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Revista de Psicologia da UNESP

On-line version ISSN 1984-9044

Rev. Psicol. UNESP vol.14 no.2 Assis July 2015

 

Artigo

 

Uma nota sobre as paixões em Descartes: psicologia filosófica e história da Psicologia1

 

A note about the passions in Descartes: philosophical psychology and history of psychology

 

 

Paulo Gilberto BertoniI

I Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia

 

 


RESUMO

Este trabalho trata das paixões. Seu primeiro intuito é apontar o tratamento do tema a partir da filosofia moderna, mais especificamente com o filósofo francês René Descartes (1596–1650). Seu objetivo complementar, e provavelmente mais fecundo, é sugerir que o exame de Descartes sobre as paixões apresenta-se como uma psicologia filosófica, que propicia um interessante diálogo com o projeto da Psicologia a partir do século XIX.

Palavras-chave: paixão; Descartes; psicologia filosófica; história da psicologia.


ABSTRACT

The subject of this paper is passions. Its first aim is to present how the theme was treated in modern philosophy, specially with the french philosopher René Descartes (1596-1650). Another purpose intended, perhaps its most interesting aspect, is to show that Descartes’s exam of the passions is a kind of philosophical psychology that permits an interesting dialogue with the scientific project of Psychology after 19th century.

Keywords: passion; Descartes; philosophical psychology; history of psychology.


 

 

Introdução

Esclareçamos, antes de qualquer outra coisa, o tema de que trataremos. A etimologia da palavra paixão remete à origem grega pathos ou ao equivalente latino passio e sugere, em ambos os casos, uma relação com passividade e sofrimento (Pinheiro, 2008). É preciso destacar, todavia, que, em sua origem, o sentido dessa expressão é substancialmente mais amplo do que estamos inclinados a aceitar agora.

No vocabulário filosófico, encontramos três acepções mais comuns ligadas ao termo paixão (Ferrater Mora, 2004). Em primeiro lugar, e de forma mais geral, podemos destacar a paixão como uma das categorias listadas por Aristóteles. Trata-se, com mais precisão, daquela que se relaciona com a ação. Se o agir é uma propriedade que se pode identificar em algum ente, também o é a capacidade que tem de sofrer uma determinada ação; ou seja, de ser afetado por ela. Podemos, por exemplo, envergar uma vareta de bambu, sendo essa uma de suas afecções2 ou paixões– não conseguimos fazer o mesmo com um objeto que não tenha flexibilidade, como um pedaço de vidro.

O segundo aspecto a ser destacado diz respeito a determinado estado produzido pela ação, não mais à capacidade do ente sofrê-la. Assim, só é possível envergar a vareta por ela ter a propriedade de ser flexível ou vergável; no entanto, o resultado da ação é o novo estado em que ela se encontra. Paixão ou afecção, nesse caso, significa a condição na qual algo se encontra ao ser afetado por uma ação. Ferrater-Mora (2004) destaca, ainda, um terceiro sentido da expressão. Trata-se de compreender a paixão não como uma capacidade ou modificação em geral, mas aquela produzida na alma ou em algum sujeito psíquico, como, por exemplo, as sensações e os apetites, bem como as emoções, como o medo ou o amor. Este último é o sentido com que o termo acabou prevalecendo, e será a partir dele que faremos nossas considerações.

Descartes aborda sistematicamente esse tema em As paixões da alma (Descartes, 1649/1973a), ainda que possamos encontrar menções ao assunto em outros textos (Descartes, 1644/s.d, 1641/1973b, 1677/2005). Trata-se de sua última obra e atribui-se a motivação para sua elaboração à relação do filósofo com a princesa Elisabeth da Bohemia, o que podemos acompanhar pela correspondência estabelecida entre eles3. Contudo, torna-se difícil identificar a dimensão dessa obra sem compreendermos, mesmo que brevemente, as questões que se relacionam com a investigação das paixões.

