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Revista do NUFEN

On-line version ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.13 no.1 Belém Jan./Apr. 2021

 

EXPERIENCE REPORT

 

Musicoterapia e o intérprete de Libras na saúde mental: relato de experiência

 

Music Therapy And the Sign Interpreter In Mental Health: Experience Report

 

Musicoterapia Y El Interprete De Libras En La Salud Mental: Relato De Vivencia

 

 

Marcus Vinícius Alves Galvão1

Secretaria Municipal de Saúde de Aparecida de Goiânia

 

 


RESUMO

Muito se discute sobre a acessibilidade e a inclusão da pessoa surda. Esse estudo tem como objetivo relatar a interface entre a musicoterapia, o usuário surdo do Centro de Atenção Psicossocial e o intérprete da Língua Brasileira de Sinais. O estudo proposto refere-se a um relato de experiência com abordagem qualitativa do tipo descritiva, analisados a partir da perspectiva da Fenomenologia. A coleta de dados ocorreu por meio de relatos do profissional de saúde (Musicoterapeuta) do Centro de Atenção Psicossocial tipo III, localizado no município de Aparecida de Goiânia – Goiás. Concluímos que a presença do profissional Tradutor Intérprete e de profissionais que tenham conhecimento da Língua de sinais nos serviços de saúde é de suma importância, pois a comunicação é indicativo de qualidade de vida, portanto, comunicar-se com os surdos é promover uma assistência na área de saúde mental focalizada no contexto psicossocial por meio da musicoterapia.

Palavras-chave: Surdez; Língua de sinais; Serviços de saúde mental; Musicoterapia, TILS.


ABSTRACT

Much is discussed about the accessibility and inclusion of the deaf person. This study aims to report the interface between music therapy, the deaf user of the Psychosocial Care Center and the interpreter of the Brazilian Sign Language. The proposed study refers to an experience report with a qualitative approach of a descriptive type, analyzed from the perspective of Phenomenology. Data collection took place through reports from the health professional (Music Therapist) of the Psychosocial Care Center type III, located in the city of Aparecida de Goiânia - Goiás. We conclude that the presence of the professional Interpreter Translator and professionals who have knowledge of the sign language in health services is of great importance, because communication is an indicative of life quality, therefore, communicating with the deaf is to promote assistance in the mental health area focused on the psychosocial context through music therapy.

Keywords: Deafness; Sign language; Mental health services; Music therapy, TILS.


RESUMEN

Se discute mucho sobre la accesibilidad e inclusión de la persona sorda. Este estudio tiene como objetivo reportar la interfaz entre musicoterapia, el usuario sordo del Centro de Atención Psicosocial y el intérprete de Lengua de Signos Brasileña. El estudio propuesto se refiere a un relato de experiencia con un enfoque cualitativo de tipo descriptivo, analizado desde la perspectiva de la Fenomenología. La recolección de datos se realizó a través de informes del profesional de la salud (Musicoterapeuta) del Centro de Atención Psicosocial tipo III, ubicado en la ciudad de Aparecida de Goiânia - Goiás. Se concluye que la presencia del Profesional Intérprete Traductora y profesionales que tienen conocimiento de la El lenguaje de señas en los servicios de salud es de suma importancia, ya que la comunicación es indicativa de calidad de vida, por lo que comunicarse con los sordos es promover la asistencia en el área de salud mental enfocada en el contexto psicosocial a través de la musicoterapia.

Palabras clave: Sordos; Lenguaje de señas; Servicios de salud mental; Musicoterapia, TILS.


 

 

INTRODUÇÃO

Segundo o Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no Brasil existem 45,6 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência, representando em torno de 24% da população brasileira. Destes, 5,1% possuem surdez, e, em escala global, a comunidade surda totaliza cerca de 360 milhões (IBGE, 2010).

Chaveiro e Barbosa (2005) salientam que conviver no universo das pessoas com deficiência, envolve uma mudança de paradigmas. Tal transformação ocorre quando os surdos são aceitos e respeitados em suas diferenças. Essa atitude é verificada quando há a valorização da diversidade e a compreensão dessa característica como fator identitário da comunidade surda, ultrapassando a presença do Tradutor Intérprete de Língua de Sinais (TILS),

De acordo com Barros & Souza (2016) a Equidade social, educacional e de saúde têm sido temas altamente discutidos tanto a nível global quanto nacional.

Nessa perspectiva, a acessibilidade é uma das políticas públicas criadas com o intuito de minimizar as barreiras para as pessoas com alguma deficiência. No caso do sujeito surdo, os obstáculos são comunicacionais e de acesso às informações, que através do TILS são superados.

