surgem os embriões da alternatividade, das novas formas de Atenção ao sofrimento psíquico, que avancem para-além da inclusão social, e, sem desconsiderar o sujeito de direitos, deem voz ao sujeito do [desejo] do inconsciente. Vislumbramos que nas brechas do PPHM dominante possam ser construídas instituições que ofertem possibilidades transferenciais de tratamento de natureza simbólica; instituições que possam ser efetivamente dispositivos de produção social de "subjetividadessaúde" singularizada.

Para melhor posicionar o CAPS ad como dispositivo de produção para os impasses de subjetivação apresentados pelos sujeitos que a ele recorrem com demandas de ajuda convém citar o conceito de Modo de Produção como "o modo do conjunto das formas de produzir bens materiais diversos, como modo de ser de um processo produtivo; mas também como conceito teórico que abrange a totalidade social" (Costa-Rosa, 2013e, p. 12). Logo, o modo de produção será também um instrumento para interpretação de uma realidade social (Fioravante, 1978). Chamaremos produção a todo processo de transformação que ocorre mediante atividade humana, seguindo o que propôs Costa-Rosa (2013e) em sua tese sobre os modos de produção das instituições na SMC.

Neste ponto é necessário elucidar que para o trabalho nas instituições de Saúde Mental nos valemos da ideia de que os modos da produção social ampla e os modos de subjetivação guardam relação direta, pois ao "fazer" o sujeito faz a si mesmo (Costa-Rosa, 2013e). De acordo com Costa-Rosa (2000), a produção das instituições, no caso do CAPS ad, poderá ter estatuto diferente, dependendo da natureza do modo de produção em questão (PPHM ou PPS), a saber: no caso do PPHM o resultado da produção é a realização indireta da mais-valia – ou seja, a mais-valia de outros setores produtivos; primordialmente, o da indústria químico-farmacêutica – e a "subjetividadessaúde" alienada (produção sob a forma de reprodução das relações sociais dominantes); ou, no caso do PPS, a produção de novas formas de relacionamento social e intersubjetivo, que é produção de "subjetividadessaúde" singularizada. Só nesta última modalidade de produção o CAPS ad poderá ser considerado um dispositivo de produção sintônico com a ética da Atenção Psicossocial.

É quase desnecessário dizer que o objetivo do PPHM é a adaptação, a correção, a normalização, a manutenção do instituído social e hegemonia dos interesses da classe social dominante. Portanto, as formas de subjetividade que produz não poderiam ser outras além das serializadas, capitalísticas, alienadas; isto porque, visando à funcionalidade e à manutenção do status quo social, sendo regido pelo laço social Discurso do Mestre e pela Ética da Tutela, limita-se a ofertas transferências de tratamento de natureza imaginária, que não passam de operações de sutura, de tamponamento subjetivo, pois consideram apenas o saber psicológico consciente. Por outro lado, no PPS só há espaço para a produção de subjetividades singularizadas. Aliás, caminhando no sentido do fortalecimento das diretrizes de integralidade, protagonismo, controle social, clínica ampliada, igualdade, universalidade e equidade, enunciadas pelo SUS.

Concebemos que não há produção de subjetividadessaúde sem passar pela instituição como intermediário necessário ao tratamento, de maneira que os modos de produção das instituições, sustentados por um paradigma, uma Ética e modalidades de Discursos são diretamente responsáveis pelos processos de subjetivação, pelas formas de subjetividades e consistências de saúde aí produzidas.

 

METODOLOGIA

Essa pesquisa é tanto quantitativa quanto qualitativa, tendo como pano de fundo o raciocínio dialético (Froda; Ribeiro; Costa-Rosa; Luzio, 2007; Froda; Costa-Rosa, 2009). Como análise das Formações Sociais é capaz de abordar os Modos de Produção quanto a seus funcionamentos e transformações (Althusser & Badiou, 1979). Esses fatos vão representar a práxis institucional, na qual se observa as relações entre a teoria e a prática (Froda & Costa-Rosa, 2009, p. 131). Nossa Intercessão-Pesquisa, no espírito da dialética, pretendeu "apreender" o movimento institucional, as relações interprofissionais, as implicações terapêuticas e o movimento dos "sujeitos do tratamento" que recebem a Atenção. É importante dizer ainda que esta modalidade de pesquisa é, não por acaso, necessariamente congruente com os referenciais teórico-técnico e éticos do Paradigma Psicossocial.

