Services on Demand
article
Indicators
Share
Trivium - Estudos Interdisciplinares
On-line version ISSN 2176-4891
Trivium vol.10 no.1 Rio de Janeiro Jan./June 2018
https://doi.org/10.18379/2176-4891.2018v1p.116
ARTIGOS LIVRES
A provocação da câmera e o impacto no espectador
Camera's teaser and the impact on the viewer
La provocación de la cámara y el impacto en el espectador
Ana Lúcia Mandelli GuaragnaI; Amadeu de Oliveira WeinmannII
IEspecialista em Psicoterapia de Orientação Psicanalítica /IEPP. Endereço: Rua Regente, 245 /502 - CEP: 90.470-170 - Porto Alegre /RS. E-mail: analuciaguaragna@gmail.com
IIProfessor do PPG em Psicanálise: Clínica e Cultura /Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Endereço: Av. Montenegro, 186 /602 - CEP: 90.460-160 - Porto Alegre /RS. E-mail: weinmann.amadeu@gmail.com
RESUMO
A história do cinema é marcada por movimentos e manifestos, assim como a história das artes e a história mundial. Este ensaio propõe-se a realizar uma articulação entre os aspectos estéticos/formais de um desses manifestos, o Dogma 95, e o seu primeiro filme: Festa de família, a partir da perspectiva psicanalítica, principalmente acerca do que retorna do recalcado e se manifesta como estranho, inquietante, perturbador. Quais repercussões determinados aspectos técnicos provocam no espectador? Partindo da análise de uma sequência fílmica, propomos uma interpretação de cunho psicanalítico.
Palavras-chave: PSICANÁLISE; ESTRANHO; FESTA DE FAMÍLIA; DOGMA 95; CINEMA.
ABSTRACT
The history of cinema is marked by movements and manifestos, as well as the history of the arts and world history. This article aims to make a link between the esthetic /formal aspects of one of these manifestos, the Dogma 95, and its first film: The celebration, from a psychoanalytic perspective, especially about what returns from repression and its manifestations as uncanny, disquieting, and disturbing. What repercussions certain technical aspects of filmmaking cause in the spectator? Based on the analysis of a filmic sequence, we propose a psychoanalytical interpretation.
Keywords: PSYCHOANALYSIS; UNCANNY; THE CELEBRATION; DOGMA 95; CINE.
RESUMEN
La historia del cine está marcada por movimientos y manifiestos, así como la historia de las artes y la historia mundial. Este ensayo se propone realizar una articulación entre los aspectos estéticos/formales de uno de estos manifiestos, el Dogma 95, y su primera película: Fiesta de familia, desde la perspectiva psicoanalítica, principalmente acerca de lo que retorna de lo reprimido y se manifiesta como extraño, inquietante, perturbador. ¿Qué repercusiones ciertos aspectos técnicos provocan en el espectador? A partir del análisis de una secuencia fílmica, proponemos una interpretación de cuño psicoanalítico.
Palabras clave: PSICANÁLISIS; EXTRAÑO; FIESTA DE FAMILIA; DOGMA 95; CINE.
Introdução
A história do cinema é marcada por movimentos e manifestos, assim como a história das artes e a história mundial. Este ensaio propõe-se a realizar uma articulação entre um destes manifestos, o Dogma 95, e o seu primeiro filme: Festa de família, a partir da perspectiva psicanalítica, principalmente acerca do que retorna do recalcado e se manifesta como estranho, inquietante, perturbador (Freud, 1919/1976).
Vanoye e Goliot-Lété (2009) comentam que a análise fílmica trabalha o filme. Ao fazê-lo mover-se, mexe com suas significações, com seu impacto. A análise fílmica também trabalha o analista, recolocando em questão suas primeiras percepções e impressões, conduzindo-o a reconsiderar suas hipóteses, para consolidá-las ou invalidá-las. Descrever um filme é contá-lo, interpretá-lo, reconstruí-lo e também desconstruí-lo. Nesse sentido, o presente ensaio tem como objetivo principal fazer trabalhar o filme Festa de família, reconstruindo-o a partir do olhar do espectador-analista. No que se refere à psicanálise, Souza e Pereira (2011) observam que o papel do espectador-analista seria o de fazer um trânsito entre a psicanálise e o cinema, e entre o cinema e a psicanálise, deixando que seu saber seja questionado pela surpresa constante da arte. Então, vejamos o que será encontrado nessa trajetória!
Dogma 95
Um dos acontecimentos cinematográficos mais importantes da década de 1990 foi o Dogma 95. Em 1995, os cineastas dinamarqueses Lars Von Trier, Thomaz Vinterberg, Kirsten Levring e Sören Krag-Jacobsen criaram esse movimento, partindo de uma agressão a vertentes do cinema clássico e do cinema moderno. Em 1998, tal provocação materializou-se no filme Festa de família (Festen, de Thomaz Vinterberg).
