Artigo

 

Intuição e percepção em Husserl: leituras de Emmanuel Levinas

 

Intuition and perception in Husserl: Emmanuel Levinas' approach

 

La intuición y la percepción de Husserl: las lecturas de Emmanuel Levinas

 

 

Silvestre Grzibowski

Universidade Federal de Santa Maria

 

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RESUMO

A pesquisa tem como objetivo principal apresentar os temas da intuição e percepção de Husserl, sob a ótica do pensador lituano-francês Emmanuel Levinas. Levinas foi um grande estudioso e consequentemente um profundo conhecedor do pensamento husserliano. Além disso, inovou-a e ainda introduziu-a no território Francês com a obra Théorie de l´intuition dans la phénoménologie de Husserl publicada em 1930. Por isso, essa obra representa significativamente dois acontecimentos: o primeiro, o conteúdo fenomenológico husserliano abordado nela, Levinas estuda-o e interpreta-o, e também começa a dar os primeiros saltos que se concretizarão posteriormente nas obras vindouras; o segundo, a introdução da fenomenologia no território francês, isso significa que os pensadores como Sartre, Derrida entre tantos outros, terão o primeiro contato com a fenomenologia através da obra levinasiana.

Palavras-chave: Fenomenologia; Intuição; Percepção.

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ABSTRACT

The research has as main objective to introduce the topics of intuition and perception of Husserl, from the perspective of the Lithuanian-French thinker Emmanuel Levinas. Levinas was a great scholar and consequently a profound connoisseur of husserliano thought. In addition, innovated it and even introduced it in the French territory with the work Théorie de l´intuition dans la phénoménologie de Husserl published in 1930. So, this work represents significantly two events: the first, the phenomenological content husserliano approached her, Levinas studies it and interprets it, and also begins to take its first jumps to materialize later in the works to come; the second, the introduction of Phenomenology in the French territory, this means that thinkers like Sartre, Derrida and many others, will have the first contact with the phenomenology through the work levinasiana.

Keywords: Phenomenology; Intuition; Perception.

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RESUMEN

La investigación tiene como principal objetivo presentar los temas de la intuición y percepción de Husserl, desde la perspectiva del pensador francés Lituano Emmanuel Levinas. Levinas fue un gran erudito y, en consecuencia, un profundo conocedor del pensamiento husserliano. Además, ha introducido en el territorio francés la fenomenología con la obra Théorie de l´intuición dans la phénoménologie de Husserl publicada en el año de1930. Por lo tanto, este trabajo representa significativamente dos eventos: el primero, el contenido fenomenológico husserliano, Levinas se acercó a ella, Levinas estudia y lo interpreta y también comienza a dar sus primeros saltos que más tarde se concretizarán en sus trabajos; el segundo, la introducción de la fenomenología en el territorio francés, esto significa que pensadores comocearenses, como la leyenda de Iracema y la imagen del jangadeiro. Sartre, Derrida y muchos otros, tendrán el primer contacto con la fenomenología a través de la obra levinasiana.

Palabras-clave: Fenomenología; Intuición; Percepción

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INTRODUÇÃO

A pesquisa tem como objetivo principal apresentar os temas da intuição e percepção de Husserl, sob a ótica do pensador lituano-francês Emmanuel Levinas. Levinas foi um grande estudioso e consequentemente um profundo conhecedor do pensamento husserliano. Além disso, inovou-a e ainda introduziu-a no território Francês com a obra Théorie de l´intuition dans la phénoménologie de Husserl publicada em 1930, como ele mesmo confessa no prólogo: "o fato de que na França a fenomenologia não seja ainda uma doutrina amplamente conhecida nos tem colocado em apertos ao elaborar este livro" (Levinas, 2004b, p. 19). Por isso, essa obra representa significativamente dois acontecimentos: o primeiro, o conteúdo fenomenológico husserliano abordado nela, Levinas estuda-o e interpreta-o, e também começa a dar os primeiros saltos que se concretizarão posteriormente nas obras vindouras; o segundo, a introdução da fenomenologia no território francês, isso significa que os pensadores como Sartre, Derrida entre tantos outros, terão o primeiro contato com a fenomenologia através da obra levinasiana.

