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Revista de Psicologia da UNESP
On-line version ISSN 1984-9044
Rev. Psicol. UNESP vol.18 no.spe Assis 2019
ARTIGOS
Medicalização como Sintoma Social Dominante: estratégias a partir do Paradigma Psicossocial
Medication as a Social Symptom Dominant: strategies from the Psychosocial Paradigm
Laura Pampana BasoliI; Silvio José BenelliII
ILaura Pampana Basoli. Bacharel em Ciências Econômicas pela Unesp de Araraquara (2009), Formada em Psicologia pela Unesp de Assis (2016), Mestra em Psicologia e Sociedade, também pela Unesp de Assis (2018). E-mail: laurabasoli@yahoo.com.br
IIPsicólogo e mestre em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências e Letras, Assis. Doutor em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia, USP, São Paulo. Professor assistente doutor no Depto. de Psicologia Clínica e no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, SP. Integrante do Laboratório Transdisciplinar de Intercessão-Pesquisa em Processos de Subjetivação e "Subjetividadessaúde" (LATIPPSS) E-mail: silvio.benelli@unesp.br
RESUMO
O artigo pretende problematizar a Medicalização como discurso predominante nas práticas de Atenção à na clínica contemporânea. A Psiquiatria DSM, aliada à Indústria Farmacêutica e aos medicamentos psicotrópicos, têm apresentado um modo de olhar para o sofrimento psíquico que tende a eliminar o sujeito, seu contexto histórico e seu saber-fazer sobre aquilo que o adoece. O Discurso Médico transforma os sintomas em transtornos e distúrbios, apostando em pílulas para regular um corpo que fica, assim, reduzido à sua dimensão orgânica. A sociedade contemporânea produz, como um dos efeitos, a medicalização de toda e qualquer manifestação de dificuldades (afetivas e/ou sociais), bem como da dor de existir. Em meio a tanta bioquímica, como a Psicanálise do Campo de Freud e Lacan pode contribuir para que as práticas de "cuidado" se orientem em direção ao Paradigma Psicossocial? A Gestão Autônoma da Medicação (GAM) e o lugar necessário da Psiquiatria e dos psicotrópicos na Atenção Psicossocial parecem ser uma boa aposta.
Palavras-chave: Medicalização; Psiquiatria; Psicanálise; Discurso Médico; Saúde Mental Coletiva.
ABSTRACT
This article intends to show a predominant medical approach in the practices of Care and Attention to Health in the Contemporary Clinic. DSM Psychiatry, allied to the Pharmaceutical Industry and Psychotropic Medicines, have presented a way of looking at psychic suffering of what a subject, his historical context and his knowledge about what he does. The medical discourse has transformed the symptoms into disorders and disorders, betting on policies for a body that remains, therefore, reduced to its organic vision. "The medicalization of all manifestations of health, health and / or health" as well as the pain of habit. In the midst of biochemistry, such as the Field Psychoanalysis of Freud and Lacan can contribute to the care practices be oriented towards the Psychosocial Paradigm? Autonomous Medication Management (GAM) and Psychosocial appear to be a good bet.
Keywords: Medicalization; Psychiatry; Psychoanalysis; Medical Speech; Collective Mental Health.
Medicalização nas práticas de cuidado e atenção à Saúde
Mas acreditar que as neuroses podem ser vencidas pela administração de remediozinhos inócuos é subestimar grosseiramente esses distúrbios, tanto quanto à sua origem quanto à sua importância prática.
(Freud, 1914/1969a, p. 22)
É possível observar na atualidade um apelo cada vez maior ao discurso do especialista para consultar-se a respeito da experiência humana. A medicalização da vida está presente desde a prescrição da cesariana, perpassa os padrões de desempenho escolar e profissional, o uso dos prazeres, a reprodução, o envelhecimento, o entorpecimento, tudo se torna objeto da Ciência. Neste sentido, a Medicina mental e a Psiquiatria são os principais campos dos quais se originam e se sustentam tais discursos.
Ao referenciar um comportamento dito "normal", qualquer desvio, seja por excesso (ansiedade, pânico, hiperatividade) ou por falta (depressão, déficit de atenção), é passível de ser tomado como um conjunto de sintomas que evidenciariam este ou aquele transtorno. Isso constitui a razão diagnóstica contemporânea, prevalente nas diversas práticas da Saúde, seja nos estabelecimentos públicos ou na clínica particular.
Uma das entradas possíveis para problematizar a clínica psi, na contemporaneidade, apresenta-se a partir do conjunto de práticas e saberes acerca do modo como se realiza um diagnóstico e se propõe um tratamento para os sujeitos em sofrimento psíquico. Aqui, sujeito é aquele dividido em seu desejo inconsciente, atravessado pela cultura e pelos Determinantes Sociais da Saúde (Buss & Pellegrine Filho, 2007). Destaco a dimensão singular com a qual é necessário tomar o modo como cada sujeito apresenta seu mal-estar, pois se trata de considerar e elevar o sintoma ao seu caráter de objeção. Objetivamos considerar os sintomas como produção de saber, de denúncias do exercício das relações de poder (e resistência!) presentes nos discursos dominantes.
É possível observar que, no mundo contemporâneo, cada vez mais se utiliza medicamentos para tratar quase qualquer tipo de mal-estar, comportamentos fora do padrão esperado, distúrbios de aprendizagem, impotência, isto é, o comprimido se tornou a regra, estratégia hegemônica do Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador (PPHM). Numerosos sujeitos estão imersos nas mais avançadas fórmulas químicas, cuja promessa é o alívio imediato e a resolução de todo e qualquer conflito inerente à existência humana. Destaco as dimensões clínica e política desses tratamentos oferecidos como cuidado em Saúde, tanto nos serviços públicos, quanto nos consultórios particulares das mais diversas especialidades clínicas.
Ao percorrer os estudos de Ivan Illich e Michel Foucault, Gaudenzi e Ortega (2011) afirmam que o termo "medicalização" surgiu no final da década de 1960, para designar a apropriação que a Medicina estava fazendo dos modos de vida das populações. O campo da Sociologia da Saúde, todavia, começou a denunciar a Medicalização como um excesso de influência da Medicina em aspectos que, até então, não haviam sido objeto deste saber, transformando "aspectos próprios da vida em patologias, diminuindo, assim, o espectro do que é considerado normal ou aceitável" (p. 24).
Uma consequência dessa lógica da padronização de comportamentos é o acirramento da intolerância em relação a diferentes temporalidades, que deixam de ser aceitos socialmente. A escola é, sob este prisma, um campo privilegiado para tal identificação, diagnóstico e intervenção, na qual há uma normatização dos modos de estar no coletivo, assim como uma exigência por desempenho e performances escolares com relação ao processo de aprendizagem. Tudo isso é isolado de seu contexto histórico, social e libidinal, e passa a ser entendido como doenças orgânicas que devem ser tratadas, uma disfunção neurológica ou, ainda, um transtorno. Com tal estratégia, ficam excluídos de cena os determinantes sociais, políticos, históricos e relacionais, peças fundamentais para entender a lógica que produz as condições materiais nas quais esses fenômenos aparecem (Moyses & Collares, 1992).
