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Revista de Psicologia da UNESP
On-line version ISSN 1984-9044
Rev. Psicol. UNESP vol.18 no.spe Assis 2019
ARTIGOS
A pertinência da categoria de ideologia na perspectiva da luta paradigmática em Saúde Mental: traçando novas possibilidades de trabalho1
The relevance of the category of ideology in the perspective of paradigmatic struggle in Mental Health: outlining new possibilities of work
José Guilherme Nogueira Passarinho
Psicólogo graduado e mestrando pela Faculdade de Ciências e Letras/UNESP, Assis, São Paulo. Integrante do Laboratório Transdisciplinar de Intercessão-Pesquisa em Processos de Subjetivação e "Subjetividadessaúde" (LATIPPSS). E-mail: guilherme.nogueira.passarinho@gmail.com
RESUMO
Pretendemos discutir a pertinência da categoria de ideologia para o campo da Atenção Psicossocial e das lutas paradigmáticas em Saúde Mental. Inicialmente postulada por Karl Marx e Friedrich Engels e posteriormente enriquecida por autores ligados à Psicanálise, em especial do campo de Freud e Lacan, esta categoria pode se revelar um instrumento teórico valioso aos partidários da Atenção Psicossocial, permitindo sobretudo mediar uma crítica à ideologia dominante do Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador. Assim, buscaremos traçar as linhas gerais desta discussão, em um recorte que atravessará alguns aspectos históricos da Atenção Psicossocial e da Reforma Psiquiátrica brasileira; uma análise dos paradigmas em luta atualmente na Saúde Mental; bem como uma contextualização da categoria de ideologia e uma proposta de sua utilização neste campo. Almejamos, desta forma, fundamentar e abrir novas perspectivas de trabalho, sempre tendo como norte a humanização dos estabelecimentos públicos de Saúde Mental e a concretização dos pressupostos da Atenção Psicossocial.
Palavras-chave: Atenção Psicossocial; Reforma Psiquiátrica brasileira; Ideologia; Psicanálise.
ABSTRACT
We intend to discuss the pertinence of the category of ideology in the field of Mental Health and its paradigmatic struggles. Initially postulated by Karl Marx and Friedrich Engels and later enriched by authors related to Psychoanalysis, especially from the field of Freud and Lacan, this category may prove to be a valuable theoretical tool for those who supports the Psychosocial Atention, allowing particularly to mediate a critique o f the dominant ideology of Psychiatric Hospitalocentric and Medicalizer Paradigm. Thus, we will try to outline the general lines of this discussion, pointing some historical aspects of the Brazilian Psychiatric Reform; a analysis of the paradigmatic strugg les in Mental Health; as well as a contextualization of the category of ideology and a proposal of its use in our field. We aim, therefore, to base new perspectives of work, based on humanization of the public facilities of Mental Health and the concretiza tion of the assumptions of Psychosocial Atention.
Keywords: Psychosocial Atention; Brazilian Psychiatric Reform; Ideology; Psychoanalysis.
Introdução ou uma breve historicização da Psiquiatria e da Reforma Psiquiátrica brasileira
Este é um trabalho em que tentamos defender a importância da revitalização da categoria de ideologia, bem como os benefícios que seu emprego pode trazer para a compreensão das instituições públicas de Saúde Mental de nosso país e dos diferentes modelos que nelas coexistem em tensão dinâmica. A luta entre estes modelos, que chamamos de paradigmáticas, serão contextualizadas em um processo histórico a partir da referência à chamada Reforma Psiquiátrica brasileira. Para avançarmos, traçamos um caminho para as reflexões sobre a ideologia que se inicia com Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895), passa por Louis Althusser (1918-1990) e se encerra nas teorizações de Slavoj Žižek (1949-). São autores cujas contribuições acreditamos serem úteis para alcançarmos uma Atenção Psicossocial que esteja para além da Reforma Psiquiátrica (Costa-Rosa, 2013).
Foucault, em História da loucura na Idade Clássica (1978), nos fornecerá as contribuições iniciais ao elucidar as formas historicamente assumidas pela loucura na sociedade ocidental. O autor apresenta a transição de uma visão trágica da loucura durante o período da Renascença, para uma racional-científica na Modernidade, responsável por torná-la uma doença mental. Assim, essa experiência que era tratada como objeto do suplício ou da misericórdia divina até o início do século XV, ou mesmo como experiência trágico-errante, representada pela "Nau dos Loucos" - esta última, presente especialmente durante a segunda metade deste mesmo século -, passa gradativamente a ser entendida, a partir do século XVI, como alienação, causada por uma falha de origem moral e/ou biológica, devendo, portanto, ser objeto da intervenção disciplinar da razão científica.
Essa transição se consagrará nos séculos seguintes e marcará o nascimento da Psiquiatria enquanto disciplina científica e do Hospital Psiquiátrico como seu lócus de atuação e produção de conhecimento. A partir da segunda metade do século XVII a loucura passa a se divorciar da razão, sendo simultaneamente alijada de seu acesso à verdade2. Esse período também marca o que Foucault (1978) chamou de "grande internação". No século seguinte, em consonância com essas transformações, o Hospital deixa de ser uma instituição de caridade religiosa para se constituir em espaço eminentemente médico (Foucault, 1988). Trata-se de um processo marcado pela "ação sistemática e dominante da disciplina, da organização e do esquadrinhamento" (Amarante, 2000, p. 25). Seu símbolo maior é o ato inaugural de Phillipe Pinel (1745-1826) na França revolucionária e iluminista, ao desacorrentar os internos do Hospital Bicêtre e dividi-los, separando os loucos dos mendigos, delinquentes e de outros sujeitos considerados antissociais. Em suma, separando doentes e sadios, tratáveis e intratáveis.