A obra Théorie de l´intuition dans la phénoménologie de Husserl não só explicita como também faz conhecer o núcleo do pensamento husserliano. Também é possível perceber e encontrar os ecos e as ressonâncias que elabora para o futuro e a influência que esta obra irá proporcionar para as gerações posteriores, que serão muitos, até os temas atuais. Indica ainda, que o percurso selecionado por Levinas segue pelos complicados campos da teoria husserliana, que deposita na intuição as possibilidades últimas do conhecimento, entre muitas coisas a questão da verdade que já não será tributária as teorias clássicas, (Kant) e da adequação – mas que enfatizará uma concepção que faz da vida a resistência da verdade. Por isso, a admiração e a fidelidade ao pensamento fenomenológico em toda a sua trajetória filosófica serão notórias.

Metodologicamente, irei primeiramente partir dos escritos de Levinas, principalmente, da sua principal obra fundamental desse período, A teoria fenomenológica da intuição e ainda de alguns artigos menores seus, a partir das indicações verifico Husserl, e finalmente, para auxiliar na compreensão dos temas, consultarei alguns comentadores. É importante termos presente neste momento, que essas leituras e interpretações foram feitas por Levinas quando jovem, no entanto, os vestígios que nelas deixou, já evidenciavam os indícios e ensaios convincentes, claro que, sob a influência da ontologia heideggeriana com a tentativa de exceder o pensamento do seu mestre. Isso será percebido, de modo especial, com uma maior visibilidade nas futuras obras levinasianas, como totalidade e infinito e de outro modo que ser ou além da essência.

 

CONTEXTUALIZAÇÃO, CONCEITUAÇÃO E RELEVÂNCIA

Para Levinas a intuição de essências constitui um dos principais descobrimentos das investigações Lógicas e aparecerá também em ideias I. Ao estudar a obra do mestre, definiu em 1930 a fenomenologia de Husserl como um intuicionismo. Com isso, segundo Depraz ele quer assim "manifestar o quanto a atividade de conhecer é, em última instância, regida por uma intuição doadora e originária" (Depraz, 1999, p. 28). Levinas está muito próximo do fundador da fenomenologia porque foi ele quem colocou a intuição no centro do método filosófico para contrapor o psicologismo e propor um novo modo de fazer filosofia e ciência.

Os conceitos lógicos, enquanto unidades de pensamento dotadas de validade devem ter a sua origem na intuição, eles devem através da abstração ideadora, despontar com base em certas vivências, e devem comprovar-se sempre outra vez em cada nova consumação desta abstração, devem ser captados na sua identidade consigo próprios (Husserl, 2012b, § 3, pp. 4-5).

Percebe-se claramente que, a intuição será o fundamento para a fenomenologia. Desse modo, podemos afirmar que a fenomenologia começa na intuição. Com a intuição Husserl evidencia que seu intento será ir além das simples verbalizações científicas e filosóficas, porque ele acredita que ela dará novas possibilidades de ver o mundo, ou seja, como as coisas se dão na sua origem. "Não queremos em absoluto, contentar-nos com "simples palavras", ou seja, com uma compreensão verbal meramente simbólica" (Husserl, 2012b, § 3, pp. 4-5). O intuito husserliano é, no entanto, ultrapassar as obviedades e as repetições e assim indicar novas probabilidades para criação, abrir-se para as novidades. Esse parece ser um dos intuitos essenciais da fenomenologia, porém, o que ele percebia era uma grande crise de metodologia e, por conseguinte de inovação no discurso filosófico e científico. Esse descontentamento aparece nitidamente em Husserl em todas as fases do seu pensamento, para citar algumas: As investigações Lógicas, as Meditações e sua última grande obra, as crises das ciências européias. Nelas Husserl não poupará palavras para criticá-las. "Significações que são animadas apenas por longínquas, vagas, impróprias – quando de todo por algumas – não nos podem satisfazer". Além de questionar o naturalismo insiste em dar um fundamento que servisse de base para as ciências.

