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Trivium - Estudos Interdisciplinares
On-line version ISSN 2176-4891
Trivium vol.8 no.1 Rio de Janeiro Jan./June 2016
https://doi.org/10.18379/2176-4891.2016v1p.7
ARTIGOS TEMÁTICOS
Uma história de trauma1
A history of trauma
Jean-Michel RabatéI; Tradução de Ana Maria RudgeII
IProfessor, Pesquisador da University of Pennsylvania, Editor-Responsável de Journal of Modern Literature; Fellow da American Academy of Arts and Science; autor do livro The Cambridge Introduction to Literature and Psychoanalysis (2014). Endereço: Philadelphia, PA 19104, Estados Unidos . E-mail: jmrabate@englishupenn.edu
IIProfessora do Programa de Pós-graduação em Psicanálise Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida. Rua Ibituruna, 108. Casa III. E-mail: amrudge@gmail.com
RESUMO
O autor faz um passeio pelo campo dos estudos sobre o trauma, campo inaugurado, a seu ver, pelos trabalhos de Cathy Caruth, identificando divergências importantes entre os autores que se dedicaram ao tema, como a própria Caruth, Ruth Leys, Giorgio Agamben, Bessel van der Kolk, Primo Levi e Robert Antelme. Delineando suas próprias posições, o autor insiste em um desejo geral de testemunhar, toma como exemplos textos de Marguerite Duras, o "Arrebatamento de Lol V. Stein", e de Robert Antelme, "A Espécie Humana", e conclui que tanto Duras como Antelme confirmam, em seus livros, a primazia de uma decisão ética de testemunhar, ou via ficção, ou via documentário.
Palavras-chave: TRAUMA; TESTEMUNHA; NARRATIVA; LITERATURA.
ABSTRACT
The author surveys the field of trauma studies, a field that, he argues, was launched by Cathy Caruth. He identifies crucial differences among the main authors who have discussed the issue after Caruth, like Ruth Leys, Giorgio Agamben, Bessel van der Kolk, Primo Levi and Robert Antelme. Outlining his own position that insists on a general wish to testify, the author takes as examples texts by Marguerite Duras, "The Ravishing of Lol Stein", and by Robert Antelme, "The Human Species", to conclude that Duras and Antelme confirm the primacy of an ethical decision to testify either via fiction or via documentary.
Keywords: TRAUMA; TESTIMONY; NARRATIVE; LITERATURE.
Sade é o nome cujo eco invoca um ponto de virada irreversível na história francesa: a revolução. Será então possível escrever uma história geral de perversão que inclua o conceito de sadismo como uma noção revolucionária? Se essa história inclui distorções sucessivas do próprio conceito de "perversão", pode parecer mais crucial escrever uma história do trauma. O campo dos estudos do trauma estabeleceu-se quando Cathy Caruth (1995) tomara uma noção freudiana, aplicando-a à literatura do Holocausto e também a qualquer tipo de relato de abuso, estupro, assassinato e situações extremas. Em "Trauma: Explorações na memória" (1995) e em "Experiência não Reclamada: Trauma, Narrativa e História" (1996), Caruth parte do texto freudiano "Além do princípio do prazer", para esboçar uma teoria da impossibilidade de registrar e figurar certos eventos que podem ser chamados de traumáticos. Esses eventos, por definição, excessivos, não podem ser inscritos na memória nem na consciência, mas são destinados a repetir-se compulsivamente, literalmente e de forma muda. Caruth toma seus exemplos de Marguerite Duras ("Hiroshima meu amor"), de Lacan, de Kleist e de Freud, insistindo sempre na experiência perdida, na impossibilidade de inscrever o trauma numa narrativa linear e coerente.
