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Revista de Psicologia da UNESP

On-line version ISSN 1984-9044

Rev. Psicol. UNESP vol.18 no.spe Assis  2019

 

ARTIGOS

 

Contribuições do Dispositivo Intercessor para a práxis da Atenção Psicossocial: relato da experiência vivenciada num CAPSad1

 

Contributions of the Intercessor Device to the praxis of psychosocial care: case report in a CAPSad

 

 

Anúncia Heloisa B. GaliegoI; Abílio da Costa-RosaII

IPsicóloga, Mestre em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista UNESP/ Assis, psicóloga do Centro de Atenção Psicossocial para usuários de álcool e outras drogas – CAPSad II. Integrante do Laboratório Transdisciplinar de Intercessão-Pesquisa em Processos de Subjetivação e "Subjetividadessaúde" (LATIPPSS)
IIPsicanalista e Analista Institucional, Professor Livre-Docente do departamento de Psicologia Clínica da UNESP/Assis, SP

 

 


RESUMO

A construção da Atenção Psicossocial se faz no cotidiano dos Estabelecimentos que compõem a rede de Atenção ao sofrimento psíquico. No entanto, para que estes Estabelecimentos possam empreender práticas congruentes com o Paradigma Psicossocial, é necessário que os trabalhadores sejam capazes de produzir saberes singulares, datados, criativos, pois só eles podem operar como respostas específicas às demandas particulares dos sujeitos do sofrimento que se apresentam às instituições de Saúde. O presente ensaio apresenta o relato de uma experiência de intercessão-pesquisa vivenciada num Centro de Atenção Psicossocial que atende os sujeitos dos impasses decorrentes do uso de Álcool e Outras Drogas (CAPS adII) e as reflexões suscitadas por sua análise. Conclui com indicações importantes de que é possível impulsionar movimentos instituintes a partir do reposicionamento dos trabalhadores em sua relação com a práxis.

Palavras-chave: Atenção Psicossocial; CAPSad II; Dispositivo Intercessor; Saúde Mental.


ABSTRACT

The Psychosocial Attention construction is done in the daily life of the Establishments that make up the network of Attention to psychic suffering. However, in order for these establishments to undertake practices consistent with the Psychosocial Paradigm, it is necessary that workers be able to produce singular knowledge , dated and creative, since only they can operate as specific responses to particular demands of the suffering subjects that present themselves. This study presents a case report of an experience of intercession-research lived in a Center of Psychosocial Attention that looks at the subjects of the impasses arising from the Alcohol and Other Drugs using (CAPS ad II) and the reflections raised by their analysis. It´s concluded, with important indications, that it´s possible to boost instituting movements from the repositioning of workers in their relationship with praxis.

Keywords: Psychosocial Care; CAPSad II; Intercessor Device; Mental Health.


 

 

1. Introdução

A Universidade, em sua configuração mais comum, compartilha e reproduz a lógica da divisão social do trabalho no Modo Capitalista de Produção (MCP) e sua contradição fundamental, operando em duas linhas de produção bem configuradas e distintas: 1) de técnicos para o mercado, no caso do campo com o qual trabalharemos, para a atenção ao sofrimento psíquico (aliás, as equipes aí constituídas são, em geral, nomeadas como "equipes técnicas"); e 2) de pesquisadores/intelectuais para a (re)produção de conhecimento, especialmente nas universidades. Essa adesão à cisão entre fazer/executar versus pensar/saber também fica clara em sua meta radical de produzir o conhecimento necessário à sociedade para o equacionamento de todas as suas questões. Mesmo nas situações em que se dirige à práxis cotidiana da Atenção, é com o objetivo de produzir um saber "sobre" ela, um saber de especialista que, em geral, se constrói desqualificando o saber da práxis (que não é de especialista) (Costa-Rosa, 2008/2019, 2013).

Essa forma da Universidade operar legitima e reifica a identificação dos que estão nos diversos Estabelecimentos de Saúde, diretamente responsáveis pela Atenção, como aqueles que apenas "sabem" fazer, isto é, meros aplicadores das técnicas e conhecimentos produzidos pelos pesquisadores/intelectuais; e os que estão na universidade, os pesquisadores/intelectuais, como os detentores, ou os únicos que poderiam produzir o conhecimento que responderia às dificuldades encontradas na prática cotidiana, aqueles poderiam desvendar ou falar acerca de sua verdade (Miranda, 2011).

Esse tipo de formação, e a forma de produção do conhecimento que lhe é correlata, não podem responder amplamente às exigências do campo amplo da Atenção em Saúde, menos ainda ao campo da Atenção Psicossocial (APS).