Qual será então o propósito? Voltar para aquilo que foi esquecido, ou seja, voltar às coisas mesmas.

Queremos retornar às "próprias coisas". Com base em intuições plenamente desenvolvidas, queremos trazer, para nós, à evidência que isto, que aqui está dado numa abstração atualmente consumada, é verdadeira e efetivamente aquilo que as significações das palavras querem dizer na expressão das leis (Husserl, 2012b, § 3, p. 5).

Se a humanidade vive em crise, as ciências deveriam ser responsabilizadas porque elas protagonizavam os discursos e assim esvaziavam os "sentidos" das palavras e das suas próprias existências e ainda impossibilitavam o nascimento de algo novo. Como dirá Depraz (1999, p. 27), voltar às coisas¹ mesmas significa recusar as argumentações doutrinárias e os sistemas autocoerentes em proveito das interrogações nativas pelo mundo que vivemos e que a nossa vida se alimenta. Por isso, voltar às coisas mesmas constitui voltar ao princípio de todos os princípios e a intuição possibilita o acesso às coisas mesmas, conforme Husserl apresenta: "Toda intuição em que se dá algo originariamente é um fundamento de direito de conhecimento; tudo aquilo que se nos brinda originariamente, por assim dizê-lo, em sua realidade corpórea, na intuição, há que tomá-lo simplesmente como se dá, e só dentro dos limites em que se dá" (Husserl, 2006, p. 43). O pensamento husserliano evidencia a intuição originária e mostra a fonte primeira e última do conhecimento. O dado deve dar-se no original. Levinas dirá que esse dado original se dá em carne e osso. Claramente, Levinas valoriza demais essa proposição, ou seja, aquilo que se dá originariamente aqui e agora em carne e osso. Esse discurso permeará a sua trajetória filosófica, sobretudo, quando abordará sobre a ética da alteridade. "Aquilo que se dá, deve estar realmente presente, não em representação². Tal evidência está por cima de todo o argumento, por cima de toda a demonstração indireta" (Patocka, 2005, p. 24). A intuição no sentido de dar-se de imediato, aqui e agora e que não pressupõe nada anterior e nada posterior a ele mesmo. Ou seja, somente a intuição é que poderá apresentar-se como origem de toda a demonstração.

Com a intuição Husserl quer dar fundamento aos conceitos. Por isso, será preciso antes de qualquer coisa sair do contentamento e do conformismo simbólico e formal das palavras. Para superar esse dogmatismo, Husserl indica a via para ir às coisas mesmas e refletir sobre os termos. Reflexão, palavra valorizada pelo mestre da fenomenologia. Para ele a filosofia e ciência não devem ser apenas meras repetições dos termos, mas reflexão. No mundo de hoje o ato de pensar e refletir são pouco valorizados, as pessoas querem conceitos. Nesse sentido, Husserl nos convoca a refletirmos sobre eles e a buscar a origem.

Sendo assim, Husserl insiste no princípio dos princípios. Esse se enraíza na intuição. Brilhantemente Patocka (2005, p. 25) dirá que "o princípio husserliano se arraiga já desde o começo no âmbito lógico, no âmbito do significado, no âmbito da linguagem dotado de sentido. Aí é onde está sua raiz". Ou seja, para que a linguagem possa laborar é necessário que existam certas estruturas, elas são indispensáveis para que haja uma comunicação entre os sujeitos. Com elas ou através delas os sujeitos se fazem entender, quando um fala o outro o entende, esse entrosamento torna-se possível pelas estruturas já existentes. O problema é que nessas fórmulas existem as trivialidades e nós as consideramos banais, porém, nelas se ocultam coisas importantes, pois "A reflexão acerca destas trivialidades, pode nos conduzir a regiões que já não são tão triviais" (Patocka, 2005, p. 26). Isso demonstra que o método fenomenológico instiga a raciocinar em tudo, inclusive nas trivialidades.