De acordo com a Lei Federal nº 10.436/02, disposto em seu Art. 3º "As instituições públicas e empresas concessionárias de serviços públicos de assistência à saúde devem garantir atendimento e tratamento adequado aos portadores de deficiência auditiva, de acordo com as normas legais em vigor". Dessa forma, a comunicação com os surdos surge como um desafio aos profissionais que lhes prestam assistência à saúde, seja por meio do desconhecimento da língua ou pela ausência de um profissional qualificado no serviço.

Assim, o acolhimento e o conhecimento aproximou usuário surdo da musicoterapia. A oficina é de musicoterapia, mas como trabalhar música com surdo? Como trabalhar a interação dos usuários ouvintes? De acordo com Brandalise (2015, p.8), "o sujeito surdo lida com inúmeros desafios, entre eles se encontra a incapacidade de ouvir que é causa do isolamento e da perda de parte dos prazeres que a audição oferece - sons da natureza, sons dos ambientes e a música".

Bruscia (2000, p.71) esclarece: "a música pode fornecer meios de comunicação verbais e não-verbais ou pode servir de ponte para conectar canais de comunicação ". Baratto, Fernandes e Martins (1998), afirmam que o trabalho musicoterápico com os surdos vai além da percepção da vibração e deve ter o objetivo de levá-los ao prazer de descobrir o mundo sonoro, à liberação de emoções e à socialização desses sujeitos.

O presente relato é resultado da vivência de um musicoterapeuta e TILPS com dois surdos usuários do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) do tipo III no Município de Aparecida de Goiânia.

 

REFORMA PSIQUIÁTRICA E ATENÇÃO PSICOSSOCIAL: BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO

No início da década de 1970, diante do cenário de abandono e violência na assistência psiquiátrica, encontrado pelos profissionais da saúde, iniciaram-se várias denúncias na busca de melhores condições de trabalho e de cuidado. Órgãos importantes, no contexto nacional, como a Ordem dos Advogados do Brasil e a Comissão de Bioética e Biodireito também se mobilizaram, alimentando uma atmosfera para a construção de políticas públicas para a saúde e outras áreas (Amarante & Nunes, 2018).

A Reforma Psiquiátrica, a partir dos anos 80, é um importante marco no campo da Saúde Mental para o Cuidado Integral, podendo ser classificada como um processo político e social complexo, composto de atores de diferentes instituições e da sociedade civil organizada (Amarante,1995).

Para Amarante (1998), essa transformação tem consequências em quatro eixos principais, nas seguintes dimensões, sendo: a primeira referente ao campo epistemológico e teórico-conceitual, por meio do questionamento de saberes e conceitos dentro da ciência e do campo da psiquiatria clássica como o isolamento, a neutralidade, o tratamento moral, a anormalidade, a doença e a cura; a segunda dimensão relaciona-se às mudanças técnico-assistenciais que tentam construir novos espaços de sociabilidade, trocas e produção de subjetividade; na terceira estão as questões jurídico-políticas, voltadas para a discussão e redefinição das legislações, que envolvem os doentes mentais e tentam instaurar a construção de novas possibilidades de ingresso social e na quarta dimensão denominada sociocultural, abrange-se o conjunto de ações que visam transformar a relação que a sociedade possui com a loucura e que está permeada por conceitos construídos historicamente.

Essas quatro dimensões apontam para um novo modelo de práticas em Saúde Mental e na Atenção Psicossocial, contrapondo-se ao modo asilar e hospitalocêntrico. Essas diferenças significativas são notadas em quatro aspectos principais, conforme Costa-Rosa, Luzio e Yassui (2003): 1) na concepção do processo saúde-doença e dos meios teórico-técnicos o sintoma é visto como pertencente ao indivíduo, compreendido à sua situação, não sendo algo à parte dele e removível. Muda-se a visão de doença-cura para existência-sofrimento, compreendendo o tratamento do sujeito dentro de uma clínica ampliada e transdisciplinar 2) na concepção da organização das relações intrainstitucionais, há a participação dos usuários e da comunidade nas decisões. O serviço se torna um dispositivo de controle social no qual a sociedade/comunidade ganha voz e participa ativamente das propostas de intervenção. Neste sentido, não existe divisão de saber e poder como existe no modo asilar. 3) nas relações da instituição e seus agentes com a clientela e com a população em geral; a instituição "como ponto de fala e escuta da população será o foco em que se entrecruzam as diferentes linhas de ação presentes no território" (Costa-Rosa, 2000, p. 162) e 4) na ética que contribui com o reposicionamento do sujeito, diante de sua existência-sofrimento: no modo asilar o doente era confinado, levado a cronificação pela doença e pela institucionalização, quando os sintomas apresentados não eram retirados pelo tratamento medicamentoso e/ou ele não conseguia se adaptar ao modelo de vida comum a maioria das pessoas.

