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Revista de Psicologia da UNESP

On-line version ISSN 1984-9044

Rev. Psicol. UNESP vol.17 no.2 Assis July/Dec. 2018

 

ARTIGOS

 

A Reforma Sanitária e o Paradigma da produção social da saúde: algumas considerações sobre a Atenção Básica e o Território

 

 

Ana Flávia Dias Tanaka ShimoguiriI; Silvio José BenelliII

IDoutoranda e mestra em Psicologia e Sociedade pela UNESP- Assis, graduada em Terapia Ocupacional pela UNESP- Marília; formação em Psicanálise (Freud-Lacan). Integrante do Laboratório Transdisciplinar de Intercessão-Pesquisa em Processos de Subjetivação e "'Subjetividadessaúde" (LATIPPSS). E-mail: anaflavia_shimoguiri@hotmail.com
IIPsicólogo e mestre em Psicologia pela Faculdade de Ciências e Letras/UNESP, Assis, SP. Doutor em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia, USP/SP. Professor assistente doutor no Depto. de Psicologia Clínica e no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da FCL/UNESP, Assis, SP. Integrante do Laboratório Transdisciplinar de Intercessão-Pesquisa em Processos de Subjetivação e "Subjetividadessaúde" (LATIPPSS). E-mail: silvio.benelli@unesp.br

 

 


RESUMO

Pela crítica à Medicina Preventivista, a Reforma Sanitária introduziu uma compreensão de Saúde que contempla a sua determinação social, incluindo o Território como peça-chave para o delineamento de ações que visam à sociabilidade da Saúde. Deu-se um grande passo para o desenvolvimento de políticas públicas menos generalistas. Citamos, especialmente, como um avanço importante, a proposição positiva da saúde, como algo que pode ser promovido e melhorado, e não apenas recuperado. Nesse esteio, a Atenção Básica tem despontado como um dispositivo caro à Saúde Coletiva, razão pela qual este artigo tem como propósito apresentar a territorialização como estratégia fundamental para fazer avançar o Paradigma da produção social da saúde.

Palavras-chave: reforma sanitária; atenção básica; território; saúde coletiva


ABSTRACT

From a critic of Preventivist Medicine, the Sanitary Reform introduced a health perspective that contemplates its social determination, including the territory as an essent ial part for planning actions tha t aim the sociability of health. A major step has been taken towards the development of less generalist public policies, essentially, we cite as an important advancement the positive proposition of health, as something that can be promoted and improved, not only recovered. So, Basic Health Care has emerged as an important device for Collective Health, we aim with this article to present the territorialization as a fundamental strategy to make advance the paradigm of social production of health.

Keywords: Sanitary Reform; Basic Halth Care; Territory; Collective Health


 

 

Introdução

A palavra saúde tem sua raiz etimológica no termo latim salud e remete à ideia de integridade, de estar inteiro (Rey, 1992). Tal integridade, por muito tempo, esteve relacionada apenas ao aspecto físico e individual. Saúde era a ausência de doenças: "À medida que todos os esforços de investigação se concentravam na análise da doença, o conceito de saúde era negligenciado, ou, na melhor das hipóteses, era secundarizado" (Batistella, 2007, p. 54).

Canguilhem (2009) sinaliza os prejuízos e limitações desse prisma mecanicista e, por isso mesmo, limitado, que propaga a ilusão de uma linearidade/dualidade/causalidade impossível nas Ciências Humanas: "É compreensível que a medicina necessite de uma patologia objetiva, mas uma pesquisa que faz desaparecer seu objeto não é objetiva. (...) A clínica coloca o médico em contato com indivíduos completos e concretos, e não com seus órgãos ou funções" (p. 33-34).