Essas transformações encontram suas condições de possibilidade nas conjunturas "econômicas, políticas e sociais que a modernidade [e o capitalismo] inaugura[m]" (Amarante, 2000, p. 24). A relação geral entre a Modernidade, o Modo Capitalista de Produção (MCP) e a dessacralização do mundo em favor de sua racionalização científica-especializada foi observada por diversos autores (Berman, 1986; Santos, 2000; Harvey, 2008). Além disso, já estava presente no próprio Marx (1998), em um texto como o Manifesto do Partido Comunista. Deste modo, identificamos uma relação análoga nas passagens que marcam a criação da Psiquiatria como disciplina, da doença mental enquanto seu objeto de intervenção e do Hospital Psiquiátrico como seu lócus de atuação. Assim, estamos de acordo com Benelli (2006) quando afirma que "o projeto psiquiátrico pode ser entendido como parte de uma estratégia global de controle e manutenção da atual ordem social" (p. 31). Tentaremos, no decorrer deste texto, e nos valendo especialmente da categoria de ideologia, evidenciar como isso acontece.
No Brasil também podemos observar esta relação entre modernidade, ciência e MCP na transição das formas da sociedade lidar com a loucura. Se durante o período colonial o tratamento religioso ou mesmo a ausência total de qualquer tipo de assistência imperavam, circunscrevendo a loucura ora como experiência de falha espiritual, ora como experiência trágica-errante, a partir do século XIX é o asilamento psiquiátrico - iniciado com a fundação do Hospício Pedro II no Rio de Janeiro em 1852 (Yasui, 2010, p. 27) - que ganha ímpeto e se dissemina durante as últimas décadas do século (p. 21). Os manicômios tornam-se, deste modo, a forma hegemônica de lidar com a loucura durante boa parte do século XX. Esse processo foi precoce e magistralmente tratado pela literatura brasileira no conto O Alienista (1984), de Machado de Assis (1839-1908). Ao retratá-lo, o contista nos apresentará um fictício manicômio em Itaguaí, no Rio de Janeiro, em que "ao cabo de quatro meses, era uma povoação", onde se depositava "toda a família dos deserdados do espírito" (p. 195).
Por mais de um século imperou o asilamento manicomial como forma monopólica de assistir a loucura em nosso país. Apenas no final da década de 1970 que se iniciou um movimento amplo e sistematizado de contestações, críticas e criações de alternativas ao modelo manicomial, conhecidos como Reforma Psiquiátrica brasileira (RPb) (Amarante, 2000; Costa-Rosa, 2013a). Tomando de inspiração os movimentos reformadores e de desinstitucionalização europeus - as Comunidades Terapêuticas, a Psiquiatria Comunitária, a Psiquiatria Institucional e Setorial, a Antipsiquiatria e a Psiquiatria Democrática -, iniciou-se um processo de questionamento dos modelos vigentes de produção de Atenção aos sujeitos em sofrimento ou crise psíquica, que até aquele momento eram eminentemente asilares e ofertados pela iniciativa privada. Costa-Rosa (2013a, p. 13) coloca ainda variações importantes dentro deste movimento, que vão desde propostas mais brandas, que ainda não visam superar paradigmaticamente os modelos anteriores, mas apenas reformá-los; até propostas ético-políticas mais radicalizadas, que almejam uma transformação paradigmática no sentido de uma superação radical destes velhos modelos, situando nestas últimas a Luta Antimanicomial e a Atenção Psicossocial.
Alternando entre reforma e desinstitucionalização3, estratégias centradas na ocupação de aparelhos do Estado e na mobilização da sociedade civil, as décadas de 1980 e 1990 foram de inconteste acúmulo de vitórias para a RPb. Foram criados aparelhos e políticas alternativas ao internamento, com destaque aos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e programas como "De volta pra Casa", que retiraram do Hospital Psiquiátrico seu monopólio sobre o fenômeno singular da loucura. Um dos apogeus deste movimento foi o envio do projeto de Lei Paulo Delgado em 1989, que propôs a extinção dos Hospitais Psiquiátricos e sua substituição por uma rede inteiramente comunitária e ambulatorial. Apesar de ter sido aprovado na Câmara dos Deputados, o projeto "completou onze anos de substitutivos e postergação no Senado" (Pitta, 2011, p. 4585), tendo sido sancionado apenas em 2001 como Lei Federal 10.216/2001, sem as suas disposições mais radicalizadas no sentido da desinstitucionalização.
Não obstante, a nova legislação significou para o aparato jurídico-institucional do Estado brasileiro um importante avanço nas formas de produção de Atenção aos sujeitos em sofrimento ou crise psíquica. Além de estabelecer critérios mínimos para o funcionamento de um Hospital Psiquiátrico - como o respeito aos direitos dos sujeitos com 'transtornos mentais' e a necessidade de uma equipe multidisciplinar -, coloca a internação de curta duração como último recurso, apenas depois de terem sido esgotadas todas as alternativas extra-hospitalares (Brasil, 2001). Desse momento em diante os desafios da RPb se modificam. A concretização da nova rede de Atenção alternativa ao velho modelo, de modo eficiente e universal, torna-se o novo e principal objetivo do movimento. No Brasil, a dimensão continental e a diversidade sociocultural do país; a ausência de políticas de formação de trabalhadores para a Atenção Psicossocial; e sobretudo a ameaça da persistência do velho modelo nos novos e velhos aparelhos são identificados como os novos obstáculos (Bezerra Jr., 2007; Pitta, 2011). Costa-Rosa (2013d) também insere neste rol a presença da "Psiquiatria DSM", caracterizada por uma prática "medicocentrada e medicalizadora" e cuja lógica tende a "tudo tratar como individual" (p. 170), portanto, eminentemente antagônica aos pressupostos da RPb e da Atenção Psicossocial.
