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Trivium - Estudos Interdisciplinares

On-line version ISSN 2176-4891

Trivium vol.8 no.2 Rio de Janeiro Jul./Dec. 2016

https://doi.org/10.18379/2176-4891.2016v2p.156 

ARTIGOS TEMÁTICOS

 

Os caminhos de édipo na diversidade sexual*

 

The ways of oedipus in sexual diversity

 

 

Renata Udler Cromberg

Filósofa. Doutora e pós doutoranda pelo Instituto de Psicologia da USP; membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, supervisora clínica e institucional, professora convidada dos cursos de especialização Teoria psicanalítica do COGEAE/PUCSP e Psicopatologia e Saude Mental do NUPSI/Faculdade de Medicina da Santa Casa de São Paulo. Rua Atlântica 776 - São Paulo. Telefone: 11 38162184. Email: renatauc@uol.com.br

 

 


RESUMO

O complexo de Édipo inventado por Freud é feito, de maneira paradoxal, a partir de várias torções à tragédia teatral de Sófocles, que Freud nunca contou integralmente em sua escrita, apesar de torná-lo um princípio essencial da psicanálise. Este texto problematiza a centralidade que assumirá o conceito de complexo de Édipo na última parte da obra freudiana. A reflexão psicanalítica sobre a fenomenologia da diversidade sexual atual e seus múltiplos gêneros, sua inserção jurídica, social e cultural e a violência transgênero pode ser enriquecida pela concepção do papel da origem feminina da sexualidade como apontam as obras dos psicanalistas Jacques André e de Robert Stoller. Ultrapassar a onipotência do masoquismo originário enuncia a própria ética da psicanálise como árdua superação do binômio submissão/dominação, causa de sofrimento.

Palavras chaves: COMPLEXO DE ÉDIPO; SEXUALIDADE; DIVERSIDADE SEXUAL


ABSTRACT

The complex of Oedipus invented by Freud is paradoxically made from several twists and turns to the theatrical tragedy of Sophocles, which Freud never fully reckoned in his writing, although he made it an essential principle of psychoanalysis. This text problematizes the centrality that will assume the concept of complex of Oedipus in the last part of the Freudian work. The psychoanalytic reflection on the phenomenology of current sexual diversity and its multiple genres, its juridical, social and cultural insertion and transgender violence can be enriched by the conception of the role of the feminine origin of sexuality as the works of the psychoanalysts Jacques André and Robert Stoller. Overcoming the omnipotence of the original masochism enunciates the very ethics of psychoanalysis as an arduous overcoming of the binomial submission / domination, cause of suffering.

Keywords: OEDIPUS COMPLEX; SEXUALITY; SEXUAL DIVERSIT.


 

 

O ano de 2016 foi importante no que diz respeito à aceitação e à inclusão dos transgêneros e homossexuais na cultura e na sociedade. Foi uma decisão histórica do Pentágono americano a revogação da proibição de militares transgêneros. A partir de primeiro de outubro, as Forças Armadas brindarão o cuidado e o tratamento adequado para mudança de identidade sexual avaliada como medicamente necessária para um militar. Neste ano também, um gay assumido foi nomeado secretário do Exército americano pela primeira vez. Essa política de inclusão já havia tido um marco em 2011, quando o presidente Obama aboliu a política Don't ask, don't tell (Não pergunte, não diga), estipulada no Exército americano, desde os anos 90. Também desde janeiro de 2016, as mulheres têm acesso aos postos de combate. Vejamos se esses ganhos se manterão com Donald Trump, presidente eleito em novembro de 2016. Foi em 2016 também que o Papa Francisco estabeleceu novas diretrizes de mais acolhimento e menos julgamento dos homossexuais, apesar de condenar o casamento e a geração e criação de filhos por casais homoeróticos.

Enquanto isso, a ONG Transgender Europe apontou o Brasil como país que mais mata travestis e transgêneros no mundo, seguido de México, Colômbia, Venezuela e Honduras. Entre 2008 e 2015, foram 802 mortes no Brasil enquanto 2016 pessoas transgêneros e travestis morreram em 65 países. O Estado do Pará, entre outros, em 2014, começou a emitir carteira de identidade para travestis e transexuais. Em Belém, já são 270 até hoje.

