Services on Demand
article
Indicators
Share
Trivium - Estudos Interdisciplinares
On-line version ISSN 2176-4891
Trivium vol.14 no.spe Rio de Janeiro Apr. 2022
AS MASSAS NA ERA DIGITAL
A sociedade escópica e o estado digital
The scopic society and the digital state
La société scopique et l'état numérique
Psicanalista. Docente do Programa de Pós-graduação stricto sensu em Psicanálise, Saúde e Sociedade (UVA). E-mail: quinet@openlink.com.br
RESUMO
Este artigo aborda a psicologia das massas na era digital a partir do conceito de "sociedade escópica" desenvolvido pelo autor em seu livro Um olhar a mais, que é a conjunção da "sociedade do espetáculo" (Debord) com a "sociedade disciplinar" (Foucault) à luz da pulsão escópica (Freud) e do olhar como objeto a (Lacan). A sociedade escópica se concretiza nas redes sócias, promovendo uma bigbrotherização do mundo onde todos são transparentes e vigiados por um Outro anônimo e também alvos de propagandas comerciais e políticas. No posto de comando encontra-se o lugar topológico do objeto Mais-de-olhar, o qual pode ser ocupado por qualquer um para todos os fins.
Palavras-chave: PSICOLOGIA DAS MASSAS; SOCIEDADE DE ESCÓPICA; SOCIEDADE DISCIPLINAR; SOCIEDADE DE ESPETÁCULO; MAIS-DE OLHAR.
ABSTRACT
This article approaches the psychology of the masses in the digital age from the concept of "scopic society" developed by the author in his book Um gaze a mais, which is the conjunction of the "society of the spectacle" (Debord) with the "disciplinary society" ( Foucault) in the light of the scopic drive (Freud) and the gaze as object a (Lacan). The scopic society materializes in social networks, promoting a bigbrotherization of the world where everyone is transparent and watched by an anonymous Other and also targets of commercial and political advertisements. In the command post is the topological place of the Most-of-the-Look object, which can be occupied by anyone for all purposes.
Key words: MASS PSYCHOLOGY; SOCIETY OF SCOPIC; DISCIPLINARY SOCIETY; SHOW SOCIETY; MORE-THE LOOK.
RÉSUMÉ
Este artículo aborda la psicología de las masas en la era digital a partir del concepto de "sociedad escópica" desarrollado por el autor en su libro Um gaze a mais, que es la conjunción de la "sociedad del espectáculo" (Debord) con la "sociedad sociedad disciplinaria" (Foucault) a la luz de la pulsión escópica (Freud) y la mirada como objeto a (Lacan). La sociedad escópica se materializa en las redes sociales, promoviendo una gran fraternización del mundo donde todos son transparentes y vigilados por un Otro anónimo y también blanco de anuncios comerciales y políticos. En el puesto de mando está el lugar topológico del objeto Además-de-Mirada, que puede ser ocupado por cualquiera a todos los efectos.
Mots clés: PSYCHOLOGIE DE MASSE; SOCIÉTÉ DE SCOPIQUE; SOCIÉTÉ DISCIPLINAIRE; AFFICHER LA SOCIÉTÉ; PLUS-LE LOOK.
Panoptismo digital
Nesta era da conectividade, nossa sociedade transformou-se em uma "sociedade escópica digital" na qual o olhar é prevalente, onde o ver e ser visto se tornou uma prerrogativa, não só pela promoção do imperativo de exibir-se e do espírito selfie que toma possessão dos corpos falantes, como também pela vigilância a que somos permanentemente submetidos por câmeras, GPS, localizadores, robôs etc., promovendo uma "paranoização" de massa. Hoje em dia, na era da internet e dos vazamentos de dados, sabemos que somos espiados para os mais diversos fins, a começar para os fins do mercado. "Eles" sabem quem são nossos amigos, nossas preferências políticas, ideológicas, musicais, cinematográficas, de livros, de roupas, de todos os objetos de consumo e também nossas preferências sexuais.