As lutas paradigmáticas em Saúde Mental
Partiremos da noção de que as críticas e propostas alternativas formuladas no seio da RPb devem apontar para a superação paradigmática do modelo anterior (Costa-Rosa, 2000; 2013). Esse novo paradigma de produção de Atenção4, que surge nas instituições de Saúde Mental a partir desse movimento histórico, é cunhado pelo autor como Paradigma Psicossocial (PPS); ao passo que o que vínhamos chamando apenas de "velho modelo" recebe a conceituação mais precisa de Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador (PPHM) (Costa-Rosa, 2013b, p. 24). Costa-Rosa também relaciona o PPHM com as condições e determinações impostas pelo Modo Capitalista de Produção, com o qual estaria em sintonia; ao passo que o PPS apontaria e se sintonizaria com Modos Cooperados de Produção (Costa-Rosa, 2013b, p. 33). Por fim, afirma a existência de contradições e antagonismos entre estes paradigmas, que chamaremos de lutas paradigmáticas, atualmente em voga nessas instituições. Dentro da tradição dialética, afirmará que a coexistência dos dois paradigmas na fórmula do "um, mas não sem o outro" (Costa-Rosa, 2013a. p. 16) é temporária e tende a se acirrar até o momento da luta aberta e da expulsão de um pelo outro. Porém, esta luta não possui predeterminações, podendo resultar tanto na substituição do velho paradigma pelo novo, como na manutenção da hegemonia do velho e na supressão do novo (Costa-Rosa, 2000).
Pretendemos elucidar estas hipóteses com algumas considerações sobre as noções de instituição e de paradigma, fundamentais na presente discussão. Podemos conceituar inicialmente a instituição como uma "formação material constituída por um conjunto de saberes e práticas articulados por um discurso de tipo ideológico (lacunar)" (Costa-Rosa, 2000, p. 145). Nesta lacuna, o que está ocultado (negado, censurado) é exatamente a divisão da sociedade em blocos de interesses objetivamente antagônicos5. Assim, o discurso oficial das instituições expressa uma "cristalização de visões e interesses diversos (às vezes divergentes), presentes no contexto social em que se origina (...), onde o interesse hegemônico busca articular "certos 'meios' visando um conjunto de 'fins' necessariamente sociais". Assim, outra conceituação das instituições que adotamos é a de Luz (1979), que as entende como "palcos de luta social". Mas é também pertinente complementar afirmando que as instituições sempre são agenciadores sociais não-contingentes das pulsações advindas da Demanda Social6, ou seja, são mediadores que a sociedade inescapavelmente institui para metabolizar certas demandas, abertas pelo choque das forças sociais existentes em um determinado contexto histórico (Costa-Rosa, 2013c).
O discurso oficial e os interesses hegemônicos dentro das instituições são constantemente confrontados com as pulsações oriundas dos interesses de segmentos explorados e marginalizados da totalidade social. Na Análise Institucional de Lourau (1975), a dimensão hegemônica, que tende a cristalizar os interesses de grupos socialmente dominantes nos discursos oficiais das instituições, é chamada de instituído; ao passo que a dimensão que congrega os interesses dos grupos socialmente subordinados, capazes de subverter a inércia do discurso oficial, é chamada de instituinte. Assim, esses embates podem "imprimir à instituição como um todo, ou a setores de suas práticas, uma outra fisionomia, uma outra direção; podendo até chegar a uma mudança radical na essência de sua práxis" (Costa-Rosa, 2000, p. 146). Esta mudança instituinte radical, por indicar uma ruptura maior do que uma mera reforma do velho paradigma, pode ser chamada de revolução paradigmática.
Sobre a noção de paradigma, retomando autores como Kuhn (1978), Pain e Filho (2000) e Santos (2000), Costa-Rosa (2013c) vai entendê-lo como um conjunto de pressupostos científicos mais ou menos aceitos em determinado momento histórico e que balizam ações práticas. Além disso, situa os diversos paradigmas em relação aos interesses sociais que os fundam. Mais especificamente, diz que: "[os paradigmas são] conjuntos articulados de valores e interesses que se estratificam, criam dispositivos (leves e pesados) e podem chegar à polarização" (p. 76). Aplicando ao campo das instituições de Saúde Mental, o autor delineia os paradigmas existentes com base em quatro parâmetros fundamentais de análise, sendo eles:
A concepção do "objeto" de intervenção ou intercessão e dos meios de trabalho para fazê-la, incluindo aqui os instrumentos teórico-técnicos, o aparato jurídico-institucional e o discurso ideológico;
As formas organizativas do dispositivo institucional, ou seja, o organograma da instituição e as formas como se dão as relações intra e interinstitucionais;
As modalidades de relacionamento com a clientela, o que inclui os significantes com os quais a instituição se apresenta para a população e as possibilidades concretas de ações ofertadas;
Os efeitos esperados e alcançados em termos terapêuticos e éticos, que apontam para os fins políticos e socioculturais almejados e os resultados produtivos de subjetividade decorrentes das práticas institucionais ofertadas. (Costa-Rosa, 2000; 2013).