Alguns anos depois, seria formidavelmente refutada por Ruth Leys. Enquanto Caruth estava inspirada pela mistura de Paul de Man, de literalidade materialista na repetição do trauma, e de estratégias retóricas de rodeios que guardavam uma agência performativa, Leys foi influenciada pela leitura desconstrutiva, empreendida por Mikkel Borch-Jacobsen, de Lacan e Freud. Leys ataca a convergência entre as teses do médico Bessel van der Kolk e da crítica Caruth, por acreditarem ambos que os sintomas dos traumas seriam repetições literais e verídicas de eventos ocorridos, mas que, sendo de certa forma excessivos, não seriam completamente registrados. A consequência é que o conceito freudiano de repressão não pode ser aplicado a uma experiência traumática (Leys, p. 23). A "ferida" do trauma é tão profunda que contaminaria os órgãos de percepção e memória. Ela compara essa tese com a abundante literatura médica e legal que começou a ser produzida sobre o transtorno de estresse pós-traumático (PSTD) nos anos 80 (o termo PSTD tornou-se oficial no DSM III em 1980). As duas versões mais recentes do DSM, ela observa, foram, entretanto, mais cautelosas em atribuir uma natureza literal e verídica ao fenômeno traumático. O número crescente de pessoas que sofrem de memórias recorrentes, flashback, alucinações e pesadelos recorrentes, todos gerados por injúrias ou experiências traumáticas, deixou-nos com um enorme arquivo de difícil interpretação. Para Freud, que estava advertido do fenômeno, evidenciava-se a existência de uma pulsão de morte para além do princípio do prazer. O sofrimento é, sem dúvida, real, mas a causa será sempre um evento real? Estamos retornando às questões iniciais de Freud quando ele modificava seus pontos de vista sobre a realidade da sedução das filhas histéricas por seus pais "perversos", em 1897.
Leys assinala simplificações da evidência em van der Kolk e, mais contundentemente, uma contradição na tese principal de Caruth. Para Caruth, as vítimas de traumas podem apenas repeti-los, porque não têm a possibilidade de narrá-los para si mesmas. Os traumas estão literalmente ocorrendo repetidamente. "A verdade do trauma é a falha da representação" (Caruth, p. 253), ela sumariza com clareza. Assim, Caruth interpreta o filme de Claude Lanzmann, Shoah, não como uma representação destinada a fazer as pessoas entenderem o Holocausto, o transporte para os campos de morte, mas como uma forma de transmitir o trauma como tal, em seu horror incompreensível. Ela chama de "pathos do literal" essa combinação de cientificismo em torno de neurotransmissores sobrecarregados, e uma teoria literária performativa do contágio do indizível.
O argumento de Leys é fundado na crítica à leitura de Caruth como sendo simplificadora ou reducionista de Freud. Segundo ela, Caruth tendenciosamente selecionara passagens sobre o aspecto temporal da "neurose traumática", evitando assim tudo o que parecesse o modelo da castração da dialética do trauma. Finalmente, a noção de Caruth de compulsão à repetição é tendenciosa. Ela pensa que Tancredo, que assassinou Clorinda duas vezes - a primeira porque não a reconheceu em combate, a segunda vez depois que ela foi metamorfoseada em uma árvore - exemplifica a falta de consciência, embora ele estivesse consciente do que havia feito, depois da batalha. Caruth então afirma que Clorinda é testemunha de sua ferida, quando ela é outro sujeito de trauma. Como pode ela tanto falar quanto não falar?
Mais demolidora ainda é a violenta refutação de Thomas Trezise (2013) ao uso por Agamben do mesmo paradigma do trauma para discutir o Holocausto. Agamben (1999) explora algumas das hesitações de Primo Levi sobre seu próprio papel. Levi sentiu-se inadequado como testemunha, e deixou esse papel para aqueles que não poderiam, por definição, preenchê-lo, porque eram os derrotados de olhos vidrados, as exauridas sombras mudas que haviam abandonado qualquer esperança. A questão principal de Trezise (2013) é se a forma como os sobreviventes testemunharam eventos históricos pode levar a uma verdade, ou se a fala silenciada dos sobreviventes pode levar a uma reconstrução. Se, como Agamben (1999) declara, seguindo Primo Levi, que a única testemunha verdadeira da Shoah é o catatônico "Muçulmano" que acredita que nunca voltará ao mundo dos vivos, que abandonou toda a esperança, que quase não é humano e aceita ser assassinado nos fornos, isso não deixa muita oportunidade para aqueles que tentam narrar suas experiências.