Apenas em meados dos anos de 1970 passou-se a considerar outras dimensões menos organicistas, articulando-se saúde com as condições de vida. Nessa direção, foram incorporados a biologia humana + meio ambiente + estilo de vida + serviços de saúde, todos em interação, pois o paradigma emergente, denominado paradigma da produção social da saúde ou paradigma biopsicossocial, explicitou que a saúde é efeito de um processo de produção social da vida em sociedade (Mendes, 2006). A partir de então, a concepção de saúde passou a incluir a dimensão subjetiva e a social. A Organização Mundial da Saúde (OMS), organismo sanitário da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1946, definiu saúde como "estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não somente a ausência de enfermidade ou invalidez" (OMS, 1946).

No período em que emergiu o paradigma da produção social da saúde, o Brasil vivia um momento de intensas mobilizações populares que buscavam o fim da ditadura militar, portanto, o contexto era favorável para os movimentos instituintes, pautados num modelo de sociedade mais igualitária, solidária e aberta à reflexão. Assim, a Reforma Sanitária brasileira e a consolidação do SUS foram erigidas no bojo mesmo do intenso processo de redemocratização do país.

A retomada da democracia em 1985 foi seguida por dois eventos importantes, ambos realizados em 1986, o I Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva e a 8º Conferência Nacional de Saúde, na qual se afirmou que "A saúde é resultante, entre outras, das condições de habitação, alimentação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra, acesso a serviços de saúde" (CNS, 1986). Como bandeiras defendeu-se a não privatização da medicina; a unificação do sistema de saúde e sua descentralização, e a participação popular em todos os níveis e etapas da política de saúde, como uma forma de gestão compartilhada (Paim, 2007).

Simultaneamente, em 1986, aconteceu no Canadá a I Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde, um marco mundial para as reformas que estavam em curso. Nessa conferência, foi assinada a Carta de Ottawa, na qual está escrito que "As condições e os recursos fundamentais para a saúde são: Paz - Habitação - Educação - Alimentação - Renda - ecossistema estável - recursos sustentáveis - justiça social e equidade" (OMS, 1986, p. 1). Segundo esse documento, a promoção da saúde, cujas aspirações ultrapassam o mero curativismo, envolvendo necessariamente políticas sociais, deve ser colocada em primeiro plano, com fins de aumentar o índice de desenvolvimento social.

Promoção da saúde é o nome dado ao processo de capacitação da comunidade para atuar na melhoria de sua qualidade de vida e saúde, incluindo uma maior participação no controle deste processo. Para atingir um estado de completo bem-estar físico, mental e social os indivíduos e grupos devem saber identificar aspirações, satisfazer necessidades e modificar favoravelmente o meio ambiente. A saúde deve ser vista como um recurso para a vida, e não como objetivo de viver. Nesse sentido, a saúde é um conceito positivo, que enfatiza os recursos sociais e pessoais, bem como as capacidades físicas. Assim, a promoção da saúde não é responsabilidade exclusiva do setor saúde, e vai para além de um estilo de vida saudável, na direção de um bem-estar global (OMS, 1986, p. 1).

Na ocasião do I Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva, foram apontados alguns determinantes que compõem um paradigma sanitário, sendo eles: a forma de organização sanitária e das profissões, os conhecimentos científicos, as avaliações das doenças e dos direitos dos homens, a consciência popular e a integração entre saúde e sociedade (Paim, 2007). Sobre a reforma paradigmática em questão, considerou-se que:

[...] não é apenas constituída de normas processuais, de decretos, de mudanças institucionais. Deve ser um processo de participação popular na promoção da saúde, que envolva milhões de cidadãos; deve impor mudanças sociais, ambientais e comportamentais que tornem a existência mais saudável; deve mobilizar dezenas de milhares de conselheiros de regiões, de província, de municípios, de circuncisões, de quadros dos movimentos sindicais, femininos, cooperativos, juvenis e milhares de assessores e de prefeitos; deve transformar a atividade cotidiana de médicos, técnicos e enfermeiros (Berlinguer; Teixeira; Campos, 1988, In Fleury, 2015 p.3557).

