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Revista de Psicologia da UNESP
On-line version ISSN 1984-9044
Rev. Psicol. UNESP vol.18 no.spe Assis 2019
EDITORIAL
Práxis, Intercessão e Saúde Coletiva: Abílio da Costa-Rosa, ou das verdadeiras paixões pela Psicanálise
Gustavo Henrique Dionisio
Editor
Os textos que compõem este número especial de nossa Revista de Psicologia da Unesp dedicam-se o mais exaustivamente possível em dar continuidade ao brilhante trabalho que Abílio da Costa-Rosa (1952-2018) - mestre e doutor em Psicologia Social pela USP, livre-docente pela Unesp-Assis, psicanalista e analista institucional - desenvolveu ao longo de sua carreira no departamento de Psicologia Clínica da Unesp-Assis. Militante incansável no contexto da Saúde Coletiva, Abílio formou um sem número de trabalhadores no mesmíssimo espírito, e isso atravessando uma ponte que vai do famoso consultório da Novo Horizonte (São Paulo capital), por onde atuara durante alguns bons anos como psicanalista, até a sala 1 do nosso humilde departamento, talvez o seu palco principal para aulas e supervisões.
Além de ter a oportunidade de saborear seus últimos escritos, como no caso da Carta de Fundação de seu Laboratório Transdisciplinar de Intercessão-Pesquisa em Processos de Subjetivação e "Subjetividadessaúde" (LATIPPSS), somada a dois ensaios inéditos de sua autoria, o leitor também poderá encontrar aqui uma gama de possibilidades práxicas (Abílio respeitava por demais esta concepção marxiana que, para ele, funcionava como muro de arrimo para tudo aquilo que inter-relaciona teoria e prática) entre materialismo e psicanálise que, por sua vez, envolvem fundamentalmente o conceito que ele dedicou uma vida toda para cunhar, a saber, o de dispositiv o intercessor, peça chave em sua tentativa de revolucionar - sim, é disto que se trata - o campo da Saúde Mental em vista de uma Saúde Coletiva propriamente dita. Assim, a opção por iniciar este volume com seus escritos se justifica pela ansiedade que nos acomete a todos de rever as garras do tigre - são ensaios que falam muito por si mesmos, de modo que não cabe sequer sumarizá-los aqui.
Vale, contudo, sublinhar os dois principais pontos que ele sempre fez questão de indicar nesta sua trajetória de ao menos 4 décadas dedicadas ao estudo da obra de Freud, Marx e Lacan: como bem sabem aqueles que dele estiveram próximos em seus últimos anos de vida, a rica noção de dispositivo intercessor, junto à sua definição de Paradigma Psicossocial - sendo esse rigorosa mente oposto ao Paradigma Hospitalocêntrico Medicalizador - formam um elo fortíssimo numa certa corrente de ideias críticas que se dirigem a pensar a concepção do laço social tal como o concebemos tanto social quanto metapsicologicamente. Partindo, portanto, de uma sistemática crítica da divisão entre saber e fazer, assim como do executar e do pensar, Abílio pensava que qualquer trabalho advertido pela psicanálise "de Freud a Lacan", como ele bem gostava de frisar, deveria justamente "produzir saber sobre o processo de produção de saber na ação/para a ação", isto é, "um saber sobre como saber fazer, saber em intensão na práxis, na qual o intercessor é um +1 e 'outro', o que implica a extensão". Basta esta citação, creio eu, altamente representativa para se ter um lampejo da genialidade do autor.
Na sequência do volume, o leitor poderá se deparar com um número significativo de artigos elaborados na esteira do pensamento de Abílio, textos certamente de grande interesse que, neste caso, foram escritos por seus companheiros de estrada, isto é, seus orientandos e ex-orientandos, majoritariamente, a quem ele se dedicava senão com amor. Com efeito, se amar é dar aquilo que não se tem, como propunha Lacan - autor que a propósito fora a espinha dorsal da qual toda a reflexão de nosso mestre partiu -, Abílio não fez outra coisa senão exatamente isto: o que ele mais nos deu - e aqui me incluo no rol dos privilegiados que puderam desfrutar de sua amizade - era justamente o que ele menos tinha, isto é, tempo. Sua heroica luta contra uma série de adversidades - só quem esteve próximo dele pode ter uma ideia do quão impiedosas elas foram - servirá sempre como um ideal de vontade de vida para todos nós.
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Em "Problematizando a instituição pesquisa na universidade e nas práticas psicológicas: questões epistemológicas e éticas", de Silvio José Benelli, que dá início a esta seção, trata-se de questionar a pesquisa na universidade e, particularmente, como diz o autor, suas "relações com as práticas psicológicas, tomando-a como instituição". São apresentadas, nesse sentido, modalidades diversas de pesquisas realizadas na universidade, tais como 1) "a pesquisa de corte positivista tradicional"; 2) "a pesquisa-ação baseada no materialismo histórico"; 3) "as práticas de intervenção psicossocial de matiz pedagógico/psicologizante"; 4) "a pesquisa-intervenção referenciada na Filosofia da Diferença" e, por fim, 5) "a intercessão-pesquisa orientada por uma complexa perspectiva transdisciplinar", com a qual o autor conclui, já que "atua no plano microfísico dos estabelecimentos institucionais nos quais o trabalhador está inserido".