 

MUSICOTERAPIA, SAÚDE MENTAL E O SURDO

A música foi utilizada, durante a Segunda Guerra Mundial, também como parte do programa do exército para auxiliar o recondicionamento físico, educacional e como terapia ocupacional. Esse foi o primeiro reconhecimento da música como meio especializado de tratamento usado pelos militares (Tyson, 1981).

Enquanto profissão e disciplina, a musicoterapia teve seu início, em meados do século XX. No Brasil o primeiro curso de especialização em musicoterapia surge na Faculdade de Artes do Paraná em 1970 e o primeiro curso de graduação em 1972, no Rio de Janeiro, no Conservatório Brasileiro de Música. Um dos primeiros registros de pesquisa efetivada no Brasil foi realizado por Di Pancaro, no Rio Grande do Sul, em 1975, chamado "Uma investigação e respostas a um estímulo musical repetido com doentes mentais" (Piazzetta, 2006).

No estado de Goiás, a musicoterapia começou no ano de 1990. O Instituto de Artes, atual Escola de Música e Artes Cênicas (EMAC) da Universidade Federal de Goiás, ofereceu o primeiro curso de extensão em Musicoterapia atendendo a uma demanda da comunidade. Entre os anos de 1993 a 1999, ocorreram os cursos de Especialização em Musicoterapia na Educação Especial (duas turmas) e Musicoterapia com Área de Concentração em Saúde Mental (Zanini, 2005).

Em 1999, iniciou-se o Curso de Musicoterapia em nível de graduação, oferecido pela EMAC em parceira com o Instituto de Ciências Biológicas, Faculdade de Educação, Faculdade de Medicina e Faculdade de Educação Física, contando com o apoio da Faculdade de Enfermagem, que disponibilizou docente do seu quadro efetivo para ministrar duas disciplinas no curso (Zanini, 2005).

Desde 2017, a musicoterapia está inserida no Sistema Único de Saúde (SUS), como uma das 29 Práticas Integrativas e Complementares (PICs) por meio da portaria nº 145/2017. As Práticas Integrativas e Complementares são tratamentos, que utilizam recursos terapêuticos baseados em conhecimentos tradicionais e científicos, para prevenir diversas doenças como depressão e hipertensão. Os atendimentos começam na Atenção Básica, principal porta de entrada para o SUS.

Em alguns casos, também podem ser usados como tratamentos paliativos em algumas doenças crônicas. A portaria nº 849/12 conceitua musicoterapia como, a utilização da música e seus elementos: som, ritmo, melodia e harmonia, em grupo ou de forma individualizada, num processo para facilitar e promover a comunicação, relação, aprendizagem, mobilização, expressão, organização e outros objetivos terapêuticos relevantes, no sentido de alcançar necessidades físicas, emocionais, mentais, sociais e cognitivas.

O mesmo documento salienta que a terapêutica tem também como objetivo desenvolver potenciais e restabelecer funções do indivíduo para que possa alcançar uma melhor integração intra e interpessoal e, consequentemente, uma melhor qualidade de vida (Ministério da Saúde, 2017). No contexto da saúde mental, a musicoterapia é considerada como tecnologia de cuidado leve, sendo assim, uma forma de terapia complementar que ajuda na diminuição do impacto causado pela hospitalização do usuário com objetivo de promover a interpessoalidade entre o profissional de saúde e o usuário do serviço, a partir das experiências musicais, podem ser desenhadas para ressaltar as relações em seus diferentes níveis (Barcelos, Teixeira, Ribeiro et al.2018).

Briscia (2016, p.59) ressalta que a música é difícil de definir, e, em terapia, a matéria é ainda mais complicada pela noção de que a terapia não depende meramente da música, mas também da experiência do cliente com ela. Cada experiência musical minimamente envolve uma pessoa, um processo musical específico, um produto de algum tipo e um contexto ou ambiente. Assim, a música usada para terapia não é meramente um objeto que opera no cliente, mas, além disso, é uma experiência multifacetada envolvendo o cliente, o processo, o produto e o contexto.

Na música, essas relações podem ser manifestadas e experimentadas fisicamente, musicalmente, mentalmente, comportamentalmente, socialmente ou espiritualmente. Dessa forma, experiências musicais podem ser desenhadas para explorar as relações entre dois sentimentos opostos que um cliente tenha, entre diferentes partes de seu corpo ou entre sua música e seus sentimentos sobre seu cônjuge. Assim como, experiências musicais podem ser usadas para explorar relações entre os sentimentos do cliente e do terapeuta, entre a música do cliente e do terapeuta, entre os pensamentos do cliente e os sentimentos de outro cliente ou cônjuge, ou entre as ideias e sentimentos do cliente e aqueles prevalentes em seu setting sociocultural.