Pela crítica à Medicina Preventivista, os movimentos da Reforma Sanitária introduziram uma perspectiva de sociedade mais democrática e, sobremaneira, uma perspectiva de saúde que contempla sua determinação social, a territorialidade das queixas, bem como a diligência do processo saúde-adoecimento-Atenção. Deu-se um grande passo para o desenvolvimento de políticas públicas menos generalistas, e citamos como um avanço importante a proposição positiva da saúde, como algo que pode ser promovido e melhorado, e não apenas recuperado. Igualmente, merece ênfase o fato de que essa concepção ampliada de saúde a colocou no domínio da intersetorialidade.

Para a construção do SUS, foram inestimáveis as contribuições de Giovani Berlinguer, médico sanitarista, cientista e militante político que articulou a medicina, a ciência e a política de modo singular, e que foi referência e inspiração para os primeiros atores da Reforma Sanitária no Brasil."Ao considerar a Reforma Sanitária como uma luta social, Berlinguer reafirma sua concepção ampliada na qual a transformação desejada envolve orientações culturais, institucionais, profissionais e administrativas de proteção à saúde" (Fleury, 2015, p. 3556). Os profissionais e gestores dos estabelecimentos institucionais da Saúde ocupam lugar privilegiado e estratégico para a produção social de saúde.

Outra contribuição preciosa do autor foi considerar a multideterminação da saúde por diversos fatores subjetivos e sociais, os quais estão permanentemente entrecruzados, pois, embora a experiência de vivenciar o adoecimento seja absolutamente individual, as enfermidades exigem respostas coletivas em termos de prevenção e de tratamento. Nas suas explanações, Berlinguer defendia que o sofrimento pode ser reduzido com tratamentos apropriados, que a diversidade não deve ser considerada como desvio a tal ponto de produzir marginalização, que há distinções elementares entre combater a doença e combater o doente, e que o conhecimento e a ciência devem ser voltados para a solidariedade, para a promoção de saúde e para a transformação social (Fleury, 2015).

La idea central es que la medicina y la asistencia sanitaria constituyen sólo uno de los factores que influyen en la salud de la población. En realidad, las causas principales consisten en el amplio espectro de condiciones sociales y económicas en las que viven las personas: la pobreza en sus diferentes manifestaciones, las injusticias, el déficit de educación, la inseguridad de la alimentación, la exclusión y la discriminación social, la insuficiente tutela de la primera infancia, la discriminación de género, las viviendas malsanas, la degradación urbana, la falta de agua potable, la violencia difundida, la ausencia o la inadecuada calidad de los sistemas asistenciales (Berlinguer, 2007).

A proposição da sociabilidade da saúde se contrapõe às dicotomias: doença e cura, natural e social, profilaxia e terapêutica, e exige, necessariamente, que o conceito de saúde seja revisto e ampliado. Exige, também, que sejam ampliados os referentes de ação das práticas de atenção à saúde, bem como seus meios de manuseio.

A saúde, por sua vez, envolve muito mais que a possibilidade de viver em conformidade com o meio externo, implica a capacidade de instituir novas normas. [...] As tentativas de definir objetivamente a saúde por meio de constantes funcionais e médias estatísticas produzem o apagamento do corpo subjetivo (Batistella, 2007, p. 57).

A problemática central da Reforma Sanitária foi a construção de um novo sistema de saúde que visasse a transformações estruturais que, por sua vez, implicariam mudanças nos planos jurídico-político, ideológico e cognitivo-tecnológico (Mendes, 2006). Pode-se falar na dimensão da política do SUS na medida em que as revoluções almejadas envolviam a participação dos atores sociais; em ideologia porque mudanças culturais quanto às concepções do que seja a saúde e de como ela é produzida também estiveram em pauta; e em aspectos cognitivo-tecnológicos, dada a exigência de novos meios de trabalho, conhecimentos e técnicas coerentes com o projeto da produção social da saúde.

A promoção de saúde tem se evidenciado como a prioridade programática do SUS (ao menos no discurso oficial), com ênfase na Atenção Básica, retomando as proposições de que a prosperidade, a educação, a liberdade e, fundamentalmente, a igualdade social são determinantes para se construir uma cultura voltada para a saúde (Mendes, 2006). Pereira, Barros e Augusto (2011) avaliam que, a partir da Reforma Sanitária, ocorreram transformações significativas no conceito de saúde, na compreensão sobre o processo saúde-doença, na organização do sistema brasileiro de saúde e nas práticas profissionais.

