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Trivium - Estudos Interdisciplinares

On-line version ISSN 2176-4891

Trivium vol.6 no.1 Rio de Janeiro Jan./June 2014

 

ARTIGOS

 

O Desejo representado em Désir op.57 nº 1 de Scriabin: possíveis interações entre hermenêutica musical e psicanálise

 

The Desire as represented by Scriabin's op.57 nº 1: on music hermeneutics and psychoanalysis

 

 

Ernesto Frederico HartmannI; Mirna Azevedo CostaII

ICompositor, Bacharel em Piano pela UFRJ (1993), Mestre em Práticas Interpretativas pela UFRJ (2001) e Doutorem Música pela UNIRIO (2010). Professor Adjunto e Chefe do Departamento de Teoria da Arte e Música daUniversidade Federal do Espírito Santo, UFES. E-mail: ernesto.hartmann@ufes.br
IIBacharel em Piano pela UFMG (2006), Especialista em Pedagogia do Piano pelo Conservatório Brasileiro de Música / CEU-RJ (2011) e Mestre em Artes pelo Programa de Pós-Graduação em Artes da UFES (2013). ProfessoraAssistente do Departamento de Teoria da Arte e Música da UFES. E-mail: mirnaazevedo@hotmail.com

 

 


RESUMO

O presente trabalho propõe, através de uma abordagem interdisciplinar entre hermenêutica musical e psicanálise, sustentar uma interpretação da inclusão citacional Desejo (1), título da primeira das duas peças do op. 57 (1908) de Alexsander Scriabin. Os conceitos de Desejo de Sigmund Freud e Jacques Lacan são postos em diálogo com os de Janelas Hermenêuticas de Lawrence Kramer, mediados por uma análise formal-harmônica da obra. Como resultado, observamos uma íntima relação das escolhas de procedimentos composicionais e do tratamento do material harmônico por parte do compositor com o título, fundamentada pelas metáforas decorrentes da abertura de algumas das Janelas Hermenêuticas.

Palavras-chave: Désir op.57 nº1; Alexsander Scriabin; Hermenêutica musical; Psicanálise; Acorde de Prometheus.


ABSTRACT

This research proposes an interpretation of the citational inclusion Desire of Scriabin's op.57 nº1 supported by an interdisciplinary approach of Musical Hermeneutics and Psychoanalysis. The concept of Desire as in Sigmund Freud and Jacques Lacan are faced with that of Hermeneutical Windows of Lawrence Kramer mediated by a harmonic-formal analysis of the piece. As a result a clear relation between compositional procedures and manipulation of harmonic content and the title arouse supported by the metaphors that were made possible by the 'opening' of the Hermeneutical Windows.

Keywords: Désir op.57 nº1; Alexsander Scriabin; Musical Hermeneutics; Psychoanalysis; Prometheus Chord.


 

 

Breve biografia de Alexsander Scriabin

Alexander Nikholaevitch Scriabin nasceu em Moscou, no dia 6 de janeiro (Natal no calendário ortodoxo), de 1872. Após desistir de uma promissora carreira militar, foi admitido no Conservatório de Moscou, onde estudou com Savonov, Taneiev e Arensky. Apesar de ter-se tornado um excelente pianista, sob a tutela destes renomados professores, a propensão do jovem Scriabin para a composição não foi, a princípio, levada a sério, uma vez que o próprio Scriabin estava claramente focado na área de performance e tinha a composição como uma atividade complementar e secundária. Belaieff, seu professor de harmonia em meados da década de 1890, incentivou, contudo, o jovem a compor, além de ter providenciado uma edição das suas primeiras obras em Moscou. Com o sucesso dessa edição e suas consequentes turnês como pianista, Scriabin atingiria uma condição financeira satisfatória para continuar trabalhando em suas composições. Apresentava-se frequentemente como pianista-compositor, sendo ele mesmo seu principal intérprete durante a vida. Scriabin foi ainda um dos primeiros compositores a gravar uma quantidade razoável de suas próprias obras.

Em 1897, Scriabin retornou de suas turnês para residir em Moscou, fixando-se como professor de piano no Conservatório local. Ele manteve este posto até 1903, quando optou por dedicar-se primariamente à composição. Após 1903, estabeleceu residência em diversas cidades europeias, entre elas Genebra, Bruxelas e Brattenburg. Ainda nesse período, ele atuava como pianista, porém, cada vez mais exclusivamente como intérprete de sua própria obra. Sua última grande viagem foi para a Inglaterra em 1914, onde foi recebido em Londres com grande sucesso.