Discurso do Capitalista e o Sintoma Social Dominante
Os Discursos como Modo de Produção de Laço Social foram propostos por Lacan a partir dos impossíveis freudianos: governar, educar e analisar. São quatro + 1: Discurso do Mestre (DM); Discurso da Universidade (DU); Discurso da Histérica (DH); Discurso do Analista (DA); e mais um, que Lacan anuncia no Seminário 17,o avesso da psicanálise (Lacan, 1992), ministrado no ano de 1968 em Paris, ano que ficou conhecido pelo "Maio de 68". Nesse contexto histórico de luta, resistência, crítica social, objeção, questionamento, Lacan propõe a hipótese do Discurso do Capitalista para dar conta das transformações da Formação Social capitalista em sua forma avançada (Costa-Rosa, 2013).
Segundo Lacan, foi Marx quem inventou o sintoma (Zizek, 1996) e que considera que o proletário seria o sintoma social do capitalismo (Vanier, 2002; Xavier, 2013), expressão da extração da mais-valia (homóloga ao mais-gozar) e do fetiche da mercadoria. Ao estabelecer o matema do Discurso do Capitalista (DC), Lacan realiza uma inversão entre S1 (significante mestre) e $ (sujeito), isto é, na forma como esses termos aparecem no discurso do mestre. Com a inversão entre os termos do campo do sujeito, a articulação entre o senhor e o servo, situada no campo do Outro, não mais ocorre.
No DC, o senhor é quem sabe como o servo goza. O objeto colocado no lugar da perda/produção pode ser "acessado" pelo sujeito, situado no lugar de agente, de forma que, o sujeito, passa a ser impelido pelo objeto e não mais pela verdade. Esse (impossível) laço social propõe uma tendência à relação direta entre o sujeito e o objeto, sem mediação do campo Simbólico, caracterizado pelas relações sociais humanas, como se fosse possível ao sujeito alcançar a completude, prescindindo do Outro. Ao seguir o fio da história, é possível dizer que o DC, incluindo a produção do Discurso da Universidade como transição, nasceu no momento em que o mestre tratou de se apropriar do saber produzido pelo servo. Outro aspecto a ser observado é que, não é mais uma verdade, admitida como impossível (e por isso, não-toda) que sustenta o discurso, posto em marcha por um agente; agora, a moderna civilização agencia verdades de acordo com seus interesses, para manutenção e ampliação do Capital:
[...] no MCP, o plano da Verdade (como causa de acumulação infinita de valor) agencia o Agente (já "identificado" como capital, que por sua vez agencia o Trabalho para fabricar as mercadorias para produzir mais capital (lugar da Produção) - Marx fala em DMD (dinheiro que produz mercadorias para produzir mais dinheiro) (Costa-Rosa, mimeo).
No Modo Capitalista de Produção (MCP), o trabalho é agenciado: trata-se de uma forma de trabalho que foi expropriada de tudo, menos de seu poder de recriar, aquilo que sempre retorna e insiste em produzir saber novo, seja no sintoma, seja no sinthoma. De acordo com Costa-Rosa (mimeo), "nas circunstâncias sociais de alienação comum do trabalho, aquilo que se efetiva é só uma forma pálida desse poder de criação, mas que, entretanto, não deve descuidar de ver nas figuras do SSD. Ou seja, as figuras do SSD não deixam de expressar essa forma de contraposição ao trabalho alienado do MCP", disto decorre a importância de olhar para os sujeitos e seus sintomas, a partir do lugar de resistência e potência criativa.
O Sintoma Social Dominante (SSD) pode ser tomado como um dos aspectos do Discurso do Capitalista. Introduzido na Psicanálise por Melman (1992), um sintoma é socialmente dominante, não por ser o mais frequente ou o mais importante, mas por ter sua estrutura homóloga à estrutura da Formação Social onde acontece. No (im)possível do laço social capitalista, a lei do mercado, como reguladora principal das relações sociais, não é capaz de efetivar a mediação simbólica necessária entre o sujeito e o objeto (a), o que só poderia solucionar-se em uma crise extrema ou em uma catástrofe, que resultaria na morte de um no outro. Assim como na toxicomania, onde a relação de gozo é experimentada pelo usuário como potencialmente inesgotável, o capitalista se relaciona com os recursos naturais, de forma predatória, como se fossem infinitos.
O SSD pode ser apreendido a partir da homologia estrutural proposta entre a Formação Social e as manifestações do mal-estar na atualidade, tais como: a depressão, o alcoolismo, a toxicomania, a anorexia, a bulimia, a obesidade, o TDAH, a síndrome do pânico, o burnout ou as escarificações. Estes aparecem como problemas endêmicos do mundo contemporâneo e crescentes na clínica apresentada pela literatura científica. Como um dos planos de análise possível para essa intersecção entre o campo da Economia Política e a Psicanálise, o SSD se apresenta como um conceito importante à possibilidade de escutar os sujeitos para além da aparência das diferentes roupagens com as quais se transvestem os sintomas na contemporaneidade.
As estruturas da realidade psíquica e social estão em continuidade möebiana, o que permite inferir acerca da toxicomania uma relação de homologia com a estrutura da Formação Social neoliberal: "a regulação e o limite entre as partes em ação são produzidos apenas pela crise e a catástrofe, "a morte de um no outro", também pode expressar os efeitos fundamentais das crises da economia como meio de regulação principal". Assim como a toxicomania, aparecem no contemporâneo outras figuras da morte/abolição, tais como: o suicídio, a depressão e a anorexia. A falta de limites, evidenciada pela ausência do conceito de impossível no DC, pode ser vista de forma clara no modo como o sujeito precisa "voltar ao 'ponto zero' do gozo nos limites do princípio do prazer" (Costa-Rosa, mimeo), reino da alienação ao desejo do Outro e do imperativo superegoico em sua versão feroz: "goza!"(Goldenberg, 1996).
Medicalização como Sintoma Social Dominante e Discurso Médico
Dizer que é um Sintoma Social Dominante (SSD) indica que a Medicalização, como acontecimento presente nos mais diversos tipos de serviços, pode ter sua formação equiparada, sobreposta, é uma resposta rápida, a todo e qualquer sinal de objeção do sujeito às determinações do laço social. Nas palavras de Costa-Rosa (2013):
O estatuto de medicina mental deve grande ajuda ao desenvolvimento atual da indústria químico-farmacêutica e ao estado da globalização do Modo Capitalista de Produção responsável pela sociedade de consumo, que vem naturalizando as demandas de resposta instantâneas de suprimentos diversos, inclusive medicamentosos para as mais diversas queixas expressas em sofrimento psíquico e impasses subjetivos de todo tipo (p. 213-214).
A partir da leitura lacaniana dos discursos, Clavreul (1983) propõe o Discurso Médico, um híbrido entre o Discurso do Mestre e o Discurso da Universidade, que permite explicitar certos fatos velados como, por exemplo, o caráter de objeção do sofrimento psíquico. O Discurso Médico teria, por pretensa vocação, reduzir as desordens da subjetividade e colocá-las em ordem: classificando, estigmatizando, normatizando, ou ainda, diagnosticando.
O Discurso do Mestre é o primeiro, aquele que dá a primazia ao significante S1, constitutivo de todo discurso. Como discurso primeiro, ele ordena o significante com outros. Os significantes (sintomas, como informações sobre a doença) em si, não significam nada, mas diante do lugar da mestria, eles são colocados em uma cadeia articulada, o que faz com que o objeto a desapareça como causa do desejo e reapareça como achado do discurso. Toda (des)coberta científica, e o diagnóstico é uma delas, encobre a divisão do sujeito. Logo, o desejo do médico por seu objeto é unificador e sutura a hiância/abertura/divisão do sujeito.