 

INTUIÇÃO E PERCEPÇÃO DE HUSSERL SEGUNDO LEVINAS

Levinas ao estudar fenomenologia se depara com a intuição e vê nela o momento constitutivo da fenomenologia husserliana, que esclarece com o seu modo de fazer filosofia o que emana, ou que nasce da consciência do ser.

Ao propor estudar aqui a intuição na fenomenologia de Husserl, não se pode, conseqüentemente, separar a exposição à teoria da intuição como método filosófico, daquilo que se poderia chamar ontologia de Husserl. Pelo contrário, se busca mostrar que a intuição que o nosso autor propõe como modo de filosofar, se desprende da sua concepção mesma do ser (Levinas, 2004b, p. 22, grifo do autor).

Esta intuição, que nasce da concepção do ser, significa essencialmente, segundo o nosso autor, que o pensamento de Husserl almeja ultrapassar uma concepção que queria ser extremamente herdada da física e do objeto como se apresenta no naturalismo, para assumir uma dimensão que coloca o ser no vivido (Levinas, 2004b, p. 147). O método fenomenológico assim ligado estreitamente a concepção do ser, no fundo, implica um referimento essencial a vida.

A fenomenologia constitui para o homem uma maneira de existir mediante a qual ele cumpre o seu destino espiritual. Essa serve de base tanto para as ciências morais, como fundamento as ciências da natureza, mas, sobretudo é a vida mesma do espírito que se reencontra e que existe conforme a sua vocação (Levinas, s/d, p. 8, grifo do autor).

O destaque principal é dado para o espiritual do sujeito, a vida do espírito do sujeito. A fenomenologia fala da vida do homem que está no mundo, e do seu modo de existir no mundo.

Para Levinas o pensamento mesmo pode idear a existência do objeto. O modo de consciência ou mesmo da representação, através da qual "entrar em contato com o ser é um ato com uma estrutura determinada; é, digamos já, a intuição" (Levinas, 2004b, p. 93). Ou seja, se trata de uma estrutura bem determinada e que se distingue do ato significativo no que o objeto é simplesmente significado, mas não é dado diretamente. Por isso que, para compreender o pensamento sobre a intuição é fundamental perceber as diferenças entre estes dois tipos de atos.

Husserl nas Investigações Lógicas classificou os atos intencionais em intuitivos (percepção e imaginação) e vazios (significativos ou signitivos). O ato significativo se caracteriza já como uma intenção vazia, mas que pode chegar a realizar sua referência ao objeto ao vincular-se aos atos de cumprimento. Para perceber esse ato, Levinas (2004b, p. 94) apresenta a seguinte característica do ato significativo: "seu objeto não é nem visto nem alcançado, só apontado". Esse ato é a regra do discurso ordinário, onde nos contentamos com o simples apontar até um objeto. De uma forma geral, nos contentamos porque entendemos o que estamos dizendo. É importante frisar que, nos contentamos a princípio, de um modo imediato, nos satisfazemos no momento quando apontamos para algo ou alguma coisa.

No entanto, um dado importante ou uma característica a ser destacada da intenção significativa é que ela está vazia, mas ela pode ser preenchida em uma imagem ou em uma percepção. Husserl segue este mesmo esquema em Ideias I quando fala do sentido cheio e não cheio e que precisam ser preenchidos.

A plenitude de sentido não basta, pois o modo de preenchimento também conta. O modo intuitivo é um modo de viver o sentido no qual o objeto visado como tal é trazido intuitivamente à consciência, e um caso eminente dele é aquele em que o modo intuitivo é justamente doador originário. O sentido na percepção de uma paisagem é preenchido perceptivamente, o objeto percebido é trazido à consciência no modo do "em carne e osso" com suas cores, formas etc. (tão logo estas sejam chamativas para a percepção (Husserl, 2006, § 136, p. 304, grifo do autor).