Trezise (2014), entretanto, provê muitos exemplos de testemunhas que queriam testemunhar, para quem era crucial transmitir para aqueles que estavam alheios à extensão e profundidade do horror. Ele cita, por exemplo, o comovente "Auschwitz and After", de Charlotte Delbo. Mencionarei logo "The Human Species", um livro de Robert Antelme, que começa pela apresentação de todos os sobreviventes dos campos empenhados em um frenesi de falar assim que conseguem retornar. Para eles, esse interminável fluxo de discurso era a única forma de tentar erradicar as raízes do horror. Os conceitos freudianos foram aplicados às vezes indiscriminadamente a relatos do Holocausto. Seguindo Freud, pode-se querer recusar o paradoxo de um relato, que é indizível, e requerer uma nova responsabilidade da narrativa do trauma. Entre outras narrativas que podem servir para testar a validade destas teses, passo a um texto que é uma ficção, mas uma ficção que narra, ou tenta narrar, uma experiência traumática.
Trauma e o êxtase do abandono
A novela de Marguerite Duras, "O arrebatamento de Lol V. Stein", começa com uma cena de "arrebatamento" - na verdade, um estupro psicológico. O resto da novela consistirá em desdobramentos sucessivos desse abandono primário. O escândalo de abertura é desvendado nas primeiras páginas: na cidade de South Tala, durante um baile dado para o noivado de Lol Stein, que mal tinha completado dezessete anos, Lola vê seu noivo, Michael Richardson, inexplicavelmente atraído por Anne-Marie Stretter. Richard cai sob o feitiço dessa sedutora mulher mais velha. Eles dançam toda a noite e depois vão embora juntos. Enquanto isso, Lol fica prostrada, muda e catatônica. Ela diz, contudo, que não experimentou dor, visto que deixou de amar Michael no minuto em que viu seu olhar para Anne-Marie Stratter. Michael e Anne-Marie nunca mais voltaram a South Tala, onde Lol vive como reclusa. Um dia, ela se casa por capricho, muda-se com o marido para outra cidade, tem filhos e vive uma vida organizada. Dez anos se passam e Lol volta, com o marido, a viver em South Tala, onde Lol encontra Jacques Hold. Hold é o amante de sua amiga de escola Tatiana Karl, agora casada com um médico. Lol começa a espionar os amantes quando eles vão a seus encontros no Hotel Floresta. Ela fica obcecada com Tatiana, nua sob seu cabelo negro. Jacques Hold começa a se apaixonar por Lol, mas Lol insiste em que ele continue a fazer amor com Tatiana. Ele faz isso, consciente, a todo tempo, que ela está olhando. Então Lol lembra-se de seu "arrebatamento". Vai com Jacques ao cassino e reencena a noite da dança; por fim, ela sente dor e fala sobre o passado. Ao final, entretanto, ela volta ao campo para espionar os amantes. A novela termina com uma nota inconclusiva: "Lol tinha chegado lá antes de nós. Ela estava adormecida no campo de trigo, fatigada, fatigada por nossa viagem" (Duras, 1966, p. 181). Como Marguerite Duras disse várias vezes (inclusive para mim), ao final, Lol tornou-se incuravelmente psicótica. Não deveríamos imaginar um final feliz para ela. Mesmo tendo havido uma reencenação catártica do trauma, isso não a fará progredir ou afastar-se de seu transe voyeurista.
Um aspecto importante da trama está ausente da versão inglesa. Após o trauma do abandono, Lola decide chamar-se simplesmente Lol V. Stein ao invés do seu nome completo Lola Valérie Stein. Não fica claro se a amputação de seus nomes incorpora seu abandono ou introduz uma nova pontuação em uma assinatura familiar. Não obstante, seus nomes abreviados a ajudam a suavizar sua severa depressão. Duras teria amado a abreviação comum de "rindo alto"(1) como LOL, desde que uma boa medida de histeria fosse acrescentada a isso. A escansão de seus nomes carrega um peso emblemático. Cada personagem da novela é dividido, desdobrado pela dor de um amor perdido, capturado em estruturas triangulares de desejo mediadas por uma terceira pessoa. O enredo da novela consiste menos na ideia de repetir o evento traumático, do que na de fazer um nó de seus padrões circulares. Na verdade, o conto parece muito com "A carta roubada" de Poe (1983), porque "arrebatar" significa também "roubar". Lacan perguntou a Duras se ela tinha lido seus trabalhos antes de escrever a novela, mas ela recusou-se a responder(2).