Antes de qualquer outra coisa, é preciso identificar o registro metafísico no qual a paixão é abordada. Não cabe aqui uma descrição do exercício da dúvida metódica, realizado na primeira das Meditações metafísicas, tampouco é possível fazer jus ao impacto da primeira das verdades estabelecidas na ordem das razões, a afirmação de que “penso, logo existo”. Passemos, então, a algumas das consequências mais polêmicas desse percurso.

O primeiro passo é lembrar a questão que Descartes se coloca após a “descoberta” do cogito: “o que sou eu”? A pergunta, feita como dúvida acerca do mundo material, ainda permanece; portanto, a resposta a ela deve ser que sou uma coisa ou substância pensante (res cogitans). Está dado o primeiro, e decisivo, passo para a afirmação do dualismo substancial entre pensamento e extensão (res extensa) ou alma e corpo, explicitado na sexta meditação. Dito de modo breve, a sobrevivência da verdade do pensamento à dúvida mais radical conduz Descartes a afirmar sua independência em relação ao corpo.

À afirmação do dualismo de direito, estabelecido pelo movimento interno da razão, segue-se, também na sexta meditação, a identificação, explicitada por um conhecimento empírico, de uma união de fato entre corpo e alma. Sigamos o texto das Meditações (Descartes, 1641/1973b):

A natureza me ensina, também, por esses sentimentos de dor, fome, sede, etc., que não somente estou alojado em meu corpo, como um piloto em seu navio, mas que, além disso, lhe estou conjugado muito estreitamente e de tal modo confundido e misturado, que componho com ele um único todo (p.144).

A natureza nos ensina, por certos sentimentos, que não simplesmente habitamos nosso corpo, mas formamos, nós, homens, com ele um todo; somos, portanto, um composto de corpo e alma4. Não é preciso muito esforço para identificar as dificuldades que tal afirmação desperta e caberá a Descartes a tarefa de esclarecer, na medida do possível, os pormenores dessa relação. Esse é, em linhas gerais, o principal problema a ser abordado, ainda que não no registro metafísico, no tratado sobre as paixões.

As paixões da alma

O tratado sobre as paixões contém três partes e foi escrito na forma de artigos, cada um deles contendo seus respectivos comentários. A primeira parte oferece uma descrição das paixões em geral e, ainda, elementos acerca da própria natureza do homem. A segunda procura uma forma ordenada5 de enumerá-las, destacando as seis paixões primitivas (admiração, amor, ódio, desejo, tristeza e alegria); por fim, a última parte elenca as paixões particulares, derivadas de ou compostas por aquelas consideradas primitivas. Para nossos propósitos, concentraremos nosso exame na primeira parte.

Descartes abre a obra com uma caracterização ampla de paixão que será gradativamente delimitada. Ele destaca, em primeiro lugar, a relação intrínseca entre ação e paixão, cuja diferenciação se estabelece por uma questão vetorial; isto é, o agente é aquele de quem parte o movimento e o paciente aquele que o recebe. Dito de outro modo, “ação e paixão não deixam de ser sempre uma mesma coisa com dois nomes” (Descartes, 1649/1973c, p.227). É preciso notar, ainda no artigo 1, sua insatisfação em relação à forma pela qual a paixão fora tratada pelos antigos, o que alerta o leitor quanto à modificação na perspectiva de abordagem do tema ao longo do texto.

Como o título do tratado revela, o objetivo de Descartes (1649/1973c) não é a paixão em geral, mas as paixões da alma, um interesse que, como destacamos, remete à sexta meditação. Para conhecê-las, devemos reconhecer, adverte o filósofo, que nada age mais diretamente sobre nossa alma do que nosso corpo e que para especificar o sentido dessa relação é necessário determinar as funções de cada uma delas.

Esse preâmbulo à exposição das paixões, que visa à delimitação das funções do corpo e da alma, segue um critério explícito: as características que puderem ser estendidas aos corpos inanimados devem fazer parte de nosso corpo; por outro lado, aquilo que não puder ser atribuído ao corpo deve pertencer à nossa alma. Nesses termos, ele já nos havia mostrado, nas Meditações (Descartes, 1641/1973b), que cabe à alma o pensamento; acrescenta agora que, ao corpo, cabem o calor e o movimento dos membros6.