Portanto, é preciso perceber que a diferença entre o ato significativo e o intuitivo não é uma simples diferença de grau. Na verdade, esta problemática aparecerá com muita força na Sexta Investigação ao dizer que

as intenções signitivas são em si "vazias" e "carentes de recheio" estaremos apenas exprimindo de um outro modo o sentido desse último caráter. Na transição de uma intenção signitiva para intuição correspondente, não temos somente a vivência de um mero acréscimo gradativo, como no caso da transição de uma imagem empalidecida ou de um mero esboço para uma pintura cheia de vida (Husserl, 1985, par. 21, p. 60, grifo do autor).

Para reforçar a intenção signitiva indica até o objeto, e a intuição representa o objeto preenchido e traz a plenitude, a passagem do primeiro para o segundo não se faz por acréscimos gradativos. Levinas destaca o seguinte como já mencionado acima: "Existe uma grande diferença entre meramente apontar algo e alcançá-lo" (Levinas, 2006, p. 95). Isso porque a intenção signitiva não possui nada do seu objeto, tão só o pensa. Quando pensamos em uma proposição matemática ou em uma frase escrita e a lemos, podemos compreender o seu sentido, analisamos as diferentes articulações, porém, e aí está o segredo, não podemos ver com evidência, porque são vazios, necessitam ser preenchidos. E esse preenchimento se dará em voltar novamente para o objeto e ver inclusive outras regiões, e isso será possível com outros atos.

Diante disso, necessitamos introduzir o outro ato, o segundo, para justamente preencher o vazio deixado pela intenção signitiva. "Essa unidade de identificação possui necessariamente o caráter de uma unidade de preenchimento, na qual, o membro intuitivo e não signitivo tem o caráter de ser preenchedor e, portanto, também o de dar recheio, no sentido mais próprio da palavra" (Husserl, 1985, § 21, p. 60, grifo do autor). Na interpretação de Levinas (2006, p. 95) esta intenção se caracteriza pela necessidade de uma plenitude (Fülle) e nos dá algo do objeto mesmo.

No entanto, a intuição alcança o mesmo objeto que é apontado para o ato signitivo. Levinas (2006, p. 96) chama atenção dizendo que "a diferença não tem a ver com o objeto, mas com seu modo de dar-se, de ser vivido. O pensamento puro é mesmo um modo de vida do mesmo grau que a vida na presença do ser". Porém, o leitor deverá estar atento porque Husserl chama atenção, e quer evidenciar a teoria do conhecimento, sobretudo quando afirma que o ato de pura significação não é por si mesmo conhecimento. Diante disso, a fenomenologia quer avançar um pouco mais, quando diz que significar não é conhecer. "Na compreensão puramente simbólica das palavras, o ato de significar está presente, a palavra significa algo, mas nada é conhecido ainda" (Husserl, 1985, § 8, p. 30). Nesse parágrafo Husserl aponta ainda para outro aspecto importante, o estado estático e dinâmico. No entender de Husserl, é fácil reconhecer a diferença entre os dois. Embora, o leitor saiba que não é tão simples assim. "Na relação dinâmica, os membros da relação e o ato de conhecer que os relaciona estão afastados temporalmente, desdobram-se numa figura temporal. Na relação estática que está aí como um resultado permanente desse processo temporal, elas se recobrem temporal e concretamente" (Husserl, 1985, §, 8, p. 30). No primeiro, temos um mero pensar, um conceito, segundo Husserl esta intenção é absolutamente insatisfeita e vai receber no segundo passo um preenchimento e assim a meta será atingida (anuncia-se como pensado desse pensamento, como o que nele é visado, como meta de pensamento, atingida mais ou menos perfeita). E assim, o conhecimento consistirá em uma confirmação por parte do ato intuitivo já apontado pela intenção insatisfeita da simples significação.