Retornando a Moscou, em abril de 1915, veio a falecer, em 14 deste mês, de infecção generalizada, em decorrência de uma ferida no lábio, mal curada durante sua estada na Inglaterra.

 

A música em três fases (2)

A obra de Scriabin admite três períodos ou fases distintas. Entre os 74 opera publicados por Scriabin, podem ser traçadas linhas divisórias entre os anos de 1885 e 1902 e, mais nitidamente ainda, entre 1907 e 1914. Do opus 1 (1885) até o opus 29 (Primeira Sinfonia, datada de 1902), a sua música representa uma absorção do estilo dos mestres românticos, em particular dos principais compositores para piano - Chopin, Schumann e Liszt. Beethoven também influencia fortemente a música deste período, assim como o cromatismo das obras de Wagner.

Não obstante, sua obra, mesmo repleta de momentos inspirados nestes compositores, apresenta uma reconhecível originalidade e um vigor dramático raramente visto. A Sonata nº. 3 para Piano, opus 23 (1898), é uma obra-prima desta fase, e um excelente exemplo de síntese do conteúdo romântico com a forma tradicional.

Do opus 30 (1903) até o opus 56 (1907-8), nota-se uma preocupação com a adequação das formas tradicionais às inovações harmônicas decorrentes da utilização de acordes sinteticamente alterados. A dissolução de certos elementos formais típicos da música tonal já se faz notar, como o retardamento e/ou a ausência de cadências, além da desfuncionalização da harmonia através do uso de construções cordais ambíguas sobre o trítono. Ainda é possível identificar os centros tonais nas obras desta fase, apesar de já bastante obscurecidos pela presença de acordes muito alterados, sobretudo, em torno da função dominante.

Na terceira fase (opus 57, 1907-8 até 1914), Scriabin rompe definitivamente com a tonalidade. Apesar de utilizar eventualmente algumas estruturas de origem tonal, como ciclo das quintas e tríades, estas ocorrem desfuncionalizadas e sempre subjugadas à harmonia intervalar e à escala de tons inteiros que foi amplamente utilizada por ele nesta fase. Encontra-se aqui uma melhor fusão entre forma e conteúdo, pois Scriabin utilizava formas que nasciam do próprio material empregado na composição, além de modelos ternários e binários já claramente estabelecidos e cristalizados na música tonal. A harmonia simétrica, ou seja, a construção com acordes que tem como propriedade eixos de simetria, é favorecida como possível alternativa ao tonalismo. Como intervalo simétrico por excelência, o intervalo de trítono adquire um importantíssimo papel na linguagem harmônica desta fase. Nessa lógica, surge o acorde de Prometheus, estrutura de importância decisiva e frequentemente encontrada na fase final do compositor.

 

A conotação mística e o "Acorde de Prometeu"

Em sua estada em Bruxelas, no período de 1909/1910, Scriabin intensificou suas leituras sobre misticismo e esoterismo. Em contato com os escritos de Madame Blavastky (Hélène Blavastkaya), associou-se ao movimento teosófico, criado por ela em 1875. Teosofia era compreendida como uma reunião de filosofias e pensamentos voltados para o mistério da humanidade e que deveriam ser celebrados com o êxtase e a total integração das artes, do corpo e da mente. A conotação mística que a música de Scriabin tomou a partir de 1905 reflete a filiação do compositor a esse grupo.

Ao falecer, Scriabin trabalhava em uma obra grandiosa que seria encenada no Himalaia. Essa grandiosa obra seria equivalente aos eventos multimídia de hoje, pois reuniria dança, música, artes visuais, cores (a serem projetadas pelo "Órgão de Luz", instrumento idealizado pelo compositor para associar as notas musicais às cores) e perfumes em uma celebração que duraria semanas. Dessa obra, Scriabin apenas concluiu o que chamou de Preparação para o Mistério, entretanto as associações de notas e cores idealizadas por ele sobreviveram ao fato de que o instrumento jamais fora construído.