Para que se produza a modalidade de Atenção que interessa à APS, faz-se necessária a construção de situações institucionais em que os profissionais possam apropriar-se da atitude de conciliar a aquisição do conhecimento com a de produzir o saber relativo às suas práticas. Apenas esse reposicionamento poderá viabilizar as condições necessárias para oferecer (transferencialmente) aos sujeitos do sofrimento a possibilidade de produzirem, também, o saber inconsciente demandado pelo seu sofrimento, único capaz de ajudar em repostas criativas às suas dores.

O avanço da Reforma Psiquiátrica brasileira tem possibilitado transformações importantes no campo da Atenção ao sofrimento psíquico, colocando à disposição da sociedade um certo número de Estabelecimentos que se propõem ao menos alternativos ao Hospital Psiquiátrico, e ampliando o número de profissionais de Saúde Mental contratados. Neste cenário, os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) passaram a ocupar um lugar estratégico na articulação e organização da rede de cuidados (Pitta, 2011; Luzio & Yasui, 2010).

Considerando esse lugar estratégico ocupado pelos CAPS, e a necessidade de se ampliarem as discussões acerca das práticas empreendidas no campo da APS, o presente ensaio apresenta uma experiência de Intercessão-Pesquisa vivenciada em um Centro de Atenção Psicossocial para atendimento aos sujeitos dos impasses decorrentes do uso de álcool e outras drogas (CAPSad II), buscando apontar a possibilidade de fortalecer processos instituintes, a partir do reposicionamento dos trabalhadores em sua relação com a práxis.

 

2. Questões Preliminares Acerca do Dispositivo Intercessor

Sistematizado inicialmente por Costa-Rosa (2008/2019), o Dispositivo Intercessor (DI) é sustentado epistemologicamente pela Psicanálise do campo de Freud e Lacan, pelo Materialismo Histórico de Marx, pela Análise Institucional de Lourau e Lapassade e pelo conceito de intercessores da Filosofia de Deleuze. Tem como questão fundamental interferir nas formas da divisão do trabalho, contribuindo para a formação de trabalhadores/intelectuais que façam frente à cisão fazer/executar versus pensar/saber e possam operar produzindo saberes e subjetividades singularizadas, tanto no plano de sua práxis cotidiana nos Estabelecimentos de Atenção à saúde, quanto no plano da práxis propriamente universitária da produção de conhecimento.

No DI, podem-se distinguir dois modos distintos de operar que, no entanto, são necessariamente complementares: o primeiro é o da intercessão no campo da práxis da Atenção. O intercessor, que é também um trabalhador desse campo, dirige-se aos outros sujeitos da práxis com o objetivo de contribuir para que ali se coloque em movimento a possibilidade de produção do saber a serviço da solução dos impasses da própria práxis e de seu desenvolvimento. Nesse caso, o intercessor bascula entre um trabalhador da práxis como os demais: "um a mais" (visto que ele é também um trabalhador do estabelecimento), e um trabalhador que visa deliberadamente à função de interceder nos processos gerais do estabelecimento institucional.

O segundo momento do DI, nomeado como Dispositivo Intercessor como meio de produção do conhecimento (DImpc), corresponde ao resultado de uma análise a posteriori do processo da intercessão realizada na práxis da Atenção. É também uma intercessão, mas agora no campo da práxis da Universidade. Este saber é produzido pelo intercessor, agora na função específica de pesquisador, portanto, intercessor-pesquisador. O conhecimento produzido do lugar de intercessor-pesquisador tem outro estatuto em relação ao saber da práxis e visa diretamente subsidiar outros processos de intercessão, isto é, visa instrumentar outros intercessores (Costa-Rosa, 2008/2019; Martini, 2010; Miranda, 2011; Pereira, 2011):

Não se trata, portanto, de um saber sobre, mas de um saber para. [...] Ao dizermos que a produção do DIMPC trata de um saber para, estamos referindo que ele poderá instrumentalizar outros intercessores "para produzir" outras intercessões, ou seja, para produzir novos saberes [...]. É para isso que deve servir o conhecimento produzido pelo DIMPC: para que outros trabalhadores possam operar, interceder nas suas realidades (Martini, 2010, p. 51-52).

É necessário ressaltar que o momento definido como intercessão na práxis da Atenção não corresponde a qualquer ação de pesquisa no sentido corrente do termo na Ciência. O que constituiu a parte de pesquisa propriamente dita deste trabalho consiste na análise do "campo de intercessão" com seus processos complexos, ou seja, da experiência do CAPSad, ao longo de doze meses; análise que será ilustrada por fragmentos da intercessão, provenientes da prática da trabalhadora-intercessora, que é profissional da psicologia, neste estabelecimento.