Há três triângulos na novela. O primeiro triângulo coloca Lol em um ângulo como a observadora fascinada que não consegue sentir a enormidade de sua perda, enquanto Michael Richardson e Anne-Marie Stretter são capturados por uma paixão recíproca. Eles são arrebatados um pelo outro ao ponto de esquecerem o resto do mundo, como se em transe místico ou erótico. Esse transe transfixa o olhar de Lol e a arrebata, transformando-a então em um sujeito que não vê e não sente. Porque ela não é mais vista por seu amante, ela não pode ver nada quando olha para a cena do arrebatamento deles. É uma forma de cegueira histérica, o primeiro sinal de seu trauma que excede sua habilidade para percebê-lo.
O segundo triângulo repete o primeiro. Lol está vigiando no campo enquanto Jacques e Tatiana fazem amor no quarto de hotel. Ela não podia, entretanto, ver muito do ato sexual de seu ponto de observação, porque via apenas os amantes emergirem nos intervalos enquanto descansavam e chegavam à janela. Jacques, ciente de que Lol está observando, não divulga isso para Tatiana. Na verdade, é a presença de Lol no campo que adia sua ruptura com a amante, por quem ele sente menos e menos atração. As palavras apaixonadas de amor que ele sussurra em seu ouvido são destinadas a Lol.
Em ambos os triângulos, há uma esquina definida por um gozo excessivo que conjuga dor e desejo enquanto escava um espaço além. Lol ocupa este lugar no primeiro triângulo, enquanto Jacques Hold o ocupa no segundo. Tatiana, que não sabe o que está acontecendo, substituiu Lol. É por isso que ela se apaixona, mais e mais desesperadamente, por Jacques, precisamente porque sente que ele é um amante que ela não consegue "segurar". Enquanto isso, Lol quer continuar acreditando na ficção de que Jacques Hold é um amante perfeitamente fálico para Tatiana, a quem ele deveria proporcionar a mais intensa satisfação sexual.
A aparente superposição de dois triângulos que, a uma inspeção mais detida, não se repetem completamente, gera uma completa incerteza narrativa. Relativamente cedo na novela, descobrimos um personagem visto através dos olhos de Lol, que se revela não ser Jacques Hold, o amante de Tatiana, mas o narrador da novela, que menciona sua presença na história sem revelar mais. Quando o narrador trai sua presença, há um deslocamento da terceira para a primeira pessoa. ("De braços dados, eles sobem os degraus do terraço. Tatiana apresenta Peter Beugner, seu marido, para Lol e Jack Hold, um amigo deles - a distância é coberta -eu") (Duras, 1966, p. 65). Em certo número de cenas, a narrativa hesita entre os dois:
Ele conta para Lol Stein: "Tatiana remove suas roupas, e Jack Hold a observa, olha com interesse essa mulher que não é a mulher que ele ama...". Mas Tatiana está falando: "Mas Tatiana está dizendo algo", Lol Stein murmura. Para fazê-la feliz eu inventaria Deus, se fosse preciso. "Ela pronuncia seu nome". Não inventei isso (Duras, 1966, p. 123).
Poderia ser a própria Duras que aparece através das repetidas menções "Eu vejo" que pontuam a narrativa? "Eu vejo isso" (Duras, 1966, p. 45), "Isso eu invento, eu vejo..." (Duras, 1966, p. 46), "Eu invento..." (Duras, 1966, p. 46). Quando perguntei a Duras, há muito tempo, o que ela queria dizer com a última cena, ela respondeu após um silêncio: "Eu não sei. Eu vi". Portanto, se Jacques Hold poderia ser o responsável por esses momentos, porque entendemos ao final que é ele quem, por amor a Lol, reconstruiu toda a sua história, a presença de detalhes e a menção a outros personagens implicam que Jacques tem uma percepção limitada em sua reconstrução.