Clauvrel (1983) toma o Discurso Universitário como prolongamento obrigatório do Discurso do Mestre, ou seja, discurso constituído como saber capitalizado. O objetivo da universidade é, por sua vez, sistematizar e transmitir o saber, percebido como o conjunto das informações. O saber (S2), ocupando o primeiro lugar no quadrípode implica que, "a universidade se prolonga nos técnicos e bens de consumo que resultam do saber" (p. 167). Os medicamentos são alguns desses bens (gadgets): "mercadoria que, como outra qualquer na versão mais tardia do MCP, é ilusoriamente apresentada ao sujeito como a suposta materialização do objeto do desejo" (Périco, 2014, p. 77).
Está em jogo a promoção da performance por meio da psiquiatrização da normalidade, que tem como objetivo principal qualificar os indivíduos, ou seja, prepará-los para lidar com os impasses colocados pela sociedade de risco, que transformou o cidadão em consumidor - não apenas de produtos, mas também de saúde, diagnósticos, medicamentos e tratamentos. Apesar de ser um Manual para estudos de epidemiologia a partir de estatísticas, o DSM1 (APA, 2014) tem sido uma das principais bases para diagnóstico em saúde mental. Na sua quinta versão, lançada já no século XXI, quase todo comportamento pode ser incluído em alguma das categorias oferecidas por este manual; e não seria demais reafirmar que, para todos esses "transtornos", a indústria farmacêutica oferece os mais modernos medicamentos.
Submetido à lógica do DSM, o que importa não é o "olhar médico", sua experiência clínica, mas sim o fato deste conhecer uma ordem articulada desses signos, ou pelo menos supor uma ordem possível. O Discurso Médico os ordena em uma cadeia significante da qual se extrai uma significação, que é a existência de uma doença. Tal diagnóstico é, portanto, um ato de mestria, diametralmente opostas às hipóteses diagnósticas presentes no trabalho característico do Discurso do Analista (Clauvrel, 1983).
Clínica Ampliada: Saúde para além da ausência de doença
Para pensar as práticas de Medicalização da vida e "medicamentalização" do sofrimento psíquico, nos mais singulares modos de manifestação, tem-se por base a análise paradigmática de Costa-Rosa (2013), na qual este assinala a necessidade de definição de Saúde, mais além de uma:
simples reposição de uma diferença que falta no corpo ou em qualquer outro lugar do indivíduo através de suprimentos medicamentosos ou outros. [...] a saúde como tal é um processo de produção saúde-adoecimento-Atenção, por sua vez resultante dos efeitos do processo social de produção da vida material em uma dada sociedade (p. 163).
As modificações no conceito de saúde acompanham a passagem histórica da humanidade. A Saúde Pública, por exemplo, é efeito da necessidade de controle das populações ocidentais, as quais se aglomeraram nas cidades após o êxodo rural, provocado, com efeito, pelo processo de industrialização e urbanização das mesmas: "desnutrição, alcoolismo, doenças mentais e violência atingiam pesadamente a nova classe de trabalhadores urbanos" (Sabroza, 2010). O caráter político de sua prática implica a intervenção na vida política e social dos indivíduos, grupos e populações. Desta corrente de pensamentos, é possível destacar Chadwick (Report on the sanitary condiction of the labouring of greatbritain, de 1842), Villermé (Tableau de l'état physique et moral des ouvriers de Paris, de 1840) e Engels (A situação das classes trabalhadoras na Inglaterra, de 1845) (Buss & Pellegrini Filho, 2007).
De acordo com Scliar (2007), o conceito de saúde, divulgado pela Organização Mundial da Saúde em 1948 promovia o reconhecimento da saúde como direito dos cidadãos e obrigação do Estado. Enquanto um Campo (healthfield), a Saúde é composta pela biologia humana, o meio ambiente, o estilo de vida e a organização da assistência à saúde.
Segundo Buss e Pelleguini Filho (2007), os Determinantes Sociais da Saúde (DSS) são as condições de vida e trabalho que se relacionam com sua situação de saúde, ou seja, "são os fatores sociais, econômicos, culturais, étnico-raciais, psicológicos e comportamentais que influenciam a ocorrência de problemas de saúde e seus fatores de risco na população" (p. 78). No presente momento das vicissitudes históricas pelas quais vem passando o conceito de "saúde", seu relacionamento com o contexto se dá por duas vias, dois modelos de atenção e cuidado coexistentes nas práticas de Saúde. De acordo com Ayres (2009), modelo é "a convergência de horizontes entre os diversos discursos socialmente legitimados acerca dos modos de operar as tecnologias de atenção à saúde de indivíduos e populações" (p. 12).
O primeiro, baseado na epidemiologia dos riscos, pressupõe que a saúde pode ser assegurada por um conjunto de práticas prescritivas, originada no saber técnico-científico. O segundo modelo, por conseguinte, situa-se na lógica proposta pelo SUS, de Integralidade do Cuidado em Saúde, incluindo a Humanização (Passos & Benevides, 2005), a Clínica Ampliada (Brasil, 2004), além das Redes e Linhas de Cuidado (Kalichman & Ayres, 2016). Na Saúde Mental, destaca-se a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), cujo desafio é implantar o novo modelo assistencial, distinto em relação ao modelo técnico-assistencial, que organiza e sustenta as práticas dos profissionais que nela atuam.
A Crise da Psicanálise (ou como (não) engolir a pílula?)
Helsinger (2015) discorre sobre a perda do poder simbólico da Psicanálise e visa questionar, genealogicamente, as condições propiciadoras que levaram as Neurociências, a Psicofarmacologia, a Psicologia e a Psiquiatria a ocuparem o lugar de hegemonia nas últimas décadas. Observa ainda uma crise da Psicanálise e interroga como a atual conjuntura sociocultural, política e ética produz efeitos para a clínica no contemporâneo. De acordo com Birman (2000), na inversão que deflagra a crise da Psicanálise, há uma superposição entre corpo-organismo, na qual o corpo foi confiscado pela Medicina, enquanto a Psicanálise foi reconduzida a um desvio biologizante. O corpo é sexual, atravessado pela pulsão, pela alteridade; constitui-se ao romper com a natureza. Já o organismo é biológico, respeita essa racionalidade e o ritmo natural, centrado em si mesmo (Helsinger, 2015, p. 30).
Birman (2000) chama de inversão deslocamento entre Psicanálise e Psiquiatria. Até 1970, a despeito dos progressos farmacológicos da década de 1950, a Psicanálise era o saber fundamental, o paradigma que instituía as práticas de cuidado da loucura, detinha a hegemonia do campo psicopatológico, em oposição à psicofarmacologia (atualização dos jogos de poder entre o Paradigma Psicossocial e o Paradigma Hospitalocêntrico Medicalizador (PPS x PPHM) (Costa-Rosa, 2013). No ano de 1952, foi publicado o DSM-I e, em 1978, o manual ganhou sua terceira versão, quando apresentou mudanças com relação aos métodos para a avaliação e o diagnóstico de transtornos mentais, com critérios específicos para definir o que é um transtorno e como ele se diferencia dos demais.
