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Trivium - Estudos Interdisciplinares
On-line version ISSN 2176-4891
Trivium vol.12 no.1 Rio de Janeiro Jan./June 2020
https://doi.org/10.18379/2176-4891.2020v1p.81
ARTIGOS LIVRES
O estranho na obra de Sigmund Freud e no ensino de Jacques Lacan
The uncanny in Sigmund Freud's work and Jacques Lacan's teaching
El siniestro en la obra de Sigmund Freud y en la enseñanza de Jacques Lacan
Selma de Abreu CamargoI; Nadiá Paulo FerreiraII
IDoutoranda em Psicanálise pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ (2016). E-mail: selmaacamargo@gmail.com
IIProfessora titular de literatura portuguesa da UERJ, desde 1972. E-mail: nadia@corpofreudiano.com.br
RESUMO
Este artigo apresenta uma homenagem aos cem anos de publicação do texto Das Unheimliche (1919), de Sigmund Freud. Nesse texto, rico em conceitos psicanalíticos, Freud faz diversas referências literárias, mitológicas, clínicas, relata algumas experiências pessoais e abre um amplo leque de questões para aprofundamento e reflexão. Ele vai além das questões estéticas e do efeito sobrenatural, ilustrando, com essas referências, toda a dinâmica do inconsciente. Nesse ensaio ele parte dos diversos sentidos da palavra alemã Heimlich (familiar), para demonstrar a sua ambivalência. Esses sentidos antitéticos remetem para a constelação semântica de íntimo, familiar, desconhecido e estranho.
Palavras-chave: ESTRANHO; DUPLO; ANGÚSTIA; LITERATURA; PSICANÁLISE.
ABSTRACT
This article presents a tribute to Sigmund Freud's hundred years of publication of Das Unheimliche (1919). In this text, rich in psychoanalytic concepts, Freud makes several literary, mythological, clinical references, reports some personal experiences and opens a wide range of issues for further deepening and reflection. He goes beyond the aesthetic questions and the supernatural effect, illustrating, with these references, all the dynamics of the unconscious. In this essay he starts from the various meanings of the German word Heimlich (family) to demonstrate your ambivalence. These senses antithetical refer to the constellation intimate, familiar semantics, unknown and uncanny.
Keywords: UNCANNY; DOUBLE; ANGST; LITERATURE; PSYCHOANALYSIS.
RESUMEM
Este artículo presenta un homenaje a cien años de la publicación del texto Das Unheimliche (1919) de Sigmund Freud. En este texto, rico en conceptos psicoanalíticos, Freud hace varias referencias literarias, mitológicas, clínicas, relata algunas experiencias personales y abre una amplia gama de temas de profundización y reflexión. Él va más allá de las cuestiones estéticas y del efecto sobrenatural, ilustrando, con esas referencias, toda la dinámica del inconsciente. En ese ensayo él parte de los diversos sentidos de la palabra alemana Heimlich (familiar), para demostrar su ambivalencia. Estos sentidos antitéticos se refieren a la constelación semántica de íntimo, familiar, desconocido y siniestro.
Palabras clave: SINIESTRO; DOBLE; ANGUSTIA; LITERATURA; PSICOANÁLISIS.
Unheimlich é o nome de tudo que deveria ter
permanecido secreto e oculto
mas veio à luz.
(Schelling)
Introdução
Sigmund Freud, em seu artigo Das Unheimliche (O Estranho), faz referência ao trabalho de Otto Rank, O Duplo (1925), publicado em Internationaler Psychoanalytischer Verlag, em que o estranho aparece sob a forma de duplo, provocando medo, angústia e horror: "Ele penetrou nas ligações que o 'duplo' tem com reflexos em espelhos, com sombras, com os espíritos guardiões, com a crença na alma e com o medo da morte" (p. 252). Otto Rank escolheu romances do romantismo alemão e filmes de sua época (O estudante de Praga, versões de 1913 e 1926) para interpretar as várias modalidades do duplo: sósia, gêmeos, sombra, eco, imagem apreendida no retrato e reflexo no espelho.
Sigmund Freud afirma que, na época da publicação de seu artigo sobre o estranho, não havia literatura sobre esse tema, a não ser o trabalho do psiquiatra alemão Ernst Anton Jentsch (1867-1919) - Zur Psychologie des Unheimlichen (Sobre a psicologia do sinistro) - publicado em 1906, no Psychiatrisch-Neurologische Wochenschrift. Essa tese enfatiza que a origem do Unheimlich (estranho) pode ser encontrada em experiências cotidianas. Por exemplo, uma coleção de figuras de cera pode causar uma estranha sensação, na medida em que seu realismo faz com que tenhamos a impressão de que se trata de um ser vivo e não um boneco de cera. Ernst Anton Jentsch (1906/1996), inclusive, afirma que o "horror é uma emoção que, com cuidado e conhecimento especializado, pode ser usado também para aumentar efeitos emocionais em geral" (p. 11).
Para Freud, o estranho nada mais é o que, por ter sido rejeitado pelo eu, retorna para causar espanto e horror. E justamente por isto, tem que ser, mais uma vez, negado sob a forma de denegação. Tanto Sigmund Freud como Ernst Anton Jentsch exploram o estranho efeito provocado por objetos inanimados quando, de repente, aparentam estar vivos. No entanto, para Sigmund Freud, "não há no psíquico nada que seja arbitrário ou indeterminado" (1901/2006, p. 240). No caso do estranho, o que aparece é o retorno do recalcado, que, por ter driblado o agente do recalque, que é o eu, reaparece, causando estranheza, o que obriga o eu, mais uma vez, negar. Como diz Jean Hypolite, "o recalque continua a subsistir sob a forma de denegação." (1998, p. 897). É justamente isto que aparece como definição do estranho nos versos de Schelling, que foi colocado na epígrafe.