A leitura de que há uma afinação entre o PPHM e o Modo Capitalista de Produção também é possível a partir da análise destes quatro parâmetros. Uma evidência observada na bibliografia que nos remete ao quarto critério de análise, é o fato de que o resultado produtivo deste paradigma "somente poderá ser a produção de subjetividade domesticada, adaptada ao instituído social opressor" (Périco, 2014, p. 62). Isso porque as ofertas de tratamento típicas deste paradigma, que Périco conceitua como Terapêutico Alienantes7, tratam de readaptar o sujeito na sociedade com vistas a fazê-lo voltar a produzir e/ou a consumir, ação que se inscreve na sociedade capitalista contemporânea como um imperativo: consuma! goza! (Goldenberg, 1997).
Assim, podemos afirmar que o PPHM "conjuga interesses básicos de um setor social [dominante]: suas opiniões, suas concepções ideológicas e teórico-técnicas, sua ética, seus ideais socioculturais, seus interesses econômicos e sua forma dominante de produção de Saúde e saudessubjetividade" (Costa-Rosa, 2013c, p. 62). Deste modo, o resultado produtivo em termos de subjetividade "só poderá ser similar ao produto do Modo de Produção socioeconômico do qual ele deriva" (Périco, 2014), ou seja, uma produção de subjetividade reificada e carente de qualquer capacidade criativa de implicação e/ou transformação; além de absolutamente inócua em impedir o retorno do sintoma, logrando apenas eventuais deslocamentos, mas sempre conduzindo ao pior (Lacan, 2003). Trata-se de práticas que tomam o sujeito em sofrimento ou crise psíquica como um objeto de intervenção disciplinar, e cujo resultado pretendido é o retorno para um estado anterior, na perspectiva de eliminar uma 'doença mental' através da intervenção-intromissão de um saber de mestre (Lacan, 1992).
Com relação aos outros parâmetros, diremos que o PPHM possui uma concepção organicista, biológica e individualizante de seu objeto de intervenção, a doença mental; uma composição organogramática hierarquizada e verticalizada; e um relacionamento com os sujeitos baseado no isolamento e apresentando-se como espaço de depositório e tutoria (Costa-Rosa, 2000). Ao passo que o PPS, para se concretizar enquanto revolução paradigmática, deverá necessariamente superar a concepção de divisão entre sujeito-objeto, eminentemente disciplinar, bem como os meios de intervenção baseados nesta divisão; modificar as formas de organização e relação intra e interinstitucionais verticalizadas, no sentido de sua horizontalização/transversalização; transformar as suas formas de ofertas transferenciais com os sujeitos e o Território, colocando-se como espaço de escuta, sociabilidade e produção/criação subjetiva; e almejar outros efeitos produtivos e desdobramentos éticos, que deverão ser de implicação subjetiva e sociocultural.
Por fim, o autor afirma que as lutas paradigmáticas em Saúde Mental se dão em duas esferas: político-ideológica e teórico-técnica (Costa-Rosa, 2000, p. 141). Ambas atravessam as formas de produção de Atenção dos dois paradigmas antagônicos em seus quatro parâmetros de análise. O autor evidencia que nas duas primeiras décadas da RPb, os aspectos político-ideológicos sobrepujaram taticamente os teórico-técnicos, colocando a necessidade de desenvolver estes últimos. Porém, passadas quase duas outras décadas da publicação deste texto, observamos dentro do movimento um relativo afastamento do engajamento político-ideológico, que se traduz no esmaecimento da Atenção Psicossocial enquanto alternativa paradigmática radical, mesmo entre os trabalhadores dos novos aparelhos que nasceram da RPb, fenômeno observado precocemente por Pitta (2011) e posteriormente por outras pesquisas (Mondoni & Costa-Rosa, 2013; Silva, et al, 2015). Assim, é pertinente retomarmos uma proposta de crítica ideológica ao PPHM, buscando um novo ímpeto político-crítico para os partidários do PPS e fôlego renovado para suas resistências e necessárias atuações nas brechas abertas nas instituições, sempre em direção ao instituinte.
A ideologia: de Marx a Althusser e para além de Althusser...
Optar pela categoria da ideologia implica necessariamente um impasse, que nos exige uma escolha, na medida em que sua amplitude e abrangência deram margem para uma variedade de sentidos, concepções e formas de aplicá-la no campo das ciências humanas (Eagleton, 1996; 1997; Žižek, 1996). Assim, imediatamente buscaremos especificar a abordagem que propomos para trabalhar esta categoria, pautada nas proposições de Althusser (1983) e em complementações posteriores (Silva, 2000; Silveira, 1994; 2010), além das contribuições trazidas por Žižek (1996). Entendemos que os trabalhos destes autores são pertinentes quando visamos a uma aplicação no campo da Saúde Mental, uma vez que foram alguns dos que mais se empenharam em relacionar esta categoria com a de subjetividade, apoiando-se sobretudo na Psicanálise do campo de Freud e Lacan.