A estatística dos dados referentes às internações em hospitais psiquiátricos e Comunidades Terapêuticas, realizadas durante o ano de 2011 pelo CAPS ad, foram conseguidas por meio de consulta aos prontuários e a outros documentos da instituição. As informações quanto aos encaminhamentos para internação são registradas individualmente em cada prontuário e também trabalhadas no programa de planilhas eletrônicas do Microsoft Office Excel para compor o Relatório Anual de Produção do CAPS ad.

Já que um de nós era trabalhador atuante neste Estabelecimento de Saúde Mental, vivenciando de forma ativa o cotidiano institucional, utilizou-se a ética do Dispositivo Intercessor (Stringueta & Costa-Rosa, 2007; Périco, 2014), na medida em que ao trabalhador-intercessor-pesquisador é absolutamente claro que no momento da práxis não se tratava de pesquisa: tratava-se de Intercessão nos processos dinâmicos em ato junto aos "sujeitos do sofrimento" e ao contexto institucional. Na tentativa de impor-nos ao PPHM, criticamos seus modos de produção, inclusive de produção de conhecimento (pesquisa), que prioriza o raciocínio cartesiano, a separação entre fazer-saber e a objetificação dos sujeitos. Assim, propomos fazer pesquisa visando à transformação singularizada da realidade, não apenas conhecer por conhecer.

Périco (2014), partindo das produções de Costa-Rosa, define que o Dispositivo Intercessor (DI), como Intercessão-Pesquisa, deve ser concebido em dois momentos específicos: 1) a Intercessão (Dispositivo Intercessor como Modo de Produção de subjetividade singularizada), em que o trabalhador intercede tanto nos processos de produção de subjetividade singular "protagonizada" pelos "sujeitos do tratamento" quanto nos coletivos de trabalho junto à equipe intreprofissonal; 2) e a Pesquisa (Dispositivo Intercessor como Modo de Produção do "conhecimento"), realizada necessariamente a posteriori, que visa produzir uma reflexão de estatuto epistemológico sobre o processo de produção do saber na práxis. Ressalta ainda que:

Estes dois momentos bastante delimitados do DI são inspirados no horizonte ético da psicanálise que visa o drible dos discursos da Opressão/Reprodução (Discurso do Mestre, Discurso da Universidade e Discurso do Capitalista) no qual se baseia sobremaneira a Ciência, para somente assim possibilitar a colocação do sujeito no seu devido lugar de trabalho e "protagonismo" no processo de produção de subjetividade (Périco, 2014, p. 21).

 

RESULTADOS E DISCUSSÕES

No ano de 2011 foram realizadas 86 internações, sendo 81 delas em hospitais psiquiátricos e 5 em Comunidades Terapêuticas religiosas8. 28 internações foram indicadas já no primeiro contato com o sujeito, imediatamente após a avaliação, sem que antes se tentasse outros modos de ofertas transferenciais e o tratamento no Território. 58 internações foram de pessoas que estavam em tratamento ou que já havia frequentado o CAPS.

Em todos os casos foi dada orientação ao familiar e ao sujeito que este retornasse após o período de internação para continuar o tratamento no CAPS ad, entretanto, em 93,02% dos casos os sujeitos não retornaram após a alta do hospital psiquiátrico; os sujeitos de 3 internações retornaram num segundo momento referindo recaída, e apenas a 3 internações foi dada continuidade ao tratamento no CAPS ad antes que houvesse recaída.

Para melhor aproveitamento, a discussão dos dados será dividida em tópicos:

Internação como resposta a priori

Para 38,56% dos sujeitos que passaram por avaliação técnica a internação psiquiátrica foi a primeira oferta de tratamento, o que demonstra a prática típica do PPHM da internação/medicalização como resposta a priori. Isso já é suficiente para apontar o germe da contradição do discurso universal do CAPS de desospitalização, teoricamente embasado nos preceitos da Reforma Psiquiátrica.