Em vários países do mundo, o Estado utiliza o dispositivo de "paranoização" para controlar, vigiar e punir os cidadãos e influenciá-los em suas escolhas desde o sabonete ao candidato político. Assim, a sociedade disciplinar telescópica virou, como apontou Michel Foucault desde Vigiar e punir1, um grande panóptico. Este é descrito por Jeremy Benthan (2008) como a forma arquitetônica constituída por uma grande torre num pátio aberto rodeada a poucos metros por uma construção redonda com celas abertas e transparentes, de tal modo que um vigia na torre central possa ver (sem ser visto) tudo o que ocorre nas celas. O panóptico foi a solução em termos da tecnologia do poder para os problemas de controle e vigilância da parte dos penalistas, médicos, educadores e industriais que, a partir dele, construíram prisões, hospitais, escolas e fábricas.
Em seguida, o panoptismo foi tomando toda a sociedade, colocando as câmeras nas ruas, nas casas, nos escritórios etc. Mais tarde, com a revolução digital e o advento da internet, passou-se a visualizar todos os dados, gostos, percursos, preferências sexuais e projetos de cada usuário. A sociedade escópica ganhou como aliado o panoptismo digital e assim é mantido o funcionamento da forma arquitetônica do panóptico: a transparência do usuário e a invisibilidade do vigia.
Sociedade escópica é uma denominação que venho propondo desde 1996 quando defendi minha tese de doutorado em filosofia na Universidade Paris VIII, com a orientação de Alain Badiou, a partir da psicanálise. Foi o produto de minha pesquisa sobre a pulsão escópica, o ver-ser-visto na clínica psicanalítica e na sociedade. A expressão que cunhei desde então – sociedade escópica – é a conjunção da sociedade do espetáculo, descrita por Guy Debord (1997), com a sociedade disciplinar, desenvolvida por Michel Foucault, relidas a partir do olhar como objeto a mais-de-gozar, o objeto mais-de-olhar. Eu não podia supor o quanto essa tese era premonitória do grande processo de bigbrotherização que o mundo viria a sofrer na era digital.
É o olhar, como objeto a, excluído da simbolização primordial (S1-S2), que retorna sobre a civilização, trazendo o imperativo do supereu de um empuxo-a-gozar escópico: um comando de dar-a-ver, de mostrar-se, exibir-se, tornar-se visível. Na sociedade escópica, para existir é preciso ser visto pelo Outro. Desse modo, se instaura a crença que a visão do Outro é sinal de amor. Inaugura-se um novo cógito: sou visto, logo existo.
A expansão do fenômeno religioso e seu correlato fundamentalista é hoje também um fato derivado do desenvolvimento da sociedade escópica com seu cógito do olhar divino: Deus me vê, logo existo. A religião é um sistema de representação que, à semelhança do delírio, constitui um enquadramento do olhar, fazendo-o assim consistir pelo imaginário da crença. Esse sistema encontra em Deus seu "Ser-supremo-em-olhar" em duas versões: do bem e do mal. Do bem, trata-se do Deus da religião; do mal, o Ser-supremo-em-maldade de Sade, descrito em A filosofia na alcova, que se personifica no diabo das religiões cristãs.
Guy Debord diagnosticou nossa sociedade: é uma sociedade do espetáculo, com seu imperativo de mostrar-se em uma sociedade em que tudo é show. O mundo real se transforma em imagens para o gozo do espectador. Orgias de sangue, bacanais de membros despedaçados invadem nosso cotidiano com os "aqui e agora" das atrocidades live. São imagens do espetáculo que trazem o gozo do olhar que acorda o espectador com um horror excitante. A pulsão escópica se satisfaz no imaginário por sua face silenciosa e trágica, imprimindo imagens indeléveis inscritas na pulsão de morte, coladas ao olhar letal do real libidinal. Os youtubers usam esse poder da imagem trash, escatologias que escandalizam para atrair os seguidores.