Para o trabalho de intercessão foi utilizado um "diário do campo da intercessão", onde foram anotadas as experiências e vivências no cotidiano do CAPSad, com o objetivo de mapear questões que servissem para ajudar a pensar a práxis e a delinear o posicionamento da intercessora-trabalhadora, orientando o processo e ampliando as possibilidades de interceder. No segundo momento, que nomeamos como DImpc, essas anotações foram retomadas e serviram de "pistas" para o retorno ao trabalho realizado, subsidiando a atividade de reflexão acerca da experiência no campo da intercessão.

2.1 O campo e seus movimentos

No município onde está localizado o CAPSad II, as ações em Saúde Mental tiveram início com a inauguração, em 1969, de um Hospital Psiquiátrico Estadual, criado com a proposta de se tornar o maior serviço dessa natureza na América Latina. Nos primeiros anos do século XXI, seguindo os direcionamentos da Política Nacional de Saúde Mental, a equipe do hospital passou a protagonizar o processo de implantação dos serviços extra-hospitalares que compõem a atual rede de Atenção, na área da Saúde Mental, de trinta municípios. Entre eles estão: um CAPS para atendimento dos sujeitos em grave sofrimento psíquico (CAPS II), uma Oficina Terapêutica na comunidade, Residências Terapêuticas e um CAPSad II (Mello, 2010).

Essas ações contribuíram para a redução do número de leitos hospitalares, de 360 para 55 e, posteriormente, para 262. Parte deles foi ocupada durante algumas décadas pelos sujeitos dos impasses decorrentes do uso de álcool e outras drogas (Simão; Andrade, & Rezende, 1989) na Unidade de Dependência Química (UDQ), enfermaria extinta com a implantação do CAPSad II.

Em 2008, seguindo as diretrizes políticas da Secretaria de Estado da Saúde (SES), o hospital especializado foi transformado em Centro de Atenção Integral à Saúde (CAIS) (Mello, 2010). O CAIS é o responsável direto junto à SES pelos serviços extra-hospitalares, constituídos em seu processo de reestruturação, e por duas alas de internação que foram mantidas ativas.

A constituição do CAPSad II, assim como aconteceu com os outros serviços extra-hospitalares vinculados ao CAIS, resultou do processo colocado em curso pela Reforma Psiquiátrica brasileira e em resposta à exigência de redução de leitos em hospitais especializados. Assim, sua primeira equipe foi composta pelos profissionais que trabalhavam nas enfermarias do Hospital Psiquiátrico (Mello, 2010).

Por ser um serviço vinculado diretamente ao Estado, regionalizado, seu Território de atuação compreende trinta municípios que se diferenciam bastante quanto ao porte e à complexidade das redes de Saúde e de Assistência Social disponíveis para atendimento à população, e a articulação do CAPS ad II com o Território se dá por meio de ações de Apoio Matricial e reuniões de rede.

Este estabelecimento conta com uma equipe multiprofissional, composta por psicólogas, assistente social, médicos, enfermeiras, auxiliares e técnicos de enfermagem, agentes de saúde da área administrativa e auxiliar de serviços gerais. Os profissionais, em sua maioria contratados em regime de trabalho de seis horas diárias, se revezam entre os turnos da manhã e da tarde e contam com dois espaços coletivos de discussão: as "passagens de plantão", que acontecem diariamente das 12h às 13h e as "reuniões de equipe", que acontecem semanalmente, às sextas-feiras, das 08h às 13h, com a participação de quase todos os profissionais.

O atendimento à população é realizado de segunda a quinta-feira das 07h às 18h e às sextas-feiras das 08h às 17h. Diariamente, são oferecidas oficinas terapêuticas, grupos e atendimentos individuais, que são estendidos também aos familiares.

A inserção no tratamento pode ser feita por meio da procura espontânea ou por meio de encaminhamento dos profissionais das redes de Saúde e de Assistência Social dos trinta municípios atendidos. O Projeto Terapêutico Singular (PTS) é pactuado com o paciente no momento da triagem e nele são estabelecidos o regime de atendimento (intensivo, semi-intensivo, não intensivo) e as atividades das quais ele participará.

A princípio, percebeu-se que os PTSs, muitas vezes, constavam nos prontuários apenas como mais uma burocracia a ser cumprida, pois muitos sujeitos ficavam anos a fio realizando a mesma atividade, e com a mesma proposta terapêutica, independente das mudanças que tivessem operado em suas vidas e em sua posição subjetiva, ou das necessidades que passassem a apresentar. Alguns dos grupos ofertados eram caracterizados por práticas pedagógicas acerca das estratégias para permanecer abstinente e dos riscos e danos que a droga pode causar ao organismo. Os espaços coletivos de discussão, apesar de potencialmente ricos, em muitos momentos se apresentavam burocratizados e pouco produtivos na construção da Atenção, limitados à troca de informações sobre os acontecimentos nos dois turnos de trabalho. As discussões de caso, por sua vez, se restringiam à partilha de dados superficiais acerca da história dos sujeitos atendidos, dificilmente avançando para além dos aspectos comportamentais associados ao uso de drogas.