Tal como na leitura lacaniana de "A carta roubada", temos que postular, portanto, um terceiro triângulo no qual nós, leitores, figuramos como os voyeurs arrebatados pela narrativa de Marguerite Duras. O terceiro triângulo, juntando leitores, Duras e a novela, estabelece uma gramática de fantasia na qual todos os sujeitos são capturados. Algo que se aproxima ao modelo do que René Girard chamou "desejo triangular" ou "desejo mimético", ou seja, um triângulo no qual uma terceira pessoa sempre medeia a escolha do objeto de desejo para o herói, como frequentemente ocorre nas novelas de Stendhal ou de Proust. Aqui, os triângulos giratórios calculam a determinação do sujeito pelo Outro. A narrativa de Duras não é, entretanto, uma simples revelação da "verdade" do desejo mediado, porque ela também encena o que chamamos trauma. Claramente, o trauma define o que aconteceu com Lol: tendo experimentado um trauma mudo no início, ao final ela será engolida pelo Outro. Apenas um gozo excessivo pode funcionar como um equivalente de sua perda excessiva. O vazio no qual ela cai no final é o buraco de uma carta, uma carta de amor apenas delineada e esboçada por toda a novela. Aqui está a evocação lírica deste buraco:
O que ela acredita é que ela precisa entrar aí (nesse desconhecido) que isso é o que ela tinha que fazer, que ele sempre teria significado, para sua mente, assim como para seu corpo, tanto sua maior dor como sua maior alegria, tão misturados que indefiníveis, uma única entidade, mas indizível por falta de uma palavra. Gosto de acreditar - já que a amo - que, se Lol está silenciosa em sua vida diária, é porque, por um segundo dividido, ela acreditou que esta palavra poderia existir. Como não existe, ela fica silenciosa. Ela teria sido uma palavra-ausência, palavra-buraco, cujo centro teria sido feito oco em um buraco, o tipo de buraco no qual todas as outras palavras teriam sido enterradas... Por sua ausência, essa palavra arruína todas as outras, as contamina, ela é também o cachorro morto na praia ao meio-dia, esse buraco de carne (Duras, 1996, p. 38).
O mundo todo seria a expressão linguística da catástrofe experimentada em um segundo durante o baile: um absoluto abandono que abala qualquer certeza imaginária que ela tivesse mantido até então, ou, para citar Blanchot (1995, capa), uma "escrita do desastre".
Essa palavra é então impossível de pronunciar, de escrever ou de ler em qualquer língua, porque ela obscurece uma visão congelada.
O que Lol teria gostado seria de confinar o baile, fazer dele esse navio de luz no qual, a cada tarde, ela embarca, mas que ali permanece, nesse porto impossível, para sempre ancorado e ainda assim pronto a navegar com seus três passageiros para longe de todo esse futuro no qual Lol Stein agora tem seu lugar. Há vezes em que ele tem, aos olhos de Lol, a mesma força que no primeiro dia, a mesma força fabulosa. Mas Lol ainda não é Deus, nem ninguém (Duras, 1966, p. 39).
Na verdade, Lol se torna "Deus", mas só ao final, se admitirmos que, então, ela se tornou psicótica.
Podemos agora entender porque, depois da "cena primária" do baile, Lol concentrará toda a sua atenção em um só desejo: o desejo de ver Anne-Marie Stretter despida por seu noivo, Michael Richarson. Tal desejo define a gramática de sua fantasia. Como vimos na análise freudiana do cenário fantasmático em "Bate-se em uma criança", qualquer sujeito pode tornar-se um objeto, um verbo ativo pode tornar-se passivo ("eu estou espancando" se torna "eu sou espancado"). Assim, tornando-se voyeur, Lol realiza a fantasia perversa que repetiria sua fixação em outro corpo nu acariciado por outro amante.