George Perle, discípulo de Ernest Krenek, admite que Scriabin tenha utilizado certas estruturas e, em particular o "Acorde de Prometeu" (também conhecido como o Acorde Místico), de uma maneira "pré-serial". O termo "Acorde de Prometeu" foi concebido por Leonid Sabaneyev (MORRISON, 1998, p. 314), recebendo este nome graças a sua extensiva utilização no Poema Prometheus opus 60, de 1910. Ele diz respeito ao acorde formado pelos intervalos a partir de uma fundamental de trítono, sétima menor, terça maior, sexta maior e segunda maior, como pode ser observado no exemplo 1.

 

 

O próprio Scriabin utilizava o termo, ou traduzido, "Acorde de Pleroma" que, de acordo com Taruskin, "foi concebido para permitir uma apreciação instantânea, ou seja, revelar o que está, em essência, para além da mente (intelecto) humana. Sua estática sobrenatural seria uma intimação gnóstica de uma alteridade obscura" (3) (TARUSKIN, 1985, p. 84).

O hexacorde 6-34 (4), "Acorde de Prometheus", dispõe de algumas características peculiares além de sua formação por quartas superpostas. Quando analisado funcionalmente, pode ser considerado um acorde de função dominante, devido aos seus dois trítonos, quatro semitons distantes entre si. Sua estrutura quase perfeitamente simétrica (exemplo 2) confere a esse acorde uma formidável versatilidade. De suas seis cromas, cinco podem ser dispostas em uma sequência de segundas maiores, permitindo seu uso num contexto harmônico de tons inteiros (subconjunto 5-33). A sua simetria torna-se perfeita quando o hexacorde 6-34 se transforma em 6-Z49 através de uma única alteração de semitom, sendo inclusive considerado este último a versão octatônica do Acorde de Prometheus.

 

 

Nas obras da fase final de Scriabin, o hexacorde de Prometheus, seja em sua forma original, seja em sua versão octatônica, ou ainda em ambas, sofre transposições, inversões e se relaciona com outros hexacordes pelos seus intervalos e subconjuntos de alturas. Isso garante uma unidade do material sonoro em cada trecho da estrutura, ou seja, uma unificação do campo sonoro local. Não se detecta, entretanto, nenhuma regra rígida de ordenação como a encontrada nas obras seriais de Schöenberg, o que acarreta não podermos inserir confortavelmente Scriabin - em virtude de seus procedimentos - na categoria de compositores "serialistas". Não obstante, sua originalidade representa um formidável avanço nos procedimentos composicionais do início do século XX, alçando-o à condição de referência daquele momento histórico de crises e transformações, apesar da sua quase condenação ao ostracismo durante o regime stalinista que se impôs, poucas décadas após sua morte, e reduziu a compreensão da expressão artística ao serviço do realismo-socialista.

 

Scriabin e sua fase final

A denominada terceira fase de composição de Alexsander Scriabin (1872-1915), conforme já foi mencionado, tem como uma de suas principais características a sistemática utilização dos hexacordes 6-34 e 6-Z49 (MORRISON, 1998 e HARTMANN, 2012a, 2012b). Esta fase vai de aproximadamente 1907-1908 (opus 57 ou 58) até 1914, ano anterior à morte de Scriabin e da composição de sua última obra completa, a Sonata nº 10 para Piano (HARTMANN, 2012b).

Do opus 57 datado de 1908, temos duas pequenas peças para Piano, Désir op.57 nº1 e Caresse dansée op.57 nº2. Estas já contêm elementos francamente característicos da fase final do compositor, a saber: uso dos hexacordes Prometheus 6-34 e 6-Z49 como fundamentos de sua lógica harmônica; a forma da miniatura para piano, geralmente em modelos estruturais simples como a ternária simples, sentença ou período expandido e o uso de indicações de tempo e agógica extremamente subjetivos como, por exemplo, Avec grâce et douceur (op.59 nº1) Sauvage, belliqueux (op.59 nº2), Très doux et pur et avec une ardeur profonde et voilée (op.70) e En rêvant avec une grande douceur (op.71 nº2).

Dessas duas peças, escolhemos para análise a primeira devido a suas características particulares. O que consideramos como a mais relevante característica particular, neste caso, diz respeito ao nome da peça, pois Désir, em francês, significa "desejo".