Há duas consequências importantes desse esquema, que não podemos deixar de destacar7. Em primeiro lugar, o movimento deixa de ser uma qualidade da alma; ou seja, ele deixa de ser o princípio que anima os corpos. Além disso, nosso corpo é tomado como um corpo entre tantos outros, e sua investigação natural torna-o objeto de uma física particular8.

[...] julguemos que o corpo de um homem vivo difere do de um morto como um relógio, ou outro autômato (isto é, outra máquina que se mova por si mesma), quando está montado e tem em si o princípio corporal dos movimentos para os quais foi instituído, com tudo o que se requer para a sua ação, difere do mesmo relógio, ou outra máquina, quando está quebrado e o princípio de seu movimento pára de agir (Descartes, 1649/1973c, p. 228).

De forma mais precisa, as observações sobre o corpo englobam comentários de anatomia e fisiologia. Em termos anatômicos, é importante notar o conjunto de feixes (os nervos) que ligam as diferentes partes do corpo e a conformação oposta dos músculos, de tal modo que a extensão de um significa a flexão de outro. Do ponto de vista fisiológico, vale destacar o papel da circulação não apenas na produção do calor e movimentos gerais, como na distribuição dos alimentos e, principalmente, na condução dos espíritos animais9 a todas as partes.

A concentração e agitação dos espíritos animais são responsáveis pela produção do movimento dos músculos e das representações sensíveis. Para entendermos a explicação oferecida por Descartes, é necessário pensar esse processo, metaforicamente, em termos de um sistema hidráulico. Por exemplo, em um movimento de contração de determinado músculo. Descartes argumenta que isso pode ser explicado pela maior concentração dos espíritos na parte flexora (ainda que não utilize essa expressão) ao mesmo tempo que há um esvaziamento de sua parte extensora. O que importa retermos dessa exposição é, mais uma vez, a imagem do corpo como uma máquina que permite compreender uma série de reações como automatismos:

[...] de sorte que todos os movimentos que fazemos sem que para isso a nossa vontade contribua (como acontece muitas vezes quando respiramos, andamos, comemos e, enfim, quando praticamos todas as ações que são comuns a nós mesmos e aos animais) não dependem senão da conformação de nossos membros e do curso que os espíritos, excitados pelo calor do coração, seguem naturalmente no cérebro, nos nervos e nos músculos, tal como o movimento de um relógio é produzido pela exclusiva força de sua mola e pela forma de suas rodas (Descartes, 1649/1973c,p.234).10

O artigo 17 de As paixões da alma inicia a exposição das funções da alma, dividindo-as em ações e paixões. Descartes (1649/1973c) considera como ações da alma, por excelência, nossas vontades, e sua justificativa para essa afirmação está no fato de que “sentimos que [nossas vontades] vêm diretamente da alma e parecem depender apenas dela” (p. 234). Tais ações podem afetar tanto a própria alma, como nos casos em que dirigimos nosso pensamento a Deus, ou quando aplicamos nosso pensamento a qualquer objeto que não seja material, quanto o corpo, quando queremos mover um membro por intermédio da vontade. Por outro lado, considera como paixões da alma as percepções ou conhecimentos de que dispomos. Essa é a primeira e mais ampla definição das paixões da alma, apresentada por ele, que inclui as sensações, os apetites e o que tratamos por emoções.

De maneira esquemática, dividimos nossas percepções em duas espécies: aquelas que têm a alma como causa, isto é, as que são resultado das ações da alma nela própria, como, por exemplo, o querer (ou a expressão da vontade); e aquelas que têm o corpo como causa. Nesta última categoria, é preciso distinguir, primeiramente, entre as produzidas exclusivamente por processos fisiológicos (como o caso de imagens produzidas durante o sono) e as percepções que dependem “dos nervos”.