Aqui percebemos um laço entre a fantasia perversa e o trauma primário. A perversão tenta fazer uma narração do que ficou sem qualquer gramática. Lol levanta, portanto, o olhar para a dignidade da Coisa. O horror escondido na Coisa retorna na loucura final de Lol. O vazio contido pela Palavra mística que ela esperava encontrar seria um signo de que a catástrofe já teria desde sempre ocorrido. Não há ninguém, entretanto, para dizer isso a ela. O vazio foi traduzido em uma visão de nada, na pura memória de um olhar em branco, uma expectativa fascinada do que terá que ficar além dos limites, fora da moldura. Se o relato da novela principal de Duras é acurado, ele pareceria confirmar os pontos de vista de Caruth e Agamben sobre o trauma. Aqui, a natureza indizível do trauma não pode ser levantada ou sublimada. Lola é verdadeiramente uma testemunha, mas ela é passiva, catatônica, do começo ao fim.
Outro exemplo, também discutido por Agamben (1999), pode permitir-nos qualificar essa conclusão. Duras descreveu, em "A Dor" (1985), a dor extrema de esperar a volta de seu marido, Robert Antelme. Ela também relata como, depois de sobreviver ao choque de quase não reconhecer Antelme, e depois de nutri-lo até que ele recuperasse sua humanidade, ela não hesitou em avisá-lo de que se divorciaria dele. O status de "A Dor" (1985) corresponde de fato a um jornal ou diário do trauma: Duras tinha-se esquecido completamente de que havia escrito essas páginas, e nelas ela ousa exprimir o que é considerado inexprimível, como a admissão de que ela torturou um suposto colaborador, o que me leva ao livro de Robert Antelme. Antelme é o autor de apenas um livro, sua memória de ter sobrevivido a vários campos nazistas, intitulado "A Espécie Humana"; entretanto, quando alguém o lê, ele usualmente varre como ultrapassados3 todos os outros volumes que existem nas prateleiras de sua biblioteca.
Notarei inicialmente que seu título foi mal traduzido para o inglês como "A Raça Humana", quando, como observa Agamben (1999), o correto seria "A Espécie Humana". Aqui está, na verdade, o tema principal de Antelme. "Pois é um assunto de pertença biológica no sentido estrito... não uma declaração de solidariedade moral e política" (Agamben, 1999, p. 58). Agamben está aqui citando o pungente relato de Antelme, de sua estada em vários campos de concentração: Buchenwald, Gandersheim e, então, Dachau. A intensidade de sua narrativa e os esboços das pessoas que ele encontra dão a sensação de uma imersão imediata naquela experiência. Mais ainda, Antelme reconstrói o sistema dos kapos, cuja autoridade sobre os presos era absoluta. Além do fiel e fascinante relato da vida nua nos campos de concentração e os extremos de dor suportados ao final, quando eles foram evacuados e retirados com colunas de esqueletos exaustos e dispersos que eram baleados, um após o outro, pelos guardas, há, todavia, uma "mensagem" definitiva no livro. É o desenvolvimento do título "Dizer que alguém se sentia contestado então como um homem, como um membro da raça humana (como membro da espécie) - isso pode parecer um sentimento descoberto retrospectivamente, uma explicação encontrada depois. E, no entanto, isso era o que sentíamos mais constantemente e imediatamente, e isso - exatamente isso - era o que os outros queriam" (Antelme, 1992 p. 5). Em várias passagens desapaixonadas, Antelme insiste no fato inalienável de fazer parte de uma espécie humana comum. A lei do Lager era que seus prisioneiros não eram homens, mas porcos e cães, cuja humanidade poderia ser obliterada pela SS. É contra essa perigosa ideologia do sub-homem que Antelme apregoa sua obstinada resistência: a SS não pode alterar nossa espécie.
Ao final, Antelme não apenas assevera uma comunidade biológica; ele quer ser uma testemunha não apenas da tentativa nazista de total obliteração da humanidade, mas também da possibilidade de uma resistência ética. Isso cria um contra poder:
Eles terão queimado crianças, eles terão feito isto de propósito. Não podemos presumir que eles não desejaram fazê-lo. Eles são uma força, tal como o homem caminhando ao longo da estrada o é. E como nós somos também; pois mesmo agora eles não podem impedir-nos de exercer nosso poder (Antelme, 1992, p. 74).