De acordo com Hirata (2012), a proposta estética do Dogma 95 provocou um choque. Viam-se na tela, com efeito, imagens feitas em vídeo por meio de câmeras semiamadoras, utilizando-se do recurso digital, ainda não difundido no meio cinematográfico, além de imagens tremidas e granuladas, com montagem jump cuts (saltos) e com um desapego da estetização. A proposta do Dogma 95 tinha como alvo o cinema clássico hollywoodiano, em que se produziam filmes de grande orçamento, cuja primazia de recursos técnicos objetivava manter uma ilusão. Outro alvo era o cinema moderno, principalmente a nouvelle vague, por ser considerado um cinema de autor e, portanto, burguês. Esse manifesto tinha como um dos objetivos a busca por um cinema coletivo, que colocasse as novas tecnologias digitais em destaque e tivesse um baixo orçamento, possibilitando maior acessibilidade e, portanto, uma democratização do cinema. Sua busca era pelo real e pela verdade, apesar de não ser claro no discurso dos criadores do manifesto a que isso se referia. Nessa perspectiva, seriam distribuídos certificados para cada filme considerado Dogma 95. O manifesto inicial do Dogma 95 foi formalizado a partir de um texto intitulado Voto de castidade, onde são referidos seus dez mandamentos(1).
Dogma 1: Festa de família
A festa do título faz referência à comemoração dos 60 anos do patriarca Helge Klingelfeldt, reunindo pais, filhos, parentes e amigos. Helge e Elsie, sua esposa, tinham quatro filhos: os gêmeos Christian e Linda, Helene e Michael. Há poucos meses do aniversário do pai, Linda cometera suicídio afogando-se na banheira. A festividade acaba por tornar-se um acerto de contas com o passado. Christian revela aos convidados a violência sexual do pai sobre ele e a irmã, com a conivência da mãe. Uma carta deixada escondida por Linda irá servir como testemunho do passado, dando credibilidade às acusações feitas por Christian e fragmentando a família, destruindo a sua aparência de respeito e prosperidade.
A narrativa do filme é clássica: existe um herói (Christian, o filho primogênito), um vilão (Helge, o pai), um objetivo (revelar a verdade) e dificuldades no percurso dessa trajetória. Trata-se da jornada do herói, que caracteriza esse estilo narrativo, presente em diversos filmes hollywoodianos. O conteúdo do filme toca em aspectos edípicos, pois gira em torno da questão do incesto. Ao mesmo tempo, a estética é moderna, identificada pelo uso da câmera na mão e por momentos em que o filme se nos mostra como tal, promovendo a quebra da ilusão, assim como ocorre nos filmes da nouvelle vague. De acordo com Hirata (2012), ao negar tanto a estética clássica quanto o cinema moderno, o voto de castidade aponta para uma terceira direção. Quando observado de perto, esse caminho revela heranças, que remontam tanto ao cinema clássico quanto ao moderno. Ao concretizar-se nas obras, tal mistura, confusa a princípio, será a geradora da originalidade do movimento dinamarquês.
O objetivo do Dogma 95 era valorizar mais a história e as interpretações dos atores do que os recursos técnicos, retomando a simplicidade das filmagens e indo contra a formulação de ilusões. A simplicidade técnica, entretanto, tão pensada e formalizada em dez mandamentos, provoca efeitos e tem suas consequências no espectador. Que repercussões determinados aspectos técnicos, principalmente os movimentos de câmera, e a estética em estilo primitivo e, por vezes, agressiva, provocam no espectador? Partindo da análise de uma sequência fílmica, propomos uma interpretação de cunho psicanalítico.