O que estaria representando ou representaria o desejo nesta peça? De que desejo poderia Scriabin estar falando? Para tais questões, faz-se mister, primeiramente, considerar uma abordagem interdisciplinar entre alguns conceitos essenciais da psicanálise - particularmente os propostos por seu fundador Sigmund Freud e, posteriormente, por Jacques Lacan sobre o desejo, e uma abordagem hermenêutica musical da obra, capaz de nos permitir a possibilidade da metaforização e, por conseguinte, elucidar uma interpretação possível dentre muitas.

Não custa reafirmar que as ferramentas de análise estrutural e harmônica são partes inerentes desse processo. O que se pretende aqui é que o conteúdo e o alcance das conclusões não se esgotem nas próprias ferramentas, ampliando-se pela abordagem hermenêutica o escopo de possibilidades de interpretação dos fatos contidos na obra.

 

Ferramentas analíticas -a hermenêutica musical

Evidentemente, a própria possibilidade de condição da hermenêutica musical depende da aceitação da música como portadora de significado, mesmo que não de um único significado, como no caso de uma informação semântica.

A partir da década de 1990, o musicólogo Lawrence Kramer desenvolveu o conceito de "janelas hermenêuticas". Através da abertura presente numa obra musical, o autor propõe uma interpretação metafórica para a música, viabilizando uma forma de compreensão dos significados musicais inerentes. A hermenêutica musical proposta por Lawrence Kramer - visto que funcionaliza a abertura das suas janelas através da ruptura e da descontinuidade - se fundamenta na premissa da expectativa, premissa esta indissociável do contexto cultural.

Uma semelhança musical tem o 'valor sonoro' de uma metáfora, particularmente uma metáfora com uma substancial história intertextual. Uma vez incorporada na composição, esta metáfora é capaz de influenciar o processo musical, o que por sua vez, é capaz de estender, complicar ou revisar a própria metáfora. Graças a esta pressão semiótica recíproca, a representação musical permite atos significativos de interpretação que podem responder a questão da retórica formalista 'o que pode ser dito' com respostas reais (5) (KRAMER, 1996, p.97).

Kramer admite que não exista a possibilidade de se definir um significado absoluto e definitivo para a música, pois, como metáfora, tal significado só pode ser dado ao conhecimento por meio de sucessivas analogias. Essa singularidade da metáfora, entretanto, é ao mesmo tempo um defeito e uma virtude, uma vez que, analogamente, um texto literário também dispõe de uma dimensão de opacidade não discursiva. A questão formula-se a partir da compreensão de que, apesar de a música não narrar uma história, ela faz uso de diversas estratégias narrativas, estratégias estas não exclusivas do discurso literário.

Um texto (literário ou não) não se dá ao entendimento propriamente dito. A construção desse entendimento é necessariamente erigida como uma rede de conceitos e imagens que viabilizam um sem-número de possibilidades.

Nós viabilizamos a interpretação de um texto desconsiderando tudo aquilo que é visivelmente óbvio e considerando o texto como algo potencialmente obscuro, ou pelo menos, como uma provocação ao entendimento ao qual não sabemos responder. O texto em sua estrutura referencial não se dá ao entendimento, ele deve ser construído para possibilitar este conhecimento. Uma janela hermenêutica deve ser aberta por onde passará o discurso deste entendimento (6) (KRAMER, 1996, p.97).

Kramer ainda compara o tipo de significado musical com o literário afirmando que "significados não são mais transparentes nos textos do que nas sonatas, eles são apenas mais articulados" (7) (KRAMER, 2007, p.19) e "o simples fato de que nós não conseguimos localizar uma forma direta de significado léxico não nos impossibilita de compreender os profundos e inescapáveis significados culturais"(8) (ibidem).

Abrir uma janela hermenêutica significa encontrar momentos ou situações por onde a interpretação poderia passar. Estas janelas hermenêuticas tendem a posicionar-se em pontos de ruptura da obra tais como interrupções, ausências, conexões ausentes, padrões e sistemas recursivos e ou excedentes, repetições suplementares e conexões excessivas e podem ser categorizadas como:

a) Inclusões textuais: Este tipo inclui textos musicados, títulos, epigramas, programas, notas na partitura e eventualmente até mesmo sinais de expressão (KRAMER, 1996, p.9);