A impossibilidade de transformar a vida em uma mercadoria e a saúde em uma condição reduzida à demanda assistencial, desconsiderando os determinantes sociais da produção e reprodução das classes, será sempre revolucionária, pois estabelece a contradição que permite a formação de sujeitos políticos, aprofundamento da sua consciência sanitária, e a ação coletiva organizada em defesa de sistemas universais e solidários de prevenção, regulação e atenção à saúde (Fleury, 2015, p. 3558).

Ao longo da história, no que se refere à concepção de saúde-doença, os modelos do pensamento clínico e do raciocínio causalista constituíram a principal abordagem no imaginário social. Consequentemente, os serviços preventivos e curativos-reabilitadores ainda são as soluções conhecidas e, portanto, requisitadas. Considerando-se que as mudanças culturais profundas não acontecem em um curto prazo de tempo, o redirecionamento da ordem governativa da saúde na cidade, no sentido de concretizar o trabalho territorial da Atenção Básica, pressupõe uma transição paradigmática necessariamente lenta.

Neste artigo, o objetivo é apresentar a territorialização em Saúde, princípio doutrinário da Atenção Básica, como um modelo alternativo para o direcionamento das práticas, que pretende intervir nos determinantes econômicos e culturais do adoecimento, buscando reorganizar os processos de trabalho para confrontar os problemas desde as suas raízes, delimitando as reais necessidades sociais de saúde (Monken; Barcellos, 2005).

Contrapondo a prática de atenção médica, visamos definir a territorialização como prática sanitária decorrente de uma resposta social organizada para o enfrentamento coletivo dos problemas de saúde. Trata-se de uma prática ancorada no Território, no social, ou, conforme definiu Costa-Rosa (2013, p. 107), na "demanda integral territorializada", que, se levada às últimas consequências, pode subverter as práticas em Saúde, objetivando fazer avançar o Paradigma da produção social da saúde.

 

A Atenção Básica e o Território

No movimento de teorizar sobre a produção social da saúde referida à noção de cidades saudáveis, "algo na linha do pensar globalmente e agir localmente" (Mendes, 2006, p. 259), existe a proposição do distrito sanitário, ou território-distrito, como um conceito-chave da Atenção Básica (Brasil, 2012). Tais territórios-distritos referem-se às unidades organizacionais mínimas do sistema de saúde: "O território-distrito vai corresponder a uma microrregião homogênea, em que se estabelecem claras relações de interdependência e em que há nítido sentido de pertença cultural" (Mendes, 2006, p. 266).

A Atenção Básica é fundamental para a direcionalidade das ações em Saúde e veio como uma tentativa de implementação do pressuposto básico da Carta de Ottawa (OMS, 1986): para pensar uma cidade, ou melhor, um território, como um lugar de produção e promoção de saúde, entendida como qualidade de vida. Trata-se de planejar uma cidade saudável para todos os seus habitantes em todos os níveis, começando pelas práticas micropolíticas, pelas ações comunitárias dirigidas às microrregiões e suas especificidades.

O distrito sanitário deveria ter uma base territorial definida geograficamente, com uma rede de serviços de saúde com perfil tecnológico adequado às características epidemiológicas da sua população. Desse modo, o distrito poderia coincidir com o território do município, ser parte dele ou, ainda, constituir-se como um consórcio de municípios. Nessa última modalidade, deveria ser escolhido, dentre os municípios consorciados, aquele com maior capacidade tecnológica e resolutiva para ser a sede do distrito sanitário. Teoricamente, o Distrito Sanitário deveria ser capaz de resolver todos os problemas e atender a todas as necessidades em saúde da população de seu território (Colussi; Pereira, 2016, p. 20).