Sequência do susto ou da penetração
A sequência inicia no quarto de Michael, o irmão mais novo. A câmera está no alto e faz um giro de 180º. No meio do caminho, há um espelho, onde é possível ver a câmera. O movimento termina na altura dos olhos da esposa de Michael, deitada na cama, com os olhos abertos. Ao fundo, é possível ver o banheiro e escutamos o barulho da água. A cena seguinte ocorre no quarto de Christian, irmão mais velho e protagonista. Ele segura um copo com água e começa a balançá-lo em um movimento rítmico, a câmera pouco se movimenta. A próxima cena é no quarto de Helene (irmã mais nova), o qual anteriormente foi apresentado como sendo o quarto da irmã morta. Na cena, está ela e Lars, o mordomo da casa. Há um plano subjetivo do ponto de vista dos dois personagens, no qual eles encontram uma carta deixada por Linda, a irmã morta. Helene pega a carta. Na cena seguinte, aparece Pia, a camareira da casa, no banheiro do quarto de Christian. Ela mergulha na banheira com os olhos abertos, olhando para a câmera. A próxima cena mostra Helene começando a ler a carta. A cena seguinte volta para Pia na banheira olhando para a câmera. A próxima cena retorna para Helene lendo a carta, em seguida para o copo de Christian, para Pia mergulhada na banheira olhando para a câmera e para Helene lendo silenciosamente a carta e limpando suas lágrimas. Ela olha para Lars, em um movimento de campo-contracampo, e lhe dá um susto. Neste momento, a montagem atinge seu auge em agilidade e as cenas seguintes acontecem rapidamente na seguinte ordem: a cortina do banho de Michael cai e ele escorrega, o copo de água de Christian cai, Pia emerge assustada da banheira e Helene pede desculpas para Lars - e diz que não há nada escrito na carta. A velocidade com que o ciclo de cenas conclui e é retomado aumenta a cada volta completa, e é possível sentir a tensão de algo que está pronto para emergir e, então, provocar seus efeitos.
Na sequência, algo nos é mostrado: a carta. Seu conteúdo, no entanto, não é revelado, mas sentimos sua presença e percebemos o estrago realizado pelo que não aparece. Quando Helene termina de ler a carta e assusta Lars, a montagem atinge seu auge em rapidez (jump cuts). Esse susto ecoa nas outras cenas, causando certa estranheza, pois era claro que cada personagem estava em um quarto separado. A ação que aconteceu em um deles reverberou, todavia, nos outros. Ao dar o susto no mordomo, Helene assusta as personagens de outro espaço fílmico - e assusta também o espectador, inserido em outro espaço. O filme dá a entender que algo se passou ali, uniu as personagens e também o espectador, anteriormente já convidado a participar da cena pelo olhar de Pia para a câmera. É como se houvesse uma quebra das paredes entre os quartos, do limite que separa uma cena da outra, e, por um instante, do que separa o espectador da tela, uma quebra da quarta parede (Xavier, 2003), provocando estranheza. Que jogo essa sequência de Festa de família propõe ao espectador? Que susto é esse?
Desde o início do filme, percebe-se o jogo de câmeras realizado, às vezes muito perto, como um personagem que participa da festa, às vezes distante, como câmera de vigilância ou como um personagem que de longe tudo vê, tudo observa, mas não participa. Entre afastamentos e aproximações da câmera, o olhar do espectador também se movimenta. Em determinado momento da sequência descrita, uma personagem nos olha, olha para a câmera e, portanto, nos olha, nos afeta, a câmera nos toca, há um incesto, uma relação que se deveria manter distante, separada pela barreira da tela, parece romper. A distância câmera/espectador, assim como as paredes entre os quartos da cena, parece desabar. O que acontece em uma cena é sentido nas outras, o que não deveria ser tocado toca-nos e assusta-nos, a reação é a queda. Há a penetração espectador/câmera. É como se, nesse momento em que aparece a carta, sentíssemos a crueza do incesto, do abuso, o assombro, por vezes retratado de tão perto, tão sujo e tão feio, e por vezes tão distante, escondido, em meio a uma festa pomposa.
O estranho
A partir de tais considerações, criamos a hipótese de que a estranheza e desacomodação que a sequência analisada provoca no espectador, por meio de seus efeitos estéticos e de seu entrelaçamento com o restante da narrativa, decorre de um encontro com o estranho, conforme desenvolvido por Freud. Em O estranho, Freud (1919/1976) observa que o sentimento de estranheza ou inquietação constitui uma das características típicas do retorno do recalcado. A partir de uma análise etimológica, o psicanalista propõe que unheimlich seria tudo o que deveria permanecer secreto, oculto; mas que apareceu, veio à luz. O estranho relaciona-se com o que desperta angústia e terror não por ser desconhecido, mas por ser aquela espécie de coisa assustadora que remonta ao há muito conhecido, ao bastante familiar.
No mesmo texto, o autor refere que a superstição, a feitiçaria, o encontro com o duplo, a visão imprevista de um cadáver, a repetição não intencional, dentre outros fenômenos que produzem o efeito unheimlich, evocam uma concepção animista, a qual supostamente estaria superada no sujeito moderno. Trata-se do equivalente à onipotência infantil de pensamentos, no adulto atual. O efeito inquietante é frequentemente atingido quando a fronteira entre fantasia e realidade é apagada, quando nos vem ao encontro algo real que até então víamos como fantástico, quando um símbolo toma a função de significado pleno do simbolizado, e assim por diante. Nessa perspectiva, o estranho, unheimlich, é o que foi outrora familiar, heimlich, velho conhecido. O prefixo un, nessa palavra, é a marca do recalcamento, sendo o unheimlich, portanto, um efeito do retorno do recalcado.