Por outro lado, todo negócio tem que entrar no mundo do show, do marketing visual que emprega a fascinação das imagens, no Facebook, Instagram, Tik Tok etc, para vender seus produtos. Assim, a serviço do discurso capitalista, o objeto a ser consumido, a mercadoria ganha o brilho do objeto escópico para melhor se travestir de objeto de desejo para o consumidor. There is no business like show-business.
A nível subjetivo, a sociedade escópica, impulsionada pelo discurso do capitalismo, se apropria do narcisismo das pessoas para transformar o exibicionismo pulsional do sujeito em imperativo de publicidade, ordenando-o a fazer de tudo para roubar a cena e ter cada vez mais likes e seguidores nas redes sociais e conquistar um lugar ao sol. A sociedade escópica digital reatualiza a ilusão de que o sol brilha para todos ao acenar com a possibilidade de qualquer um tornar-se uma celebridade virtual.
A nível da psicologia das massas e da manipulação da população na sociedade escópica, o olhar, dejeto da civilização, mais-de-gozar, é elevado ao status de mestre/senhor e utilizado pelos líderes fazendo fundir assim o S1 da lei com olhar vigilante e exigente do Grande Diretor. O olhar representa o supereu do sujeito, a instância de vigilância permanente, que pode ser encarnado no olhar do líder e do hipnotizador.
A lei simbólica como máxima pura (S1) e a lei do supereu como instância de vigilância e crítica (a) são as duas faces do que o sujeito sofre de sua instância moral. Sua conjunção faz do Outro o Um que o vigia, julga e pune. Assim, o Grande Diretor se transforma em um Grande Irmão: Do Big Director ao Big Brother. O exemplo disso é o presidente da República se dirigindo diretamente a seus eleitores pela via digital. Com isso, faz um curto-circuito driblando todas as instâncias de representação democrática para influenciar diretamente seu eleitorado. O objeto presente na lei no lugar do Outro da perseguição se exprime na clínica pelo delírio de observação e na civilização pela estrutura panóptica da sociedade escópica em que o olhar do Outro faz a lei, produzindo a paranoização generalizada.
Essa estrutura do olhar como objeto a está presente na arquitetura do panóptico de Bentham. Na verdade, o vigilante nem precisa estar lá, basta uma veneziana ou um vidro escuro para fazer existir o olhar. O panóptico dissocia o par ver-ser-visto e faz do sujeito não um ser que vê, mas um ser visto que está o tempo todo sob o foco do olhar do Outro, engaiolado na pirâmide visual do Outro. Exatamente o que ocorre com nossos dados digitais que estão sob o olhar do Outro anônimo. Com esse artifício, o panoptismo digital torna o olhar ao mesmo tempo totalizador (e totalitário) e particularizado para cada um. O olhar é para todos, universal, e para cada um, singular. Essa estrutura é utilizada para as piores manipulações – que vão do consumismo desenfreado à perseguição política, passando pela manipulação dos eleitores de toda e qualquer votação.
Assim, o mais-de-gozar na sociedade escópica é um mais-de-olhar, com seu gozo excessivo que provoca tanto satisfação – com a performance do gozo exibicionista e o brilho de objetos e imagens para o gozo voyeurista – quanto desprazer com a angústia, o medo e o terror de ser vigiado e transparente para o Outro onividente.
O mais-de-olhar, com sua topologia de extimidade própria do objeto a, ao mesmo tempo externo e íntimo, traz à sociedade sua estrutura möebiana embaralhando as esferas do que é do sujeito e do outro, do privado e do público. A psicanálise desvela que é a estrutura subjetiva da relação do sujeito com o objeto olhar que sustenta o efeito do panóptico nos sujeitos vigiados e não o contrário, como entende Foucault. Para ele, cada um, sentindo-o pesar sobre si o olhar, "terminará por interiorizá-lo ao ponto de observar-se a si mesmo; cada um assim exercerá essa vigilância sobre e contra ele mesmo" (Foucault, 2004, p. 218). Esta estrutura panóptica concretizada pela sociedade escópica é desvelada na psicose paranoica no delírio de observação2. Ela é a base da razão paranoica hiper ampliada na era digital.