O Sistema Único de Saúde (SUS), em 2018, completou 30 anos desde sua formalização. Nessas três décadas, temos visto avanços e retrocessos no que concerne à Saúde Coletiva, assunto do relatório "30 anos de SUS - Que SUS para 2030? ", elaborado pela Organização Pan-Americana da Saúde - OPAS (2018). A publicação ressaltou a importância das práticas que elegem a Atenção Básica como ponto estratégico da Rede de Atenção à Saúde (RAS), no intuito de viabilizar sistemas de vigilância em saúde eficientes.

O enfoque na Atenção Básica, isto é, nas práticas de produção social da saúde por meio de ações de prevenção e não apenas de recuperação, homólogas ao Paradigma da Produção Social da Saúde (Mendes, 2006), não só oferece melhores resultados quanto ao prognóstico, como despende menores custos financeiros e melhora a qualidade do atendimento (OPAS, 2018), por contemplar a demanda integral territorializada (Costa-Rosa, 2013). De acordo com a OPAS, as Unidades Básicas de Saúde (UBS) e Estratégias Saúde da Família (ESF) podem atender de 80 a 90% das necessidades de saúde de uma pessoa ao longo da sua vida.

A Política Nacional de Atenção Básica - PNAB - (Brasil, 2012) inclui um amplo espectro de cuidados em saúde que vão desde a promoção, por exemplo, de uma alimentação saudável, a prevenção, como a vacinação, até a recuperação da saúde, a exemplo do monitoramento de doenças crônicas como a diabetes e a hipertensão. A PNAB visa à integralidade do cuidado, de modo que a atenção básica se responsabiliza por acompanhar o sujeito em qualquer problema de saúde que ele possa ter. Ainda que algumas patologias sejam encaminhadas a estabelecimentos de nível secundário ou terciário, é a ESF que articulará as ações desenvolvidas na RAS (Brasil, 2012).

A atenção básica caracteriza-se por um conjunto de ações de saúde, no âmbito individual e coletivo, que abrange a promoção e a proteção da saúde, a prevenção de agravos, o diagnóstico, o tratamento, a reabilitação, a redução de danos e a manutenção da saúde com o objetivo de desenvolver uma atenção integral que impacte na situação de saúde e autonomia das pessoas e nos determinantes e condicionantes de saúde das coletividades. É desenvolvida por meio do exercício de práticas de cuidado e gestão, democráticas e participativas, sob forma de trabalho em equipe, dirigidas a populações de territórios definidos, pelas quais assume a responsabilidade sanitária, considerando a dinamicidade existente no território em que vivem essas populações. (Brasil, 2012, p. 19).

Colussi e Pereira (2016) iniciam a discussão sobre a territorialização como instrumento do planejamento local na Atenção Básica à saúde com um questionamento indispensável: "Faz sentido a equipe de saúde considerar o território como mera delimitação de quem vai ser atendido neste ou naquele local, por esta ou aquela equipe? " (p. 13). Se cada Território tem as suas especificidades que esculpem seu próprio perfil demográfico, as estratégias psicossociais só poderão ser delineadas pelo conhecimento da comunidade atendida pelo estabelecimento institucional em questão, seja ele um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) seja uma Unidade Básica de Saúde (UBS).

Denominamos territorialização, em saúde, o processo de reconhecimento do território. Pode ser visto como uma prática, um modo de fazer, uma técnica que possibilita o reconhecimento do ambiente, das condições de vida e da situação de saúde da população de determinado território, assim como o acesso dessa população a ações e serviços de saúde, viabilizando o desenvolvimento de práticas de saúde voltadas à realidade cotidiana das pessoas (Colussi; Pereira, 2016. p. 29).

O Território é a pedra angular que sustenta todos os níveis das atividades humanas (econômicas, sociais, culturais, jurídicas, políticas etc.) numa comunidade. Para Barcellos (2000), "Os lugares e seus diversos contextos sociais, dentro de uma cidade ou região, são resultado de uma acumulação de situações históricas, ambientais, sociais, que promovem condições particulares para a produção de doenças" (p. 27). Godim (2011) realça que a territorialização em Saúde é "Um caminho metodológico de aproximação e análise sucessivas da realidade para a produção social da saúde" (p. 199).