A dor de existir volta a ser disfunção, portanto, passível de regulação, mero acontecimento corporal. O corpo, neste paradigma, volta a se reduzir ao orgânico, perdendo o estatuto de dobra entre psíquico e o somático e, entre esses, o social. É nesse sentido que, a medicalização do social ocorre: além daquilo que a Psiquiatria oferece, aquilo que a população demanda. Já capturados pelo discurso médico, os sujeitos também chegam sem correlacionar sua história ou o tempo à doença: perguntam ao trabalhador da Saúde o que ocorre com o corpo para que o coração acelere, para que não tenham ânimo para viver, porque comem demais, porque vomitam, como se tais sintomas fossem tão somente mal-estares físicos. Depressão, toxicomania, síndrome do pânico, todas são tomadas, de modo estrito, como uma preocupação de ordem funcional. A intervenção, nesse caso, assume um direcionamento centrado em acontecimentos (físicos), relevados em disfunções do psiquismo:
A ideia de história de uma subjetividade, articulada com o eixo do tempo, tende ao silenciamento e ao esquecimento. É sempre a pontualidade da intervenção, centrada no psicofármaco, que está em questão na terapêutica do dispositivo psiquiátrico da atualidade. Jogou com isso, enfim, uma pá de cal na concepção de história como fundamento da subjetividade (Helsinger, 2015, p. 186).
Sujeito e sua história, sua singular e complexa dor de existir, são recortados pelo transtorno, servindo justo à racionalidade médica. Do ponto de vista da ideologia dominante, a Medicalização como discurso se converte na prática hegemônica do controle e disciplinarização de corpos (reduzidos a organismos), tornando-os dóceis, presas fáceis da captura pela via do consumo, passando este à necessidade imperativa: "Goza!". O DSM é um modo de operar que sutura a divisão subjetiva originadora do sofrimento psíquico do sujeito, interpela-o enquanto indivíduo e pode, portanto, diagnosticá-lo e tratá-lo como um organismo medicalizável, readaptável ao meio social (à festa do consumo!).
Em Como engolir a pílula? Laurent (2003) analisa o medicamento enquanto objeto libidinal que, segundo o autor, se apresenta de quatro formas distintas: o phármakon, o placebo, o "mais de vida" e o anestésico, os quais se articulam com os três registros propostos por Lacan, isto é, em sua dimensão Simbólica, Imaginária e Real. Conclui, afirmando que a "psicanálise não se opõe à prescrição medicamentosa, ela pode fazer do poder contingente do medicamento um auxiliar (...) [podendo] prescindir do medicamento na condição de se servir dele de uma boa maneira" (p. 43).
De acordo com Dunker (2013), foi na ocasião da publicação do DSM-3 que se operou o divórcio entre Psiquiatria e Psicanálise, entre a narrativa, ainda que ficcional, do sofrimento neurótico e o reconhecimento da expressão do mal-estar como algo inerente à vida, que tem uma fórmula etiológica para sua produção, não podendo ser subtraído pela prescrição de medicamentos. Segundo Pereira (2013), um dos efeitos do uso do DSM pelos psiquiatras é "o esvaziamento da importância atribuída à relação psiquiatra-paciente", pois que, a estratégia de tudo se tratar de mental disorder permite à Psiquiatria o reconhecimento como especialidade, ao mesmo tempo que empobrece a "clínica psiquiátrica em favor de uma prática centrada no estabelecimento formalizado pelo DSM" (p. 40), transformando as entrevistas preliminares e o início do tratamento em uma anamnese restrita ao sintoma: de "como" dói, para "onde" dói?
A teoria do sujeito, em Psicanálise, aposta na sua desnaturalização, como uma experiência marcada pelo desamparo que, por sua vez, impulsiona a busca por proteção. Tal lugar de proteção, na modernidade, é ocupado pela religião, devido ao progresso da ciência, e, na pós-modernidade, é ocupado pelo Discurso Médico. Na medida em que este promete driblar o sofrimento, o envelhecimento e a morte, ganha espaço entre os discursos, saberes e práticas; como se a ciência pudesse tamponar o desamparo original que nos marca como sujeitos desnaturalizados.
Uma crítica ao furor sanandi e ao (ab)uso dos psicotrópicos: uma toxicomania legal(izada)
Em sua Crítica à Razão Medicalizadora, Costa-Rosa (2013) alerta para os efeitos da exacerbada receitação médica de psicotrópicos, indicando que o aumento do seu consumo é comparável à toxicomania. Nas suas palavras:
[...] o consumo de psicofármacos está chegando ao estado de uma verdadeira toxicomania com as mesmas características de suas congêneres provocadas por drogas ditas ilícitas. Em outros termos, parecem cada vez mais claros os indícios de que os efeitos da "medicalização", sejam encarnados no corpo social ou no corpo individual, constituem por si sós mais uma figura do Sintoma Social Dominante (p. 167).
Santos (2009), investiga qual a percepção do uso de psicotrópicos pelos trabalhadores e sua relação com a Saúde Coletiva, sinalizando para uma submedicação das populações, as quais, de fato, poderiam se beneficiar de uma terapia medicamentosa, associada a outras práticas terapêuticas, enquanto outra parte, a que não apresenta impasses graves, são iatrogenizadas. Seu esforço se direciona no sentido de avaliar como essa situação de submedicação e iatrogenização acontece nos equipamentos de Saúde, com e sem arranjos da Clínica Ampliada.
Entre os principais arranjos, aponta para os Colegiados de Gestão (reuniões de equipe periódicas, por exemplo), Apoio Matricial (para facilitar o contato entre referência do caso e o especialista de apoio), Equipe de referência, adscrição do usuário (vínculo de confiança entre profissionais e pacientes). Santos sublinha também a importância de certos dispositivos, tais como, cursos/capacitações/formação, análise/supervisão institucional, assembleias, planejamento de projetos e grupos-tarefa, com o objetivo de produzir deslocamentos nos processos de trabalho e na dinâmica da equipe dos Estabelecimentos de Saúde.
Santos (2009) parte de uma crítica à clínica contemporânea, adjetivando-a como "de mercado". Considera as contribuições da Crítica à Economia Política marxiana e destaca a teoria do valor do trabalho e o fetiche da mercadoria, com o objetivo de compreender a desarticulação que a modernidade promoveu entre a dimensão simbólica do sujeito e seu desejo e a redução desta à satisfação de necessidades. Para o autor, "o complexo industrial médico hospitalar representado pelas indústrias farmacêuticas e de materiais de
procedimentos médicos" atua na produção de verdades, adotadas por diversos profissionais da Saúde e influencia, inclusive, "não apenas nos rumos e resultados da construção do conhecimento científico, mas também na própria tomada de decisão médica, mais precisamente na prescrição de medicamentos" (p. 15). Essa operação, realizada todos os dias pelos representantes de laboratórios e pela mídia, minimiza os riscos e iatrogenias dessa prática clínica, fato que tem ganhado destaque pelo aumento do uso de psicofármacos no mundo inteiro.
Outro fator apresentado como consequência deste modo de cuidado é o crescimento dos "custos indiretos gerados pela desassistência a esses problemas, provenientes do aumento da duração dos transtornos e da consequente incapacitação" (Santos, 2009, p. 16). A pesquisa observa uma dificuldade de trabalhadoras e trabalhadores da Saúde em diferenciar sintoma e diagnóstico, pois manifestações de fadiga, irritação, dificuldades de sono, de concentração, esquecimento e ansiedade, não configuram doenças mentais que mereçam intervenções farmacológicas (Santos, 2009). Os antidepressivos, por exemplo, são receitados para a maioria desses quadros sintomáticos, o que gera, em particular, altos custos para o Estado e produz uma população viciada em benzodiazepínicos.