O Unheimlich (estranho) e o Heimlich (familiar)
Sigmund Freud, no texto Das Unheimliche (O Estranho), nos ensina que o homem diante do que lhe parece ser misterioso e enigmático (Estranho/Unheimelich) reage com medo e horror. Mas é preciso grifar que o estranho não se opõe ao familiar. Muito pelo contrário, nos esclarece Freud que:
(...) o estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar. (...) nem tudo o que é novo e não familiar é assustador; a relação não pode ser invertida. Só podemos dizer que aquilo que é novo pode tornar-se facilmente assustador e estranho; algumas novidades são assustadoras, mas de modo algum todas elas. Algo tem de ser acrescentado ao que é novo e não familiar, para torná-lo estranho (1919/2006, p. 238-9).
A questão inicial de Sigmund Freud é apresentar em que circunstâncias o familiar pode se transformar em estranho e assustador. Justamente por isso, ele se apropria dos versos do filósofo alemão Friedrich Schelling (1775-1854), para definir o estranho - Unheimlich - como "tudo o que deveria ter permanecido secreto e oculto, mas veio à luz" (Freud, 1919/2006, p. 243), ou seja, o que foi recalcado, deveria permanecer para sempre esquecido e não retornar para assombrar o eu. Ou, dito de outra forma: só poderia retornar sob a forma de sintoma, ou seja, mascarado. Podemos então dizer que o que vem à luz seria o retorno do recalcado.
Recalque, para Sigmund Freud, é o mecanismo através do qual o eu, como agente, retira de cena tudo que arranha sua imagem e, justamente por isto, não quer saber. Mas o inconsciente desconhece o não, sendo assim, o que é recalcado pelo eu retorna como sintoma ou nas formações discursivas do inconsciente, tais como: sonhos, atos falhos, esquecimentos e chistes. E acrescentaríamos, ainda, o estranhamento diante desse retorno do recalcado. O que faz com que, como já vimos, lançar mão do recurso da denegação.
Para dar conta da estrutura do eu, recorremos ao texto que Jacques Lacan apresentou, no XVI Congresso Internacional de Psicanálise, realizado em Zurique, em 1949, intitulado O estádio do espelho como formador da função do eu tal como nos é revelado na experiência analítica:
(...) o estádio do espelho é um drama cujo impulso interno precipita-se da insuficiência para a antecipação - e que fabrica para o sujeito, apanhado no engodo da identificação espacial, as fantasias que se sucedem desde uma imagem despedaçada do corpo até uma forma de sua totalidade que chamaremos de ortopédica - e para a armadura enfim assumida de uma identidade alienante que marcará com sua estrutura rígida todo o seu desenvolvimento mental. Assim o rompimento do círculo Innenwelt (mundo interior) para o Umwelt (mundo exterior) gera a quadratura inesgotável dos arrolamentos do eu (1998, p. 100).
O estádio do espelho é o momento da constituição do eu, em que se produz a primeira identificação com a apreensão da imagem unitária do próprio corpo. Essa imagem produz o que Jacques Lacan, no referido texto, chama de "assunção jubilatória". Essa transformação, produzida no sujeito pela assunção de sua imagem, é designada de identificação imaginária.
Nadiá Paulo Ferreira, em seu artigo "O insólito é o estranho", publicado em O insólito e seu duplo, aborda a questão do estádio do espelho:
Inicialmente essa captura não é vista como imagem do próprio corpo, mas como imagem de outro corpo semelhante. É preciso que haja a intervenção da palavra (simbólico) a fim de que a imagem do próprio corpo seja reconhecida como tal. Representantes do Outro, que seguram a criança no colo, dizem e repetem que aquela imagem é sua própria imagem: "Olha lá o Pedro. - Aquele ali é o Pedro". Até que, em determinado momento, a criança conclui: "Aquela imagem é do Pedro. A imagem do Pedro sou eu". Se ele sou eu, logo o eu é o outro (2009, p. 113).
Aqueles que seguram a criança em frente ao espelho têm um papel essencial na constituição do eu, porque são eles que legitimam a imagem que a criança vê no espelho como sendo a sua própria imagem, a qual recebe um nome. Isto acontece, aproximadamente, aos seis ou oito meses, quando a criança, que tinha uma imagem despedaçada do seu corpo, passa apreendê-lo como um todo. Essa imagem unitária do seu corpo, no entanto, é fictícia, já que não corresponde ao real do seu corpo, ou seja, um corpo sem coordenação motora, fazendo com que a criança ainda não consiga dar os primeiros passos sem ajuda. Justamente por isso, a criança se angustia quando cai, pois a queda fura essa imagem especular, apontando para o real do corpo.
Retomando o texto Das Unheimliche (O Estranho), Sigmund Freud, na primeira seção de seu artigo, trata dos diversos significados das palavras Heimlich (familiar) e Unheimlich (estranho). Agradece ao Dr. Theodor Reik por lhe oferecer as palavras correspondentes ao familiar e estranho em dez línguas: latim, grego, inglês, francês, espanhol, italiano, português, alemão, árabe e hebreu. Além disso, faz referências ao texto bíblico e inclui uma extensa citação do dicionário alemão de Jacob e Wilhelm Grimm.