Para completarmos o inventário, devemos, ainda, subdividir essa última categoria – das percepções que dependem dos nervos – em três modalidades, de acordo com aquilo a que podemos referi-las. Assim, podemos falar em: 1) percepções referidas aos objetos externos ou percepções sensoriais; 2) percepções remetidas a partes do corpo, ou seja, nossos apetites (fome, sede etc.); finalmente, 3) percepções relacionadas à própria alma, já que, para Descartes (1649/1973c), sentimos seus efeitos “como na alma mesma” e, também, porque somos incapazes de relacioná-las com causas próximas.

Esta última categoria, cujos exemplos podem ser a alegria e a tristeza, representa a paixão da alma em seu sentido mais específico, e sua definição é dada no artigo 27.

Depois de haver considerado no que as paixões da alma diferem de todos os seus outros pensamentos, parece-me que podemos em geral defini-las por percepções, ou sentimentos, ou emoções da alma, que referimos particularmente a ela, e que são causadas, mantidas e fortalecidas por algum movimento dos espíritos (Descartes, 1649/1973c, p.237, grifos nossos).

A explicação dessa definição é dada em dois momentos11. É possível chamá-las de percepções desde que o termo seja tomado no sentido geral – não significando clareza e distinção – tal como Descartes o faz na segunda meditação, isto é, como sinônimo de qualquer tipo de conhecimento. Considerá-las sentimentos apoia-se no fato de compartilharem com as outras sensações de um mesmo processo corporal que ocorre por intermédio dos nervos. E tomá-las “melhor ainda como emoções da alma” justifica-se pela observação de que “de todas as espécies de pensamentos que ela pode ter, não há outros que a agitem e a abalem tão fortemente como essas paixões” (Descartes, 1649/1973c, p.238, grifos nossos).

Notamos que emoção parece o termo mais adequado, dado que nada parece colocar a alma em movimento mais pronta e intensamente do que essa categoria de paixão. Por essa razão, utilizaremos, doravante, esse termo para designar essa espécie de paixão.

Resta-nos, todavia, esclarecer a segunda parte da definição do artigo 27, isto é, o fato de que essa espécie de paixão seja “causada, mantida e fortalecida por algum movimento dos espíritos”12. Ao dizer que a emoção é causada por algum movimento no corpo, Descartes (1649/1973c) usa a expressão no sentido de causa próxima ou imediata, não podendo ser confundida com algum objeto ou evento que possa ter desencadeado a emoção13; o abalo e a agitação dão-se em função de movimentos corporais naturalmente instituídos no corpo. Afirmar que é mantida por tal movimento significa que, uma vez iniciada, a emoção dura enquanto durar aquele determinado arranjo dos espíritos animais nas diferentes partes do corpo. E, por fim, esse processo tende a criar um ciclo que se retroalimenta, se, por exemplo, a reflexão sobre dada situação conduzir a uma intensificação da emoção naquela direção.

Tomemos, a título de ilustração, o exemplo da alegria14. Descartes (1649/1973c) a define como “a agradável emoção da alma, na qual consiste o gozo que ela frui do bem que as impressões do cérebro lhe apresentam como seu” (p.262). É marcada por uma pulsação mais acelerada, um calor agradável no corpo, principalmente no peito, e uma coloração mais viva e mais vermelha. Isso se dá porque, nessa paixão, há uma atuação marcante dos nervos que ficam próximos ao coração, tornando mais amplos os movimentos cardíacos e, com isso, aumentando a quantidade de sangue naquele órgão. Além disso, a alegria “produz espíritos [animais] cujas partes, sendo muito iguais e sutis, são próprias para formar e fortalecer as impressões do cérebro que dão à alma pensamentos alegres e tranquilos” (Descartes, 1649/1973c, p.266). Graças a esses movimentos, organizados naturalmente assim, tais características ou sintomas da alegria tornam-se possíveis. Tais sintomas podem ser acentuados à medida que a expectativa de manutenção ou incremento do objeto tomado como um bem aumentar, de acordo com o exame do pensamento. Em outros termos, poderíamos dizer que um processo cognitivo que avalie como provável a permanência do objeto bom por mais tempo intensificaria essa emoção por intermédio do fortalecimento do movimento dos espíritos15.