É no mínimo curioso constatá-lo, se pensarmos no Exército e na Igreja como as grandes instituições pilares do patriarcado, que Freud abordou em "Psicologia das Massas e análise de eu" (1921/1980) - segundo livro da tríade (entre Mais Além do Princípio do prazer (1920/2006) e O Ego e o Id (1923/2006)) que faz a reviravolta da Segunda Tópica e da Segunda teoria pulsional, para falar de maneira inédita da função do líder nestas instituições e como as massas se organizam por amor a ele, alçado ao lugar de Ideal de eu comum, a partir do ideal de eu de cada um; calcado na figura do pai, a partir do processo de identificação. Essa análise será crucial para a elaboração do conceito de Super eu e para a centralidade que assumirá o conceito de complexo de Édipo, a partir de agora par inseparável do conceito de complexo de castração.

Mas é espantoso que Freud introduza assim "do nada" a peça Édipo Rei, na "Carta 71" a Fliess (1897/1980), entre o abandono da teoria da sedução e a descoberta da fantasia sexual infantil, e que só vá retomá-lo como Complexo de Édipo pela primeira vez no ensaio "Um tipo especial de escolha de objeto feita pelos homens" (1910/1980), para falar dele no adolescente.

Não que os sentimentos amorosos e hostis ao pai e o desejo em direção à mãe não apareçam antes, na "Interpretação dos sonhos" (Freud, 1900/1980), no pequeno Hans (Freud, 1910/1980), ou no pai de Schreber (Freud, 1911/1980); ou que Freud não fale da centralidade do complexo de Édipo em Totem e Tabu (1913/1980), ou do complexo de Édipo negativo e completo no Homem dos Lobos (1918/1980). Somente, porém, diante da descoberta da pulsão de morte/pulsão de destruição, a partir de 1920, é que ele vai ganhar o papel central e estruturante do psiquismo a partir da figura de um pai interditor do incesto e enunciador da ameaça de castração.

O complexo de Édipo inventado por Freud numa visão darwiniana de declínio necessário da antiga tirania patriarcal é feito, de maneira paradoxal, a partir de várias torções à tragédia teatral de Sófocles, como aponta Roudinesco (2003). Para a autora, foi a maneira como Freud respondeu de maneira racional ao terror da irrupção do feminino e à obsessão pela supressão da diferença sexual que haviam tomado conta da sociedade europeia do fim do século XIX, no momento em que se apagavam em Viena o poder e a glória das últimas monarquias imperiais. Com a ajuda do mito convertido em complexo, Freud restabelece simbolicamente diferenças necessárias à manutenção de um modelo de família que temia estar desaparecendo na realidade. Atribuía ao inconsciente "o lugar de soberania perdida por Deus pai para nele fazer reinar a lei da diferença entre gerações, entre os sexos, entre os pais e os filhos, etc..." (p.65).

Freud nunca escreveu ou contou integralmente a história de Édipo seja a das peças de Sófocles ou Eurípides, ou a do mito. E, no entanto, no "Esquema de Psicanálise" (Freud 1930/1980), seu último texto, ele fala "Só a descoberta do complexo de Édipo bastaria para colocar a psicanálise entre as preciosas aquisições do gênero humano". O complexo de Édipo se torna, para ele, um princípio essencial da psicanálise.

Freud termina Mais além do princípio do prazer (1920/2006, p.182) com o poema de Rückert para consolar-nos do lento avanço no conhecimento científico: "Aquilo a que não podemos chegar voando, temos de alcançar mancando. A Escritura diz: mancar não é pecado". Se a partir deste texto vemos que a força estrutural do complexo vai-se formando em sua teoria, curiosamente ele não faz alusão à genealogia claudicante de Édipo e transforma a maldição de uma dinastia que desapareceu em meio à desmedida em um modelo único de família única.