Santos (2009) explicita também que não se trata de condenar o uso de remédios, isto é, não se deve trocar um imperativo (tome remédios!) por outro (não tome remédios!), visto que se substituiria uma ideologia, ou no caso, uma verdade, por outra. Nesse contexto de produção de saúde, trata-se de sustentar um lugar vazio para as ideologias e verdades absolutas (Zizek, 1996). A partir da análise paradigmática de Costa-Rosa (2013), apreende-se que, o lugar adequado dos trabalhadores e trabalhadoras da Saúde é o de manter aberta a possibilidade de troca e construção coletiva do cuidado para cada usuário e usuária. O sujeito, implicado com o seu tratamento e com os sintomas que o fazem sofrer, poderia discutir com os profissionais de seu serviço qual o melhor Projeto Terapêutico Singular (PTS) para o seu caso, se as medicações seriam utilizadas ou não, os efeitos colaterais, qual o resultado esperado, entre outras especificidades.
Sobre o assunto, a pesquisa de Santos (2009) aponta para um "baixo empowerment que os usuários dos serviços possuem em relação ao seu tratamento, isto é, a baixa apropriação que os usuários possuem quanto ferramentas que os transformem em sujeitos ativos de decisões sobre o seu tratamento" (p. 20). Em contraposição ao Discurso Médico e ao Discurso do Capitalista, a aposta no Discurso da Histeria na passagem para o Discurso do Analista, quando se trata do posicionamento ético do qual se escuta os relatos dos sujeitos nos serviços de saúde, este parece estar em sintonia com o entendimento que o autor apresenta, pois se compreende que o baixo empowerment "aumenta a vulnerabilidade da clínica à economia de mercado, ao complexo médico hospitalar e enfraquece o vínculo terapêutico que é sustentado por outros arranjos clínicos ampliados" (p. 20).
O furor sanandi, presente nos serviços de saúde na modernidade, tem sido responsável por grande parte da iatrogenia ocasionada por essa clínica de mercado na Saúde Mental, altamente medicalizadora e centralizada no saber-poder médico. A ciência moderna acredita (cinicamente, talvez?) ser possível sanar todo o mal-estar inerente à existência humana com remédios. Em contraste, ao afirmar o impossível de tudo curar, presente no PPHM, o PPS não cai em condição de impotência diante do fato de não ser possível curar tudo, de não existir uma verdade toda, um saber completo que dê conta do mistério sempre cambiante que é a vida.
O discurso da "falta de tempo" está relacionado, sobremaneira, ao Modo Capitalista de Produção aplicado aos serviços de Saúde Pública, os quais ficam cada vez mais distantes da ética proposta pela Saúde Coletiva. Redução de custos, aumento da produtividade, privilégios para a indústria farmacêutica, representante do grande capital, enfim, todos esses fatores concorrem para a manutenção da produção de subjetividades serializadas e capitalísticas no âmbito da Saúde Mental, com efeitos de reprodução do capital e da alienação como modo de estar no mundo contemporâneo.
Outros fatores indicados por Santos (2009) estão relacionados ao desconhecimento, por parte dos usuários, de informações sobre os medicamentos que lhes são prescritos. Na impossibilidade de dialogar com os profissionais dos serviços, recorrem a bulas e pesquisas na internet e ficam cada vez mais desinformados, "o que leva a uma maior insegurança, reduzindo a chance de deixar de fazer o uso crônico de psicotrópico" (p. 52). Por não terem apoio da equipe e fazerem o manejo dos medicamentos de forma autônoma, o efeito, muitas vezes, é o reforço da dependência em relação ao psicotrópico. Um dos entrevistados da pesquisa de Santos se refere aos medicamentos como "uma pedra no sapato", pois se por um lado tomá-los causa efeitos colaterais indesejáveis, por outro, não fazê-lo, nada resolve. Nesse momento é que o pesquisador se pergunta como fazer com que os remédios tenham um lugar na clínica sem transformá-los em "pedras no sapato". Antes de concluir, Santos reforça a importância das abordagens multivariadas para os problemas:
Outro ponto para apoiar uma política para o uso racional da medicação seria na educação de profissionais, inclusive médicos psiquiatras. Estimular nos programas de formação, residenciais e nos cursos de psicofarmacologia a ideia da negociação da dose, de incluir a voz do paciente na decisão do tratamento. Fazendo-o assumir a responsabilidade pela terapêutica construída pela resultante da compreensão tanto dele como do médico. Isto implica em fomentar posturas de profissionais que ajam como apoiadores de seu público e não como detentores do conhecimento e decisões sobre a vida dos outros (p. 71).
O uso massivo de psicofármacos concorre para desencorajar outras formas de expressão da demanda social e o Modo de Produção Capitalista da Saúde Mental, tal como se apresenta hoje, de forma predominante, inibe a diversificação na oferta de escuta dessas "outras formas de expressão". A proposta do Modo de Produção da Atenção Psicossocial fundamenta-se no vínculo como operador necessário da efetuação da revolução discursiva pertinente à transformação das práticas, ao deslocamento do Discurso Médico e, por fim, à transição paradigmática. O PPHM e PPS realizam diferencialmente a relação entre produção de subjetividade e "produção de saúde", cujos efeitos, em termos terapêuticos e éticos, são também antagônicos.
Os medicamentos acabam sendo dificultadores no processo de diagnóstico e tratamento dos sujeitos, ou por já estarem muito medicalizados, com o desejo anestesiado pelos anos de uso cronificado de medicamentos, ou por que, diante de uma crise - motor necessário ao reposicionamento subjetivo como efeito esperado de uma análise -, o medicamento tampona a questão através da promoção de um "bem-estar" químico, programado e com data de validade. Ademais, nota-se a exigência por uma nova dose, a rápida adicção aos benzodiazepínicos e outros psicotrópicos concorrem para a aproximação da figura do médico do "traficante de branco". CID e DSM, portanto, servem mais ao fenômeno e à resposta ao medicamento do que a uma escuta clínica baseada na posição (e no reposicionamento ético) do sujeito em relação ao seu desejo.
Este artigo explicita um campo de disputa entre a Clínica Ampliada, a Psicanálise e a Psiquiatria. Esta última tem se orientado pelos manuais DSM e CID 10 e, é praticada, em grande parte, por esse conjunto de trabalhadores da Saúde, em particular, pelos clínicos gerais e neurologistas, "armados até os dentes" pela Indústria Farmacêutica. A Psiquiatria e os manuais tipo DSM são "o braço armado" da Indústria Farmacêutica (Costa-Rosa, 2013) do DSM, enquanto que, a psychopharmarketing , segundo Helsinger (2015), tenta todos os dias convencer as pessoas de que estão doentes para promoverem a venda de mais medicamentos:
Quando a oferta excede a demanda os preços diminuem e, para driblar a concorrência, criam-se novos "nichos de mercado" acrescendo algum diferencial nos produtos. No campo da indústria farmacêutica isto é realizado pelo acréscimo de sintomas, o que promove outras síndromes que serão tratadas com outros medicamentos. [...] "A psiquiatria biológica é uma retórica: ela sabe como produzir efeitos, sem saber curar as causas" (p. 295) (p. 88-9).