b) Inclusões citacionais: Este é um tipo menos explícito do que o primeiro sendo uma versão daquele, pois partes deles se sobrepõem. Inclui títulos que associam uma obra musical com uma obra literária, imagem visual, lugar ou momento histórico, alusão a outros compositores, alusão a outros textos através de alguma citação na música a eles associada; alusão a estilos de outros compositores ou de períodos antigos e a inclusão (ou paródia) de outro estilo característico não predominante na obra em questão (9) (ibidem);

c) Tropos estruturais: Estes são a mais implícita e, a princípio, a mais poderosa forma de janela hermenêutica. Por tropos estruturais quero dizer um procedimento estrutural capaz de várias realizações práticas e que também opera com um típico ato expressivo dentro de um contexto histórico/cultural... [Tropos estruturais] podem emergir a partir de qualquer aspecto da troca comunicativa: estilo, retórica, representação e assim por diante (10) (ibidem).

 

O Desejo em Freud e Lacan, contribuições da psicanálise

Para o professor e psicanalista Antonio Quinet, Freud e Lacan concordam ao afirmar que o desejo se manifesta na falta (QUINET, 2000, p.13). Primeiramente, Freud em sua Interpretação dos Sonhos, localiza o desejo no vazio da representação, no significante que falta, constituindo o sujeito da psicanálise. O desejo desliza na cadeia de significantes sem significado (FREUD, 1900, p.16), ou melhor, por uma cadeia de significantes, os significados migram, à luz do desejo. O que hoje, em determinada situação, significa para o sujeito, em outro tempo, em outra situação, significará diferente. Pode-se exemplificar aqui a primeira satisfação de um bebê, traduzida por sua mãe, e que deu origem a uma cadeia de desejos insatisfeitos. O bebê é o sujeito do furo, da lacuna, do objeto perdido que se perdeu no primeiro gesto de sua dissociação do outro, da mãe.

Após Freud, Lacan reelabora o conceito ao distinguir necessidade de demanda. A necessidade é um desejo por um objeto que satisfaz, por exemplo, vontade de comer maçã..., come-se a maçã, o desejo passa (LACAN, 1988, p.260). A demanda projeta o desejo na falta estrutural do sujeito. Desejo de desejo..., sem que o desejado tenha a consistência do outro. (LACAN, 1998, p.807). Nesse caso, observa Quinet, a cadeia de significantes está na linguagem, toda fala é uma demanda (QUINET, 2000, p.89).

Vale ainda ressaltar que ainda, segundo Quinet, é possível considerar um desdobramento da tese de Lacan. Se, para Lacan, o inconsciente se estrutura como linguagem - entenda-se, como cadeia de significantes puros, pelas quais os significados migram; para Quinet, o inconsciente estrutura-se mais ainda como música, em que a estruturação dos significantes puros, signos musicais, parece mais evidente. O fato é que, nesta cadeia, desliza a carga afetiva do desejo do sujeito que nunca se satisfaz plenamente (QUINET, 2012). Algo como uma cadência evadida, interrompida; uma dissonância ou acorde sem resolução; uma frase suspensiva etc.

São exatamente estes fatos presentes na obra de Scriabin e, particularmente, na peça em questão (Désir) que imbuiremos de interpretação, e consequentemente de significado, ao propormos um diálogo entre o conceito de desejo descrito em Freud e Lacan e a abertura de uma janela hermenêutica de Lawrence Kramer. Estes se dão na ausência ou no obscurecimento dos fundamentos do sistema tonal, no gesto cadencial, propositadamente protelado ou suprimido pelo compositor e, enfim, nos elementos presentes no idioma eleito por Scriabin para a nova sintaxe musical de sua fase derradeira. Não nos espanta que, para uma de suas primeiras obras a inaugurar esta nova sintaxe, ele se aproprie do nome que talvez melhor represente sua estruturação por dissonâncias que ficam sem resolução, o Désir ("desejo").

 

Breve análise de Désir op.57 nº 1

O sugestivo nome desta pequena peça de aproximadamente um minuto e meio e quatorze compassos representa uma inclusão citacional. Podemos observar nela as características típicas de duas formas de emprego do Acorde de Prometheus (6-34). A primeira é a utilização deste (hex)acorde (6-34) de forma fragmentária, ou como ponto de partida ou chegada para uma subestrutura (cadência, proposta, sequência). A segunda, presente no acorde final, é a utilização de uma forma invertida deste (hex)acorde (6-34).