A trabalhadora (que posteriormente se tornou intercessora construída) iniciou suas atividades nesse estabelecimento em 2010, após aprovação em concurso público para o cargo de psicóloga. Nesse mesmo período, iniciou também o curso de mestrado em Psicologia, e foi convidada pelo orientador, intercessor na práxis Universidade, a operar por meio do DI, colocando-se como intercessora em seu campo de trabalho e produzindo uma reflexão sobre essa experiência.

Ao se posicionar em determinado campo, os trabalhadores-intercessores devem se relacionar com o coletivo institucional contribuindo para que o saber necessário ao equacionamento das dificuldades e impasses cotidianos seja produzido pelos próprios sujeitos. Seu papel é causar fissuras, interrogar os sentidos prévios e contribuir na construção de novos sentidos a partir do singular; ocupar as brechas no saber instituído para, a partir daí, possibilitar que um novo saber seja construído pelos sujeitos da práxis.

[...] ele tem como função ser um provocador, alguém que chega com interrogações. Ele procurará promover rupturas no saber do grupo, já estabelecido como verdade, para que os pressupostos que sustentam tais conceitos possam ser analisados. Buscará romper com campos de sentidos existentes, para que haja uma reflexão sobre o que os constitui, com a abertura para a apropriação do que possa ser pertinente e para construções de novos sentidos possíveis (Stringheta & Costa-Rosa, 2007, p. 156).

É importante esclarecer que todos os que se relacionam, que se comunicam, são de alguma forma intercessores (Deleuze, 1992) e podem contribuir no fortalecimento dos processos instituintes e, portanto, na produção de mudanças, ou na manutenção do instituído. Assim, no campo, há os "intercessores espontâneos", surgidos no encontro em que um agente, consciente ou inconscientemente, produz efeitos em outro agente ou contexto, e também recebe sobre si os efeitos desse encontro.

No caso em questão, a trabalhadora, sustentando a posição deliberada de interceder nos processos institucionais, colocou-se em campo na posição de "intercessora construída" e passou a ocupar as brechas abertas no que estava instituído como verdade/norma para aquele grupo. Contribuiu, assim, para dar vazão ao mal estar institucional e impulsionar os trabalhadores a se implicarem na construção de respostas para esse mal-estar, colocando em funcionamento o devir instituinte do grupo (Altoé, 2005).

Trata-se, no DI, da construção de saberes datados que sirvam para os sujeitos da práxis na solução das demandas feitas pelos sujeitos do sofrimento e necessários ao funcionamento institucional.

O lugar que o trabalhador-intercessor ocupa é o de alguém que se movimenta entre os lugares de um trabalhador comum, como os outros ("um a mais"), e o de "mais um" similar ao proposto na constituição dos cartéis lacanianos (Costa-Rosa, 2008/2019). Sendo depositário da suposição de um saber pelo grupo (a ser entendido a partir do conceito de "sujeito-suposto-saber" (Lacan, 2011)), o trabalhador-intercessor, advertido de sua função, não ocupa o lugar daquele que de fato sabe e coloca o grupo a trabalhar (mediante questionamentos, apontamentos, provocações) deixando abertas suas possibilidades de divergir, de bifurcar e de produzir saber singular (Martini, 2010).

Quanto ao movimento institucional no estabelecimento, é possível identificar pequenos deslocamentos, sendo que a intercessão apenas contribuiu para fazer movimentar processos já em curso. Uma das brechas identificadas como possibilidade de interceder foi a contradição presente entre o discurso oficial e as práticas efetivadas na relação com os indivíduos em tratamento.

No projeto do CAPS-ad, escrito e revisado algumas vezes pelos profissionais, isoladamente ou de forma coletiva, a Redução de Danos (RD), até então preconizada pelo Ministério da Saúde como uma das referências para o trabalho com os sujeitos dos impasses decorrentes do uso de drogas (Brasil, 2004), constava como uma estratégia a ser sustentada, mas na prática, essa possibilidade não se realizava de fato, e as ações eram marcadas pela expectativa e pela busca da abstinência. A incongruência entre discurso e prática era flagrante; porém a equipe parecia não ter se dado conta desse distanciamento.