De acordo com a Organização Mundial da Saúde, saúde mental é um estado de bem-estar no qual o indivíduo é capaz de usar suas próprias habilidades, recuperar-se do estresse rotineiro, ser produtivo e contribuir com a sua comunidade.

O termo saúde mental e a conformação de seu campo de atuação foram definidos a partir da proposta da Psiquiatria Preventiva e Comunitária, surgida nos Estados Unidos, nos anos de 1960, cujo expoente máximo foi Dr. Gerald Caplan (Tenório, 2002). O objetivo da proposta era superar, na esteira das mudanças, no campo da saúde, em geral ocorridas, na primeira metade do século XX, o modelo da psiquiatria tradicional, que tinha seu foco de atuação centrado no indivíduo doente, isto é, naquele que "sofria de transtorno mental", cuja marca terapêutica era o isolamento social por meio da internação hospitalar, chamada de "lógica manicomial" (Amarante, 2007).

Naquele momento histórico do pós-guerra, sobretudo a partir da década de 1950, começaram a surgir contestações ao modelo de saúde vigente, que se sustentava no que intitulamos aqui de modelo biomédico. No campo da saúde mental, esse modelo baseava-se na tese de psiquiatria, que surgiu como antítese à visão medieval da saúde como "dádiva de Deus", e da doença e da loucura como "pecado" e "possessão demoníaca", com base no paradigma científico positivista, tendo se tornado hegemônica no final do século XIX.

A atenção em saúde mental é oferecida no SUS por meio de financiamento tripartite e de ações municipalizadas e organizadas por níveis de complexidade. A Rede de Cuidados em Saúde Mental, Crack, Álcool e outras Drogas foi pactuada, em julho de 2011, como parte das discussões de implantação do Decreto nº 7508, de 28 de junho de 2011, e prevê, a partir da Política Nacional de Saúde Mental, os Centros de Atenção Psicossocial (CAPs), os Serviços Residenciais Terapêuticos, os Centros de Convivência e Cultura, as Unidades de Acolhimento e os leitos de atenção integral em Hospitais Gerais.(Brasil, 2004)

Além de atender pessoas com transtornos mentais, esses espaços acolhem usuários de álcool, crack e outras drogas e estão presentes ao longo do país, modificando a estrutura da assistência à saúde mental. Vem substituindo progressivamente o modelo hospitalocêntrico e manicomial de características excludentes, opressivas e reducionistas, na tentativa de construir um sistema de assistência orientado pelos princípios fundamentais do SUS (universalidade, equidade e integralidade).

Castro Júnior (2015) evidencia que a surdez deve ser tratada como patologia e "[...] como problema substancial de saúde [...]". Essa posição demonstra que a ausência de programas voltados para a prevenção primária da surdez como campanhas de vacinação, acompanhamento das gestantes, ainda são incipientes. Outro aspecto em pauta é que, muitas vezes, os serviços e as políticas públicas confundem duas áreas de ação: a da saúde e a da educação, relegando a segundo plano a questão do acesso aos conhecimentos historicamente construídos e socialmente valorizados pela sociedade.

A comunidade surda luta diariamente contra o estigma e o preconceito, além disso, estudos médicos descobriram que pessoas surdas sofrem de problemas de saúde mental cerca de duas vezes a taxa da população geral e também têm dificuldades ao acessar serviços de saúde mental (Mitchell, 2006; Hintermaier, 2007; Dammeyer, 2010).

Conforme Fellinger, Holzinger e Pollard (2012), os problemas de saúde mental mais comuns na comunidade surda são: depressão, ansiedade, transtorno bipolar e esquizofrenia. Eles salientam que as doenças mentais são agravadas na comunidade surda pelas dificuldades de comunicação com os prestadores de cuidados, os pesquisadores apontam que a leitura labial não é uma forma adequada de comunicação com o paciente surdo.

Segundo estudos (Werngren-Elgström e Dehlin, 2003; Stevenson, 2010), indivíduos que possuem alguma perda auditiva representam entre 15% e 26% da população. Ressaltam que há uma diferença significativa entre surdos congênitos e os deficientes auditivos, especialmente nos casos que o indivíduo se tornou surdo antes de ter a chance de aprender a língua falada. Cerca de 7/10.000 pessoas se enquadram nessa categoria, e a maioria se considera uma minoria cultural que usa a língua de sinais em vez da língua falada.