A peça se resume a uma sentença(11) que se inicia em c.1 e se prolonga até c.5. É, portanto, uma sentença de quatro compassos, onde o último (cadência) é repetido, evitando-se assim a quadratura tradicional e optando-se por uma possivelmente significativa e simbólica estrutura de cinco compassos. Segue-se uma breve coda de dois compassos. Essa microforma é repetida nos compassos seguintes transposta a T(7)(12)12 e T(5) de acordo com a tabela do exemplo 3.

As transposições (T(5) e T(7)) não representam, aqui, estruturas que evidenciam o trítono, e sim progressões análogas às do sistema tonal. T(5) está para a subdominante assim como T(7) está para a dominante (relações de 5 e 7 semitons a partir de uma determinada tônica). Os compassos finais (12-14) ilustram claramente essa funcionalização, particularmente nos três compassos finais, em que encontramos uma progressão II-V-I apesar dos acordes construídos sobre estes baixos, como se pode ver no exemplo 4.

 

 

Através da análise harmônico-formal, emergem dois aspectos: a presença única de 634 como acorde final, ou seja, único local onde a segmentação nos permite encontrar este (hex)acorde sem ornamentações verticalmente projetado13, e a sistemática utilização de seus subconjuntos, organizados de forma tonalmente funcional, não obstante a sua construção não tercial (14).

Os exemplos 5 a 12 ilustram a segmentação que aplicamos para obter os resultados aqui descritos:

De acordo com a segmentação ilustrada nos exemplos 5 a 12 podemos estabelecer as seguintes relações conforme demonstradas no exemplo 13:

Como podemos observar no exemplo 14, a primeira sentença, assim como a segunda, transitam de uma área tonal para uma área mista concluindo com o hexacorde de Prometheus (6-34). Ambas as conclusões (c.5 e 10) são, contudo, proteladas pela apojatura e pela articulação rítmica não permitindo um repouso satisfatório. O hexacorde 6-34 somente se vê em sua forma mais cristalina e clara (sem ornamentações) no fim da obra. Esse momento é precedido por uma curta incursão, no sistema tonal (coda), de acordes quase terciais, cujas fundamentais são Solb e Réb respectivamente (c.12). Para compreensão da área mista podemos exemplificar a estrutura do hexacorde 6-34 que se constitui de uma escala pentacórdica de tons inteiros tangenciada por um semitom. O pentacorde de tons inteiros (5-33) corresponde ao subconjunto de tons inteiros, e o pentacorde que contém o semitom corresponde ao subconjunto 5-24, amplamente observado em Désir. Comparando a presença destas coleções com a segmentação sugerida por nós, percebemos claramente uma estrutura altamente organizada para esta peça, demonstrando que a chegada ao hexacorde 6-34 é protelada ao seu máximo, e ainda, que o próprio 6-34 representa em si mesmo a ambiguidade de seus trítonos, indefinindo a tonalidade e, quiçá, a função (tônica ou dominante) que ele representa, não obstante a recomendação do próprio Scriabin de que ele deveria ser compreendido como representante da função tônica.

 

Resultados

Dentre uma virtual infinidade de possibilidades, extraímos da análise quatro situações que nos permitem a abertura de janelas hermenêuticas de forma a viabilizar uma interpretação metafórica da inclusão textual de Désir traduzida no discurso musical.

O acorde de Prometheus, estrutura que organiza a lógica harmônica da peça nunca aparece de forma completa, apenas representado pelos seus subconjuntos. Quando efetivamente surge (c.14), ele o faz através de uma forma invertida (ao menos em relação a como se criou a expectativa na própria peça). Ele o faz, ainda, somente após uma apojatura (c.13) e um arpejo incompleto (falta a nota Dó do baixo). Há uma forte protelação da aparição deste acorde - metaforicamente, podemos associar tal situação ao desejo da ordem da demanda, que nunca se realiza, ou quando o faz, simplesmente se ressignifica no inconsciente, manifestando-se em outro local com outras características.