Em sua dissertação de mestrado, Costa-Rosa (1987) nos fala que a definição da "missão institucional" é influenciada pelo imaginário social, e este também se constrói por influências da instituição na medida em que as formas de continência oferecidas (ofertas de transferência) por ela são determinantes sobre a maneira como as demandas de ajuda se expressam. Ou seja, se o tratamento oferecido pelo CAPS ad reincide continuamente na internação, não nos causa estranheza que ela seja eminentemente solicitada por aqueles que recorrem ao Estabelecimento, pois a percepção dos mesmos acerca das ofertas da Atenção presentes no Território influencia decisivamente na forma como suas demandas se apresentam, neste caso na forma de queixas-internações. Assim, pautados nos ensinamentos básicos do Materialismo Histórico e da Psicanálise, podemos inferir que a oferta de tratamento gera a demanda. Ressaltamos ainda que dos que tiveram a internação como primeira intervenção terapêutica, nenhum retornou ao CAPS ad.

Internações psiquiátricas dos sujeitos em tratamento no CAPS ad

Esse dado particularmente nos chama muito a atenção. Ao longo do ano foram realizadas 58 internações de sujeitos que estavam ligadas à instituição, o que evidencia claramente as falhas do CAPS, bem como da Rede territorializada como um todo, em dar continências singularizantes às demandas pelas quais são interpelados. Segundo Amarante (2003) "os CAPS estão estruturados de forma a ter uma grande maleabilidade, podendo lidar com . . . qualquer situação na assistência àqueles que, em outros tempos, estariam condenados a passar seus dias entre as paredes de um hospital psiquiátrico" (p. 123). Na prática não é isso que constatamos, pois, apesar das insistentes intercessões na práxis cotidiana do CAPS em questão, no geral, constatamos fracassos quanto à possibilidade de "ofertas de transferências" singularizantes, fracassos esses expressos no auto índice de (re)encaminhamento para internações psiquiátricas.

O fracasso das internações

Em 93,02% dos casos o sujeito não retornou ao CAPS ad após a alta do hospital psiquiátrico, ou seja, não foi dada continuidade ao tratamento. Segundo Costa-Rosa (2012), só depois do fracasso da operação de tamponamento – no caso a internação feita para a eliminação/tamponamento, do real angustioso – o sujeito poderá reeditar seu pedido. Temos observado que geralmente isso ocorre depois de vivenciar a recaída. Isso é um problema porque ao se fazer a operação de sutura da divisão subjetiva inicial que fez com que o sujeito buscasse ajuda, perdem-se inúmeras possibilidades analíticas-singularizantes.

A institucionalização manicomial é capaz de transformar as vidas dos sujeitos do sofrimento, produzindo o que Erving Goffman (1974) denominou "carreira moral do doente mental". É indiscutível o fato de que há pacientes em início de evolução que, dependendo do modo como o CAPS faz a continência de sua demanda, podem iniciar a carreira de hospitalização. São os novos candidatos à cronicidade (Amarante, 2003). A cronicidade é um dos muitos (d)efeitos de tratamento no PPHM (Costa-Rosa, 2000).

Seguindo a lógica do SUS no contexto da Saúde Coletiva, postula-se que não se deve encaminhar para uma estrutura mais complexa casos que podem ser atendidos no Território, já que isso prejudica o sujeito na medida em que cria artificialmente uma "dependência de cuidados" pela oferta desenfreada de "objetos-suprimentos" que, para ética da Atenção Psicossocial, seriam contraproducentes. Agindo assim, o CAPS está produzindo uma institucionalização iatrogênica, além do que não se capacita para absorver e tratar os casos mais graves. Tenório (2001) insiste que os CAPS devem assumir o pressuposto da tomada de responsabilidade e propor estratégias para uma rede de "cuidados" territorializados e substutivos ao asilo.