Se Bentham formulou a técnica do olho do poder, foi Freud quem teorizou a instância de vigilância e crítica – o supereu – que existe dentro do sujeito e Lacan quem nomeou o objeto pulsional aí em gozo. É o mais-de-olhar, como função do supereu, que permite a existência e a efetivação concreta do panóptico.
A transparência é o grande inimigo da política, como diz Rancière, a qual é "ameaçada de morte quando se faz menção de submetê-la ao reino midiático da visibilidade e da publicidade integrais" (Rancière, 2000). Podemos dizer que o mesmo se aplica para a justiça. Segundo o criminalista italiano Antonio Cristiani (Universidade de Pisa), "o segredo é uma garantia para a Justiça e para o cidadão" (Cristiani, 2000) – garantia estabelecida inclusive pelo código processual penal italiano (artigo 329). O que temos visto no Brasil é o império do olhar e sua obscena utilização com a espetacularização dos atos do Judiciário assim como a manipulação da opinião pública através de condenações feitas não pelas instâncias legais democráticas e sim pela mídia.
Atualmente, a evolução tecnológica prescinde efetivamente do cimento armado para fazer existir o panoptismo, ao instituir a arma do virtual em suas formas de tele vigilância, algemas eletrônicas, escuta ambiental. Todo o sistema eletrônico e digital que atualmente utilizamos é usado para vigiar, influenciar, fazer comprar, fazer votar determinando gostos e desgostos e eleger e depor políticos. É a colocação em ob-cena do olhar da sociedade escópica digital promovendo o Estado paranoico.
O estado paranoico
Temos hoje a Internet-Deus que tudo vê, tudo ouve e tudo sabe. Desde junho de 2013 sabemos do sistema de espionagem em massa dos Estados Unidos revelado por Edward Snowden. Todos somos monitorados 24 horas por dia. Ao frequentar a internet, o Google, as redes sociais (Facebook, Twitter, Instagram etc), Whatsapp, enviar e receber e-mails e usar os localizadores de rota, como Waze e Google Maps, todos os seus dados pessoais, os nomes de seus parentes, de seus amigos, seus gostos sexuais, de roupa, de consumo em geral, sua preferência política, o uso de seu tempo, tudo está devidamente cadastrado para todos os fins possíveis: políticos, religiosos e de consumo e marketing.
Essa questão merece ser debatida e interessa ao psicanalista, pois faz parte das subjetividades de sua época. Conforme disse Snowden em entrevista para a televisão brasileira em junho de 2014 (TV Globo, programa Fantástico), "esse debate não é só sobre a privacidade, mas sobre a essência da liberdade. Se vigiarmos cada homem desde que nasce até a hora em que morre, podemos dizer que eles são livres?" Ele acrescenta algo que coloca em cena a relação de subserviência do ego para com a tirania do superego, relação essa utilizada pela sociedade escópica da era digital: "É perigoso, pois mudamos nosso comportamento quando sabemos que estamos sendo vigiados".
Essa tática usada no panoptismo da sociedade disciplinar (Foucault) é hoje já utilizada na China para determinar o comportamento dos "cidadãos de bem". Em 2017, foi revelado pelo The New York Times que a N.S.A. (National Security Agency dos EUA) está coletando imagens de nada mais nada menos do que TODOS para constituir um banco de dados das imagens dos rostos para reconhecimento imediato por robôs.
"É como se os EUA estivessem contratando detetives particulares para seguir todo o mundo", comentou Snowden no programa citado. O pretexto alegado para essa coleta de dados – combater o terrorismo – é desmentido por Snowden em entrevista de agosto de 2018: "A manipulação das eleições de outros países, especialmente os países vizinhos, está dentre os trabalhos realizados pela agência de inteligência. Os grupos terroristas não são vistos como uma grande ameaça (para os EUA). Esses programas de monitoramento não são de segurança pública, eles são hackers."