Em latim, segundo K.E. Georges, Deutschlateinisches Wörterbuch, 1898. "Um lugar estranho: locus suspectus; numa estranha hora da noite: intempesta nocte" (FREUD, 1919/2006, p. 239).
Em grego, quer dizer: estranho, estrangeiro, de acordo com os léxicos de Rost e Schenkl.
Em inglês, significa: uncomfortable, uneasy, gloomy, dismal, uncanny, ghastly; (of a house) haunted; (of a man) a repulsive fellow, segundo os dicionários de Lucas, Bellows, Flügel e Muret-Sanders.
Em francês, de acordo com Sachs-Villatte, quer dizer: inquiétant, sinister, lugubre, mal à son aise.
Em espanhol, significa: sospechoso, de mal agüero, lúgubre, siniestro, segundo Tollhausen, 1889. A versão Amorrortu Editores usa a palavra ominoso, que também existe na língua portuguesa e significa agourento, nefasto, funesto, aquilo que anuncia desventura.
Nas línguas italiana e portuguesa, o termo Unheimlich é traduzido com circunlocuções. A tradução portuguesa, da Companhia das Letras, propõe O inquietante, e em italiano, da editora Bollati Boringhieri, usa Il perturbante.
Em árabe e hebreu, quer dizer o mesmo que 'demoníaco', 'horrível'.
Em alemão, Freud retira alguns trechos do Dicionário Wortebuch der Deutschen Sprache (1860, 1, 729), do lexicógrafo Daniel Hendel Sanders (1819-1897) para citar vários exemplos de Heimlich e Unheimlich: "Heimlich, adj., subst. Heimlichkeit (pl. Heimlichkeiten): I. Também heimlich, heimelig, pertencente à casa, não estranho, familiar, doméstico, íntimo, amistoso etc" (1919/2006, p. 240).
Na Silésia (atual Polônia), segundo Sigmund Freud, heimlich tem um significado bem específico: "alegre, disposto; também em relação ao tempo (clima)" (1919/2006, p. 241).
Posteriormente, Sigmund Freud enfatiza a ambivalência do termo heimlich, com algumas passagens bíblicas: "II. Escondido, oculto da vista, de modo que os outros não consigam saber, sonegado aos outros. (...) lugares heimlich (...) (1 Sam. 5, 6). 'A câmara heimlich' (privada) (2 Reis 10, 27). (...)'A arte heimlich' (mágica)" (1919/2006, p. 241-42). Para tornar mais claro, transcrevemos essas passagens: Em 1 Sm 5, 6: "A mão de Iahweh pesou sobre os azotitas e os afligiu com tumores, em Azoto e seu território" (BÍBLIA, 2002, p. 396). Em 2 Rs 10, 27: "Derrubaram a estela de Baal, demoliram também o templo de Baal e no lugar dele fizeram umas latrinas, o que permanece até hoje" (BÍBLIA, 2002, p. 521). Ele afirma que "muitas línguas não têm palavra para essa particular nuança do que é assustador" (1919/2006, p. 239).
Todo significante pode significar qualquer coisa dependendo de sua relação com os outros significantes, pois toda língua tem seus pares antitéticos. Para Ferdinand de Saussure, nenhum elemento da língua tem um valor em si mesmo, só quando confrontado com o seu oposto. Para haver oposição e diferença é necessário pelo menos dois significantes. O que caracteriza a natureza do significante é se relacionar com outros, fazendo parte do que Jacques Lacan nomeia de cadeia do significante. É nessa cadeia, que se produz a significação do significante em função do seu lugar, e das relações estabelecidas com outros significantes.
Nadiá Paulo Ferreira, em seu artigo Jacques Lacan: apropriação e subversão da linguística, afirma que Lacan desconsidera a noção de signo de Ferdinand de Saussure e cria uma teoria do significante: S/s - significante sobre significado - em que há o privilégio do significante. Ela destaca que a "articulação significante não se produz sozinha, é necessário que haja um sujeito. O significante só pode passar para o plano da significação porque há um sujeito operando a cadeia do significante" (2002, p. 116).
Uma figura de linguagem muito utilizada no dia a dia, e que expressa claramente esse sentido antitético do significante, é a ironia. Nela encontramos a essência da linguagem, pois ilustra a possibilidade de sentidos múltiplos do significante, inclusive o sentido oposto.
José Ferrater Mora, em seu Dicionário de Filosofia, declara que "o elemento comum do conceito romântico de ironia é apresentá-la como expressão da união de elementos antagônicos tal como a natureza e o espírito, o objetivo e o subjetivo etc" (2001, p. 1558). Na ironia romântica há um conflito constante entre os opostos, mas eles não se anulam.
Sigmund Freud, em Os chistes e a sua relação com o inconsciente, diz que a essência da ironia:
(...) consiste em dizer o contrário do que se pretende comunicar a outra pessoa, mas poupando a esta uma réplica contraditória fazendo-lhe entender - pelo tom de voz, por algum gesto simultâneo, ou (onde a escrita está envolvida) por algumas pequenas indicações estilísticas - que se quer dizer o contrário do que se diz. A ironia só pode ser empregada quando a outra pessoa está preparada para escutar o oposto, de modo que não possa deixar de sentir uma inclinação a contradizer (1905/2006, p. 164).
Para ele a ironia é uma subespécie do cômico e está bem próxima do chiste. Ela é poderosa e ressalta o sujeito do inconsciente, pois ocorre uma alteração na enunciação e não no enunciado, colocando assim, o sujeito entre os significantes. A ironia é a figura de linguagem que Jacques Lacan privilegia em Sigmund Freud.