Outros estudos realizados nos Estados Unidos (Jure; Rapin, 1991; Gallaudet, 2008; 2008), descobriram que cerca de um quarto dos alunos surdos têm dificuldades de aprendizagem, atraso no desenvolvimento, deficiência visual ou autismo. As crianças surdas que têm problemas em se comunicar com suas famílias, têm quatro vezes mais chances de serem afetadas por transtornos mentais do que as crianças surdas que têm poucos ou nenhum problema de comunicação com os membros da família (Fellinger et. al, 2009). Nesse contexto Garcia (2016), relata:

a convivência com a minha família sempre foi harmoniosa, todos procuravam me ajudar, mas com relação a comunicação nem sempre acontecia de forma fluente, tinha que prestar muita atenção nos lábios e concentrar em cada situação comunicativa para compreender, um processo que muitas vezes me cansava. (p. 72)

O esforço para se enquadrar em um mundo ouvinte pode levar a problemas de saúde mental. Em um estudo envolvendo indivíduos deficientes auditivos, cerca de 41% afirmaram acreditar que problemas de comunicação associados a estresses familiares e preconceitos, em geral, poderiam causar ou contribuir para a depressão suicida, abuso de substâncias ou comportamento violento em alguns casos.

Em revisão sistemática Fellinger et. al, (2012), salientam que as condições psiquiátricas decorrentes de transtornos de humor, frequentemente são subdiagnosticadas na comunidade surda, em grande parte devido a dificuldades de comunicação que incluem: poucos intérpretes experientes na Língua Norte Americana de Sinais, problemas na tradução entre linguagem falada e de sinais e diferenças entre como as pessoas surdas exibem seus sentimentos e percebem a saúde mental.

A perda auditiva interfere bastante na aquisição e ampliação do vocabulário, e muitos alunos formados em escolas de segundo grau, surgem lendo e escrevendo como alunos do ensino fundamental. Conforme estudos (Silva & Araújo, 2017; Tofollo, 2017), a fluência tanto na leitura quanto na escrita requer que o aluno passe por várias etapas durante a aquisição da língua portuguesa. É um processo lento que demanda dedicação e compromisso, além disso, a leitura labial está longe de ser 100% precisa - um adulto surdo médio pode ler apenas 26% a 40% da fala.

Segundo a Associação Nacional de Surdos (NAD) nos Estados Unidos, o status dos serviços de saúde mental para pessoas surdas e com deficiência auditiva é lamentavelmente inadequado. Os prestadores de serviços de saúde mental podem confundir questões culturais, de linguagem e comunicação com atrasos no desenvolvimento, doenças mentais ou retardo mental. A fim de diminuir essas confusões, o NAD fornece Declarações de Posição (DP) aos serviços de saúde mental para ajudar a instruir os prestadores de serviços que trabalham com indivíduos surdos ou com deficiência auditiva. As DP defendem serviços de saúde mental usando abordagens afirmativas culturais e linguísticas, também recomenda ações específicas que os Estados podem adotar para atender os serviços de saúde mental de pacientes surdos e com deficiência auditiva.

Como acessar os serviços de saúde mental? Por causa desses problemas de comunicação, a maioria dos participantes de um estudo (Oliveira, Celino e Costa, 2015) com surdos descobriu que os surdos preferiam ser atendidos por profissionais que saibam LS. Além disso, intérpretes experientes são muito importantes, mas são apenas o primeiro passo para ajudar os surdos a ter acesso aos serviços adequados de saúde mental.

De acordo com Chaveiro, Alves e Porto (2008), os profissionais de saúde mental devem aprender como reconhecer e abordar as diferenças em como um indivíduo surdo exibe sentimentos e expressões daqueles que estão ouvindo.

Além disso, enquanto fortes manifestações emocionais são muito desaprovadas na comunidade auditiva. Os membros da comunidade surda contam com a expressão vívida da emoção para transmitir significado. De fato, um estudo descobriu que os clínicos, muitas vezes, rotularam a assinatura rápida como um sintoma de comportamento psicótico, em vez da mudança de humor que foi realmente indicada. Ainda há poucos indícios dentro da língua de sinais que podem explicar mudanças sutis no humor (National Association of Deaf, 2020).

O que pode ser feito para cuidar da saúde mental da comunidade surda e como ajudá-la?

 

METODOLOGIA

O estudo proposto refere-se a um relato de vivência com abordagem qualitativa do tipo descritivo. De acordo com Viesenteiner (2013), a palavra vivência, Erlebnis, presente no vocabulário alemão pela primeira vez, a partir da primeira metade do século XIX, ganha estatuto filosófico só em meados do mesmo século. Substantivado a partir do verbo Erleben, Erlebnis significa "estar ainda presente na vida quando algo acontece".

