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Trivium - Estudos Interdisciplinares

On-line version ISSN 2176-4891

Trivium vol.14 no.spe Rio de Janeiro Apr. 2022

 

EDITORIAL

 

Em torno da obra Psicologia das massas, análise do Eu de Sigmund Freud

 

 

Betty Bernardo Fuks; Andréa Guerra; Fábio Santos Bispo; Mariana Mollica da Costa Ribeiro

 


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Em 2021, o Programa de Pós-graduação em Psicanálise, Saúde e Sociedade realizou, no XI Encontro do Doutorado, uma homenagem aos cem anos do livro de Sigmund Freud – Psicologia das massas, análise do Eu. Dando continuidade ao evento, a revista Trivium: estudos interdisciplinares, em colaboração com o Coletivo Ocupação Psicanalítica, que reúne psicanalistas e pesquisadores de Minas Gerais (UFMG, através do PSILACS - Núcleo Psicanálise e laço social no contemporâneo), do Espírito Santo (Universidade Federal do Espírito Santo), do Rio de Janeiro (Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ) e da Bahia (Universidade Federal do Recôncavo Baiano) – oferece, neste número, uma série de artigos que atestam a importância teórica e clínica dos trabalhos apresentados no Encontro e a acuidade com que alguns psicanalistas empreendem uma crítica à contemporaneidade e vêm aprofundando estudos interdisciplinares em torno das diversas faces da xenofobia: racismo, homofobia, antifeminismo etc. Passemos, então, à apresentação dos textos dispostos em três seções.

Abrindo a seção "Fundamentos metapsicológicos", Vera Pollo, numa releitura rigorosa do clássico de 1921, recupera seus fundamentos para mostrar como o regente dos grupos é um arranjo pulsional, mobilizado pela função do líder e assentado nos processos de identificação e amor. Seu texto renova, a partir de um aporte lacaniano à teoria, a tese de que a identificação ao objeto insígnia no nível do eu ideal, mesmo reduzido a um detalhe estúpido e irrelevante, é o denominador comum compartilhado enquanto Ideal de Eu. Escavando essa premissa, a autora mostra a diferença entre a lógica das massas e a lógica coletiva, na qual "o que está em jogo não é a identificação com o Outro da insígnia, mas com o Outro do desejo, que é castrado e portador da falta". Em seguida, Ana Maria Rudge, numa rica e densa argumentação teórica, parte da importância assumida pelo líder nas massas, destacando a importância do que Freud chama Pai e que, depois, ganha a configuração de "Outro". Seu artigo discorre sobre a função estruturante do pai em "Totem e Tabu", acompanhando a formulação freudiana de que a massa é a transposição idealista da horda, assentada no pai morto como quem sustenta a lei simbólica, a fim de discutir o modo como o "pai mítico" assassinado sempre ameaça ressuscitar, representado por um totem ou por um líder idealizado". Com Piera Aulagnier, a autora recupera o modo como os caminhos da identificação conseguem driblar os inevitáveis conflitos entre Eros e Tanatos, assim como os conflitos identificatórios entre eu e ideal do eu. Por fim, Gloria Sadala dedica-se à análise dos fenômenos de massa, como as diferentes formas de fanatismo ou as redes sociais, considerando a situação política atual em diversos países. A autora retorna às questões metapsicológicas desenvolvidas no texto de 1921, buscando delimitar o que, eventualmente, teria mudado em sua lógica, dadas as transformações socioculturais ocorridas ao longo de 100 anos. Seu texto atualiza a obra freudiana mostrando sua importância fulcral ainda hoje para leitura dos fenômenos de massa na atualidade.