Marx (2007, p. 84-85) expõe a ideologia como uma "concepção distorcida" ou "uma abstração total" da história humana, sendo esta entendida enquanto o movimento criador engendrado pelas contradições de classes. De modo mais geral, Eagleton (1997) define-a como "processo material geral de produção de ideias, crenças e valores (...)" (p. 38). Harnecker (1983) a coloca como aquilo que "não se limita a ser apenas uma instância da superestrutura; ela desliza também pelas demais partes do edifício social, é como o cimento que assegura a coesão do edifício" (p. 101). Apesar de apresentarem nuances e diferenças, todos estes autores evidenciam o caráter funcional da ideologia para a legitimação e manutenção de um sistema de dominação social. Contanto, trilhando o caminho feito por Marx, Chauí (1980) afirmará que a ideologia é "um processo pelo qual as ideias da classe dominante se tornam ideias de todas as classes sociais, se tornam ideias dominantes" (p. 92).
A abstração da história referida por Marx - do fato de que são os homens que criam a sociedade e criam-se através dela, em processos eminentemente contraditórios, como, por exemplo, nos conflitos de classes - tem como equivalente epistemológico a divisão entre sujeito e objeto, em que a própria sociedade e seus objetos aparecem como alheios aos sujeitos que os criaram (Sader, 2007). Aparecem, deste modo, como escravos de suas próprias criações, sejam elas religiosas ou pretensamente científicas. A condição material desta abstração, por sua vez, é a divisão social do trabalho. Sobretudo a divisão em especialismos, própria do MCP, que opera a separação total entre o trabalho intelectual e braçal; onde os que realizam este último, dentro desta lógica, podem apenas fazê-lo sem pensar, especialmente sem um pensamento criativo, logo, o fazem de modo (re)produtivista. Portanto, (re)produzem alienados de qualquer capacidade criativa e dos produtos de seu trabalho, que por fim lhes aparecem como autônomos, para voltarem-se contra eles. Marx (2014) sentencia: "o trabalhador encerra sua vida no objeto; mas agora ela não pertence mais a ele, mas sim ao objeto" (p. 81). Esse objeto estranhado e as relações típicas do MCP - respectivamente, a forma-mercadoria e suas relações de produção e troca -, embora sejam produtos de relações sociais humanas, "assume[m] a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas" (Marx, 2008, p. 94).
Althusser (1996) abordará a ideologia em termos de interpelação ideológica e dos Aparelhos Ideológicos do Estado (AIE). Sobre a interpelação, esta seria o momento que marca a captura ideológica de um indivíduo concreto. Trata-se de um 'chamamento' que situa um indivíduo, ainda indiferenciado, em uma ordem social, constituindo-o como um sujeito de uma sociedade específica. A fórmula proposta pelo autor é de que "a ideologia interpela os indivíduos em sujeitos" (p. 131). O filósofo conceitua uma figura mítica que realiza esta interpelação, o qual chama de Sujeito8 (p. 136), enquanto um garantidor da verdade dos sujeitos, detentor de suas significações e fiador de sua identidade. De tal modo que:
[...] toda a ideologia é centrada, [uma vez] que o Sujeito Absoluto ocupa o lugar do Centro e interpela a seu redor a infinidade de indivíduos a se tornarem sujeitos, numa dupla relação especular, de tal ordem que sujeita os sujeitos ao Sujeito, ao mesmo tempo que lhes dá, no Sujeito em que cada sujeito pode contemplar sua própria imagem (presente e futura), a garantia de que isso realmente concerne a eles e a Ele, e de que, como tudo ocorre dentro da Família (...), aqueles que reconheceram Deus [figura do Sujeito] e que se reconhece n'Ele serão salvos (p. 137) (grifos do autor).
Apesar do autor utilizar a instituição religiosa cristã como exemplo, onde Deus assumirá a posição de Sujeito, fica evidente que este lugar pode ser assumido por outras figuras em diferentes formações ideológicas. Assim, na instituição da família, por exemplo, é a figura do Pai que poderá assumir este papel. Na fábrica capitalista é a do Patrão. Ao passo que nas instituições do PPHM, é a figura do Médico Psiquiatra disciplinar que entra em cena, especialmente nos casos em que ele assume ser de fato detentor de um saber-mestre, único capaz de enunciar a Verdade sobre os sujeitos e seu sofrimento. Ele ocupa, nestas condições, o lugar central numa relação em que sua palavra, especialmente o seu diagnóstico, torna-se o ponto de sustentação de uma identidade imaginariamente alienada e de atualização de um chamamento ideológico.
Isso imediatamente nos leva para o segundo aspecto evidenciado na teoria althusseriana da ideologia, os Aparelhos Ideológicos do Estado (AIE). Estes seriam exatamente as formas materiais da ideologia na sociedade, que cotidianamente (re)atualizam a ideologia em ato, e que são organizadas em diversas "instituições distintas e especializadas" (p. 114) (grifo nosso). Os AIE convergem por funcionarem predominantemente pela ideologia - ao invés de ser pela repressão e violência física, como os Aparelhos Repressivos do Estado -, e por compartilharem a função de manutenção das relações sociais dominantes, em especial das relações econômicas de exploração. Em seu funcionamento geral o que está em jogo é sempre uma "relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência" (p. 126). Estas condições reais podem ser entendidas enquanto o Real da divisão social, como aquilo que permanece necessariamente negado, lacunar no corpo social e em suas instituições para que sua estruturação e funcionalidade sejam possíveis9.