Husserl desenvolve as duas vias: via estática e via genética. A primeira é aquela que caminha e culmina e que será conhecida como idealismo transcendental. Já a segunda marcha para a "experiência originária". Essa experiência originária será valorizada demasiadamente por Levinas e outros fenomenólogos como Merleau-Ponty, Ricoeur, Michel Henry entre outros. Isso porque, o nível genético parte da sensibilidade e da corporeidade. Com essa via é possível desenvolver uma fenomenologia da vida a partir da sensibilidade. Aqui, é interessante observar como o tema da sensibilidade e da corporeidade foi, digamos assim, devolvido para a reflexão filosófica, isso porque a filosofia tinha certo medo e receio de abordar estes temas. Claro que, o fio condutor passa a ser a "gênese da vivencia" do objeto enquanto dinâmica de emergência do sentido a partir da sensibilidade do sujeito. Como dirão unanimemente os fenomenólogos acima citados, o que se revela aí é a vida do sujeito a partir da vivência pura no mundo. Na leitura de Depraz, a vida se passa por trás, nas costas do sujeito, ou anterior a objetivação e a racionalização, existe uma vida fenomenológica. A via genética parte da "via da psicologia" passando pela "via do mundo-da-vida" e chegando a "via da pré-objetiva (Depraz, 1999, pp. 49-55).

Para concluir essa parte nos perguntamos: Qual é a estrutura do ato intuitivo? Na interpretação de Levinas (2006), o ato intuitivo pode ter ante si um maior ou menor número de caracteres do objeto para o qual ele se dirige. O restante fica simplesmente como apontado. Ele cita um exemplo quando pensamos em uma pessoa, um maior ou menor número de traços pode ser reavivado em nós, enquanto o resto de sua figura será somente pensado. Ou seja, quando ele diz reavivado significa que nós a conhecemos em uma profundidade maior, enquanto no ato signitivo são apenas pensados. Enquanto os conteúdos intuitivos podem caracterizar-se por uma maior ou menor vivacidade, e teremos como resultado, o ser mais ou menos análago ao objeto.

 

Percepção

Para Husserl (2006), a percepção é fundamental e importante porque com ela a plenitude se realiza para nós, tal como o objeto é ou se dá em si mesmo. A percepção se caracteriza pelo fato de ter diante de si seu objeto em carne e osso (leibhafgegeben). Por isso, Husserl a considera um ato intuitivo privilegiado, uma intuição originária. "A intuição doadora na primeira esfera natural de conhecimento e de todas as suas ciências é a experiência natural, e a experiência originariamente doadora é a percepção, a palavra entendida em seu sentido habitual" (Husserl, 2006, § 1, p. 33, grifo do autor). Como podemos perceber ela é a porta de entrada para o conhecimento e também dará sentido para a reflexão científica. Para Levinas o que está manifesto (ou o que se manifesta) em "carne e osso" e tudo o que é regido por uma doação originária dá sentido a toda atividade de conhecimento. E o acesso ao conhecimento a fenomenologia husserliana destaca e privilegia de certo modo o papel da sensibilidade. "O procedimento característico da fenomenologia consiste em deixar, na constituição, um lugar primordial à sensibilidade. Mesmo ao afirmar a idealidade dos conceitos e das relações sintácticas, Husserl fala em assentar no sensível" (Levinas, s/d, p. 143). Além disso, para Levinas a percepção não se esgota em um só golpe ou em um ato perceptivo, mas "a percepção da coisa é um processo infinito. Nos só ascendemos às coisas por meio dos infinitos aspectos que elas nos oferecem. É preciso girar em torno delas. A consciência do posso girar em torno é constitutiva do nosso conhecimento das coisas e anuncia aquilo que a percepção tem de eternamente inacabado" (Levinas, s/d, p. 38). Uma das maravilhas da percepção que Levinas destaca e chama a atenção é para o fato de que ela oferece um modo de conhecimento inacabado e inconclusivo. É assim, desse modo que conhecemos as coisas e os objetos e naturalmente formamos sínteses, mas elas são incompletas. A percepção é direta e dá-se ao mesmo tempo em cada aspecto da coisa. Isso, talvez, se torna mais evidente quando Levinas (2006, pp. 39-88) em um estudo sobre Ideias I, mostra o esboço comparativo da percepção imanente da transcendente. O objeto transcendente se apresenta de um modo inadequado, não podemos em um único ato apreender todos os lados da mesa, mas precisamos de uma série de miradas, e que essa série é infinita. Em cada ato perceptivo vamos preenchendo, vendo coisas que em uma única percepção não veríamos. No entanto, por convenção segundo Levinas dizemos, "o que é em si" (Levinas, 2004a, p. 60). Um exemplo de um som de um violino, dizemos "o som tal como é em si". Já o objeto imanente se dá de modo adequado, se dá de modo absoluto. E a sua existência se revela como anterior a reflexão. Por isso que a percepção transcendente é o ato da reflexão, imanente aos objetos.