É a sociedade escópica em sua função de espionagem. Do alto do panóptico, que nem se sabe onde está, há Um espião que não se sabe quem é, invisível, e todos somos espiados. Esta sociedade escópica digital terá na China em breve as funções não só de controle e vigilância, mas também de punição e premiação dos 1,4 bilhão de cidadãos chineses. Como? Implantando um sistema de monitoramento, ou melhor, "ranking social", em que todos serão avaliados (como no Uber) pelo governo em função de seus comportamentos, compras, hábitos e ideias.
As fontes desse monitoramento são os dados recolhidos do comportamento digital pela internet: redes sociais, dados pessoais, sexuais, bancários, acessos de sites, vídeos, youtubers, jornais, rotas diárias a pé, de carro ou transportes públicos e viagens detectadas pelos aplicativos de mapeamento.
Na China, os dados são também recolhidos pelas 600 milhões de câmeras com inteligência artificial espalhadas em todo o país. Um Argus de quase um bilhão de olhos. A divindade da mitologia grega é hoje uma realidade. Sua vida é um reality show permanente. A avaliação e a posição em que cada um se encontra no ranking social (estabelecido segundo os critérios do governo) serão públicos e cada um poderá saber qual é a avaliação de seu parente, de seu vizinho, de seu amigo e de seu inimigo.
Assim como em um episódio da série Black Mirror, todos os cidadãos saberão tudo de todos. Cria-se um consenso artificial totalizante e em cada sujeito o desejo de receber sempre uma melhor avaliação desse supereu personificado no sistema, que é ao mesmo tempo invisível e anônimo, mas transforma cada cidadão em um ser vigiado e um vigilante de seu semelhante. Pois antes mesmo de conhecer uma pessoa você terá a avaliação dela na internet, ao alcance de todos.
Quem sabe no futuro poderá também dar uma "curtida" (um like) em cada um de seus semelhantes. "A pontuação final do ranking poderá influenciar diferentes aspectos como seleção para uma vaga de trabalho, inscrição em uma determinada escola ou permissão para assinar um empréstimo no banco"3. Haverá também premiações para aqueles que têm "hábitos corretos", como comprar apenas produtos de origem chinesa.
Estamos na era do ideal da transparência total sem direito algum de privacidade – era do sonho totalitário do controle de tudo e de todos. Assim, o governo tomará o lugar mítico de Deus onividente e onipresente que enxerga cada um no âmago de sua vida privada. O panoptismo entrará em todos os corações e mentes. O espião está de olho o tempo todo – eis a mola do Estado paranoico.
Os tempos atuais não são 1968. O terror dos anos de chumbo não é o mesmo. A paranoia de Estado não é a mesma. A perseguição não é a mesma. O linchamento, as fake news e a política de cancelamento, que promovem a destruição simbólica do sujeito, tomaram o lugar das prisões ideológicas e políticas. O ódio se instalou nos lares, nos bares e nos mares de todas as praias. A técnica eleitoral (importada pelo Goebbels de Trump, Steve Bannon) de terrorismo virtual baseado da razão paranoica, sem ética nem pudor, fez o improvável acontecer: a platitude de ideias escassas divulgadas e repetidas à exaustão, a avalanche de fake news, a falta de dialetização e a instalação de uma razão ao mesmo tempo messiânica e paranoica fez um candidato improvável e medíocre ganhar uma eleição. Esse candidato da extrema-direita virou o Grande Youtuber, como o Grande Irmão do romance 1984, de George Orwell, que entra no âmago dos lares através dos celulares, comunicando-se diretamente com seus seguidores sem ninguém sair de casa.
O que se anunciou na "campanha presidencial" virou forma de governo em nosso nada admirável mundo novo. Assim inaugurou-se o abominável e inédito linchamento virtual e as políticas de cancelamento. A primeira lista de malditos do regime saiu logo depois das eleições repleta de artistas e até de psicanalistas a serem boicotados. Não vai ser necessária uma custosa censura de Estado, pois temos a censura cidadã e um exército virtual e anônimo de pessoas, robôs e pessoas robotizadas destruindo a reputação de alguém e incitando sua destruição física.