Em síntese, a paixão em sentido estrito, isto é, a emoção, é explicada, em termos mecânicos, como qualquer outro automatismo, embora testemunhe, de maneira exemplar, a união entre a alma e o corpo16. Dado esse caráter, o programa de investigação seguido por Descartes (1649/1973c) visa a um esclarecimento psicofisiológico. Em outras palavras, sua tarefa consiste em definir em linhas gerais o que entende por dada emoção, como mostramos no exemplo da alegria. Indicar os ‘sintomas’ mais comuns que a acompanham – de aspectos como a pulsação, passando por características externas como a ruborização até a tendência a desenvolver determinados pensamentos – bem como explicar tais sintomas a partir dos processos corporais subjacentes.

Diante da identificação da relação “instituída pela Natureza17” dessa forma, Descartes não deixa de perguntar se há uma razão para que os movimentos se deem dessa maneira; isto é, para que servem as emoções? Sua resposta é taxativa: elas “incitam e dispõem a alma a querer as coisas para as quais lhes preparam os corpos; de sorte que o sentimento de medo incita a fugir, o da audácia a querer combater...” (Descartes, 1649/1973c, p. 242)18. Vale destacar que, para ele, as emoções não são, em si, boas ou más, não há discussão de valor acerca das emoções, apenas a constatação de seu fato, cuja consequência é a impossibilidade de abrir mão delas ou extirpá-las.

Essa posição revela, todavia, outro ponto importante de divergência em relação à tradição, cuja insatisfação é apontada no artigo 1 do tratado. Para Descartes, o conflito, que na filosofia clássica havia sido interpretado como entre partes da alma, como no caso do platonismo, ou entre instâncias da vontade, como em Agostinho, passa agora a ser tomado como aquele que envolve o corpo e a alma. É porque o corpo nos inclina naturalmente a direções que julgamos incorretas ou inoportunas que se estabelece um conflito de tendências, que, frequentemente, envolve uma apreciação de valor. Em outras palavras, o conflito sobre o certo e o errado a fazer em dada circunstância, opondo a inclinação do corpo e a vontade, coloca as emoções no centro da reflexão sobre a moral: o que podemos ou devemos fazer diante das tendências do corpo? Para Descartes, a fraqueza ou a força de uma alma dá-se pela maneira com que pode, por meio dos melhores juízos19, valer-se de suas paixões para alcançar seus objetivos; para ele, com uma boa dose de engenho e resolução, é possível aprender a domar e conduzir, de forma absoluta, nossas paixões20.

Considerações finais

A partir dessas indicações, é interessante destacar o programa que Descartes estabelece no exame das paixões (emoções).

A ligação intrínseca entre o processo fisiológico e o sentimento experimentado nas emoções faz que Descartes elenque os diferentes movimentos que as acompanham, transformando o estudo das paixões em um exame objetivo dos sintomas que elas produzem. Trata-se, portanto, de um programa de apresentação ordenada das paixões que contém, ao lado de suas definições, uma descrição dos sentimentos que elas despertam, dos movimentos corporais que desencadeiam, tanto do ponto de vista fisiológico quanto comportamental. É curioso notar que a maioria deles se apresenta à revelia do sujeito, e sobre isso só se pode dizer que foram movimentos instituídos pela Natureza.

Poderíamos olhar para a importância de Descartes no que diz respeito às paixões em, pelo menos, duas direções. A primeira delas seria apontar a novidade de sua posição em relação à tradição filosófica. Uma literatura vasta cobre essa perspectiva, destacando a fecundidade do século XVII acerca desse tema e, dentro dele, o papel do filósofo francês (Moreau, 2008; Talon-Hugon, 2002; Schmitter, 2014). Outra possibilidade é vincular, de uma maneira menos usual, a relação de Descartes com o projeto da Psicologia no século XIX, a partir de suas considerações sobre as emoções, e delinear sua influência na psicologia sob essa perspectiva.