Costa-Rosa (1987) nos sugere analisar tanto a contradição entre o discurso e sua proposta prática quanto à contradição pertencente ao interior mesmo do discurso enquanto lacunas discursivas. Consideremos a repetição e a frequência dos pedidos de internação feitos pelos "sujeitos do tratamento", familiar, ou mesmo pela equipe: eles refletem o "não-sabido" institucional e apontam as lacunas do discurso ideológico do CAPS ad. A atenção prestada, pretensamente denominada Atenção Psicossocial, que na teoria é contrária às internações, na prática não se constitui essencialmente como uma contradição, é apenas uma diferença, ainda operando na mesma lógica do modelo que visa superar, o PPHM. De acordo com Costa-Rosa (1987, 2000, 2013a), poderá ser considerada contradição somente a diferença que for capaz de imprimir um sentido dialeticamente contrário àquele seguido até então. Quanto ao processo de intercessão por nós realizado no coletivo de trabalho do CAPS em questão junto à equipe interprofissional, destacamos os momentos, estrategicamente muitos pontuais, em que assinalamos essas contradições entre discurso e prática, especialmente nas reuniões de equipe que ocorriam diariamente para discussão dos Projetos Terapêuticos Singulares. Das muitas contradições vivenciadas surgiram as primeiras inquietações que inspiraram este artigo. É válido, ainda, dizer que dessa experiência de intercessão surgiram muitas reflexões a cerca da Saúde Mental Coletiva, que estão sendo desenvolvidas em outros trabalhos.

Na atual conjuntura, com exceção talvez de pequenas práticas micropolíticas de nossas intercessões na práxis (tanto mais diretamente junto aos "sujeitos do tratamento" quanto junto ao coletivo de trabalho), não é possível dizer que a produção social do CAPS ad em questão tem sido a subjetividade singularizada. Embora haja práticas que se supõem serem pautadas no PPS, em suma as produções institucionais dividem-se em produção mais-valia sob forma indireta, ao inserir o paciente em um circuito de consumos de psicofármacos, e (re)produção das relações sociais dominantes, explícitas nas relações que geram exclusão e expropriação do saber e que mantêm a hegemonia do Modo Capitalista de Produção, com sua subjetividade serializada e seu paradigma de cuidados psiquiátrico, hospitalocêntrico e medicalizador.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao realizar a leitura institucional, dos dados referentes às internações, discurso universal, particularidades e singularidades do Caps ad, pôde-se avaliar que o trabalho da equipe é dificultado pela falta de referenciais teórico, técnico e éticos de matizes singularizantes, que possam colocar em xeque o PPHM.

Nas reuniões interprofissionais, evidenciou-se que as discussões acerca da Reforma Psiquiátrica e do PPS não fazem parte do conhecimento coletivo, já que a maioria dos trabalhadores ainda desconhece essa perspectiva, reiterando a hegemonia do PPHM. Vê-se com isso, inclusive, a extrema urgência da reformulação de currículos das Universidades, formadoras de "trabalhadores de um novo tipo", necessários a esse insurgente campo paradigmático na SMC.

A amplitude do processo de Reforma Psiquiátrica brasileira tem sido reduzida a apenas um sinônimo de modernização das técnicas terapêuticas ou como humanização das características violentas dos manicômios, como descreveu Amarante (2003), denotando apenas a passagem de uma "sociedade disciplinar" a uma "sociedade de controle", como bem nos alertou Deleuze (1992). Tanto que, embora exista o reconhecimento do CAPS ad como Estabelecimento institucional substituto às práticas asilares, a internação é bastante aceita e solicitada pela equipe de trabalhadores.

Disso, destacamos que não é suficiente mudar os 'meios' de trabalho ou o nome dos Estabelecimentos de Saúde: é preciso mudar radicalmente o Modo de Produção da Atenção destes. Como supunha Costa-Rosa (2000), apesar de todas as lutas na esfera político-ideológica e também das inovações teórico-técnicas para superar o PPHM, este é ainda hegemonicamente dominante, mesmos nos Estabelecimentos pensados para serem representativos do PPS, como os CAPS ad. Isso nos leva ao fato de que não basta mudar os nomes das instituições; é preciso mudar os Modos de Produção, a lógica e a ética do tratamento.

 

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Recebido: 23 de dezembro de 2013.
Aprovado: 28 de maio de 2014.