Em "Psicanálise, transdisciplinaridade e Atenção Psicossocial: a necessária formação de trabalhadores de Saúde Mental de um novo tipo" Waldir Périco apresenta aquilo que considera ser uma "radicalização das contribuições da Psicanálise e do Materialismo Histórico" como referências discursivas essencialmente transdisciplinares e igualmente necessárias para uma verdadeira transposição paradigmática: parte-se de um Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador quase-hegêmonico, tal como propunha Costa-Rosa, para ir em em direção a um Paradigma da Atenção Psicossocial. E é nesta exata medida que o artigo A pertinência da categoria de ideologia na perspectiva da luta paradigmática em Saúde Mental: traçando novas possibilidades de trabalho, de José Guilherme Nogueira Passarinho, aparece na sequência:
inicialmente "postulada por Karl Marx e Friedrich Engels e posteriormente enriquecida por autores ligados à Psicanálise, em especial do campo de Freud e Lacan", como defende o autor, a noção de ideologia pode justamente se revelar como instrumento teórico valioso àqueles que congregam da Atenção Psicossocial, ou seja, contrários portanto ao Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador. A noção propriamente dita de "dispositivo", isto é, antes mesmo de receber o predicado de intercessor, ganha uma espécie de definição mais circunscrita com o texto de Maico Fernando Costa, Waldir Périco e William Azevedo de Souza, que vão Do dispositivo disciplinar ao dispositivo intercessor; a partir de uma leitura que o compreende como "tudo aquilo que produz agenciamentos rumo à produção de uma subjetivação singularizante", os autores trançam Agamben, Foucault e Deleuze para enfim chegar às conclusões alcançadas por Abílio acerca desta problemática.
Já o artigo Dispositivo Intercessor e Atenção Psicossocial: subversão da lógica tecnocrática da Reforma Psiquiátrica contemporânea, de Carine Sayuri Goto, é movido pela publicação da Nota Técnica 11/2019 e das portarias de 2018 para uma nova Saúde Mental feita pelo Ministério da Saúde para então se interrogar sobre a ênfase na discussão tecnocrática, bem como no "escanteamento" da discussão da Atenção Psicossocial como ética no campo da Saúde Mental; nesse sentido, a autora retoma justamente a discussão e a definição acerca do dispositivo intercessor, que em muito teria a colaborar aqui. Seguindo na mesma lógica, Ana Flavia Shimoguiri propõe em O Paradigma Psicossocial: parâmetros mínimos para as práticas substitutivas ao Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador que a posição defendida por Abílio seria verdadeiramente revolucionária em sua concepção de Paradigma Psicossocial, cujo objetivo não é outro senão "instrumentalizar práticas em Saúde Mental Coletiva substitutivas ao Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador". Assim, trata-se de apresentá-lo enquanto um referencial teórico-técnico e ético-político necessário para os avanços do Sistema Único de Saúde no que diz respeito à Atenção Psicossocial. Já com Medicalização como Sintoma Social Dominante: estratégias a partir do Paradigma Psicossocial, Laura Pampana Basoli em parceria com Silvio José Benelli visam problematizar a Medicalização como discurso predominante nas práticas de Atenção na clínica contemporânea : em meio "a tanta bioquímica", perguntam os autores, como a Psicanálise do Campo de Freud e Lacan pode contribuir para que as práticas de 'cuidado' se orientem em direção ao Paradigma Psicossocial?" De acordo com os autores, a chamada Gestão Autônoma da Medicação (GAM) e o lugar necessário da Psiquiatria e dos psicotrópicos na Atenção Psicossocial parecem ser uma boa aposta.
Fechando o volume o leitor encontrará dois artigos que se debruçam diretamente sobre experiências intercessoras: o primeiro deles, intitulado Contribuições do Dispositivo Intercessor para a práxis da Atenção Psicossocial: relato da experiência vivenciada num CAPSad, escrito por Anúncia Heloisa Galiego em parceria com o próprio Abílio, parte de uma situação de intercessão-pesquisa vivenciada em um Centro de Atenção Psicossocial que atende os sujeitos dos impasses decorrentes do uso de Álcool e Outras Drogas (CAPS adII). Como se poderá verificar, o texto discute a necessidade de que os trabalhadores sejam capazes de produzir saberes singulares, datados, criativos, pois só eles podem operar como respostas específicas às demandas particulares dos sujeitos do sofrimento que se apresentam às instituições de Saúde. O segundo deles, Contribuições do dispositivo intercessor para o trabalho no campo da assistência social, de Sara Mexco, William Azevedo de Souza e Silvio Benelli, encerra esta coletânea mostrando o resultado de processos de intercessão realizados em estabelecimentos institucionais da política de Assistência Social brasileira. Assim os autores visam trazer algumas contribuições acerca da práxis na Assistência Social, sem a pretensão de produzir um saber totalizante e sim de instrumentalizar outros trabalhadores que desejem se posicionar como intercessores em suas práticas, inserindo assim o sujeito do desejo em meio a significantes como "pobreza" e "falta", tão comuns neste contexto.
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Como não se deixará de notar, as publicações elencadas neste número especial representam uma oportunidade ótima de tornar pública parte do significativo legado de Abílio da Costa-Rosa, já que pretendem não apenas ser uma homenagem póstuma para nosso colega trabalhador-intercessor, mas também se encarregam de dar voz aos (potentes) efeitos de sua transmissão junto ao coletivo que reuniu no LATIPPSS ao longo desses anos de um trabalho tão intenso quanto frutífero. A meu ver, elas permitem adoçar um tantinho a "suave melancolia" que a partida de Abílio nos faz sentir diariamente.
Por fim, é preciso dar devido crédito ao enorme trabalho prestado pelo João Elias Cury Junior, que cuidou não apenas minuciosa mas sobretudo carinhosamente na revisão destes artigos, na formatação dos resumos e na discussão sobre os termos em inglês - trabalho absolutamente fundamental à boa conclusão do volume. A ele fica todo nosso agradecimento em especial.