A experiência relatada com o objetivo de demonstrar a importância do conhecimento da Língua de Sinais fora do contexto educacional. Neste trabalho, o profissional exerce a função de musicoterapeuta, mas foi necessária a atuação do mesmo como intérprete da Língua Brasileira de Sinais, visto que é capacitado. Os usuários que motivaram a construção deste estudo são 2 surdos usuários da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) do Município de Aparecida de Goiânia, com idade superior a 18 anos, a identidade deles não foi revelada, respeitando assim o sigilo ético.

O relato foi construído a partir da vivência/condução feita por um Musicoterapeuta, de 35 anos. O profissional é Mestre em Ciências da Saúde, especialista em Direitos Humanos da Criança e do Adolescente e em Desenvolvimento Humano, Educação e Inclusão. Atua como TILS desde 2007 e como professor da língua em nível superior desde 2017. Quanto às experiências profissionais atuou como professor de música na Associação de Surdos de Goiânia e como Musicoterapeuta no Centro de Atendimento Especializado Peter Pan da Associação Pestalozzi de Goiânia. O profissional atua na RAPS desde 2017.

A coleta de dados ocorreu por meio de registros em diário de bordo do profissional musicoterapeuta. Os atendimentos foram realizados no Centro de Atenção Psicossocial do tipo III, localizado no município de Aparecida de Goiânia – Goiás. O período de coleta de dados foi de 30 de novembro de 2017 a 30 de agosto de 2018.

A análise dos dados foi feitas a partir da Fenologia do fenômeno relatado (Martins e Bicudo, 1989), esses autores salientam que esta trajetória não parte de um problema, mas de uma interrogação sobre dúvidas advindas da região onde se situa o fenômeno, sendo assim, deve-se situar o fenômeno, isto é, deve haver um sujeito que descreva sua vivência em uma determinada situação. As categorias procuraram "reavivar, tematizar e compreender eideticamente os fenômenos à medida que são relatados, experienciados e conscientemente percebidos" (p. 76)

 

MÃOS QUE CANTAM

O subtítulo leva o nome da oficina terapêutica realizada pelo profissional Musicoterapeuta deste relato. Mas o porquê desse nome?! O nome da oficina foi escolhido pensando na presença de dois usuários surdos, relacionando assim a Musicoterapia com a língua de sinais. A oficina é musicoterapêutica, mas como trabalhar música com surdo? Como trabalhar a interação dos usuários ouvintes?

Os usuários deste relatos chegaram ao serviço de forma espontânea, começaram seus tratamentos no ano de 2017. Uma surda bilateral, de 39 anos de idade, com hipótese diagnóstica de Transtorno Esquizoafetivo de Humor (CID F23), acolhida por psicóloga, ouvinte e sem domínio em LIBRAS. O outro, usuário de 19 anos, sem hipótese diagnóstica, compareceu ao CAPS acompanhado da mãe que respondeu verbalmente os questionamentos, foi acolhido por profissionais que não sabiam LS. Pesquisa indica que os surdos têm mais dificuldade em estabelecer relações com os profissionais de saúde e resistência em acessar os serviços de saúde mental por causa da discriminação, da falta de compreensão que são obstáculos práticos enfrentados no sistema de saúde (Bone, 2019).

De acordo com Brasil (2004, p.9), os CAPS são instituições destinadas a acolher os pacientes com transtornos mentais, estimular sua integração social e familiar, apoiá-los em suas iniciativas de busca da autonomia, oferecê-los atendimento médico e psicológico. Sua característica principal é buscar integrá-los a um ambiente social e cultural concreto, designado como seu "território", o espaço da cidade onde se desenvolve a vida cotidiana de usuários e familiares. Conhecer a história e o objetivo do serviço é de suma importância para uma atuação efetiva.

A fim de contribuir no aspecto cultural e cognitivo dos usuários do CAPS, montou-se uma oficina terapêutica. Brasil (2004) destaca que as oficinas terapêuticas são uma das principais formas de tratamento oferecido nos CAPS.

Essas oficinas são atividades realizadas em grupo com a presença e orientação de um ou mais profissionais, monitores e/ou estagiários. Elas realizam vários tipos de atividades que podem ser definidas através do interesse dos usuários, das possibilidades dos técnicos do serviço, das necessidades, tendo em vista a maior integração social e familiar, a manifestação de sentimentos e problemas, o desenvolvimento de habilidades corporais, a realização de atividades produtivas, o exercício coletivo da cidadania (p.20).