A mistura entre sistema tonal (através da funcionalização V, I, e até mesmo II-V-I) e de estruturas cordais que (em 1908) são antagônicas com relação ao sistema tercial - pressuposto do tonal - pode ser associado metaforicamente à própria tese central de Freud e Lacan, de que o desejo se manifesta na falta. Essa falta não precisa ser explícita, como, efetivamente ocorre no próprio motivo principal c.1 (exemplo 3) ou no c.12 (exemplo 4), ambas figuras decaudadas. Ela pode manifestar-se também através da falta da estrutura "lógica"15 inerente ao sistema tonal, aqui substituída por formações não terciais, não obstante sua clara funcionalização. Essa janela hermenêutica só pode ser aberta na perspectiva estilística do início do século XX, onde o idioma tonal era a prática comum, ou seja, a regra e não a exceção. Neste contexto, a exceção se define por esta mesma prática comum, pela expectativa de uma obra musical tonal. Quando esta expectativa é frustrada, negada, inaugura-se a possibilidade da abertura de uma janela, e consequentemente a imputação de um significado, de uma analogia. A que mais se mostra viável nestas circunstâncias é justamente a da falta, da ausência, amplificada pela predileção do compositor em dispor harmonicamente suas estruturas cordais em intervalos de segunda, quarta, quinta e sétimas, evitando as terças e sextas mais comuns do sistema então vigente. Uma alteração textural e timbrística de profunda relevância e impacto permitindo ser metaforizada e significada.

Na própria forma da obra que se repete como sentença, porém, de maneira diferente, aparece mais uma vez a metáfora do desejo, ainda na esfera da demanda, a se ressignificar, migrando e emergindo de múltiplas formas distintas, deslizando infinitamente na cadeia de significantes.

A simetria gerada pela irregularidade é outra janela hermenêutica que pode abrir-se para o transito do significado. Deve ser compreendida na perspectiva das estruturas quadradas (frases ou sentenças de quatro ou múltiplo de quatro compassos), características da música desde a segunda metade do século XVIII.

 

Conclusões

A música é vista como metáfora do desejo, e este entendido como manifestação do sujeito na falta. A partir da nossa proposta de interpretação, viabilizada pelo conceito de Janelas Hermenêuticas de Lawrence Kramer, percebemos o quanto é possível relacionar as técnicas composicionais e as estratégias de narrativa empregadas pelo compositor: a utilização do (hex)acorde de Prometheus, a forma, enfim, tudo que se encontra virtualmente na obra, corrobora intencionalmente para a construção da imagem sonora "desejada".

Talvez, possamos estar defronte do verdadeiro significado do conceito de que o inconsciente se estrutura por música. Se a necessidade é um desejo por um objeto que satisfaz e a demanda projeta o desejo na falta estrutural do sujeito, então podemos deduzir que a música de Scriabin em Désir poderia propor duas questões centrais: primeiro, a sua afinidade e sintonia com a demanda representada na constante manipulação da estrutura e das expectativas, em um patamar que supera a prática comum de sua época; e, segundo, como uma clara demonstração de que se o inconsciente se estrutura por música, a música (na medida em que é pura e dissociada do texto) por outro lado, ao se outorgar a linguagem que por excelência articula os significantes sem significados (considerando que o que realizamos com a hermenêutica musical, a retórica e outras ferramentas que lhe emprestam significado, é buscar um conjunto de significados possíveis, e não um específico, imbuído de valor e carga semântica), busca justamente na sintaxe, na organização formal e simbólica, expressar o significado de seus significantes, almejando superar a utopia de vir a ser a linguagem do indizível, cujos significados poderiam tornar-se acessíveis a qualquer um. Esse paradoxo ilustra uma das mais interessantes tensões entre a psicanálise e a música, indicando as possíveis e desejáveis interações entre estes dois campos do saber humano.

 

Notas:

(1) Incursões citacionais (citational incursions) é um termo utilizado por Lawrence Kramer ao tratar do conceito de Janelas Hermenêuticas e será elucidado ao longo do trabalho através de uma citação do autor.