Por exemplo, o boom da depressão está relacionado com a necessidade de criar novos mercados: "Nos EUA, entre 1980 e 1989, o número de prescrições de medicamentos para depressão aumentou de 2,5 para 4,7 milhões e, na França, os casos multiplicaram-se por sete entre 1970 e 1996" (p. 89). Os lucros da Indústria Farmacêutica podem ser ilustrados por uma "campanha da Pfizer para a promoção da fibromialgia", que custou 46 milhões de dólares e obteve um lucro de 1,8 bilhões com as vendas do Lyrica® (Helsinger, 2015, p. 88).
Gestão Autônoma da Medicação (GAM) (ou qual lugar para o phármakon)
Santos (2014) se propõe a "avaliar os efeitos da vivência na estratégia da Gestão Autônoma da Medicação (GAM) em trabalhadores de serviços de saúde tanto da atenção primária como da atenção especializada de saúde mental, os CAPS" (p. 122). A GAM trata de uma estratégia oriunda do Quebec, Canadá, desenvolvida na década de 1990, justo em um período de embate de paradigmas, emergindo das práticas alternativas aos modelos de clínica proposta pelo Estado, a partir da construção política de ação comunitária em Saúde, com a participação de movimentos sociais2, ligada ao conceito de recovery, o qual segundo o autor (2014)
Surge por volta de 1970, nos Estados Unidos, o Mental Health Consume/SurvivorMovement, movimento político e social de usuários que advogam por uma visão mais otimista e menos deficitária dos transtornos mentais, mais especificamente, a esquizofrenia. Partindo da crítica ao modelo "krapeleniano", baseando-se em suas experiências de vida, os usuários defendiam a ideia de que as pessoas com problemas mentais não se reduzem à doença e que, por isso mesmo, tem a capacidade de tomarem decisões sobre suas vidas e de falarem em seu próprio favor. No recovery, os usuários passam a advogar por uma visão que seja pessoalmente fortalecedora (empowerment) e mais otimista de suas vidas" (p. 22).
No Brasil, entre 2008 e 2010, algumas universidades (UNICAMP, UFF, UFRJ e UFRGS) se juntaram na "Pesquisa avaliativa de saúde mental: instrumentos para a qualificação da utilização de psicofármacos e formação de recursos humanos" para traduzir, adaptar e adequar a GAM ao contexto brasileiro. Nesse sentido, torna-se relevante compreender as diferentes formas de colonização desses países, visto que a cultura e a política dos dois países têm influência no modo como os usuários se posicionam em relação aos serviços oferecidos pelo Estado e se articulam em coletividades.
O trabalho de Santos (2014) busca avaliar os efeitos da utilização da estratégia GAM em diferentes serviços de Saúde do município de Campinas e Amparo, ambos em São Paulo. Para tal, foram mobilizados diversos setores da universidade, como os programas de estágio, aprimoramento, residência e pós-graduação, bem como os trabalhadores e as trabalhadoras dos equipamentos de Saúde selecionados para participar. O projeto, entretanto, iniciou-se bem antes, com a sensibilização de gestores e intelectuais, negociações e arranjos para participação dos pesquisadores nos serviços e implantação da intervenção. Questões como autonomia, direitos dos usuários e medicalização social foram os principais eixos de debate nos encontros de sensibilização, mobilização e capacitação para o uso da ferramenta. Enquanto no phármakon, é o próprio sujeito que escolhe o que, como, quanto e qual o limite da substância que pode ser o remédio para suas dores, tanto físicas quanto psíquicas. Destaco a estratégia da Gestão Autônoma da Medicação, proposta por Santos (2014), como dispositivo para ampliar os arranjos da clínica na Saúde Mental Coletiva.
Segundo Santos (2014), os efeitos que uma intervenção dessa natureza pode ter sobre os sujeitos que a vivem estão ligados à ação, na perspectiva da práxis e se direcionam no mesmo sentido dos efeitos terapêuticos singularizantes, objetivo do PPS na relação de cuidado com os usuários da Saúde Coletiva. O autor apresenta resultados bastante positivos do ponto de vista da ampliação das condições dos usuários e trabalhadores em compartilhar a responsabilidade dos tratamentos propostos pela equipe. Entre os principais incômodos, refere o necessário deslocamento que os médicos eram obrigados a fazer para abrir mão do lugar de saber inquestionável sobre o diagnóstico e o tratamento, visto que seus pacientes se deslocavam no discurso para posições mais implicadas e questionadoras. Um dos trechos de mais destaque para minha leitura fora quando, uma médica, culpabiliza um usuário que ensaia esse deslocamento discursivo:
Tinha uma usuária que tem muita dificuldade de adesão à medicação e em um dado momento a psiquiatra passou pra ela uma medicação de alto custo. Ela falou que não porque não queria ir até ao alto custo buscar a medicação, preferia tomar uma injeção aqui no CAPS mesmo. A médica falou "então tá bom" e foi isso que aconteceu. Só que nesse processo, ela entrou em crise, ficou aqui no leito. Começou a participar do GAM, e aí começou a questionar qual que era o diagnóstico dela, que medicação ela tomava, começou a questionar os relacionamentos dela, familiares, amorosos, qual que era a implicação dela com o projeto terapêutico... E aí ela queria conversar com a médica... A usuária decidiu que a medicação injetável que ela estava tomando não estava fazendo bem que e la queria e agora aceitava ir abuscar o alto custo. Eu resolvi levar essa discussão na equipe e a médica falou: "não agora, ela não quis buscar o alto custo, agora ela vai tomar injeção ". "E ela disse pra mim: - espero que você não tenha dito que eu vou mu dar a medicação dela". Então, como isso depende muita da inter - relação entre as pessoas, você conseguir ser mais autônomo ou menos autônomo, não depende só de você mesmo, depende dessas inter - relações e do grau de flexibilidade de negociação e construção q ue se tem no local (Trabalhador 6, T1) (p. 74, grifos meus).
Essa passagem chama a atenção pela violência que o lugar de poder do Discurso Médico imprime nos serviços de Saúde. Por outro lado, evidencia os múltiplos aspectos que podem se abrir na vida de um sujeito quando este passa a se implicar com aquilo que o faz sofrer e o faz buscar tratamento. Aliás, um dos enfrentamentos apontados por Santos (2014) durante a intervenção fora justamente os ruídos decorrentes da ferramenta, aos quais, o autor esclarece não ter por objetivo obrigar os usuários participantes a abandonar seus tratamentos ou, os médicos, de excluir a terapêutica medicamentos.
Com os relatos, o autor aponta para o empoderamento dos usuários sobre seus direitos e a ampliação de suas condições do "cuidado de si", o que passaria pelo autoconhecimento e reposicionamento da equipe, a qual teria a possibilidade de começar a tomar decisões junto com o sujeito, não por ele. Abrir mão desse lugar de saber pelo outro, se por um lado "dá medo de desencadear uma crise", por outro, alivia, pois não se trata de tudo saber, mas sim de compartilhar a responsabilidade da dúvida. Desse modo, os trabalhadores não têm mais que dar resposta, todavia, podem pensar junto as questões com os usuários, o que, decerto, remete à passagem de assumir o impossível de uma verdade-toda para não cair na impotência da falta de garantias do cuidado em Saúde.