O grupo Mãos que Cantam (GMC) acontecia uma vez por semana no pátio interno do CAPS, com frequência média de 15 a 20 usuários por encontro, com duração de uma hora. Antes da chegada dos usuários surdos, a oficina tinha a seguinte agenda: feedback da semana, como estavam com relação a sua saúde, após esse momento era apresentado a proposta do dia. As atividades variam entre experiências musicais receptivas, interativas ou ativas. De acordo com Barcellos (2015), na musicoterapia receptiva o paciente/usuário recebe a música, feita pelo musicoterapeuta ao vivo ou trazida em CD, rádio, iPod ou computador; na musicoterapia ativa, em que só o paciente faz música e na musicoterapia interativa, que é definida como:

forma na qual a experiência musical é compartilhada pelo musicoterapeuta e paciente(s) – quando em grupo – todos ativos no processo de fazer música, o que configura uma inter-ação simultânea, facilitada pelo fato de a música acontecer no tempo, o que leva mais facilmente à interação dos participantes e dificulta o isolamento (Barcelos, 1984, p. 8).

Com a chegada dos usuários surdos, a dinâmica e as experiências musicais precisaram ser repensadas para que houvesse o acolhimento efetivo do usuário, sua inclusão e uma efetiva contribuição com o tratamento oferecido pelo CAPS.

A fim de diminuir as barreiras comunicacionais e contribuir com a saúde mental tanto dos usuários surdos quanto dos ouvintes, propomos a interação da Musicoterapia e LIBRAS. Nesse contexto surge a minha atuação como intérprete, musicoterapeuta e professor, pois ensinamos a língua de sinais para participantes ouvintes, cantamos em LIBRAS, tocamos instrumentos de percussão. Além de atuar como intérprete nas consultas médicas.

Para isso, trazemos como proposta para o GMC de alfabetização na Língua Brasileira de Sinais. Todos aceitaram, sem exceção, por mais que relataram que teriam dificuldade, sempre quiseram aprender, embora não tivessem a oportunidade. Paralelo às aulas de LIBRAS e às experiências/vivências musicais foram utilizadas canções para que os usuários pudessem interpretar suas letras por meio de interações e diálogos. Eram feitas articulações sobre a vida, o tratamento e sobre os sentimentos despertados. Em outros momentos, a música era utilizada de forma mais livre e os usuários podiam tocar e cantar músicas a partir de suas próprias escolhas. Salientamos que durante toda a duração do grupo o musicoterapeuta interpretou para os usuários.

De acordo com Barcellos (2015), a musicoterapia se vale de experiências musicais como: audição, recriação, improvisação e composição de músicas/canções, através da voz, de instrumentos de percussão e do corpo, para facilitar a comunicação. Salienta-se que a comunicação independe de ser verbal ou na língua de sinais, pois o que importa é o estabelecimento do vínculo terapêutico, a autoexpressão e auxiliar na promoção/prevenção ou restauração da saúde de pessoas que sofrem das mais variadas condições bio/psico/sociais e espirituais.

De acordo com Brandalise (2015, p.8), "o sujeito surdo lida com inúmeros desafios, entre eles se encontra a incapacidade de ouvir que é causa do isolamento e da perda de parte dos prazeres que a audição oferece - sons da natureza, sons dos ambientes e a música". Bruscia (2000, p.71) esclarece: "a música pode fornecer meios de comunicação não-verbais ou pode servir de ponte para conectar canais de comunicação verbais e não-verbais". Baratto, Fernandes e Martins (1998), afirmam que o trabalho musicoterápico com os surdos vai além da percepção da vibração e deve ter o objetivo de levá-los ao prazer de descobrir o mundo sonoro, à liberação de emoções e à socialização desses sujeitos.

O mundo fenomenológico não é o ser puro, mas o sentido que transparece na intersecção de minhas experiências, e na intersecção de minhas experiências com aquelas do outro, pela engrenagem de umas nas outras. Ele é, portanto, inseparável da subjetividade e da intersubjetividade que formam sua unidade pela retomada de minhas experiências passadas, em minhas experiências presentes, da experiência do outro na minha. Tais ações foram suscitadas a partir da experimentação e com o fazer musical com um instrumento e vocalmente/manualmente (cantar em língua de sinais).

Com relação a chegada dos usuários surdos no CAPS? Usuária chega à unidade encaminhada da unidade de pronto atendimento para acolhimento noturno, pois apresentava alucinações visuais e quadro de pensamento acelerado. A usuária foi acolhida pela psicóloga da unidade, pois eu não estava presente na instituição no momento da chegada. As respostas relacionadas ao acolhimento inicial da usuária se deram de forma escrita. De acordo com Fellinger et. al, (2012), a leitura e a escrita não são um substituto adequado para a língua oral neste contexto. A perda auditiva interfere bastante com o vocabulário, segundo o autor, muitos surdos mesmo com ensino médio completo apresentam a leitura e escrita em nível de ensino fundamental.