A seção "Das massas e das minorias" apresenta, de forma bastante contundente e minuciosa, a vocação crítica do texto freudiano aos discursos de dominação e violência exercidos por intermédio das massas. Se encontramos ainda hoje certos usos ambíguos da psicanálise contra movimentos populares de resistência às opressões, logo no primeiro artigo Auterives Maciel Júnior demarca uma radical diferença entre o autoritarismo das massas e outras lógicas de organização coletiva minoritárias. Com as noções de multidão, devir minoritário e, finalmente, multidão de minorias, o autor abre o campo para pensarmos movimentos heterogêneos ligados à diversidade. Na sequência, Betty Fuks resgata o relato trágico da morte de Rosa Graf, irmã de Sigmund Freud, pelos nazistas, para apontar o caráter oracular do texto Psicologia das massas, na medida em que antecipa a lógica de ascensão do nazifascismo; Andréa Guerra aprofunda o enquadramento da crítica freudiana ao resgatar a origem racista dos primeiros estudos sobre as multidões. Adverte-nos para o risco que o esquecimento dessa história e o desconhecimento de toda a racionalidade colonial que a legitimou constituem de perpetuação de uma lógica epistemicida. Sem essa referência, é impossível discernir o peso da subversão freudiana. O artigo seguinte retoma desse ponto, analisando a constituição da massa colonial e acentuando o quanto a ficção da raça forjou um Ideal do Eu vinculado à branquitude, que direciona o ódio contra os povos ameríndios e africanos. Mariana Mollica, Nayara Paulina Rosa e Geisa de Assis ainda apontam que justamente esses povos, massacrados e perseguidos, puderam constituir, a partir dos quilombos, uma lógica coletiva distinta, relacionada com pontuações freudianas acerca dos grupos efêmeros, multidões e, no folclore, invenções éticas subversivas em relação à lógica de grupos que orienta o colonialismo. José Maurício Loures e Cláudia F. Melo encerram essa seção destacando, a partir da liderança feminina em missões de paz da ONU, outra figura de organização política que se desloca da massa centralizada na autoridade do pai, vislumbrando, na atuação de mulheres em lugares de poder, possibilidades de laços sociais menos violentos.

A terceira seção, "As massas na era digital", permite retirar consequências da obra homenageada à apreensão das questões político-sociais que envolvem o neoliberalismo e as tecnologias digitais em rede. O ponto central da manipulação do inconsciente e dos afetos através da massa centra-se, para Freud, na relação dos sujeitos com o líder totalitário, o que ganhará outros contornos na atualidade. Antonio Quinet retoma Freud a partir de Lacan, em diálogo com Foucault e Debord, e mostra que, no posto de comando da "sociedade escópica", se encontra o objeto "Mais-de-olhar". Seu artigo sustenta a ideia de que o Outro anônimo que nos vigia, interfere nos modos subjetivos de consumir e se posicionar politicamente. Tal diagnóstico serve como uma espécie de questão preliminar à leitura do artigo seguinte de Fábio Santos, Melissa Festa e Beatriz O. da Silva. Os autores interrogam como se dá a relação entre saber e verdade que está na base da viralização das fakenews e do estabelecimento dos laços virtuais, capitaneados por uma dimensão cínica da pulverização do lugar do Outro. Merecem especial atenção as reflexões dos autores acerca dos meios pelos quais o bolsonarismo influencia a subjetividade, através das redes virtuais, tanto no que concerne à dimensão social quanto política.

A resenha do livro 100 anos de Psicologia das Massas: atualização e reflexão, escrita por Fidias G. Siqueira e Alessandro Pereira dos Santos, chama atenção para a riqueza dos textos de psicanalistas que souberam extrair seus próprios dizeres da obra de 1921. Encerrando este número, o comentário crítico de Marcelo F. Gomes "Abdias Nascimento e o Museu de Arte Negra em Inhotim: algumas encruzilhadas", é um convite à visitação da retrospectiva da obra de Abadias Nascimento em homenagem aos 10 anos de sua morte, no Instituto Inhotim. Uma exposição que reflete por um lado, a complexidade do racismo no Brasil e, de outro, as resistências do povo negro à violência por meio da insistência de preservar a vida, a cultura e ancestralidade.

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