Para ressaltar a ambivalência da palavra Heimlich, Sigmund Freud menciona o texto de Karl Ferdinand Gutzkow (1811-1878):
"'Os Zecks [nome de família] são todos 'heimlich'." "'Heimlich'"? O que você entende por 'heimlich'?" "Bem, ... são como uma fonte enterrada ou um açude seco. Não se pode passar por ali sem ter sempre a sensação de que a água vai brotar de novo." "Oh, nós chamamos a isso 'unheimlich'; vocês chamam 'heimlich'. 'Bem, o que faz você pensar que há algo secreto e suspeitoso acerca dessa família?'" (Gutzkow)" (1919/2006, p. 241).
Essa ambiguidade de Heimlich nos remete à banda de Möebius, em que o dentro e o fora se complementam. Esse objeto topológico, também denominado laço ou fita de Möebius, inventado em 1858 pelo astrônomo e matemático alemão August Ferdinand Möbius (1790-1868), é reproduzido por Maurits Cornelis Escher (1898-1972), artista gráfico holandês, em 1963. Ele insere formigas, nessa ilustração, para mostrar que é impossível representar o dentro e o fora como lugares opostos. Não é em vão, que essa figura faz parte da capa de O seminário, livro 10: a angústia (1962-1963/2005) de Jacques Lacan.
O estranho e a compulsão à repetição
No artigo Das Unheimliche (O Estranho), Sigmund Freud faz diversas referências literárias, mitológicas, clínicas, relata algumas experiências pessoais e abre um amplo leque de questões para aprofundamento e reflexão, tais como: o duplo, a repetição, o pressentimento, a superstição, o animismo, o narcisismo, a castração, a angústia, o recalque e o retorno do recalcado. Vai além das questões estéticas e do efeito sobrenatural, ilustrando, com essas referências, toda a dinâmica do inconsciente.
Na segunda seção desse texto, ele nos relata exemplos do sentimento de estranheza na literatura e no cotidiano, enfatizando a compulsão à repetição. Ele também afirma, que Ernst Anton Jentsch (1867-1919) utiliza um ótimo exemplo para tal sensação:
Ao contar uma história, um dos recursos mais bem sucedidos para criar facilmente efeitos de estranheza é deixar o leitor na incerteza de que determinada figura na história é um ser humano ou um autômato, e fazê-lo de tal modo que a sua atenção não se concentre diretamente nessa incerteza, de maneira que não possa ser levado a penetrar no assunto e esclarecê-lo imediatamente. Isto, como afirmamos, dissiparia rapidamente o peculiar efeito emocional da coisa. E.T.A. Hoffmann empregou repetidas vezes, com êxito, esse artifício psicológico nas suas narrativas fantásticas (1919/2006, p. 245).
Ernst Anton Jentsch introduz o tema do estranho, em 1906, e aborda a ambiguidade do objeto: se é animado ou inanimado. Para ele, o estranho, como modalidade de angústia, se manifesta quando o inanimado cria vida, ou seja, essa ideia da incerteza intelectual, é a condição principal para que o estranho se manifeste. Os efeitos inquietantes são normalmente obtidos quando o espectador se coloca diante da repetição constante de um mesmo movimento.
Tzvetan Todorov (1939-2017), em Introdução à Literatura Fantástica, declara que o sentimento de hesitação é essencial para o surgimento do fantástico:
O fantástico se caracteriza pela hesitação. A incerteza, a hesitação chegam no auge. Cheguei quase a acreditar: eis a fórmula que resume o espírito do fantástico. A fé absoluta como incredulidade total nos levam para fora do fantástico; é a hesitação que lhe dá vida. O fantástico implica pois uma integração do leitor no mundo das personagens; defini-se pela percepção ambígua que tem o próprio leitor dos acontecimentos narrados. É necessário desde já esclarecer que, assim falando, temos em vista não este ou aquele leitor particular, real, mas uma função de leitor implícita no texto. A hesitação do leitor é, pois, a primeira condição do fantástico. (...) É necessário ao fantástico alguma coisa de involuntário, de sofrido, uma interrogação inquieta não menos que inquietante, surgida improvisadamente de não se sabe que trevas (2004, p. 36-7).
Jacques Lacan em O seminário, livro 10: a angústia (1962-1963/2005), também assinala que o estranho sempre aparece de surpresa provocando hesitação:
O que quero acentuar hoje é apenas que o horrível, o suspeito, o inquietante, tudo aquilo pelo qual traduzimos para o francês, tal como nos é possível, o magistral unheimlich do alemão, apresenta-se através de clarabóias. É enquadrado que se situa o campo da angústia. (...) "Súbito", "de repente" - vocês sempre encontrarão essas expressões no momento da entrada do fenômeno do unheimlich. Encontrarão sempre em sua dimensão própria a cena que se propõe, e que permite que surja aquilo que, no mundo, não pode ser dito (p. 86).
Alguns autores introduzem personagens que deixam os leitores em dúvida, se eles são seres vivos ou autômatos. É o caso da boneca mecânica Olímpia, que se constitui um elemento inquietante, no conto O homem da areia - Der Sandmann (1816) de Ernst Theodor Amadeus Hoffmann (1776-1822) - E. T. A. Hoffmann. Nesse conto o protagonista se apaixona pela boneca e acha que ela é uma mulher real. A boneca Olímpia, também está presente na ópera Os Contos de Hoffmann (Les contes d'Hoffmann) de Jacques Offenbach (1819-1880), grande admirador de E.T.A. Hoffmann, com libreto escrito por Paul Jules Barbier (1825-1901), poeta francês e libretista de ópera, em colaboração com Michel Carré. Essa ópera, cuja estréia ocorreu na Opéra-Comique, em Paris, no ano de 1881, marca o início do gênero fantástico romântico, na literatura.