Na Psicologia, tomemos, por exemplo, a teoria de William James. O aspecto que a faz ocupar lugar cativo nos textos de história da disciplina, bem como nos manuais, é, justamente, o reconhecimento da vinculação explícita entre estado mental e estado corporal, ou que sem corpo não há emoção (James, 1890/1981, 1884/1983). Além disso, destaque-se a sua tentativa intensa de levar a descrição introspectiva aos detalhes das transformações peculiares a cada estado, bem como a utilização dos avanços das ciências médicas do século XIX para um esclarecimento da diversidade e sutileza dos processos fisiológicos envolvidos nas emoções.

Parece-nos que essa é uma interlocução fecunda por diversas razões. Para começar, pode permitir explorar uma dimensão do filósofo francês que costuma ser menos visitada. Pode fazer-nos perguntar, por exemplo, em que medida James se aproxima de Descartes em sua teoria das emoções, contrariando o percurso tradicional que procura seus pressupostos no empirismo inglês. Por fim, como fica, na psicologia das emoções, a questão da moral?

 

Referências

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Recebido: 05 de outubro de 2015.
Aprovado: 20 de novembro de 2015.

 

 

Notas

1 Este texto baseia-se em trabalho apresentado no evento Conferências em Filosofia da Psicologia, realizado na UNESP – Câmpus de Assis, em maio de 2014.

2 Nesse sentido geral, podemos aproximar paixão e afecção.

3 A correspondência faz parte da edição das obras completas de Descartes.

4 Podemos falar, de forma mais direta, em uma união substancial. Conferir Teixeira (1990) e Pinheiro (2008, 2012).

5 O leitor de Descartes deve atentar para o peso dessa expressão. Como destacado desde as Regras para a direção do espírito (Descartes, 1701/1985), a compreensão e explicitação da ordem é o objeto da matemática universal proposta pelo filósofo francês. Conferir Regras para a direção do espírito, regra IV.

6 Não custa lembrar que se trata de retomar, em linhas gerais, aquilo que já havia sido exposto no Tratado do Homem (Descartes, 1677/2005).

7 Conferir As paixões da alma, artigos 5 e 6. Esses artigos contemplam parte da crítica cartesiana ao tratamento dado “pelos antigos” às paixões.

8 Para Pinheiro (2012), a fisiologia é entendida no século XVII como “a teoria da natureza em geral e como a parte da medicina que explica a natureza do corpo humano, pela aplicação da teoria da natureza” (p 65).

9 Os espíritos animais são as partículas materiais mais vivas e sutis do sangue, capazes de penetrar as cavidades do cérebro.

10 O movimento voluntário será tratado apenas como uma modalidade particular dentro desse esquema, embora de importância decisiva no plano moral.

11 O artigo 28 trata de sua primeira parte, enquanto o 29 aborda a segunda.

12 Conferir Artigo 29.

13 Esse aspecto é contemplado na parte II do tratado sobre as paixões. Conferir Artigo 51.

14 Conferir artigos 91, 104, 109, 115, 141 e 142.

15 Isso seria possível dada a ação da alma (pensamento) no corpo via excitação dos espíritos na glândula pineal.

16 Para a descrição psicofisiológica da união, Cf. artigos 30, 31, 34 e 136.

17 O conceito de Natureza torna-se fundamental para a compreensão do tema. Parece-nos que o ponto de partida para esclarecê-lo é o parágrafo 22 da Sexta Meditação: “por natureza, considerada em geral, não entendo agora outra coisa senão o próprio Deus, ou a ordem e a disposição que Deus estabeleceu nas coisas criadas. E, por minha natureza, em particular, não entendo outra coisa senão a complexão ou o conjunto de todas as coisas que Deus me deu (Descartes, 1641/1973b, p.144).

18 Conferir, também, os artigos 52 e 74.

19 O campo das paixões é o terreno que não permite a clareza e distinção do plano teórico.

20 Conferir artigos 45, 48, 49 e 50.

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