Fundador da dinastia dos Labdácidas, o rei Cadmo, unido a Harmonia, gera um filho, Polidoro, que jamais conseguiu transmitir o poder a seu filho Labdaco (o manco), o qual morreu esquartejado quando seu próprio filho Laio tinha um ano. Criado pelo rei Pélops, Laio conduziu-se de maneira claudicante com seu hóspede raptando e violando seu filho Crisipo, ou tornando-se amante consensual (Alvarenga 2009) do rapaz, que se suicidou ou foi assassinado por seus meios irmãos. Laio é considerado o introdutor da homossexualidade na Grécia. Mas seu ato de violência ou de hamartía, - um crime que é o amor contra a natureza que é uma mancha - é, sobretudo, um atentado às leis da hospitalidade. À guisa de represália, Pélops condenou o génos dos Labdácidas à extinção. De volta a Tebas, Laio casou-se com Jocasta. Os dois vieram da dinastia de Cadmo. A partir daí, acontece a sucessão delirante. Laio tinha relações sodomitas com Jocasta, devido à previsão do oráculo Delfos, a partir da maldição, de que não deveriam ter um filho, pois ele mataria o pai e dormiria com a mãe. Mas uma noite, bêbado ou tomado de amor, penetrou a esposa do "lado bom" e lhe plantou um filho nos flancos. Ao nascer o menino, foi condenado a ser exposto no Monte Citéron para ali morrer, foi amarrado por um cordão, ou tendo um ferro a lhe transpassar os pés para suspendê-lo. O pastor a quem foi confiada a tarefa decide entregá-lo a um criado de Políbio, rei de Corinto, cuja mulher, Mérope, era estéril. Édipo, nomeado assim pelos seus pés inchados, foi criado como um príncipe herdeiro. Na idade adulta, querendo afastar rumores sobre sua origem, consultou em Delfos o oráculo que repetiu a predição feita a seus pais verdadeiros. Édipo, então, para afastar a maldição e sem saber sua verdadeira origem, não voltou mais a Corinto, dirigindo-se a Tebas, afetada, naquele momento, por muitos flagelos. Édipo cruza com Laio e o mata numa discussão. Creonte, que havia assumido o trono depois de se saber da morte do rei, oferece o leito da rainha àquele que resolvesse o enigma da Esfinge, meio homem e meio animal, meio homem e meio mulher. Ela guardava a entrada da cidade e entoava profecias. A Édipo, a Esfinge propôs o enigma da condição humana:

 

 

Existe sobre a terra um ser com dois, três, quatro pés cuja voz é única. Só ele muda sua natureza entre aqueles que se movem sobre o solo, no ar e no mar. Mas é se apoiando sobre mais pés que seus membros possuem menos vigor (Eurípides, citado por Roudinesco 2003, p. 53).

Édipo lhe responde: "É do homem que tu falas, respondeu Édipo; pequenino quando se arrasta pelo chão ao sair do seio de sua mãe, tem primeiro quatro pés. Já velho, apoia-se sobre um bastão, terceiro pé, dorso curvado sob o fardo da idade" (Eurípides, citado por Roudinesco, 2003, p.53).

Aniquilada pelo poder de Édipo, a Esfinge desapareceu nas trevas e Tebas pôde renascer. Creonte abandonou o trono e deu Jocasta em casamento ao herói, que não desejava nem amava a rainha, mas se viu obrigado a desposá-la como um presente, como uma recompensa oferecida por uma cidade libertada, graças a ele do flagelo da profetisa... Sem o saber, cometeu o incesto após o parricídio e depois substituiu Laio no ato de geração e procriação (Roudinesco, 2003, p. 53).