Com a percepção alcançamos ao ser mesmo, como já frisamos acima, em carne e osso, e entramos em uma relação direta com real, isso se dá "graças ao caráter específico da intencionalidade perceptiva, graças ao seu sentido intrínseco" (Levinas, 2006, pp. 101-102). Por isso, é fundamental compreender que para Husserl "a percepção também nos dá o objeto em diferentes graus de perfeição, em diferentes graus de sombreamento. O caráter intencional da percepção consiste no presentear (prasentierem) em oposição ao mero presentificar da afiguração" (Husserl, 1985, § 37, p. 90). Porque a presentificação é apenas afigurativa, são imagens e não são verdadeiras. Porém, o presentear não constitui um verdadeiro estar presente, mas um aparecer como verdadeiro, estar presente, um aparecer como presente, "onde a presença objetual é, com ela, a perfeição da captação verdadeira" (Husserl, 1985, § 37, p. 90).

Husserl anota isso, porque está fenomenologicamente descrevendo os preenchimentos dos atos perceptivos e quer apontar para uma meta definitiva dos acréscimos de preenchimento. Por isso, segundo ele, o conteúdo intuitivo dessa representação final é a soma absoluta do recheio possível. Em um texto magnífico e poderoso, porém, será objeto de muitas críticas pelos diversos fenomenológos, sobretudo, pelos franceses. Husserl afirma:

o representante-apreendido intuitivo é o próprio objeto, tal como é em si. Aqui, o conteúdo representante-apreendido é idêntico ao conteúdo do qual ele é o representante-apreendido. E, quando uma intenção de representação é definitivamente preenchida por meio dessa percepção idealmente perfeita, produzse uma genuína adaequatio rei et intellectus: o objetal está efetivamente presente ou dado exatamente como aquilo-como-o-que é intencionado; nenhuma intenção parcial que careça de preenchimento permanece implícita (Husserl, 1985, § 37, p. 91, grifos do autor).

Por isso que, neste momento precisamos estar atentos para um tema que na interpretação de Levinas ocupa um posto primário no pensamento de Husserl, a representação³. A representação que é re-representação assume este posto fundamental na especulação husserliana, e é motivo de tomada de posição por parte de Levinas, do seu progressivo destaque sobre tal consciência que acorda com o primado da consciência teórica. De fato, em Husserl "a teoria e a representação jogam um papel preponderante na vida; servem de base para toda a vida consciente e configuram a forma de intencionalidade que assegura os fundamentos de todas as demais" (Levinas, 2006, p. 80). O que interessa para nós neste momento, sobretudo o destaque que Levinas outorga e as críticas que fará nessa obra e também posteriormente para o conceito de representação. "O papel que a representação joga na consciência terá então uma grande repercussão sobre o sentido mesmo da intuição. É precisamente aí onde encontramos a razão do caráter intelectual próprio do intuitivismo husserliano. Por isso, não podemos evitar o estudo do papel da representação (Levinas, 2006, p. 80).

O estudo levinasiano sobre a intuição na filosofia de Husserl, e em particular no capítulo quatro, que tem como título "a consciência teórica", pode ser definido no momento em que Levinas toma a devida distância da teoria husserliana. A interpretação que conduz o nosso autor sobre a fenomenologia husserliana tem como prioridade o tema da representação na consciência teórica, a base mesma do nosso vivido como representado, isso reserva um lugar de destaque. "Para a teoria da intuição, o primado da consciência teórica tem uma importância capital. O ato da intuição, o ato que nos coloca em contato com o ser, será antes de tudo um ato teórico, um ato objetivo, apesar das modificações que as Idéias tentam introduzir na noção do ato objetivo". Este primado da consciência teórica induz Levinas a caracterizar a filosofia de Husserl como eminentemente intelectual. Não há dúvidas, que a intuição e a percepção são fundamentais para Levinas, no entanto, a crítica maior que ele fará como Husserl apresenta o ato de intuir, e ao intuir o sujeito teoriza o Outro. Assim sendo, o Outro será um objeto teórico, representado e não mais Outro encarnado (Levinas, 2004a).