Ao integrar as formulações de Freud com as considerações acerca da sequência analisada, penso que a estranheza provocada por esta sequência fílmica pode ser pensada como um momento em que os limites entre fantasia e realidade são borrados. A estética primitiva e, por vezes, com aspectos amadores lembra-nos filmagens caseiras, aspectos documentais, o que em certa medida facilita a maior inserção do espectador como participante da festa - e é reiterado por certos procedimentos estéticos, como planos subjetivos, o olhar de uma personagem para a câmera, etc. Não obstante, também somos mantidos à distância, ao sermos lembrados de que estamos vendo um filme, por meio de recursos fílmicos que nos distanciam da cena e revelam sua produção (reflexo da câmera no espelho, por exemplo). Nessa sequência, parece haver uma confusão entre realidade e ficção, assim como para a personagem principal - e sua irmã suicida - deve ter ficado confusa a concretização de seus desejos infantis incestuosos. Fantasia e realidade sobrepostas, em uma cena estranhamente familiar - a lida por Freud no mito de Édipo -, é algo profundamente perturbador.
Considerações finais
Ao pensar no Dogma 95, mais especificamente no filme Festa de família, e na sua pretensão de um cinema mais real, pensamos no contato do espectador com o inconsciente, com o primitivo, com o que retorna do recalcamento, mas se protege pela tela, pela distância do filme em relação ao espectador. Essa distância é assegurada por determinadas regras de construção da realidade diegética que, justamente por ter esse limite, proporciona que tal encontro seja ao mesmo tempo perturbador, mas também suportável. Acreditamos que a riqueza da sequência analisada decorre da convergência entre o conteúdo do filme e a forma como ela nos é mostrada estética e tecnicamente. Percebemos não só no conteúdo do filme, mas também em seus aspectos formais, a crueza, a brutalidade do incesto, sentida pela personagem principal e sua irmã. Na sequência, cai a barreira entre a realidade diegética e o espectador. A câmera nos provoca e isso impacta.
Notas
(1) Os 10 mandamentos do Dogma 95:
01 - As filmagens devem ser feitas em locações. Não podem ser usados acessórios ou cenografia (se a trama requer um acessório particular, deve-se escolher um ambiente externo onde ele se encontre).
02 - O som não deve jamais ser produzido separadamente da imagem ou vice-versa (a música não poderá ser utilizada a menos que ressoe no local onde se filma a cena).
03 - A câmera deve ser usada na mão. São consentidos todos os movimentos - ou a imobilidade - devidos aos movimentos do corpo (o filme não deve ser feito onde a câmera está colocada; são as tomadas que devem desenvolver-se onde o filme tem lugar).
04 - O filme deve ser em cores. Não se aceita nenhuma iluminação especial (se há muito pouca luz, a cena deve ser cortada, ou então se pode colocar uma única lâmpada sobre a câmera).
05 - São proibidos os truques fotográficos e filtros.
06 - O filme não deve conter nenhuma ação "superficial" (homicídios, armas, etc., não podem ocorrer).
07 - São vetados os deslocamentos temporais ou geográficos (o filme se desenvolve em tempo real).
08 - São inaceitáveis os filmes de gênero.
09 - O filme final deve ser transferido para cópia em 35 mm, padrão, com formato de tela 4:3. Originalmente, o regulamento exigia que o filme deveria ser filmado em 35 mm, mas a regra foi abrandada para permitir a realização de produções de baixo orçamento.
10 - O nome do diretor não deve figurar nos créditos.
Referências
Freud, S. (1976). O estranho. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1919) [ Links ]
Hirata, M.,F. (2012). O Dogma 95. In M. Baptista & F. Mascarello (orgs.), Cinema mundial contemporâneo. Campinas, SP: Papirus. [ Links ]
Souza, E. & Pereira, R. (2011). Cinema: o divã e a tela. Porto Alegre: Artes e Ofícios. [ Links ]
Vanoye, F. & Goliot-Lété, A. (2009). Ensaio sobre a análise fílmica. Campinas, SP: Papirus. [ Links ]
Vinterberg, T. (1998). Atores principais: Ulrich Thomsen e Henning Moritzen. Roteiristas: Thomas Vinterberg e Mogens Rukov. Título no Brasil: Festa de família. Título original: Festen. País de origem: Dinamarca. Distribuidor: Versátil Digital Filmes. [ Links ]
Xavier, I. (2003). O olhar e a cena. São Paulo: Cosac & Naify. [ Links ]
Recebido em: 11/05/2017
Aprovado em: 07/07/2017