Irmão de suas filhas e filhos, filho e esposo de sua mãe,

(...) conjugara o parricídio e o incesto quando se achava um igual aos deuses, o melhor dos homens, o mais sublime dos soberanos. Édipo era um destruidor da ordem familiar, assassino da diferença, porque a sucessão das idades, na vida de cada indivíduo, deve ser articulada na série das gerações e respeitada a fim de harmonizar-se com ela, sob pena de retorno ao caos. (Roudinesco, 2003, p. 54)

 

As origens femininas da sexualidade

O mito edípico é mais amplo, portanto, que suas transformações nas tragédias de Sófocles, Ésquilo e Eurípedes. Ele fala do enfraquecimento das deidades femininas representantes da dinâmica matriarcal e da ascensão da consciência patriarcal através dos heróis míticos, desde o pai terrível e tirânico que devora os filhos à consciência reflexiva que polariza, qualifica, julga e estipula valores morais. Vale lembrar que mãe, na Grécia, é aquela que recebe o filho nos flancos. Ela não tem papel na concepção, a qual é atribuída ao homem. Só o pai gera, ela é nutriz do germe semeado. A descoberta do espermatozoide e do óvulo e de seu papel na reprodução não tem ainda quatrocentos anos. É no reino do pai que a cópula passa a ser vivida no silêncio da alcova e se diferencia do reino animal.

Mas, para além da figura de Laio no seu amor homoerótico por Crisipo, é o personagem mítico de Tirésias, o velho sábio e adivinho, quem nos pode encaminhar para a questão da abordagem da diversidade sexual pela psicanálise contemporânea.

Tirésias é quem não pode proteger Édipo de seu desejo de verdade de seus crimes de incesto e parricídio e o conduz para o esclarecimento sobre si que acabará na própria cegueira de Édipo, seu exílio e sua própria vidência.

Tirésias nasceu homem, mas ao tentar separar a cópula de duas serpentes, tornou-se mulher e, depois, homem novamente. É dele a enunciação da verdade sexual mais inaceitável, temida e reprimida pela sociedade patriarcal como irrupção de um feminino incontrolável que levaria não a um gozo compartilhado, mas à irrupção do caos: "se fôssemos dividir o gozo sexual em dez partes, à mulher caberá nove e ao homem uma" (Alvarenga, 2009, p.105) Por essa enunciação, foi castigado com a cegueira que o tornou profeta visionário. Tirésias pode ser palidamente entrevisto na parte seis de "Mais Além do Princípio do Prazer" (Freud, 1920/2006), na alusão que Freud faz à pulsão como desejo de retorno ao originário no mito exposto em "Banquete" de Platão em relação aos três sexos, masculino, feminino e masculino e feminino juntos e à sua origem no Upanishad indiano que fala do Si mesmo como equivalente ao abraço entre o homem e a mulher.

Tirésias pode inspirar-nos a compreender o que Jacques André (2016a) aponta: o polimorfismo da sexualidade é tão característico da sexualidade infantil como do infantilismo da vida adulta. Além disso, a bissexualidade constitutiva não é uma redução do polimorfismo à dualidade. É outro ponto de vista. Acumula os dois sexos. Desempenha a diferença sexual.

Como abordar a partir da psicanálise a fenomenologia da diversidade sexual de hoje, quando aparecem múltiplos gêneros: mulher, homem, gay, lésbica, intersexuado, assexuado, transexual, transgênero, butch, fem, drag queen, drag king?

Dois autores trazem novas questões e novos ângulos para pensar o papel das origens femininas da sexualidade.

Jacques André aponta a redução que houve no caminho freudiano ao não se tirarem todas as consequências da posição erótica de passividade da criança na fantasia frente a um pai sedutor, presente em vários momentos da obra freudiana, reduzindo-o à função ativa de interditor/castrador na fantasia edipiana. Aí estaria um dos solos das origens femininas da sexualidade. O outro solo seria a passividade da criança invadida pela sedução necessária da mãe, pelo seu erotismo, pela presença ou não, em seu desejo inconsciente, do falo do pai sedutor. A última vez em que surge essa figura do pai sedutor nos escritos de Freud é em "Bate-se numa criança" (1919/1980). Para André (1996, p.62), a teorização da feminilidade noutro estilo que não o falocêntrico foi objeto de um apagamento não com vistas à constituição, a partir daí, da diferença entre os sexos, mas a de um único sexo que faz a diferença. Ele defende então uma feminilidade primária para todos os nascentes, independentemente do sexo biológico, baseando-se na teoria da sedução generalizada de Jean Laplanche e antecipada por Ferenczi: a criança seduzida pelos cuidados maternos é penetrada por efração pela linguagem sexual adulta enigmática. A criança seduzida é uma criança - cavidade, criança orificial. O excesso faz parte da sedução originária constitutiva do par adulto-criança. Segundo sua hipótese: da intromissão inevitável da sexualidade e da sexualização materna expresso na enunciação "ela intromete" até a outra enunciação da sedução que é "sou submetido (a) ao coito pelo pai", há um enunciado da feminilidade infantil mediante as primeiras ligações de Eros e as primeiras elaborações da psique que separam o originário de uma organização libidinal. A partir desta penetração constitutiva da feminilidade da criança pequena, abre-se uma psicogênese da feminilidade precoce (André, 1996, p. 98-99).