A rotina do CAPS era composta por três tipos de grupos básicos: os Grupos de Apoio, os Grupos de Ação e os Grupos de Manutenção. Os Grupos de Apoio eram oferecidos aos indivíduos que estavam se inserindo no serviço e que ainda faziam uso de algum tipo de droga, e àqueles que, estando em tratamento há algum tempo, eram reconduzidos para esse grupo por terem "recaídas" (entendidas como a retomada do uso após um período de abstinência). Os Grupos de Ação recebiam os sujeitos que já estavam num processo de reorganização da própria vida, que haviam retornado ao trabalho, reestabelecido laços familiares e que haviam interrompido o uso do álcool e das outras drogas. Os Grupos de Manutenção, por sua vez, eram oferecidos àqueles que, após um período de abstinência, estavam se preparando para a alta.

Muitos dos indivíduos atendidos permaneciam nos Grupos de Apoio por vários anos, mesmo tendo protagonizado processos significativos de reestruturação de sua relação com o álcool/droga e mudanças em áreas importantes da vida como o trabalho e a família. Eram sujeitos que tinham, individualmente, estabelecido uma forma de RD.

Em discussões com a equipe, evidenciou-se que a condição para a passagem do primeiro para o segundo grupo era a abstinência total, que deveria ser mantida por um período que variava segundo a avaliação dos coordenadores dos grupos. Essa situação fazia que diversos sujeitos ficassem por anos a fio atrelados ao serviço, participando de uma mesma atividade, reproduzindo um mesmo discurso, e acabava por inviabilizar o processo de alta, uma vez que a abstinência não seria alcançada por não ser um desejo daquele que estava em tratamento e que optava por manter o uso de algum tipo de droga (em geral o álcool ou a maconha).

A regra que condicionava a passagem para o segundo grupo à abstinência não considerava a possibilidade de que o sujeito decidisse por reestruturar sua vida lançando mão da estratégia de RD, o que era relativamente comum entre os "usuários" de crack, que optavam, por exemplo, pela manutenção do uso da maconha.

Costa-Rosa (2000) alerta que a busca da supressão sintomática como a meta maior do tratamento e a desconsideração do sujeito como protagonista do processo de produção de sua "saúdessubjetividade" (Costa-Rosa, 2013), caminha na vertente do Modo Asilar. No Modo Psicossocial, a meta é o reposicionamento subjetivo do sujeito, que deve se deslocar do lugar daquele que apenas sofre os efeitos dos conflitos que o atravessam e se "reconhecer, por um lado, também como um dos agentes implicados nesse 'sofrimento', por outro, como um agente das possibilidades de mudanças" (Costa-Rosa, 2000, p. 155). Portanto, seu saber de sujeito deve ser acionado na produção de sentido para os sintomas e demais impasses psíquicos.

No entanto, operar a partir da ética da implicação subjetiva do indivíduo que procura tratamento, "exigirá do trabalhador da instituição idêntica implicação traduzida, antes de tudo, na própria relação com o trabalho" (Costa-Rosa, 2013). Trata-se de recuperar a dimensão do saber que concerne a cada um "nesses contextos da produção de saberes para dar conta dos próprios impasses, seja na relação com o saber inconsciente, seja na produção do saber sobre o não-sabido presente nas Formações Sociais (instituições) de que se participa" (Galiego & Costa-Rosa, 2018, p. 287).

Passaram-se a lançar para a equipe, nos espaços coletivos de discussão, questionamentos acerca das regras que normatizavam a passagem de um grupo para outro, pontuando a incongruência identificada entre o discurso e a prática. Após algumas reflexões conjuntas, isso motivou o desejo de estabelecer uma parceria com o Programa DST/AIDS do município para o estudo das estratégias de RD, que não eram muito claras para grande parte dos profissionais, o que contribuía para que não se falasse a respeito.

As discussões nas reuniões de equipe e os momentos de estudo que duraram algumas semanas, culminaram na alteração dessa regra e possibilitaram um novo posicionamento dos trabalhadores, que passaram a considerar a escolha de cada sujeito na definição dos objetivos de seu tratamento, sem que eles tivessem de ficar presos ao serviço e/ou aos grupos, caso sua decisão fosse a redução do consumo ou o uso de uma droga considerada por eles menos nociva.

Sabe-se que este pequeno deslocamento não é suficiente para modificar profundamente as relações estabelecidas no CAPS-ad II, mas foi aberta uma possibilidade de reposicionamento da equipe frente às próprias expectativas e aos ideais de tratamento, o que reflete novas formas de poder se posicionar frente às expectativas e escolhas dos sujeitos do sofrimento.

Este pequeno fragmento ilustra um aspecto importante do DI: com a intercessão, não se almejam grandes revoluções. Almeja-se que, a partir das pequenas brechas identificadas no instituído, contribuir para que se produzam, ao menos, pequenos deslocamentos no saber e no modo de produção3 daquele coletivo, para que aquilo que está estabelecido como verdade para o grupo seja colocado na berlinda e possibilite a emergência de novos sentidos e novos saberes, potencialmente singulares.