(2) Para compreensão de não músicos, inserimos aqui um pequeno glossário: Sistema tonal - sistema organizado pela relação entre as chamadas funções tonais.
Tônica, dominante e subdominante - essas funções constroem-se a partir de uma determinada tonalidade que reduz os modos eclesiásticos a apenas dois: Maior e Menor. Este sistema engloba elementos rítmicos, melódicos, texturais e estipula as escalas maiores e menores, e os acordes formados em cada um dos seus sete graus como seus primordiais fundamentos. Teve seu apogeu entre a segunda metade do século XVIII e o início do século XX, e contempla a maior parte da produção musical do cânone da atualmente denominada "Música erudita".
Acorde - estrutura organizada pela superposição de sons. O seu estudo disciplina a harmonia. Na vigência do sistema tonal, era construído prescritivamente pela superposição de intervalos (distância entre notas) de terças. A partir do século XX, sua estruturação e suas relações horizontais (progressivo-melódicas) tornam-se mais livres e arbitrárias.
Teoria dos conjuntos - teoria elaborada no fim da década de 1960 e início da década de 1970, nos EUA, por Allen Forte. Busca demonstrar a presença de relações entre formações de progressões de acordes que, a rigor, aparentam sem sentido de organização, visto que são construídas livremente. Compreende que os acordes podem ser entendidos como conjuntos cujo universo é a escala ocidental cromática (12 sons) e que, como tal, podem ser tratados pelas mesmas regras dos conjuntos matemáticos de 1 a 12 elementos.
Forma - estrutura da obra quando observada em partes que se alternam ou se repetem.
Cadência - estrutura em que se observa atividade melódica e harmônica que conduz uma ideia a uma finalização, que pode ser tanto conclusiva como suspensiva. Pode-se estabelecer uma analogia entre a cadência e a pontuação no discurso literário, sendo possível observar pontos finais, vírgulas, pontos de interrogação e de exclamação.

(3) "was designed to afford instant apprehension of - that is, to reveal - what was in essence beyond the mind of man to conceptualize. Its preternatural stillness was a gnostic intimation of a hidden otherness."

(4) Utilizaremos para este trabalho a nomenclatura padrão do Pitch Class Set Theory de Allen Forte (1972).

(5) "A musical likeness has the "sonorous value" of a metaphor, and more particularly of a metaphor with substantial intertextual history. Once incorporated into a composition, such a metaphor is capable of influencing musical process, which is in turn capable of extending, complicating, or revising the metaphor. Thanks to this reciprocal semiotic pressure, musical representation enables significant acts of interpretation that can respond to the formalist's rhetorical question, "what can one say?" with real answers".

(6) "We enable the interpretation of a text by depreciating what is overtly legible and regarding the text as a potentially secretive, or at least as a provocation to understanding that we may not know how to answer. The text, in its frame of reference, does not give itself to understanding; it must be made to yield to understanding. A hermeneutic window must be opened on it through which the discourse of our understanding can pass".

(7) "Meanings are not more transparent in texts than in sonatas; they are only more articulate".

(8) "The mere fact that we cannot locate a direct lexical sort of referential meaning, he insists, does not let us off the hook of understanding deeper and inescapable cultural meanings".

(9) "Citational Incursions. This type is a less explicit version of the first, with which it partly overlaps. It includes titles that link a work of music with a literary work, visual image, place or historical moment; musical allusions to other compositions; allusions to the text through the quotation of associated music; allusions to the styles of other composers or of earlier periods; and the inclusion (or parody) of other characteristic styles not predominant in the work at hand.

(10) "Structural Tropes. These are the most implicit and ultimately the most powerful forms of hermeneutic windows. By Structural Tropes I mean a structural procedure, capable of various practical realizations, that also functions as a typical expressive act within a certain cultural/historical framework. Since they are not defined in terms of their illocutionary force, as units pf doing rather than units of saying, Structural Tropes cut across traditional distinctions between form and content. They can evolve from any aspect of communicative exchange: style, rhetoric, representations, and so on."

(11) Schöenberg define sentença como: "uma estrutura composta de proposta, resposta, modelo e reprodução (sequência) e cadência" (SCHÖENBERG, 1991, p.48).

(12) T(x) é a nomenclatura usada por FORTE (1972) para representar a transposição. T significa transposição de uma estrutura (cuja nomenclatura se seguirá ao símbolo) e x é a variável que representa a quantos semitons esta transposição se realizou.

(13) Note que a presença de 7-34 trata de uma segmentação horizontal englobando todas as notas presentes no compasso/estrutura musical.

(14) Scriabin, em sua fase final, busca dispor harmonicamente suas estruturas em segundas, quartas, quintas ou sétimas.

(15) Do ponto de vista da prática harmônica tonal comum em 1908.

 

Referências Bibliográficas:

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Recebido em: 01/07/2013
Aprovado em: 12/11/2013