A territorialização é uma ferramenta da Reforma Sanitária que propõe um modo de produção de conhecimento subversivo com relação à ciência cartesiana da Medicina Preventivista, "a atenção voltada para a produção social da saúde das populações gera a necessidade de esclarecer as mediações que operam entre as condições reais em que ocorre a reprodução dos grupos sociais no espaço e a produção da saúde e da doença" (Monken; Barcellos, 2005, p. 900).

A Atenção Básica que se desenha na sua inserção num Território inclui informações sobre as múltiplas condições de vida das comunidades; não se restringe à dimensão teórica e técnica do trabalho, mas se dispõe a ir além do conhecimento científico hegemônico, visando reorientar os saberes e práticas na área da Saúde (Brasil, 2012). A Atenção Básica se insere no cotidiano das pessoas, para compreender seus modos de viver, sofrer, adoecer e morrer.

Embora se possa pensar que a Atenção Básica é caracterizada por ações simples, porque não dispõe de maiores tecnologias hospitalares, a diversidade de situações e demandas de um distrito-sanitário exige a articulação com outros setores, por exemplo, da Educação, Assistência Social, Segurança etc. Além do que, muitas queixas que chegam aos estabelecimentos institucionais da Saúde não se encaixam no Discurso Médico (Clavreul, 1983), visto tratar-se de sintomas difusos, migratórios, que, para serem compreendidos, precisam ser escutados (e não ascultados). Nesse sentido, o Ministério da Saúde tem apontado como prioridade programática a implementação e a qualificação da Atenção Básica através da Estratégia de Saúde da Família (ESF). São objetivos da ESF:

Destacar, no atendimento cotidiano da demanda, as pessoas que merecem atenção especial - atenção a ser definida a partir do risco/vulnerabilidade, e não por ordem de chegada; Qualificar a atenção a partir de um projeto terapêutico para cada situação: marcar retornos periódicos, agendar visita domiciliar, solicitar apoio de outros profissionais, combinar atendimento em grupo ou outras práticas que potencializem o cuidado; Identificar pessoas em situação de transtorno ou adoecimento em função de discriminação de gênero, orientação/identidade sexual, cor/etnia ou estigma de certas patologias; Considerar especificidades das populações quilombolas, indígenas, assentadas, ribeirinhas, povos da floresta e presidiários, dentre outras; Garantir o cuidado aos grupos de pessoas com maior vulnerabilidade em função de agravo ou condição de vida para os quais já existem programas estruturados (pré-natal, imunização, hipertensão e diabetes, hanseníase, tuberculose, etc.); Trabalhar em articulação com outros níveis de atenção/especialidades, policlínicas, hospitais, maternidades, Centro de Apoio Psicossocial (CAPS), Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (CEREST), urgências, Centro de Especialidades Odontológicas (CEO), apoio diagnóstico, fortalecendo a rede de saúde local; Estabelecer parcerias também com outros setores, como escolas, creches, universidades, centros de assistência social e outras instituições/equipamentos sociais da região e organizações do movimento social/comunitário; Estimular e possibilitar que a equipe conheça, discuta e avalie os diversos relatórios com os dados produzidos, periodicamente, para que estes gerem informação útil no sentido de apoiar o planejamento, o monitoramento e a avaliação e compartilhá-los com a população (Brasil, 2009, p. 17-18).

A ESF consiste no estabelecimento fundamental da territorizalização como ferramenta importante para avaliar o distrito-sanitário e traçar planejamentos que considerem prioritariamente as áreas de risco, aqueles lugares em que os moradores têm menos acesso à saúde e que, por isso, apresentam mais chances de serem acometidos por determinadas doenças - em outras palavras, para avaliar a demanda integral territorializada (Costa-Rosa, 2013). Alguns exemplos de características de uma área de risco são: deficiência no tratamento da água e do esgoto, coleta de lixo deficitária etc.; poluição ambiental; índices de violência; tráfico e consumo de drogas; desemprego; analfabetismo. Normalmente, o poder público municipal, estadual e federal têm fortes implicações nessas realidades, por ação, omissão, descaso, negligência e imperícia.