Ou seja, é preciso que a atitude de interrogação significante, sobre a práxis, seja instalada no grupo para que possa começar a ser produzido o saber referente ao "não-sabido"; é que a interrogação significante supõe a consideração de que os ditos e os "feitos" sejam polissêmicos - é na apreensão do retorno enunciativo dessa polissemia, que um saber novo, que se relacione com os aspectos instituintes da Demanda Social, pode começar a ser produzido/apropriado (Pereira, 2011, p. 21).

Lacan (1992) ensina que o acesso ao saber só é possível a partir da subversão do sujeito do conhecimento. É a posição questionadora, insatisfeita com as verdades totalizantes, que dá acesso ao não-sabido, ao que escapa e que é recalcado pelo sujeito ou grupo. Essa afirmação se sustenta no fato de que o saber inconsciente é atrelado à cadeia significante e, assim, é sempre não todo, está sempre se completando, sem nunca poder se completar totalmente. Nesse sentido, a ideia imaginária de um saber total, que desconsidera os seus limites, sua transitoriedade e a subjetividade dos sujeitos envolvidos, estaria a serviço da hegemonia e da dominação.

Fica claro, então, porque a transferência de saberes generalizantes dos intelectuais-acadêmicos para o cotidiano dos serviços pouco pode responder às carências de sentido e de saber oriundas da práxis da Atenção.

Para a reflexão do segundo fragmento da intercessão é importante que sejam retomados alguns conceitos, tal como formulados pela Análise Institucional. Segundo Lourau (2004) o instituído e o instituinte se articulam no conceito de instituição, e cada uma dessas instâncias denuncia, mediante suas contradições, o que se sustenta de forma camuflada na outra. Por instituído podemos nomear os valores, as normas, a ordem e a organização já estabelecidos, considerados "normais"; e por instituinte podemos compreender aquilo que se apresenta como contestação, que traz em si a capacidade de produzir inovações, pulsações criativas e revolucionárias.

Para além das formas mais ou menos fixas ou cristalizadas com que o estabelecimento institucional se apresenta, há um processo permanente de institucionalização que guarda em si o intempestivo mobilizador dos movimentos criativos e singulares, e é nestas frestas do instituído, identificando e dando vazão às pulsações instituintes, que o trabalhador-intercessor encontra o seu lugar e constrói o seu percurso.

Reunidos para mais uma das reuniões de equipe de sexta-feira, a burocratização e a improdutividade destes encontros foi enunciada como um mal-estar por alguns profissionais que passaram a questionar a necessidade da manutenção desse espaço. A queixa era de que havia uma sensação de que na sexta-feira "não se trabalhava no CAPS".

Na oportunidade, a trabalhadora-intercessora, sinalizou que seria necessário entender a razão dessa sensação de improdutividade, e todos foram estimulados a falar. A falta de objetivos claros, as discussões sem encaminhamentos concretos ou operativos, a repetição constante dos mesmos assuntos sem definição de alternativas viáveis, a dificuldade em escutar o outro sem interromper sua fala e a desorganização dos horários foram apontados como os principais incômodos.

A trabalhadora-intercessora pontuou, então, que esse era um problema que dizia respeito a todos, e que seria necessário pensar e construir juntos uma solução ou alternativa. Após algumas discussões, a equipe optou pela definição de um cronograma para estas reuniões, no qual haveria um horário para estudo, um para discussão de casos, um para o cafezinho, e um para os informes e assuntos administrativos. Por algumas semanas e respondendo à iniciativa de alguns profissionais, o cronograma foi seguido com êxito.

Para a primeira reunião foi decidido coletivamente que se realizaria a discussão de caso de um sujeito para o qual a equipe não conseguia dar alta, apesar de haver sinais indicativos de que esta seria uma ação terapêutica importante. É necessário recordar que a manutenção dos sujeitos nos Estabelecimentos de tratamento por um período superior à sua necessidade, desatrelada de um sentido terapêutico, é uma das características do modelo manicomial que, inclusive, gerou uma multidão de (as)sujeitados (Barros & Bichaff, 2008).

Foi solicitado, então, que a trabalhadora-intercessora fizesse a apresentação do primeiro caso, já que o sujeito frequentava um grupo mensal que ela coordenava. Avaliando que esta poderia ser uma boa oportunidade para interceder e explicitar impasses que já se anunciavam na equipe, a solicitação foi aceita. Para a apresentação foi feito um levantamento histórico da trajetória dele no CAPSad, por meio dos dados que constavam em prontuário. Durante a discussão ficou claro que muitas das informações anotadas, algumas significativas para a compreensão do caso e definição do projeto terapêutico, não eram de conhecimento dos profissionais, demonstrando que o prontuário havia se tornado um mero instrumento burocrático, rico na quantidade de informações, mas com pouca utilidade prática pela equipe na condução do tratamento.