Sendo um notável leitor de E.T.A. Hoffmann, Sigmund Freud interpreta, em Das Unheimliche (O Estranho), esse conto fantástico, para esclarecer aspectos fundamentais da teoria psicanalítica, como a angústia, pois não há estranho sem angústia, nem angústia sem estranho. Nele, há sete personagens: Nataniel (o estudante), Lothaire (irmão de Clara e amigo de Nataniel), Clara (noiva de Nataniel), Copélio (o advogado), Coppola (o oculista), a Boneca Olímpia e Spallanzani (o Professor de Física). É um conto narrado, inicialmente, em terceira pessoa, sob a forma de cartas enviadas pelo estudante Nathaniel ao seu amigo Lothaire, e à sua noiva Clara. Depois das cartas entra a história do narrador.
Na primeira carta, de Nataniel para Lothaire, o estudante relata tudo sobre sua infância e afirma sentir-se perseguido pelo Homem da Areia, que no intuito de arrancar-lhe os olhos, transita pelos personagens Copélio e Coppola. Notamos que, nessa passagem, há um deslocamento do mesmo significante. Sigmund Freud, afirma que Coppola, o oculista, é realmente Copélio: "A conclusão da história deixa bastante claro que Coppola, o oculista, é realmente o advogado Copélio e também, portanto, o Homem da Areia" (1919/2006, p. 248). Em uma nota de rodapé, ele dá ênfase ao significante 'olhos': "A Sra. Rank assinalou a associação do nome com 'coppella' = 'cadinho', relacionando-o com as operações químicas que causaram a morte do pai; e também com 'coppo' = 'órbita', 'cavidade orbital'" (1919/2006, p. 248).
Observamos que nesse conto, cujo tema principal é que o Homem da Areia arranca os olhos das crianças, há várias referências aos olhos, o que nos remete à ameaça da castração, abordada por Sigmund Freud em seu artigo:
O estudo dos sonhos, das fantasias e dos mitos ensinou-nos que a ansiedade (angústia) em relação aos próprios olhos, o medo de ficar cego, é muitas vezes um substituto do temor de ser castrado. O autocegamento do criminoso mítico, Édipo, era simplesmente uma forma atenuada do castigo da castração - o único castigo que era adequado a ele pela lex tallionis (1919/2006, p. 248-9).
O medo de ficar cego é, na maioria das vezes, associado ao medo da castração. E o estranho coloca em evidência essa relação do olhar com a castração, tal como Nataniel, que desenvolve o medo de perder os olhos.
Para Jacques Lacan, "o olho institui a relação fundamental desejável porque sempre tende a fazer desconhecer, na relação com o Outro, que por trás do desejável há um desejante" (1962-63/2005, p. 296). Ele destaca a função unheimlich dos olhos, em O Seminário, livro 10: a angústia:
Basta que os remeta aqui, mais uma vez, à função unheimlich dos olhos como algo manipulado, para fazer com que vocês passem de um ser vivo a seu autômato, através do personagem - encarnado por Hoffmann e posto por Freud no centro de seu artigo sobre o unheimlich - de Coppelius. Este fura as órbitas, para investigar até a raiz delas o que é o objeto - em algum lugar, um objeto capital, essencial para se apresentar como o mais além, e o mais angustiante - do desejo que ele constitui, ou seja, o próprio olho (1962-63/2005, p. 342).
Há outro aspecto da subjetividade do olhar, o mau-olhado, o efeito persecutório do olhar. Sigmund Freud salienta que "uma das mais estranhas e difundidas formas de superstição é o medo do mau-olhado, que foi exaustivamente estudado por um oculista de Hamburgo, Seligmann (1910-11)" (1919/2006, p. 257). Embora seja uma crença folclórica bem antiga, até hoje muitas pessoas utilizam amuletos contra o mau-olhado: estátua de elefante, figa feita de madeira, ferradura, olho de Hórus, olho turco, trevo de quatro folhas, fita do Senhor do Bonfim, estrela de Davi, mão de Nossa Senhora de Fátima, são alguns exemplos.
A superstição é abordada, por Sigmund Freud, no texto Sobre a Psicopatologia da Vida Cotidiana, em que declara que "outra indicação de que possuímos um conhecimento inconsciente e deslocado de motivação dos atos casuais e dos atos falhos encontra-se no fenômeno da superstição" (1901/2006, p. 252). Para ele, "a superstição deriva de moções cruéis e hostis suprimidas. A superstição é, em grande parte, a expectativa de infortúnios" (1901/2006, p. 256).
A angústia, o horror e o fascínio também podem manifestar-se diante do reflexo. Talvez, por isso, ainda existam, nos dias atuais, tanta superstição sobre a imagem refletida no espelho, na superfície da água, na sombra ou no retrato.
Retomando o conto O Homem da areia, na segunda carta, Clara escreve para Nataniel e tenta tranquilizá-lo a respeito de Coppelius. Ela diz que há algo destrutivo, até mesmo quando se leva uma vida calma, pois uma vida muito tranquila não promove mudanças nem aprendizagem. E na terceira carta, de Nataniel para Lothaire, o estudante fica aborrecido com seu amigo pelo fato de Clara ter lido sua primeira carta.