A outra fonte é a obra pioneira do psicanalista e psiquiatra norte-americano Robert Stoller (1924-1991), que não deixa de ser uma novidade instigante na compreensão dos fenômenos humanos ligados à sexualidade e à agressividade. Criador do conceito de identidade de gênero e da distinção entre sexo e gênero presentes desde seu primeiro livro, Sexo e Gênero, de 1968, publicado após dez anos de estudos clínicos, sua obra foi o estopim para a transformação dos estudos sociológicos, feministas, das ciências da sexualidade e psicanalíticos, no final dos revolucionários anos 60. É Stoller quem forneceu a legitimidade acadêmica ao conceito de gênero que é mais clínico que militante, embora seja consagrado popularmente a partir do feminismo radical norte-americano dos anos 70. Para ele, existem os pensamentos, os sentimentos e as fantasias humanas que, apesar de se relacionarem com os sexos biológicos, são construídos culturalmente. "Gênero" é um termo que tem conotações psicológicas e culturais mais do que biológicas e se refere a masculino e feminino, enquanto "sexo" tem conotações biológicas, resumindo-se a macho e fêmea.

A obra de Stoller insere-se na tradição freudiana na maneira de fazer teoria através da escuta dedicada e empática da experiência de pessoas com uma larga variedade de interesses sexuais e orientações, muitas delas inusuais, na clínica de identidade de gênero da UCLA (Universidade da Califórnia em Los Angeles), onde também foi professor no departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina. Ao respeitar inteiramente as versões que contavam de suas vidas a seu convite, procurava apreender e compreender e só depois fazer teoria, numa atitude epistemológica incomum que fundia o psicanalista e o etnólogo na produção de dados psicológicos através do registro de entrevistas. Longe de qualquer jargão psicanalítico, ele preferia seguir as trajetórias individuais inseridas nas histórias familiares complexas. Nisso, diferia da equipe do Dr. John Money, de Baltimore, que formulou um conceito de gênero simultaneamente a ele, mas nutrido a partir das estatísticas. Assim, ele desenhou suas pioneiras teorias do desenvolvimento da identidade de gênero e da dinâmica da excitação sexual que se iniciaram com o depoimento de transexuais, dadas a conhecer em nove livros de sua autoria, três em coautoria, além de mais de 115 artigos. Seus temas abarcam o amplo espectro das homossexualidades - que ele considera não um comportamento monolítico, mas uma gama de estilos sexuais tão diversos como a heterossexualidade -, das perversões, o estudo das personagens envolvidas na produção de pornografia e na prática do sadomasoquismo.

A segunda maneira na qual sua obra se insere na tradição freudiana consiste na valorização das fantasias sexuais na forma de scripts, memórias, imagens, significados e afetos (sentimentos, humores e emoções) que dão vida a elas. É o fazer clínico do psicanalista em torno da escuta da fantasia que lhe interessa. Descarta como sedução filosófica com viés biologizante, os conceitos energéticos que, segundo ele, Freud teria pensado como entidades físicas. Diferentemente, ainda, de Freud, que formulou uma bissexualidade originária, Stoller advogou uma feminilidade primária como a orientação inicial tanto do tecido biológico como da identificação psicológica. Esta fase precoce e não conflitiva contribui para um núcleo feminino da identidade de gênero tanto de meninos como de meninas até que uma força masculina interrompa a relação simbiótica com a mãe.