Por fim, o autor identifica uma possibilidade instituinte nos AIE ao afirmar que são "não apenas o alvo, mas também o lugar da[s] luta[s] de classes"10 (Althusser, 1996, p. 117) e onde "a resistência das classes exploradas é capaz de encontrar meios e oportunidades de se expressar (...), seja utilizando as contradições que ali existem, seja pela conquista de posições de combate dentro deles" (grifos do autor). Aqui existe, ao menos virtualmente, a possibilidade de furo na estrutura instituída dos AIE, além de um vislumbre da possibilidade da atuação política nas brechas institucionais, uma vez que as forças socialmente dominantes "não pode[m] ditar a lei nos AIE com a mesma facilidade com que o faz no Aparelho (Repressivo) de Estado".
As referências à Psicanálise na obra althusseriana são muitas. O processo de interpelação, por exemplo, é referido à processos de significações inconscientes e de constituição subjetiva (p. 135). Também a noção de Sujeito, que remeterá ao conceito de grande Outro, enquanto aquele que não é semelhante por ser detentor do tesouro dos significantes (Lacan, 1998). Não obstante, a noção de Outro que encontramos em Lacan é radicalmente distinta deste Sujeito absoluto de Althusser; portanto, este último pode e deve ser complementado com as contribuições do ensino tardio de Lacan, conforme proposto e iniciado por Silva (2000) e Silveira (2010). Necessidade que se impõe também por Althusser tomar o sujeito lacaniano apenas em sua primeira formulação, onde possuía ainda um caráter eminentemente imaginário e identificatório. O sujeito, entretanto, adquiriu um caráter totalmente distinto no desenvolvimento posterior da obra de Lacan; constituindo-se a partir do Imaginário, mas também do Simbólico e do Real, ele é um efeito irruptivo na cadeia significante contra toda repetição angustiosa de um sintoma.
Em linhas gerais, Silva (2000) aponta que apesar de Lacan postular um condicionamento do sujeito à cadeia de significantes do Outro, ele estaria sempre para além disso, definindo-se também "no nível das pulsões, em termos de seu gozo em relação ao Outro, ocorrendo, portanto, a separação" (p. 246). Ou seja, o sujeito lacaniano, apesar de alienado à linguagem, é muito mais do que uma simples identificação com o que lhe designa o campo social e linguístico. Ele se separa, escapa às designações já-ditas no tesouro significante do grande Outro, porque este, apesar de "tido como lugar da verdade, não contém o significante que conteria essa verdade, já que ele é furado, não todo (...)" (p. 248). Esta mudança na noção de Outro - de um Sujeito detentor absoluto da verdade e que espelha sujeitos ideológicos ideais, para uma noção que permite uma falha nessa designação, como um lugar que contém o tesouro dos significantes, mas que compreende que este tesouro não é, afinal de contas, inestimável -, implica necessariamente uma diferença também na noção de sujeito utilizada por Althusser.
Conforme postulado pelo filósofo francês, o sujeito não passaria de uma identificação imaginária com os significantes do Outro; portanto, ele é "bem mais estável e coerente que o de Lacan, já que o eu [moi] 'arrumadinho' faz as vezes, aqui, do desalinhado inconsciente" (Eagleton, 1996, p. 215-216). Já o sujeito para Lacan é situado justamente onde falham estas identificações, como um tropeço ou lapso no enredo imaginário. É tendo estas precisões em vista que Silveira (2010) propõe uma inversão na fórmula clássica de Althusser, afirmando que "a ideologia interpela sujeitos como indivíduos" (p.169), e não o contrário. Ou seja, a ideologia realiza justamente o tamponamento daquilo que Lacan (1988) chamará de sujeito em favor das identificações imaginárias, que constituem tanto o indivíduo - entendido como unidade pessoal abstrata da totalidade social -, quanto a consciência, instância psíquica suposta-indivisa, que no campo psicanalítico corresponde ao eu (moi).
Assim, Silveira afirmará que na ideologia o que se passa é uma "costura imaginária do significante ao significado" (p. 176). É quando o inconsciente é calado pelo apego imaginário aos significantes vindos de alguma figura que ocupe o lugar de mestre. Trata-se de uma identificação massiva com os significantes do Outro, que nos interpelam para (supostamente) dizer tudo sobre nós, tendendo, deste modo, sempre à univocidade. Portanto, a referida costura se faz muito bem na letra, ato e voz disciplinar da religião, da moral ou mesmo da razão; o que ela tece é uma individualidade cônscia e disciplinada, que "trabalha [e consome] direitinho 'por ela mesma', isto é, pela ideologia" (Althusser, 1996, p. 138).
O avesso dialético desta operação, deste modo, é justamente a ética da Psicanálise, entendida como ética do desejo ou do sujeito (Silveira, 2010, p. 173). Trata-se de uma posição tomada e sustentada em favor da singularidade, uma vez que "direciona-se para o desatamento do nó em que se amarra o sentido que aferrolha o sujeito" (p. 174). Seu pressuposto é o de que "a dimensão sociossimbólica [do Outro] 'faz água', isto é, que ela mesma, enquanto tal, já é 'furada'; furo no simbólico e no social que, estruturalmente, o imaginário não pode suturar". É exatamente a ética que Costa-Rosa (2013b) defende que deve ser sustentada pelo PPS, entendida como "implicação desejante, marcando a posição do sujeito nos conflitos e contradições que o atravessam" e que resulta na produção de "sentidos singulares, decididos, da representação do sujeito, construídos para além dos significantes mestres do campo social, ou seja, da alienação ideológica imaginária" (p. 29).