Outro fator importante é que a automedicação já era uma prática recorrente entre os usuários, os quais faziam-na sem conhecimento e isso muitas vezes prejudicava o tratamento. A consulta assemelhava-se a uma conversa de cínicos, pois o médico prescrevia, sabendo que o usuário não seguia à risca as recomendações, e este fazia de conta que aceitava, com a certeza de que, faria com os medicamentos o que bem entendesse. O título do trabalho de Santos (2014) parece bem apropriado, na medida em que, com a GAM, seria viável a passagem da prescrição (surda) à escuta (do sujeito implicado com seus sintomas). Segundo o autor, a novidade que os grupos GAM vêm trazer é uma relação "de igual pra igual" com os usuários, implodindo as hierarquias "que reinam" na Saúde Pública e dificultam as práticas da Saúde Coletiva.
Do ponto de vista dos trabalhadores, Santos (2014) sublinha alguns aspectos que levam ao adoecimento no trabalho e às resistências à GAM. No primeiro plano, estão as condições precárias de trabalho e os processos de verticalização da gestão, das quais se defendiam com a burocratização do trabalho, o isolamento e a discriminação entre "nós e outros", o que, por muitas vezes, concorre para a retaliação dos usuários. Para fazer tais enfrentamentos, o autor sustenta uma aposta em dispositivos de trabalho que restabeleçam espaços subjetivos conjuntos e operatórios. Por conseguinte, a GAM propicia situações que podem ampliar o grau de implicação de trabalhadores e usuários em relação ao produto e aos efeitos das práticas de cuidado e atenção. Sugere "a contribuição da estratégia da Gestão Autônoma da Medicação para uma clínica mais fluida, flexível, negociada, do "swing", como uma dança, de forma mais tranquila, mais respeitosa e mais calma" (p. 98).
Um aspecto que ganha destaque também, são os desdobramentos após as discussões sobre cidadania, direitos do cidadão, do usuário realizadas coletivamente. Os trabalhadores referem que:
A discussão acerca dos direitos foi apontada pelos trabalhadores como fundamental para este maior engajamento dos usuários em suas vidas, seus tratamentos e defesas de seus direitos. Indicam um efeito de fortalecimento dos movimentos de reivindicação dos seus direitos em pequenos detalhes do cotidiano que, às vezes, apenas os moderadores GAM puderam notar. Em alguns momentos, perceberam extrapolar a discussão para outros espaços dos serviços, sejam eles assembleias ou mesmo em outros grupos de promoção à saúde que a unidade desenvolvia. Desta forma, os usuários também foram representados pelos profissionais como sujeitos-políticos de direito. (p. 115)
Santos (2014) reitera a importância do investimento em Educação Permanente e que, usuários, moderadores e apoiadores, todos se tornam também pesquisadores quando submetidos à estratégia GAM. Esta ferramenta se mostrou importante para a avaliação das práticas dos serviços de saúde onde foi realizado, além de servir aos trabalhadores, pois a experiência se constituiu em espaços legítimos de reflexão e crítica, onde indicaram precisar de "uma escuta mais ampliada, menos focada nos sinais e sintomas de referenciais técnicos" (p. 124).
É possível considerar a GAM como um dispositivo de grande valia para o processo de transição paradigmática, pois se sintoniza com o Recovery, a Reabilitação Psicossocial Brasileira, a Clínica Centrada na Pessoa, a Clínica Ampliada e a Educação Popular em Saúde. Segundo Santos (2014), a originalidade "da experiência GAM é propiciar a emergência de práticas com vários aspectos das diversas teorias citadas. Sem pretender ser uma teoria em si" (p. 125). Nesse sentido, tal ferramenta se aproxima da Educação Popular como metodologia, do dispositivo intercessor, como posicionamento possível para os trabalhadores e do PPS, como paradigma mais adequado, por assumir uma posição diversa à ciência positivista, que tudo quer saber sobre as verdades absolutas, que tudo pretende curar e que o sujeito (do desejo) seria reduzível a um objeto (à doença). Segundo o autor:
Para a educação popular em saúde os processos de aprendizagem acontecem na vida e não apenas dentro dos currículos e das instituições formais. Por meio dos princípios do diálogo, do respeito à diversidade e da valorização de sujeitos coletivos, nos permite avançar numa formação profissional voltada para a construção cotidiana dos projetos coletivos ou individuais (p. 127).
Ao final do trabalho, Santos (2014) apresenta ainda, como anexo, a cartilha da GAM, um roteiro para conduzir a realização da intervenção, o que possibilitaria, a partir da leitura, a utilização de tal ferramenta. Isso é importante, pois o lugar adequado dos medicamentos na Atenção Psicossocial precisa estar relacionado à participação ativa do usuário na escolha e à sustentação de sua terapêutica, ou Projeto Terapêutico Singular. Por isso, avalio como absolutamente pertinente a utilização da estratégia GAM para o empoderamento dos usuários, a ampliação de seus conhecimentos sobre os psicofármacos e seus direitos, bem como uma melhor compreensão de qual o papel dos trabalhadores da saúde junto aos usuários dos serviços, na promoção de relações baseadas no vínculo e na confiança mútua. Pode ser que venha daí, da intervenção via estratégia GAM, a condição para o enfrentamento ao saber-poder médico e à medicalização, como estratégia hegemônica entre as práticas de cuidado.
Para falar de medicalização se faz necessário tocar no lugar ocupado pela psiquiatria no contemporâneo. Costa-Rosa (2013) afirma que "a psiquiatria psicossocial deve pautar-se pela ética que interessa aos sujeitos do sofrimento, aos trabalhadores da instituição e à população em geral; num desvio radical da lógica reprodutora do instituído que rege o MCP, seus valores e ideais" (p. 217). Tendo como ponto de partida a Ética proposta pelo PPS, que inclui o sujeito do sofrimento na elaboração de seu tratamento, "essa postura é absolutamente compatível com a utilização dos psicofármacos com coadjuvantes dos processos de subjetivação que estão em ação no sofrimento psíquico. Não é o caso de propor a ignorância da dimensão orgânica eventualmente presente, mas a tentativa de situá-la em seu lugar" (p. 219).
Diante da hegemonia das práticas psiquiátricas que se reduzem apenas a prescrever medicamentos, o autor destaca que o médico necessário ao PPS deveria ser "um médico além do médico", ou um "psiquiatra não tão médico", para poder pensar o corpo além do corpo orgânico e uma medicalização não tão medicalizante, posicionado de modo a superar a dicotomia entre doença-cura e sujeito-objeto, pois é "preciso reconhecer que se trata de impasses de sofrimento relacionados com processos de subjetivação que ocorrem em um campo complexo, composto de múltiplas determinações" (Costa-Rosa, 2013, p. 223).
As principais questões apresentadas por Costa-Rosa (2013) acerca dos movimentos que a Psiquiatria DSM precisa fazer para compor o campo da Atenção Psicossocial, podem ser assim sintetizadas:
1) superar dialeticamente o corpo como referência exclusiva; 2) superar dialeticamente os princípios doença-cura e sujeito-objeto, exercitando modalidades de vínculo, que não são as do Discurso Médico ou da Clínica Médica, como modo de operar outra clínica na relação com os sujeitos e suas queixas; 3) superar o uso dos psicofármacos como solução a priori ou como resposta principal entre seus meios de ação; 4) assumir radicalmente a interprofissionalidade e a transdisciplinaridade como formas de construção dos coletivos de trabalho na Atenção Psicossocial que sejam capazes de superar o paradigma dos especialismos disciplinares, em favor do protagonismo dos sujeitos do sofrimento; 5) inteirar-se das novas ferramentas teóricas que ampliam a análise dos processos de subjetivação com foco nas relações do corpo com as transformações sociais e sociossimbólicas (p. 232).