Coppola compra uma luneta para admirar a boneca Olímpia e Spallanzani, o Prof. de Física, faz uma festa para apresentar a boneca. No desfecho, Nathaniel e Clara sobem ao campanário, ele surta, começa a gritar 'gira boneca' e tenta matar Clara, sua noiva. Lothaire salva Clara, e Nathaniel se joga lá de cima.
Ao analisar esse conto, Sigmund Freud esclarece que o sentimento de estranheza está diretamente relacionado ao fato de o Homem da areia arrancar os olhos das crianças, e não ao fato da boneca Olímpia ser real ou autômata. O que comprova, nesse caso, que a incerteza intelectual defendida por Ernst Jentsch, não nos causa tanto horror e estranheza. Para Jacques Lacan, "o olho de que se trata só pode ser o do herói, e o tema de que querem arrebatar-lhe esse olho dá o fio explicativo de todo o conto" (1962-1963/2005, p. 58).
Sigmund Freud, em Das Unheimliche (O Estranho) - nota de rodapé - aborda o complexo de castração, presente nesse conto de E.T.A. Hoffmann:
Na história da infância de Nataniel, as figuras do pai e de Copélio representam os dois opostos em que a imagem paterna é dividida pela sua ambivalência; enquanto um ameaça cegá-lo - isto é, castrá-lo -, o outro, o pai 'bom', intercede pela sua visão. A parte do complexo que é mais intensamente reprimida (recalcada), o desejo de morte contra o pai 'mau' encontra expressão na morte do pai 'bom', e Copélio é responsabilizado por ela. Esse par de pais é representado mais tarde, na época de estudante, pelo professor Spalanzani e o oculista Coppola. O professor é, em si, um membro da série paterna, e Coppola é reconhecido como idêntico ao advogado Copélio. Tal como antes costumavam trabalhar juntos no braseiro secreto, agora criaram conjuntamente a boneca Olímpia; o professor é até mesmo chamado de pai de Olímpia. Essa dupla ocorrência de atividade em comum revela-os como divisões da imagem paterna: tanto o mecânico como o oculista eram o pai de Nataniel (e de Olímpia também) (1919/2006, p. 249-50).
Esse conto põe em jogo o duplo e a sombra. A boneca Olímpia é o duplo de Nathaniel, quando ele se apaixona pela boneca, perde o interesse por sua noiva Clara. Essa autômata "nada mais pode ser do que uma materialização da atitude feminina de Nataniel em relação ao pai na sua infância. (...) Olímpia é como se fosse um complexo dissociado de Nataniel que o confronta como pessoa" (Freud, 1919/2006, p. 250).
A partir desse conto, Sigmund Freud argumenta como o escritor consegue provocar medo e horror no leitor, através do estreitamento de limites entre a realidade e o imaginário.
Otto Rank, em O Duplo: um estudo psicanalítico, afirma que "Hoffmann é o criador clássico do duplo, que é um dos motivos mais populares da literatura romântica" (2013, p. 19). Seu primeiro romance, Os elixires do diabo (Die Elixiere des Teufels) (1814), é citado por Otto Rank e também mencionado por Sigmund Freud, em nota de rodapé, como "uma novela rica em magistrais descrições de estados mentais patológicos" (1919/2006, p. 251).
Guy de Maupassant (1850-1893), em seu conto O horla, publicado na França em 1886, também aborda o eu como duplo sob a forma de um fantasma, que se transforma em um perseguidor temível e terrível:
Não tenho dúvidas nenhuma: estou doente! Sentia-me tão bem no mês passado! (...) Tenho febre, uma febre atroz - ou antes, um enervamento febril que me estrafega a alma e o corpo. Ando constantemente com a sensação tremenda de um perigo que me ameaça, a apreensão de uma desgraça que não vai tardar ou da morte que se aproxima... Este pressentimento é, seguramente, a manifestação de um mal ainda desconhecido que germina no sangue e na carne (...) Ergui-me de salto, com as mãos estendidas e, ao voltar-me, só por um triz não caí ao chão!... O quarto estava iluminado como se fosse dia - e não me vi no espelho! Sim, sim, o espelho estava vazio, profundo, cheio de luz - mas não refletia a minha imagem... A minha imagem não estava lá... e eu...eu estava diante do roupeiro, especado diante do espelho! (...) A destruição prematura? Todo o terror humano vem daí! (1987, p.18, 53, 58)
Esse conto apresenta uma misteriosa narrativa, construída em primeira pessoa por um narrador que é, ao mesmo tempo, a personagem principal. Possui forma de diário, ou seja, um relato pessoal dos fatos que ocorrem em determinado momento da vida da personagem: começa no dia 08 de maio, e termina no dia 10 de setembro, tendo em média 4 meses para o desenrolar da história que tem como espaço predominante, a casa do protagonista. Em alguns momentos, esse espaço se estende para outras cidades na França, já que ele resolve viajar na tentativa de se curar da doença e das alucinações que o perturbam. A personagem imagina que está sendo perseguida por um ser que se alimenta de sua energia enquanto dorme. Essas sensações vão tomando uma proporção maior ao longo da história, já que inicialmente ele acredita estar apenas doente, mas, depois, isso se intensifica ao ponto dele não conseguir mais viver tranquilamente em sua casa. Sente-se observado constantemente pelo Horla, seu duplo. Esse duplo, o Outro, que tanto pavor e estranhamento lhe causa, acaba sendo eliminado no final do conto, quando a personagem põe fogo no seu quarto na tentativa de destruir o Horla. Ele fica observando sua casa em chamas e começa a refletir sobre a possibilidade de não ter conseguido matá-lo, uma vez que esse ser não é de carne e osso. Logo, acha melhor se matar.