Observamos a dificuldade de encontrar intérprete para assistência em saúde, ficando a responsabilidade sobre a família do surdo, por mais que não dominasse a língua, possui uma comunicação alternativa intrafamiliar. Goldfield (2009) afirma que:

crianças surdas filhas de pais ouvintes criam em conjunto com a sua família alguns sinais e os utilizam para a organização de seu pensamento. Essa linguagem se dá de modo rudimentar e é desenvolvida pela criança com o objetivo de estabelecer interações sociais e uma comunicação entre ela e seus familiares e também para simbolizar e conceitualizar, buscando uma organização de pensamento (p. 62).

Mais uma vez o profissional que domina a língua de sinais não estava na unidade, então não foi acompanhado o acolhimento. O usuário não possuía diagnóstico fechado, durante a consulta médica (meu primeiro contato com o usuário) foi questionado sobre o sono, sobre alucinações, o usuário respondeu que via monstros saindo da televisão, que não conseguia dormir.

A descrição acima não foi com o intuito de dar destaque aos transtornos dos usuários, mas sim destacarmos a necessidade do profissional TILS devido à presença de surdos nos CAPS. Santos e Shiratori (2004), ressaltam que o bloqueio de comunicação entre surdos e profissionais da saúde instaura-se como um dos grandes obstáculos da comunidade surda, quando procura serviços de saúde. O indivíduo surdo precisa ser assistido de forma global, respeitando suas crenças, seus valores e diferenças.

De acordo com Chaveiro e Barbosa (2005), a falta de intérpretes de LIBRAS é considerada uma barreira nas instituições de saúde do Brasil, tornando ainda mais dificultosa a vida das pessoas com surdez que procuram atendimento ou que solicitam ajuda nestas instituições. Boni (2019) corrobora ao afirmar que o fator impeditivo mais comum do acesso aos serviços, incluindo avaliação, intervenção e acompanhamento, bem como a materiais de prevenção de saúde mental, é a falta da comunicação.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O GMC serviu como um instrumento de acolhimento das manifestações e sentimentos inerentes ao sofrimento mental dos usuários, sejam eles surdos ou ouvintes. Demonstrando assim a riqueza da diversidade humana e as potencialidades da musicoterapia como uma prática de cuidado complementar por meio do fazer musical.

Alguns assuntos relacionados à comunidade surda foram expostos, tais como: saúde mental, relações familiares, capacitação e formação específica. Acredito estar quebrando um tabu, propondo e relatando um pouco do meu trabalho sobre o contato do surdo com a música em forma de terapia. Outro ponto que destaco é a importância do acolhimento e a identificação das formas de cuidado em saúde mental dessa comunidade, sendo a Musicoterapia uma dessas propostas.

Salientamos que para os intérpretes que atuarão na área da saúde é importante ter vivência e contato com o serviço na área da saúde mental para que possamos transmitir perguntas, como: esteve "ouvindo vozes" ou vendo vultos?

Há a necessidade do conhecimento da LIBRAS por parte dos profissionais da saúde em formação e capacitação dos profissionais do CAPS e da saúde em geral, para haver um acolhimento efetivo desta população, pois a comunicação é indicativo de qualidade de vida, portanto, comunicar–se com os surdos é promover uma assistência na área de saúde humanizada e focalizada no contexto psicossocial.

Na musicoterapia também faltam estudos voltados para a comunidade surda, principalmente na perspectiva psicossocial. Consideramos que mais pesquisas precisam ser realizadas, mais barreiras culturais e linguísticas precisam ser transpostas para cuidarmos da saúde mental dessa comunidade. Assim, mais mãos precisam cantar e se unir.

 

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Recebido em: 04/05/2020
Aprovado em: 25/02/2021

 

 

1 Marcus Vinícius Alves Galvão: Mestre em Ciências da Saúde da Saúde, Especialista em Direitos Humanos da Criança e do Adolescente pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e em Desenvolvimento Humano, Educação e Inclusão pela UNB. Graduado em Musicoterapia e em Pedagogia Bilíngue. Tradutor/Intérprete de Língua Brasileira de Sinais desde 2007. Integrante do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Extensão em Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde de Aparecida de Goiânia. Atuou como professor de música na Associação de Surdos de Goiânia e professor/musicoterapeuta no Centro de Atendimento Especializado Peter Pan da Associação Pestalozzi de Goiânia. Musicoterapeuta do CAPS III Bem-me-quer no Município de Aparecida de Goiânia e da Unidade de Atendimento Transitório Infanto-juvenil no Município de Goiânia.

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