"Perversão: a forma erótica do ódio", escrita em 1975, é considerada sua obra mais importante. Nela, expõe sua teoria de que o que caracteriza a perversão é a presença da hostilidade em relação ao objeto. A perversão resulta da relação entre hostilidade e desejo sexual. Na fantasia que embasa a montagem perversa deve estar presente além da hostilidade, a vingança, o triunfo e a desumanização do objeto; 'alguém machucando alguém' é o traço principal em qualquer uma das suas formas. Fruto da ansiedade, o comportamento perverso molda-se a partir de remanescentes e de ruínas da história do desenvolvimento libidinal, particularmente da dinâmica familiar. Tendo levado às últimas consequências a realidade do trauma, para Stoller, a perversão é o resultado de uma determinada dinâmica familiar que, induzindo medo, força a criança a evitar o enfrentamento da situação edípica, na qual, todavia, ela já se encontra imersa. O desfecho do conflito edípico não seria, portanto, a sua dissolução do mesmo pela via do recalcamento, mas sim, a sua evitação, o que adiaria ad infinitum a sua resolução, mantendo-o em suspenso. A montagem da cena perversa não é somente uma recusa à castração, mas também uma forma defensiva de manutenção da identidade sexual ameaçada, com o propósito de preservar o prazer erótico. Stoller sugere que a perversão é uma expressão da agressão inconsciente, na forma de vingança, contra uma pessoa que, nos anos precoces da vida, ameaçou o núcleo da identidade de gênero da criança, seja na forma de um trauma, seja na forma de frustrações no conflito edípico. É o ódio que está presente como elemento estruturante primordial, sendo, portanto, uma forma erótica do ódio, pois aquilo que preside o ato perverso é o desejo de machucar o outro: na prática, trata-se de uma fantasia atuada.

A importância que Stoller atribui ao trauma é reafirmada em vários momentos não só na gênese das perversões, mas no comportamento sexual geral. Os maiores traumas e frustrações da primeira infância são reproduzidos nas fantasias e comportamentos que animam o erotismo adulto, sendo que desta vez a história tem um final feliz, com a sensação de vitória. Em outras palavras, o comportamento erótico adulto contém o trauma primitivo.

Os dois se complementam: os detalhes do script adulto contam o que aconteceu com a criança. Ao analista cabe, como detetive, rastrear os eventos originais. A concepção de Stoller dispensa a necessidade de definir a perversão de acordo com a anatomia usada pelo sujeito em seu ato sexual, do objeto escolhido, dos parâmetros da moralidade social estabelecida ou do número de pessoas que fazem uso dela: o que importa verdadeiramente, na definição do que é uma montagem perversa, é o significado que ela assume para a pessoa que a pratica.

Na contemporaneidade, o conceito de Stoller de conversão do trauma pessoal em trauma simulado e dominado em scripts fantasiosos tem sido utilizado para entender as novas arenas simbólicas que agora definem a cultura popular, que se tornou um vasto inventário dos medos e desejos humanos. Nelas, os mais diversos jogos e simulações virtuais que criam formas de entretenimento e excitação estética apresentam e manipulam perigos ficcionais que parecem reais, mas que escapam dos limites da realidade física, permitindo aos jogadores controlar a produção, atuar medos e desejos pessoais e coletivos com a certeza de que são apenas mundos artificiais.

 

Questões de gênero, sexo e psicanálise

O psicanalista está bem posicionado para não confundir a família dita nuclear com o pai, a mãe e os filhos com o quadro necessário e suficiente para a saúde psíquica. Sabe, após mais de cem anos, que a bissexualidade e as determinações da escolha de objeto são inconscientes quer se trate de hétero ou de homossexualidade, e que a equação entre o sexual, o gênero e o reprodutivo só diz respeito ao mundo animal.