Os três momentos da ideologia e uma proposta para seu uso no campo da Saúde Mental
Em um esforço de formalizar a ideologia em seu amplo espectro de manifestações, Žižek (1996), tomando de exemplo a diferenciação hegeliana da religião - entendida por Marx (2005) como a ideologia por excelência -, a diferencia em três eixos ou momentos: doutrina, ritual e crença (Žižek, 1996, p. 15). Assim, a ideologia enquanto doutrina seriam os sistemas de ideias voltados à legitimação de uma ordem de dominação social; enquanto ritual seriam os AIE, conforme postulados por Althusser (1996), isto é, as práticas concretas das instituições que materializam a ideologia em ato; e a ideologia enquanto crença seriam suas manifestações aparentemente 'espontâneas', que 'surgem' como que naturalmente na mente das pessoas, dando a aparência de autonomia de pensamento aos indivíduos e neutralizando sua historicidade.
Para Žižek, esta última seria a expressão mais fugidia da ideologia, porque tudo se passa como se já estivesse lá, como fatos evidentes na mente de todos, uma "rede elusiva de pressupostos e atitudes implícitos" (p. 20). Entenderemos que a ideologia enquanto crença é um tipo de subjetivação, chamada capitalística (Guatarri & Rolnik, 1986; Costa-Rosa, 2013b), que é formalizada e justificada racionalmente pelas produções científicas (doutrinas) e (re)atualizada ou confirmada em ato pelas práticas institucionais (rituais), formando uma tríade indissociável e fundamental para a manutenção e a funcionalidade das relações de exploração intrínsecas ao Modo Capitalista de Produção, especialmente em suas modalizações contemporâneas de (necessidade de) consumo cada vez mais acelerado de mercadorias (Harvey, 2008).
Utilizando as homologias entre o MCP e o PPHM já expostas neste texto, podemos aplicar esta tríade para analisar as formações ideológicas presentes no paradigma hegemônico em Saúde Mental. É importante pontuarmos que, deste ponto em diante, buscaremos apenas traçar novas perspectivas de trabalho, fundamentando-as minimamente e abrindo o caminho para futuras pesquisas. Feita esta ressalva, traremos a diferenciação zizekiana da ideologia para nosso campo. Assim, entenderemos que a ideologia enquanto ritual são as práticas institucionais disciplinares do PPHM em geral, especialmente aquelas já conceituadas anteriormente como de tipo Terapêutico Alienantes (Périco, 2013); que são amparadas por determinados corpos teóricos e sistemas de ideias, que podem ser entendidos como a doutrina; e que redundam em um determinado efeito ético, produtor da subjetividade capitalística, conforme conceituado por Guatarri e Rolnik (1986) e observado nas instituições de Saúde Mental por Costa-Rosa (2013b).
Constatamos que a construção doutrinária que aparece como hegemônica no PPHM atualmente, enquanto corpo teórico-discursivo que fundamenta e racionaliza suas práticas, é o 'Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais' (DSM-5) (Costa-Rosa, 2013d). Se a ideologia é a operação que torna as ideias das classes dominantes as ideias dominantes, ou seja, torna universais ideias e concepções que na realidade são particulares, encontramos nesta afirmação um indício do caráter ideológico deste manual. Um dos objetivos expressos do DSM é justamente ser um instrumento que "deve funcionar em uma ampla gama de contextos", servindo como "uma linguagem comum para comunicar as características essenciais dos transtornos mentais" e funcional para "psiquiatras, outros médicos, psicólogos, assistentes sociais, enfermeiros, consultores, especialistas da área forense e legal, terapeutas ocupacionais e de reabilitação e outros profissionais da área da saúde" (APA, 2014, s/p.) (grifos nossos). A pretensão universalista do manual foi entendida por Dunker (2014) como uma tentativa de criar um "basic english" para todos os trabalhadores e instituições de Saúde Mental11.
Dentre os múltiplos rituais institucionais presentes no PPHM, o do diagnóstico se destaca como o mais importante atualmente, uma vez que é por meio dele que o sujeito é aferrolhado em uma identificação imaginária com um "transtorno", entendido enquanto um significante vindo do Psiquiatra disciplinar e que é suposto conter toda a verdade sobre o sofrimento do sujeito, que acaba tamponado nesta relação. Mas também gostaríamos de destacar o ritual da recepção no PPHM, chamado de triagem, cuja lógica "parece ser a rápida identificação de sintomas, enquadráveis em uma das enfermidades presentes no 'Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais' (DSM)" (Périco, 2014, p. 138). Assim, esse ritual de recepção se conforma com práticas diagnósticas que excluem a singularidade do sintoma dos sujeitos, tomando-os como objetos destituídos de subjetividade e abarrotando-os em filas de espera para receber tão somente (mais) uma mercadoria, no caso um medicamento. Aqui, podemos começar a ver os sinais da sintonia existente entre esta tríade que configura as modalidades em que se apresenta a ideologia também no campo da Saúde Mental.