O homem na estrada era um passante anônimo que andava ao longo dos fios de arame farpado e preferia não ver os prisioneiros. Mesmo os que tentam fazer seu melhor para ajudar, a mulher alemã que desliza um naco de pão para Antelme, ou o passante que um dia aperta suas mãos sem ser visto, são cúmplices se não reivindicam abertamente sua humanidade comum. Antelme enfatiza a coragem de agir junto para incorporar a ética como o próprio fundamento da política. É assim que a comunalidade biológica torna-se história que denuncia o mecanismo do mais insano sistema de terror e desumanização:
Negando-nos como homens, a SS fez de nós objetos históricos que não poderiam de nenhum modo ser objetos de relações humanas ordinárias. Essas relações poderiam ter tais consequências, que era impossível até pensar de estabelecê-las sem estar cônscio da enorme proibição contra a qual alguém teria que se rebelar para fazer isso; seria preciso retirar-se tão completamente da comunidade cujo punho em tempo de guerra era mais forte, tão pronto teria que ser para incorrer na desonra, na ignomínia da deserção, até traição, que essas relações dificilmente poderiam ser iniciadas sem tornar-se de vez em história, como se eles próprios fossem os caminhos, estreitos e obscuros, que a história tinha sido forçada a seguir (Antelme, 1992, p. 74).
O livro de Antelme contradiz, portanto, as teses sobre testemunhas mudas, cujo trauma teria deixado incapazes de assimilar ou estarem conscientes do que aconteceu, de forma que carregariam uma mensagem que eles próprios não conhecem, cujo pathos pode ser apenas transmitido silenciosamente para o leitor abismado. Como observa Trezise (2014), Caruth confunde consciência e assimilação. Existe uma diferença entre uma narrativa linear e a decisão ética de ser testemunha de algo que beira o indizível, mas que encontrará uma ordem lógica depois, ou talvez nunca. Talvez porque Antelme fosse um comunista militante (embora tivesse sido excluído do Partido Comunista logo depois da Liberação) e não um judeu como Primo Levi, sua experiência da Shoah foi diferente. Os eventos que ele documenta ainda possuem entretanto, o nome genérico de Auschwitz para Adorno ou Agamben. E Antelme insiste, como implicado por Trezise, em que não há necessidade de usar a narrativa para atestar a superação do trauma. A diferença principal entre seu testemunho e o de sua ex-mulher, Marguerite Duras, é que ele experimentou os eventos traumáticos diretamente, enquanto ela os recriou, fazendo-os ressoar criativamente em suas novelas e filmes.
Notas
(1) LOL "laughing out loud".
(2) Ver minha análise deste encontro em: Jacques Lacan and the Subject of Literature, Houndsmills, Palgrave, 2001, pp.115-134. Dada a densidade e complexidade do texto de Lacan sobre Duras, eu me limito aqui a resumir certos aspectos.
(3) "a new broom sweeps clean", que significa: uma nova forma de lidar traz mudanças radicais.
Referências
Agamben, G. (1999). Remnants of Auschwitz: The Witness and the Archive. New York: Zone Books. [ Links ]
Antelme, R. (1957). L'Espèce Humaine, Paris: Gallimard. [ Links ]
Antelme, R. (1992). The Human Race, Marlboro, Vermont. [ Links ]
Blanchot, M. (1995). The Writing of the Disaster, Lincoln: University of Nebraska Press. [ Links ]
Caruth, C. (1995). (org.) Trauma - Explorations in memory, Baltimore and London: The Johns Hopkins University Press. [ Links ]
Caruth, C. (1996). Unclaimed Experience - Trauma, Narrative, and History. Baltimore, Maryland: The Johns Hopkins University Press. [ Links ]
Duras, M. (1966). The Ravishing of Lol Stein. New York: Grove Press. [ Links ]
Duras, M. (1985). La Douleur. Paris: Gallimard. [ Links ]
Leys, R. (2000). Trauma, A Geneology. Chicago: The University of Chicago Press. [ Links ]
Poe, E. A. (1983). The purloined letter. In The Complete Tales and Poems, Harmondsworth: Penguin. [ Links ]
Trezise, T. (2013) Witnessing Witnessing: On the Reception of Holocaust Survivor Testimony. New York: Fordham University Press. [ Links ]
Recebido em: 06/02/2016
Aprovado em: 14/06/2016