O estranho nos assusta e causa horror justamente pelo fato de ser muito familiar, embora recalcado. Segundo Sigmund Freud:
A nossa conclusão podia, então, afirmar-se assim: uma experiência estranha ocorre quando os complexos infantis que haviam sido reprimidos (recalcados) revivem uma vez mais por meio de alguma impressão, ou quando as crenças primitivas que foram superadas parecem outra vez confirmar-se (1919/2006, p. 265-6).
Em Das Unheimliche (O Estranho), Sigmund Freud apresenta uma coletânea de exemplos e experiências pessoais para atestar sua teoria do estranho. Para demonstrar a sensação de estranheza ao se deparar com sua própria imagem, enfatizando o estranho sob a forma de duplo, ele menciona, em nota de rodapé (1919/2006, p. 265), uma situação vivenciada numa viagem de trem: Quando a porta do toalete abre, devido a um solavanco do trem, ao ver sua imagem refletida no espelho da porta, pensa que algum passageiro havia entrado no seu leito por engano. Ao se levantar percebe, espantado, que é ele mesmo, ou seja, o outro é apreendido como a sua própria imagem, o estranho é desconhecido, exterior, mas ao mesmo tempo, familiar, e íntimo. Em mais um relato pessoal, ele diz que ao caminhar pelas ruas desertas de uma cidade provinciana na Itália, se depara com mulheres pintadas nas janelas das pequenas casas, e se apressa para sair daquela rua estreita na próxima esquina. Mas, depois de ter andado sem rumo por algum tempo, sem se questionar sobre o seu caminho, encontra-se subitamente de volta à mesma rua, onde começa a sentir que a sua presença já estava despertando a atenção dos outros. Ele se afasta apressadamente mais uma vez, apenas para chegar, por meio de outro desvio, à mesma rua pela terceira vez, e essa experiência pessoal, de retorno involuntário, lhe causa uma estranha sensação de desamparo. Em seguida, ao encontrar a praça que deixara pouco antes, sente-se aliviado e feliz. Nesse caso, ele é o próprio estranho transitando pelas ruas, representando o Unheimlich no que concerne a "externo", "estrangeiro" (Hanns, 1996, p. 234).
Luiz Alfredo Hanns, em seu Dicionário comentado do alemão de Freud, ressalta que:
Freud aponta para o fato de que a palavra alemã teria certa ambiguidade, oscilando entre o 'familiar' e o 'desconhecido'. Relaciona-se tal ambiguidade com a sensação de inquietude do sujeito pelo retorno do material recalcado [portanto conhecido], o qual volta sob a forma de algo desconhecido e assustador (1996, p. 231).
As voltas (autômaton) dadas por Freud são representações no campo do simbólico. Segundo Jacques Lacan, "o real está para além do autômaton, do retorno, da volta, da insistência dos signos aos quais nos vemos comandados pelo princípio do prazer" (1964/1998, p. 56). Ele diz que o princípio do prazer mantém o limite em relação ao gozo, e este, extravasa, transborda, está além do princípio do prazer.
Luiz Alfredo Garcia-Roza, em Acaso e repetição em psicanálise: uma introdução à teoria das pulsões, afirma que:
Só há 'unheimlich' se houver repetição. O estranho é algo que retorna, algo que se repete, mas que ao mesmo tempo se apresenta como diferente. O 'unheimlich' é uma repetição diferente e não uma repetição do mesmo. Freud refere essa repetição à própria natureza das pulsões, 'uma compulsão poderosa o bastante para precaver sobre o princípio do prazer' (1986, p. 24-5).
Sigmund Freud descreve a compulsão à repetição como um fenômeno clínico, primeiramente, em 1914, no texto Recordar, Repetir e Elaborar (Novas Recomendações sobre a Técnica da Psicanálise II). Posteriormente, em 1919, ele enfatiza esse retorno constante da mesma coisa e nos adverte que:
(...) é possível reconhecer, na mente inconsciente, a predominância de uma 'compulsão à repetição', procedente dos impulsos instintuais (pulsionais) e provavelmente inerente à própria natureza dos instintos (das pulsões) - uma compulsão poderosa o bastante para prevalecer sobre o princípio de prazer, emprestando a determinados aspectos da mente o seu caráter demoníaco, e ainda muito claramente expressa nos impulsos das crianças pequenas; uma compulsão que é responsável, também, por uma parte do rumo tomado pelas análises de pacientes neuróticos. Todas essas considerações preparam-nos para a descoberta de que o que quer que nos lembre esta íntima 'compulsão à repetição' é percebido como estranho (1919/2006, p. 256).
Na própria repetição, há um desperdício do gozo, em que se origina, no discurso freudiano, a função do objeto perdido. A repetição é estranha, produz sempre um fracasso, e se funda em um retorno do gozo, que é sempre insuficiente e gera mal-estar. Por isso Jacques Lacan fala de uma perda de gozo, pois "é apenas nesse efeito de entropia, nesse desperdiçamento, que o gozo se apresenta, adquire um status" (1970/1992, p. 52). O mais-gozar (Mehrlust) é um resto de gozo que realimenta esse processo de gozo perdido.
Em O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Jacques Lacan afirma que a "repetição é algo que, em sua verdadeira natureza, está sempre velado na análise, por causa da identificação da repetição com a transferência na conceitualização dos analistas" (1964/1998, p. 56). Para ele, o que se repete é algo que se produz como por acaso (tiquê), e a função da tiquê, "do real como encontro (...) faltoso, se apresenta primeiro, na história da psicanálise, de uma forma que, só por si, já é suficiente para despertar nossa atenção - a do traumatismo" (1964/1998, p. 57). Ele também enfatiza, que pega emprestada essa palavra tiquê, do vocabulário de Aristóteles.