Enfim, a crença, compreendida como os efeitos em termos de produção subjetiva pelos rituais ideológicos, que chamamos de subjetividade capitalística. Trata-se de um tipo de subjetivação funcional ao Modo Capitalista de Produção, que "tende a individualizar o desejo", instaurando "um fenômeno de serialização, de identificação, que se presta a toda espécie de manipulação pelos equipamentos capitalísticos" (Guatarri & Rolnik, 1986, p. 233). Entendemos que nesta conceituação há tanto o objetivo - a manutenção da funcionalidade de um regime social de exploração -, quanto a operação - de aferrolhamento da singularidade por meio das identificações - que descrevemos como típicos da ideologia. Assim, a subjetividade capitalística tende a "reduzir tudo a uma tábua rasa" (p. 56) e restringir a produção de sentido "àquilo que convém a uma certa funcionalidade do sistema" (p. 276), criando, por exemplo, consumidores homogêneos do objeto-remédio.
Uma breve (in)conclusão
Por meio de uma incursão sobre a história da RPb, uma análise das lutas paradigmáticas no campo da Saúde Mental, e de uma revisão sobre a categoria de ideologia em Marx, Althusser e em autores posteriores, buscamos fundamentar uma linha argumentativa que aponta para uma leitura crítica da ideologia que atravessa as instituições onde o PPHM ainda é hegemônico. Ao abrir esse caminho, buscamos lançar hipóteses iniciais de trabalho sobre as diversas modalizações da ideologia identificadas em nosso campo de estudo. Pretendemos, desta forma, lançar novas perspectivas de pesquisas teóricas, bem como auxiliar em possíveis práticas instituintes nos estabelecimentos públicos de Saúde Mental. Por fim, também a síntese entre estas duas formas de trabalho é essencial para a construção de uma autêntica práxis criativa e transformadora, capaz de garantir avanços reais na luta paradigmática em favor do PPS.
Em uma conjuntura histórica de grave crise econômica, política e institucional em nosso país, com ameaças de retrocessos nos serviços estatais de Saúde e nas conquistas da RPb, entendemos que uma aposta nos trabalhos críticos ao PPHM torna-se ainda mais necessária, no intuito de fundamentar novas práxis dos trabalhadores partidários do PPS nestas instituições. Para isso, a arma da crítica ideológica é indispensável para atuarmos nas brechas do instituído e (re)conquistarmos posições dentro e por meio das instituições. Enquanto isso, persistimos resistindo, atitude fundamental em todas as formas de luta, sobretudo em tempos sombrios como o nosso.
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Recebido em: 13/09/2019
Aprovado em: 15/11/2019
1 Este artigo é uma exposição dos resultados preliminares de uma pesquisa de mestrado realizado no programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP-Assis, na linha de pesquisa de Atenção Psicossocial e Políticas Públicas, sob orientação do professor Abílio da Costa-Rosa. Este trabalho também é possível pelo apoio e fomento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), processo nº 169348/2018.
2 Esse divórcio e alijamento têm como ponto de referência inicial a formulação do cogito cartesiano, em que a Razão coincide com e é a única garantidora da verdade, sendo o sonho, o engano e a loucura figuras da ausência de questionamento, logo, da desrazão (Foucault, 1978). Não obstante, apenas a loucura estaria totalmente fora do alcance da razão, ao contrário do sonho ou do engano, onde ainda seria possível e bastaria duvidar para que a faísca da Razão reacenda a luz da verdade.
3 Utilizamos o conceito de desinstitucionalização conforme empregado por Amarante (1996) em sintonia com a tradição basagliana, que o tomará como uma ressignificação ampla dos saberes, práticas e perspectivas em relação à loucura no corpo social, indo muito além de uma mera desospitalização.
4 Sempre que utilizarmos a palavra "Atenção", grafada com a inicial maiúscula, estaremos nos remetendo à conceituação de Costa-Rosa (2013), que a define como um "conjunto de ações realizadas no campo de Saúde Mental" (p. 12).
5 No caso específico das instituições de Saúde Mental, veremos que as expressões ideológicas do PPHM também buscam ocultar outra divisão - a divisão subjetiva do sujeito ($), marca da singularidade, ao tomá-lo como mero corpo orgânico e/ou uma consciência individual.
6 Demanda Social remete à Análise Institucional de Lourau (1975) e é descrita por Costa-Rosa (2013a) como "hiância em sentido amplo; conjunto das pulsações produzido pelo antagonismo das forças em jogo no espaço socioeconômico e cultural" (p. 39).
7 As práticas Terapêutico Alienantes (Périco, 2014) seriam aquelas que visam o "tamponamento e a capitalização do sofrimento psíquico e, com isso, a (re)adaptação ao laço social capitalista" (p. 79), nas quais o autor inclui as prescrições medicamentosas, psicoterapias da consciência e práticas de tutela social (p. 80).
8 O Sujeito de Althusser, grafado com a inicial maiúscula, remete ao conceito de Outro de Lacan, também grafado com a inicial maiúscula. Ambos remetem justamente à figuras que não são semelhantes, pessoas concretas como todos os [pequenos] outros, mas que precisamente por conta disso estão sempre presentes, sendo referência para e referidos pelos [pequenos] sujeitos a todo momento.
9 O Real é entendido aqui, grosso modo, como o impossível. Outra figura deste Real é a finitude tanto dos recursos naturais do planeta, quanto da força de trabalho humana a ser explorada no processo de produção, ambas incompatíveis com a lógica tautológica de acumulação e expansão do Capital.
10 Aqui existe uma nítida aproximação com a já utilizada conceituação das instituições, especialmente as de Saúde, fornecida por Luz (1979), que as considera como "palco de lutas sociais".
11 O termo "bíblia da Psiquiatria", tão comumente empregado em matérias e artigos jornalísticos para se referir ao DSM, também é um indício de sua função ideológica que não pode ser desprezado.