Na discussão, identificaram-se mudanças e reconstruções importantes na vida desse sujeito ao longo dos quase seis anos em que esteve em tratamento no CAPSad, e foi possível identificar também um processo de estagnação e aprisionamento ao serviço. As questões que o haviam levado ao CAPSad II foram, nesse meio tempo, substituídas por outras (impasses do envelhecimento, inexistência de atividades de lazer, de amizades), para as quais alguns dispositivos do município (atrelados ou não à área da Saúde) poderiam ter propostas mais interessantes e produtivas. Avaliou-se que seria importante trabalhar sua desvinculação do CAPS e sua inserção em atividades voltadas ao implemento da qualidade de vida no espaço do Território e na Atenção Básica.

Alguns profissionais lembraram que a equipe havia pensado algumas vezes na indicação de alta e que havia muita dificuldade em efetivar essa decisão porque "o paciente era resistente a deixar o serviço".

Apesar dos questionamentos acerca da possibilidade de alta desse e de outros sujeitos já existirem no estabelecimento institucional, era flagrante a dificuldade de articulá-los numa atitude terapêutica que resultasse na efetivação da alta. Sabe-se que, no trabalho sob transferência, a ação dos trabalhadores, representantes da instituição, alvo da suposição de saber pelo sujeito do sofrimento, tem efeitos decisivos quanto ao "produto" do trabalho terapêutico. Neste caso específico, parece que a identificação dos trabalhadores com a posição de parceiros "cuidadores-mestres-supridores", efeito comum das ações fundadas nas éticas disciplinares (Benelli, 2014; Costa-Rosa, 2013; Shimoguiri & Perico, 2014), está na raiz da dificuldade de efetivação da alta.

A ética da APS exige que o trabalhador se desloque do lugar de "cuidador-mestre-supridor" e se coloque como trabalhador-intercessor, um coadjuvante do processo de produção de subjetividade, favorecendo o engajamento do sujeito na construção do sentido capaz de alterar sua relação com o sofrimento e com o sintoma e, ao mesmo tempo, contribuindo para que ele construa "outros modos de posicionamento nas relações sociais, que se encontravam dificultados ou mesmo impossibilitados" (Costa-Rosa, 2013, p. 127), podendo construir outros jeitos de "andar a/na vida".

Produziu-se, então, um momento em que a equipe pôde refletir acerca da oferta transferencial feita a este sujeito, ressignificando a ideia de que o CAPS era necessário na vida dele e que, portanto, não seria possível "privá-lo desse cuidado".

No campo havia um movimento no qual foi possível que a intercessão se processasse, contribuindo para que fossem criadas novas respostas ao impasse vivenciado pelos trabalhadores em sua relação com os sujeitos do sofrimento, relativo ao tempo, objetivos do tratamento e alta. Algum tempo depois, um profissional da equipe de administração observou que nos meses que se seguiram houve um aumento significativo no número de altas.

Nas reuniões seguintes, outros profissionais assumiram a responsabilidade de apresentação dos casos e dos textos escolhidos para leitura, e as reuniões transcorreram bem próximas do programado. No entanto, após esse período, a pactuação quanto à estruturação da reunião não foi mantida, deixando ver que, apesar do incômodo, a equipe não conseguia sustentar a possibilidade de mudança, entregando-se à repetição daquilo que incomodava: reincidência do instituído.

Alguns meses depois, esse incômodo voltou a fazer parte das discussões nas "passagens de plantão" e nas "reuniões de equipe". Em uma dessas ocasiões, após alguns profissionais fazerem suas queixas sobre o assunto, a trabalhadora-intercessora retomou a pactuação feita anteriormente e sugeriu a discussão dos motivos que impediram sua continuidade. Entre eles, foi apontado o fato de que a equipe não conseguiria se organizar se não houvesse um "responsável" pelas reuniões, alguém que fizesse com que os demais cumprissem o combinado, exigindo a presença de todos no horário pactuado e cobrando a realização das atividades, como a preparação dos casos e dos textos para discussão. Essa situação é indicativa de uma adaptação à forma verticalizada das relações interprofissionais, um dos efeitos do Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador nas práticas em Saúde, em que são supervalorizadas as estratificações de poder e saber: "poucos determinam e a maioria obedece" (Costa-Rosa, 2000, p. 158). No entanto, naquele momento, não havia abertura para esse impasse fosse transformado em questão para o grupo de trabalhadores e as reuniões gradativamente voltaram ao seu formato anterior.