Considerações Finais
O estudo de Helsinger (2015) assinala uma íntima relação entre a constituição histórica do neoliberalismo e o aumento do poder das Neurociências, do Cognitivismo e da Psiquiatria como políticas efetivas do Estado neoliberal. Capitalismo não faz laço, não regula o gozo das relações sociais. Nesse sentido, a psiquiatrização e a criminalização são procedimentos paliativos devido à insegurança social e tributárias da desigualdade social que sustenta o poder hegemônico do capital.
Costa-Rosa (2013) afirma que o aumento na oferta do medicamento como resposta primeira e exclusiva para todo e qualquer problema pode estar vinculado a um superdimensionamento "das transformações culturais, o que teriam tornado as pessoas comuns mais sensíveis e predispostas a buscar ajuda diante de sofrimentos inerentes ao cotidiano" (p. 191). O que tal estratégia, situada no PPHM, perde de vista é:
[...] a dimensão de objeção de todo sintoma e sofrimentos psíquicos, assume-se tacitamente que todo mal-estar é mal-estar privado, encarnado em cada indivíduo. A partir daí, prevalece a lógica Discurso Médico e da psiquiatria DSM atuando como medicina mental: tudo tratar como individual. (Costa-Rosa, 2013, p. 170).
No PPHM predominam ações verticalizadas de dominação-subordinação, nas quais o saber sobre o tratamento e as relações terapêuticas são impostas como verdades absolutas, não havendo qualquer preocupação social com o sujeito, sua opinião sobre o tratamento ou mesmo, suas observações após o início do tratamento. O produto desse Modo Capitalista de Produção (MCP) de cuidado é uma subjetividade serializada, capitalística, que encontra na lógica DSM sua classificação alienada.
Observa-se que o Discurso Médico realiza operações de sequestro da subjetividade e velamento do indivíduo como protagonista de seu sofrimento. Com a psiquiatria submetida ao DSM "o objeto-doença como objeto-saber se subordina ao objeto-fármaco de cuja obscura essência emana praticamente a totalidade dos tratamentos" (Costa-Rosa, 2013, p. 190). Esta lógica perpassa de tal forma a cultura e as práticas sociais, que faz com que os indivíduos passem a exigir causalidades orgânicas para seus impasses e sofrimentos. Quanto a isso, a luta antimanicomial contemporânea deve incluir a crítica à medicalização como atualização química do manicômio. A responsabilidade da atuação desses novos trabalhadores da Saúde é, ao mesmo tempo, de desmedicalizar a demanda e subjetivar a queixa. Ademais, Cruz (2010) aponta para os desafios da clínica contemporânea em não se reduzir, por meio da medicalização da vida, a novas formas de "manicomialização", o que tem sido chamado também de "manicômios químicos".
Para sustentar sua singularidade a Psicanálise deve propiciar condições para que o sujeito crie um estilo singular de existência face ao seu desamparo. Faz-se necessário, para isso, que trabalhadores e trabalhadoras precavidos pela Psicanálise de Freud e Lacan e pelo Materialismo Histórico estejam sensíveis às questões do nosso tempo, pois seria estéril a repetição de teoria, o que enfraqueceria a operacionalidade teórico-clínica do dispositivo analítico. Há que se sustentar o desejo de psicanalisar. Desejo do analista, desejo de que haja análise. Segundo Helsinger (2015), para que o sujeito não seja comprimido,
para se manter como uma experiência crítica e romper com o cientificismo psicanalítico estéril, a psicanálise deve sair das grandes instituições e do seu isolamento para dialogar com outros produtores de cultura (como sociólogos, antropólogos e cineastas) e com temáticas que lhe são fronteiriças, como a violência e a política. Até porque isso é fundamental para que ela crie novas formas de pensar o mal-estar na contemporaneidade. [...] é preciso não se aprisionar nos discursos teóricos enrijecidos, mas, também, não fazer concessões em relações as suas matrizes centrais (como o inconsciente) para se adequar ao ideário da performance [e do risco] (p. 191).
A medicalização como uma das figuras do SSD evidencia o modo de produção no qual ocorre, a ideologia fantasmática que agencia verdades cínicas, produzindo ao mesmo tempo mercadorias-fetiche e sujeitos-mercadoria. No capitalismo hipermoderno, as formas de extração da mais-valia, valor não pago ao (à) trabalhador(a) pelos donos dos meios de produção, penetram não só no tempo de trabalho, para ampliar a produção, como no capitalismo moderno, discurso caracterizado pelo Discurso do Mestre; mas também o método hipermoderno de extração da mais-valia, manifesta-se como consequência da ideologia propagada pelos imperativos: Compre! Goze! Consuma! Agora! Chegam aos consultórios e serviços de Saúde exigindo um medicamento que os faço dormir, comer, amar, trabalhar, não comer, acordar, não amar, relaxar.
O corpo que se apresenta mantém em sua constituição significante (um sujeito representa um significante para outro significante), ou seja, o referencial da Psicanálise de Freud e Lacan continua operando com esses sujeitos e seus sintomas. Junto com Marx, Freud e Lacan, afirmo que escutar o sintoma como um SSD implica outro manejo e direção de tratamento. Por mais exuberante que seja a forma como o sujeito se apresenta, suas marcas no corpo, lembrando que corpo, neste campo, é sempre, e primeiro de tudo, uma categoria de dobra, singular em seu triplo registro: Real, Simbólico e Imaginário.
Como ética, a Estratégia da Atenção Psicossocial oferece outras possibilidades de tratamento, diversifica a oferta de serviços e escuta ao sofrimento psíquico. Como tática, se faz enquanto possibilidade de atuar nas brechas do Paradigma da Saúde Pública, tensionando o discurso hegemônico em direção ao Paradigma da Saúde Coletiva e na criação de demandas de Políticas Públicas específicas para esse segmento. Em se tratando da práxis de um modelo, que se faz nas práticas ao mesmo tempo que produz sua teoria, se faz necessária a permanente autocrítica, pois na medida em que são dois paradigmas (PPHM e PPS) que convivem nos Estabelecimentos de Atenção à saúde, muitas dessas táticas se misturam e se confundem, o que torna ainda mais pertinente o fortalecimento dos espaços de Educação Permanente, o que possibilita aos trabalhadores e trabalhadoras manterem-se em constante processo de construção de saberes e autocrítica de suas ações, sempre de forma coletiva, em reuniões de equipe, assembleias ou grupos de trabalho.
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Recebido em: 13/09/2019
Aprovado em: 15/11/2019
1 "Enquanto o DSM-I (1952) continha 106 categorias diagnósticas e o DSM-II (1968) apresenta 182, o DSM-III (1980) passou a abarcar 265 e o DSM-IV (1994) apresentou 297 desordens mentais (Borch-Jacobsen, 2013). O DSM-V (2013), por sua vez, incluiu mais de 400 categorias diagnósticas que, além de bastante heterogêneas, evidenciam que experiências psíquicas atípicas tornaram-se matérias-primas para as descrições psiquiátricas" (Helsinger, 2015, p. 35).
2 "Os movimentos dos survivors, ou melhor, "cidadãos sobreviventes à psiquiatria", que compunham a rede desses serviços alternativos comunitários e de defesa dos direitos humanos, trouxeram à tona diversos questionamentos quanto às práticas de saúde mental na província" (Santos, 2014, p. 27).