Passaremos agora para a terceira seção do texto Das Unheimliche (O Estranho), em que Sigmund Freud nos esclarece que a repetição involuntária da mesma coisa, em determinadas circunstâncias produzem o efeito estranho, mas em outras, pode nos levar ao sentimento do cômico. Sendo assim, há outros elementos que vão determinar a criação de sensações estranhas, e que pedem uma investigação estética. É o caso do conto fantástico, A História da Mão Decepada, de Wilhelm Hauff (1802-1827), que tem um efeito estranho, atribuído ao complexo de castração, e a história de Heródoto (484 a.C.-425 a.C.), do tesouro de Rhampsinitus, que apesar de se referir à mão decepada, não apresenta nenhum sinal de estranheza. Para Sigmund Freud, isso ocorre porque nessa história de Heródoto, "os nossos pensamentos estão muito mais concentrados na astúcia superior do chefe dos ladrões, do que nos sentimentos da princesa" (1919/2006, p. 268).
Observamos que acontece o mesmo nos seguintes contos: O anel de Polícrates de Friedrich Schiller (1759-1805), Os Três Desejos de Charles Perrault (1628-1703) e os Contos de Fadas de Hans Christian Andersen (1805-1875), que embora utilizem o ponto de vista animista da onipotência dos pensamentos, não despertam sentimento estranho. Sigmund Freud enfatiza que nos Contos de Fadas, "o mundo da realidade é deixado de lado desde o princípio, e o sistema animista de crenças é francamente adotado" (1919/2006, p. 266). Do mesmo modo, os objetos inanimados das histórias de Hans Christian Andersen, e a ressurreição dos mortos relatada no Novo Testamento, também não nos causam efeito estranho.
Sigmund Freud constata que o estranho é bem mais fácil de ser percebido na ficção do que na vida real:
O estranho, tal como é descrito na literatura, em histórias e criações fictícias, merece na verdade uma exposição em separado. Acima de tudo é um ramo muito mais fértil do que o estranho na vida real, pois contém a totalidade deste último e algo mais além disso, algo que não pode ser encontrado na vida real. O contraste entre o que foi recalcado e o que foi superado não pode ser transposto para o estranho em ficção sem modificações profundas; pois o reino da fantasia depende, para seu efeito, do fato de que o seu conteúdo não se submete ao teste de realidade. O resultado algo parodoxal é que em primeiro lugar, muito daquilo que não é estranho em ficção sê-lo-ia se acontecesse na vida real; e, em segundo lugar, que existem muito mais meios de criar efeitos estranhos na ficção, do que na vida real (Freud, 1919/2006, p. 266).
Posteriormente, ele afirma que na farsa de Johann Nestroy (1801-1862), O Homem Dilacerado (Der Zerrissene): "é utilizado outro meio para evitar qualquer impressão estranha na cena em que o fugitivo, convencido de que é um assassino, levanta um alçapão atrás do outro, e de cada vez vê o que julga ser o fantasma da sua vítima erguendo-se do alçapão" (1919/2006, p. 268). Nesse caso, a ênfase recai sobre o efeito cômico do estranho. E o mesmo ocorre com O Fantasma de Canterville de Oscar Wilde (1864-1900), "perde todo o poder de pelo menos despertar em nós sentimentos repulsivos tão logo o autor começa a divertir-se, fazendo ironias a respeito do fantasma" (1919/2006, p. 269).
Finalmente, ele aponta que o silêncio, a solidão e a escuridão não só provocam medo e angústia nas crianças, mas também nos adultos. Nesse sentido, podemos afirmar que as causas da angústia infantil não desaparecem durante a vida adulta.
Considerações finais
Sigmund Freud finaliza seu artigo Das Unheimliche (O Estranho), em maio de 1919, ao mesmo tempo em que completa seu primeiro rascunho de Além do Princípio de Prazer, publicado em 1920, época em que Viena sofre as consequências da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Por isso, encontramos grande parte da essência de Além do Princípio de Prazer, no texto Das Unheimliche (O Estranho), num parágrafo referente à compulsão à repetição. O esboço e as ideias principais desse texto, embora publicado em 1919, aparecem antes do conceito de pulsão de morte. Como podemos observar em Totem e Tabu, em uma nota de rodapé referente ao Animismo, Magia e a Onipotência de Pensamentos, Sigmund Freud já nos dá indícios sobre o tema: "Parece que atribuímos uma qualidade 'misteriosa' a impressões que procuram confirmar a onipotência dos pensamentos e a modalidade animista do pensar em geral" (1913-1914/2006, p. 97).
Das Unheimliche (O Estranho) é um texto rico em conceitos psicanalíticos, em que Sigmund Freud aborda as conexões do estranho com: o recalcado, a compulsão à repetição, o narcisismo e a angústia, além de demonstrar grande interesse pela literatura fantástica. Ele evidencia a literatura como um recurso primordial para o estudo do estranho e ressalta, em sua obra, a importância da arte, da religião e da ciência como maneiras de tratar o vazio.
Segundo André Breton, o "que há de admirável no fantástico é que não guarda mais nada de fantástico: não é outra coisa que o real" (Breton apud Gagnebin, 2005, p. 161). É justamente porque o real e o fantástico caminham juntos, que Jacques Lacan afirma que a angústia é o único afeto que não engana.
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Recebido em: 05/08/2019
Aprovado em: 13/02/2020