Se ele lutar contra as revoluções do momento em nome de uma versão ideológica e normativa do triângulo edipiano, ele deixa de ser aquilo que é esperado que o constitua na originalidade de seu método e na especificidade de sua ética, que não é pregar o bem, mas ter liberdade em relação as próprias barreiras. (André, 2016 a)

A emancipação da primeira designação de gênero, a designação do gênero pelo inconsciente dos pais, é o objeto mesmo da psicanálise como o é também a emancipação do gênero como construção social do sexo para enfrentar a dupla dominação: do privilégio da heterossexualidade e do homem no casal homem/mulher. (André, 2016, a)

Para Jacques André (2016 a), a psicanálise e os estudos de gênero estão no mesmo terreno quando se trata de chegar a um acordo sobre o caráter desnaturado da humana sexualidade e sobre a crítica do privilégio hierárquico concedido à heterossexualidade. Mas a diferença aumenta no momento em que a coisa psíquica é considerada mais de perto, naquilo que ela tem de mais primitivo. O inconsciente não é democrático, não tem nenhuma chance de vir a sê-lo: submissão, dominação vão-lhe às mil maravilhas. A igualdade lhe é desconhecida. Os comportamentos sexuais adultos variam de acordo com as épocas e as culturas. Não há, entretanto, tratamento social ou político do inconsciente sexual infantil, disso que é o objeto da psicanálise. Sexo psíquico é o mais próximo da experiência psicanalítica.

 

Para concluir

Superar a onipotência do masoquismo originário enuncia a própria ética da psicanálise como árdua superação do binômio submissão/dominação, origem do sofrimento.

Junto com a diversidade dos gêneros sexuais na contemporaneidade, o traço mais marcante da subjetividade contemporânea, segundo Birman (2016, p.38), é o narcisismo negativo enquanto vazio, perda de potência, depressão, demanda de cuidado e insistente olhar do outro sobre si. Não é mais sua majestade o bebê que marca a cultura do narcisismo na sociedade contemporânea. Essa dimensão negativa do narcisismo na contemporaneidade, na sua relação com a desconstrução da família nuclear burguesa, teve no movimento feminino dos anos 60 a sua primeira inflexão decisiva. O narcisismo que cobria o bebê de majestade foi aquele de uma época em que a mulher estava confinada à função restrita da maternidade. Com a resistência das mulheres a serem confinadas à exclusiva condição de mãe, e sua busca por inscrever-se no espaço social em condições de igualdade com os homens, a estrutura da família nuclear burguesa começou a ruir, pois dependia efetivamente daquela posição estratégica então atribuída à figura da mulher-mãe.

Com essa desconstrução da família nuclear burguesa, porém, a tradição do patriarcado começou a ser desconstruída também de forma radical.

Se o feminismo foi o tempo histórico inaugural desse processo social, o movimento gay foi o tempo segundo deste processo social e histórico, de forma que o movimento do transgênero é o tempo terceiro e atual desta desconstrução, nesse processo abrangente. Enfim, novas formas de conjugalidade e as novas modalidades de família são o contraponto da desconstrução da família nuclear burguesa. (Birman, 2016, p.389)

"Se a figura de Édipo foi a forma de subjetivação constitutiva do sujeito na modernidade (complexo de Édipo) e na modernidade avançada (estrutura edipiana), a marca negativa do narcisismo no sujeito atual é a contrapartida das novas formas de poder" (Birman, 2016, p.39).

A fenomenologia da diversidade na sociedade contemporânea aponta por um lado à manutenção do um e do múltiplo que preserva as diferenças necessárias ao gênero humano numa maior liberdade de singularização. Mas, por outro lado, traz a sombra de uma homogeneização em uma incestualidade latente: a propagação, sobre a aparência da diversidade, do narcisismo mortífero do mesmo, daquilo que se repete para não mudar, em que aparece uma confusão de diferenciações e uma erotização dessa confusão sob uma cultura do submetimento e da vulnerabilização social, que floresce no capitalismo mundializado.

 

Referências

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Recebido em: 21/10/2016
Aprovado em: 30/11/2016

 

 

* Texto escrito a partir das notas para participação na mesa redonda "Os caminhos de Édipo na diversidade sexual: homossexualidades, heterossexualidades, bissexualidades, transexualidades" na XX Jornada científica do Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre em 21 de outubro de 2016.

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