 

 

Notas

1 Esse significante, conforme proposto por Costa-Rosa (2012), condensa subjetividade e saúde, indicando que subjetividade e saúde são absolutamente, e necessariamente, homólogas e indissociáveis. No campo da Atenção à Saúde como um todo, ele é sinônimo de "saúdessubjetividade".
2 Conforme o ideário da 8° Conferência Nacional de Saúde de 1986, o Território é concebido, para além do espaço físico, como espaço vital: econômico, político, sociocultural e subjetivo; o que, aliás, justifica a necessidade da descentralização político-administrativa (municipalização) da Saúde (Conferência Nacional de Saúde, 1986).
3 O conceito de Demanda Social, juntamente com o de encomenda social, são utilizados de acordo com sua aplicação no campo da Análise Institucional (Lourau, 1975). A Demanda é o conjunto de pulsações, produzido pelo antagonismo das forças em jogo no espaço socioeconômico e cultural, antagonismo entre o polo dominante e o polo dominado na luta de classes. Geralmente as pulsações da Demanda Social são transmutadas, depois de sofrerem o efeito da ideologia capitalista, em encomendas sociais que, além de fazerem calar os conflitos subjetivos e sociais, podem se apresentar como novas estratégias de (re)produção da opressão (Périco, 2014). Em relação aos tratamentos psíquicos em Saúde Mental, a tradução das pulsações da Demanda Social em pedidos de ajuda (encomendas) depende dos modos de representação do que seja o que "falta" e da representação do que seja o que se pede; depende, portanto, da representação das "ofertas de tratamento" à disposição (Costa-Rosa, 2013a). Se o Paradigma hegemônico responde diretamente às encomendas (por exemplo, dando remédio a quem demanda remédio), o Paradigma Psicossocial as questionam constantemente a fim de que possa interferir na Demanda Social da qual são efeitos; reavivando, inclusive, a dimensão crítica sempre presente nas crises (Costa-Rosa, 2012).
4 O conceito de discurso aqui refere-se aos discursos como laços sociais de produção de Jacques Lacan (1992), utilizados por Costa-Rosa (2013a) como ferramenta de análise das estruturas produtivas e modos de produção da Atenção na SMC.
5 Neste ponto é imprescindível mencionar que nesse paradigma Outro não há espaço para as psicoterapias e terapias ocupacionais autoritárias, ou seja, todas as que trabalham com a disciplinarização de comportamentos pelo viés do sujeito racional; mesmo aquelas que supostamente se inspiram na psicanálise que, de forma geral, denominam-se de "orientação psicanalítica". Trabalhos atuais vêm sendo produzidos no intuito de implementar, a partir da práxis, essa modalidade Outra de terapia ocupacional (Shimoguiri, 2014) e psicoterapia, necessárias ao PPS, nas suas versões de atendimento individual (Périco, 2014) e em grupo (Costa-Rosa, 2013c; Pratta & Costa-Rosa, 2011).
6 Os três outros parâmetros mínimos sugeridos por Costa-Rosa (2013a), para uma análise paradigmática das práticas na SMC, são: "modos de organização das relações intrainstitucionais e interinstitucionais; modos de relação da instituição com a clientela, a população e território; modos dos efeitos produtivos típicos da instituição em termos de terapêutica e de ética" (p. 79-90). Apesar deles não serem abordados diretamente neste artigo – por uma questão de espaço –, merecem ser profundamente estudados.
7 Aqui se faz necessário uma ressalva que não se apresenta claramente nas práticas da Reforma, mas que não escapa ao olhar atento dos que se pautam na análise paradigmática proposta por Costa-Rosa: esse "objetivo", no PPS, apresenta-se mais como efeito do tratamento ofertado; ou seja, a "reinserção social" jamais poderá ser uma imposição daquele que está na função de "intercessor clínico" do sujeito.
8 Prática avessa à ética da Atenção Psicossocial (Costa-Rosa, 2012), dado que o tratamento pelo discurso religioso desimplica o sujeito do impasse subjetivo em questão, des-implicação que impossibilita o equacionamento simbólico e o reposicionamento sociocultural crítico do sujeito.