Algumas considerações sobre a territorialização em Saúde

Existem fatores para o adoecimento relacionados à infraestrutura do lugar e ainda fatores relacionados às condições socioeconômicas dos moradores e seu modo de vida (Colussi; Pereira, 2016). Reconhecer as "áreas de risco" é indispensável, e cabe dizer que, não obstante a maior chance de adoecer, quando os moradores dessas áreas de risco adoecem, sofrem mais comorbidades, complicações secundárias à doença principal (Colussi; Pereira, 2016).

Albuquerque (2001), ao defender a territorialização como estratégia da Atenção Básica, diz que "Hábitos e comportamentos considerados como fatores causais ou protetores para essas doenças ou eventos, tais como fumo, alimentação, agentes tóxicos, uso de preservativos etc. parecem circular de forma diferenciada em grupos populacionais" (p. 613).

A ênfase da atuação dos profissionais de saúde da Atenção Básica tem sido dada aos chamados fatores de risco comportamentais, como tabagismo, alimentação não saudável, inatividade física, estresse, sobrepeso/ obesidade e consumo de álcool. Ao classificar esses riscos como comportamentais, não podemos ter uma visão reducionista, de que basta o indivíduo querer modificar seus hábitos para diminuir as chances de adoecer. Os fatores comportamentais não estão desvinculados de fatores socioeconômicos, culturais, entre outros (Colussi; Pereira, 2016, p. 16).

Entretanto, os profissionais de saúde de viés tecnicista não saem a campo para conhecer a comunidade, sequer se importam com a história de vida dos sujeitos. Atuam numa instituição/estabelecimeto público ancorado nos preceitos do SUS (Humanização; Acolhimento, Clínica Ampliada etc.), mas, por despreparo ou mesmo cinismo (Yasui; Costa-Rosa, 2008), não se importam com os determinantes socioculturais da saúde.

Se, no paradigma preventivista, a saúde é entendida como homeostase dos sistemas fisiológicos, ausência de doença, logo, o conhecimento do "doutor" é um tanto persecutório, e o profissional só encontra na fala do sujeito objetificado aquilo que procurava de antemão, sinais e sintomas que possam servir para encaixá-lo num diagnóstico, tendo em vista que o reducionismo faz que, ao interpretar os fenômenos saúde e doença, os profissionais técnicos privilegiem os determinantes biológicos em detrimento dos determinantes sociais (Rozemberg; Minayo, 2001).

Frequentemente os profissionais costumam supor que os sujeitos têm culpa por suas moléstias, como se alguém pudesse deliberadamente escolher entre estar saudável ou adoecer, ou, ainda, como se ter nascido numa família rotulada como "disfuncional", residir numa área de risco e ser pobre fossem consequências de escolhas individuais.

Segundo Castiel, Guilam e Ferreira (2010), a ideia de um estilo de vida ativa e saudável é extremamente normatizadora, relacionada à crença de que você tem escolhas como cidadão consumidor, presumidamente autônomo. Na realidade, a maioria da população não tem escolhas. Essa concepção de que as pessoas podem cuidar da sua própria vida acarreta, ainda, a responsabilização e culpabilização da vítima (Colussi; Pereira, 2016. p. 14).

É profícuo para pensarmos a produção social da saúde, com potencial de promover mudanças subjetivas e socioculturais, que as noções de risco social e de situação de vulnerabilidade sejam problematizadas. Benelli (2016) alerta que esses termos, desde as últimas décadas do século XX, têm sido profusamente utilizados nas políticas públicas e pelos trabalhadores do campo da Saúde e da Assistência Social, conquanto o uso indiscriminado, sem uma análise crítica do que seria o risco e a vulnerabilidade pessoal e social, faz germinar a "naturalização pseudossociologizante da desigualdade social" (p. 741).