Para concluir diria que, Levinas ao descrever a sua fenomenologia (pensamento), sobretudo, da subjetividade encarnada irá buscar subsídios em Husserl e também em outros fenomenólogos e intérpretes do mestre, como Heidegger (ontologia), Michel Henry, a manifestação da vida como ela se revela em cada indivíduo, e ainda em Merleau-Ponty, sobretudo, na obra a "fenomenologia da Percepção". Nessa obra Ponty reelabora a teoria da percepção moderna e contemporânea, numa tentativa de incorporar a unidade da corporeidade com a racionalidade humana. E ainda busca explicitar de uma forma bem ordenada à questão da relação entre o sujeito encarnado e o mundo. Diria ainda que, assim como Ponty outros pensadores franceses como Henry e Levinas renunciam definir a sensação como impressão pura ou em uma função mecânica da atividade racional. O corpo não é mais lido e interpretado como uma máquina, mas como corpo subjetivo. Assim, eles tentam superar a dicotomia existente entre sujeito e objeto. Levinas toma o corpo subjetivo como ponto de partida para a sua concepção de significação e linguagem, pois quando diz que existe uma unidade entre o sentido e a palavra, entre a interioridade e a exterioridade, o pensamento desses fenomenólogos está presente.

 

Referências

Depraz, N. (1999). Husserl. Paris: Armand-Colin.         [ Links ]

Husserl, E. (1985). Investigações lógicas: sexta investigação. Coleção Os Pensadores (Zeljko Loparic, & André Marina Altino de Campos Loparic, Trads.). São Paulo: Abril Cultura.         [ Links ]

______. (2006). Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenologica: introducao geral a fenomenologia pura (Carlos Alberto Ribeiro de Moura, Trad.). Aparecida, SP : Ideias & Letras.         [ Links ]

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Emmanuel. (s/d). Dios, la muerte y el tiempo. París: Bernard Grasset.

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Patocka, J. (2005). Introducción a fenomenología. Madrid: Herder.         [ Links ]

 

 

Nota sobre o autor:

Silvestre Grzibowski: professor Adjunto do programa de Graduação e Pós-graduação de Filosofia da Universidade Federal de Santa Maria. Doutor em Filosofia pela Universidade Pontifícia de Salamanca, mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, graduado em Teologia pela Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção de São Paulo e licenciado em Letras Português- Inglês pelo Centro Universitário Assunção de São Paulo (UNIFAI). E-mail: silboski@yahoo.com.br

 

 

Recebido em:03/09/2016.
Aprovado em: 04/11/2016.

 

 

¹ Muito interessante a observação da Natalie Depraz (1999, p. 27) sobre o vocábulo coisa. Veja: "Não se trata, à maneira dos cínicos, de se ater à coisa particular e contingente do mundo físico recusando toda busca universal, tampouco, à maneira dos positivistas, que nos são mais próximos, de prender-se ao fato entendido como dado bruto, interditando-se todo exame da essência das coisas. Com efeito, este termo "coisas" remete ao alemão Sachen e não Dinge. Enquanto Ding corresponde à coisa física (res de Descartes), Sache designa o problema, a questão, a aposta de pensamento".
² Tema da representação será desenvolvido na sequência dessa pesquisa.
³ Sigo a tese de Francisco Herrero Hernández (2005, p. 224), de que a representação é um dos temas mais importantes tratados Husserl. "Puedo anticipar que la conclusión a la que Levinas llega en su estudio es que la representación ha sido considerada permanentemente por Husserl, de una o de otra forma, como fundamento de todos los actos".