Se o trabalhador-intercessor deve contribuir para que os movimentos e forças em jogo no campo ganhem expressão, e para que os sujeitos da práxis passem a produzir o saber necessário à solução de seus impasses, é fundamental também que ele não force um movimento para o qual ainda não haja uma abertura e não precipite uma situação, o que poderia inviabilizar o processo de intercessão e favorecer a emergência de barreiras a qualquer possibilidade de construção coletiva de mudança. É preciso, mediante o que a psicanálise chama de "cálculo transferencial", identificar e tentar "andar" num ritmo que seja o do coletivo de trabalhadores.

Em coerência com a ética do DI, as negociações no sentido dos avanços ou recuos se fazem no coletivo. A forma e a velocidade com que isso se processará dependerão das possibilidades de avanço ou dos desejos de recuo do próprio estabelecimento institucional, das forças (instituinte/instituído) em luta no campo. Qualquer mudança que porventura aconteça, na perspectiva dos intercessores, nunca é atribuível a "um" sujeito isolado. Se essa atribuição acontecer, o trabalhador-intercessor já terá se deslocado do seu lugar/função e sua ação poderá ser melhor compreendida como uma intromissão disciplinar4 (Benelli, 2013/2019).

 

3 Considerações finais

A análise apresentada neste ensaio abordou o plano do funcionamento do CAPSad como dispositivo de produção da Atenção. Não foi nossa pretensão fazer uma análise do plano do trabalho terapêutico propriamente dito, junto aos sujeitos do sofrimento. Sabemos, no entanto, que a forma como se organizam os modos de produção da Atenção têm incidência direta na produção de subjetividade (Costa-Rosa, 2000, 2013). Assim, o DI traz avanços importantes para a construção da APS: ao visar à superação da cisão entre pensar/saber versus fazer/executar viabiliza que os trabalhadores operem um giro em sua relação com a práxis, o que incide nas ofertas transferenciais colocadas à disposição dos sujeitos do sofrimento.

Na experiência que relatamos, as ações de intercessão parecem ter contribuído para que a equipe, na qual a trabalhadora-intercessora está incluída, realizasse pequenos deslocamentos em aspectos da relação com os sujeitos do sofrimento e de normas tidas como naturais, a partir da análise crítica dos impasses que surgiram no cotidiano de trabalho. Aos poucos, vai sendo colocado no horizonte o olhar para o sujeito dos impasses decorrentes do uso de álcool e outras drogas como um sujeito de desejo para o qual o uso de drogas tem um sentido particular alicerçado em sua história e em suas vivências subjetivas, e que, portanto, deve ser implicado de forma decisiva em seu processo de tratamento.

Por fim, as ações de intercessão aqui relatadas não têm a pretensão de ensinar como fazer operar a produção do saber necessário ao equacionamento dos impasses que se apresentam nos Estabelecimentos da Atenção ao sofrimento psíquico. Objetivou-se, apenas, apresentar uma experiência, e falar da forma como foi possível, neste caso singular, colocar em curso o processo de intercessão. Ou seja, contrapondo-se ao "como fazer", normatizador e universalizante, temos apenas um "como foi feito" (Lourau, 1993) assentado numa prática datada, sujeita às contingências desse campo específico.

 

Referências

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Recebido em: 13/09/2019
Aprovado em: 15/11/2019

 

 

1 Este artigo é derivado da dissertação de mestrado intitulada "O Dispositivo Intercessor como Modo De produção do Conhecimento: construção do saber na práxis de um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas", produzida por Anúncia Heloisa B. Galiego sob a orientação do Prof. Dr. Abílio da Costa-Rosa.
2 No entanto, em sintonia com os retrocessos operados na Política Nacional de Saúde Mental por meio de Resoluções e Portarias consolidadas na Nota Técnica 11/2019-CGMAD/DAPES/SAS/MS, intitulada "Nova Política Nacional de Saúde Mental", os leitos hospitalares entraram em processo de expansão.
3 Costa-Rosa (2013) propõe uma homologia entre os modos do processo de produção mais amplo da sociedade e os modos de produção no campo da Saúde Mental, e defende que - para alcançar outro modo de produção e, portanto, outro efeito produtivo (nos termos da singularização) - devemos operar um drible na forma de produção do MCP que ainda atravessa as práticas na área da Saúde, em especial na Atenção ao sofrimento psíquico.
4 A intromissão disciplinar se caracterizaria pela ação de um agente "sobre" um determinado campo, tomado como objeto, o que é contrário à ética do DI, que insiste na necessidade de inclusão dos sujeitos da práxis como produtores do saber necessário ao equacionamento dos impasses vivenciados no cotidiano de trabalho.

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