A pergunta impertinente é a seguinte: quem cria essas situações pessoais e sociais de risco ou as situações de vulnerabilidade social? Certamente, elas são efeito do modo de funcionamento do sistema capitalista e da sua lógica de acumulação. Nesse sentido, pode-se considerar que são também muitos os chefes do poder executivo, vereadores, secretários municipais, ricos empresários, entre inúmeros outros que, por meio de ações, omissões, negligência, descaso, violência, corrupção e ganância, lesam os direitos de cidadania dos munícipes (Benelli, 2016, p. 741).

Destacamos que há muitos fatores de risco e muitas vulnerabilidades que não podem ser gerenciados pelos estabelecimentos institucionais da Saúde. Trata-se de fatores de risco para o adoecimento que estão fora da alçada da Saúde, sobre os quais não se têm governabilidade, a não ser política, claro; são situações referidas muito mais à organização e à gestão da cidade, estado ou país. Batistella (2007) é categórico:

Ora, ao descontextualizar os fenômenos de saúde e doença do desenvolvimento histórico e cultural da sociedade, isenta-se o poder público e culpabiliza-se a vítima. Entre outras consequências, essa concepção tem sustentado a tese do focalismo em saúde que, diante de um cenário de recursos limitados, preconiza a definição de prioridades para a oferta de serviços de saúde, em detrimento da oferta universal, defendida como direito inalienável do cidadão e dever do Estado (p. 60).

Somente uma análise minuciosa do Território, levando em conta a multideterminação do adoecer e do curar-se, pode propiciar à equipe de saúde discussões mais frutíferas e assertivas para manejar os casos, podendo, efetivamente, interferir para modificar os determinantes sociais do processo saúde-adoecimento-atenção. Isso poderia ser feito por meio de ações articuladas com outros setores e outros atores sociais, que, em geral, não são incluídos nessas discussões, embora sejam figuras públicas importantíssimas, tais como os vereadores, o prefeito, entre outros.

Por trás da situação de vulnerabilidade social, termo um tanto eufêmico para designar as violências sofridas pelos oprimidos, há sujeitos cujas histórias são demarcadas pelo desemprego, falta de vagas nas escolas, poucas opções de lazer e de esportes, atividades culturais escassas etc. (Souza, 2009). É preciso renomear esses problemas, e mesmo recolocá-los, a partir de uma lógica ampliada, partindo do Território e das demandas concretas para se alcançar soluções intersetoriais, transdisciplinares.

Quando se discutem estratégias em Saúde baseadas na "demanda integral territorializada" (Costa-Rosa, 2013), no intuito de contemplar grupos populacionais que foram prejudicados ou excluídos pelas políticas públicas universais, o que está em questão é a transição paradigmática de um modo de produção de saúde reducionista, pautado no Preventivismo, para um modo de produção de saúde no qual as diferenças socioculturais das comunidades - como as de renda, etnia, raça etc. - sejam tratadas como singularidades a serem respeitadas e incluídas nas práticas intersetoriais e transdisciplinares, que podem sustentar o Paradigma da produção social da saúde.

 

Referências

Batistella, C. (2007). Abordagens Contemporâneas do Conceito de Saúde. In Fonseca, A. F. & Corbo, A. M. D. (Orgs.). O território e o processo saúde-doença (pp.51-86). Rio de Janeiro: EPSJV/Fiocruz. Recuperado em 13 de março de 2019 de: https://pt.scribd.com/doc/183927948/Livro-O-Territorio-e-o-Processo-Saude-Doenca-FIOCRUZ.         [ Links ]

Benelli, S. J. (2016). Risco e vulnerabilidade como analisadores nas políticas públicas sociais: uma análise crítica. Estud. Psicol., Campinas, 33(4),735-745. Recuperado em 28 de fevereiro de 2019 de: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-166X2016000400735&lng=en&nrm=iso.         [ Links ]

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Recebido em: 03/07/2018
Aprovado em: 04/02/2019

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