Os "homens de bem" e os tenentes de Deus se tornaram os novos defensores da moral, dos bons costumes e do policiamento. O novo presidente youtuber se dirige diretamente a cada cidadão, um a um. Está presente a cada um em sua intimidade pelos celulares desde um "bom-dia" até um "boa-noite". Ocupou assim o lugar topológico de das Ding, a exterioridade íntima, a ex-timidade.
O celular é a cela e o lar na era atual. Seu uso na política faz com que seja a nova cela do sujeito e o novo lar do presidente. Nessa nova cela virtual, cada um está cada vez mais preso quanto mais exerce sua suposta liberdade. O estrategista da campanha do presidenciável que foi eleito, Arick Wierson, desvelou, antes mesmo da apuração dos votos, a intenção de distribuir celulares de graça para a população. O projeto, segundo ele, batizado de Linha Digital, "é parte da estratégia de comunicação de um eventual governo". Trata-se, em suma, de criminalizar os sem teto e os sem terra e favorecer os sem celular. Dito e feito: o empuxo-à-celularização generalizada está em marcha.
Nesse Estado paranoico, o que era retórica de campanha se mostra forma de governo. Quem dizia: "isso não passa de retórica", parece desconhecer o próprio poder do comando do significante e que toda fala, dependendo do lugar em que é enunciada, se transforma em imperativo. Hipnose de massa. Essa arma do Estado paranoico permite desde a eleição de presidentes da República, como o dos EUA e do Brasil, até a relação direta do líder não com a massa, mas com cada um individualmente em sua própria intimidade, fazendo um curto-circuito nas instituições democráticas para falar "diretamente com o povo". É uma nova forma de fascismo mantendo a fachada de democracia.
No estado paranoico, a voz que sonoriza o olhar4 se torna presente como êxtimo incarnado pelo líder. Essa é a política do mais-de-gozar utilizando a tecnologia de ponta da internet na sociedade escópica. Império do mais-de-olhar. É necessário a desmontagem desse Estado de calamidade que vivemos e que põe em risco o que há de humano em nós.
Psicologia das massas na era digital
Na era do panoptismo digital da sociedade escópica, não se precisa mais propriamente de um líder que encarne algum ideal a partir da qual seja constituído um grupo ou uma massa de pessoas. Talvez nem seja preciso um significante mestre com o qual todos se identificam para constituir a Unidade, como descrito por Freud em seu texto Psicologia das massas e análise do eu.
No esquema freudiano da psicologia das massas, as linhas mostram como cada sujeito introjeta o "objeto externo", que é o líder, e o coloca no lugar de seu ideal do Eu. Eis porque cada indivíduo dirige seu amor a ele confundindo-o com a instância paterna internalizada, remanescente do narcisismo e do complexo de Édipo. É a instância psíquica do representante simbólico do amor parental que alimenta o narcisismo. Com isso, cada um internaliza o líder que passa a fazer parte de seu psiquismo como uma instância ideal que dita para o sujeito como deve agir para poder ser admirado e amado.
Esse processo ocorre com várias pessoas as quais se identificam entre elas a partir da identificação imaginária de seus Eus constituindo assim um grupo.
O ideal do Eu é uma instância que funciona como um lugar, ocupado por algumas pessoas, de onde o sujeito se vê como digno de amor. Ao situar o líder nesse lugar, o sujeito não só o ama como a um pai, como também espera seu amor. Às vezes, só o fato de amar o líder é suficiente para se sentir amado por ele, devido à estrutura de reciprocidade intrínseca do amor (amar e ser amado). Assim, o líder chamado por Freud em seu esquema de "objeto externo", vem ocupar o lugar de ideal do Eu como a encarnação do significante-mestre (S1). O ideal do Eu é na verdade um ideal do Outro [I(A)], pois é tecido de significantes que indicam como o sujeito deve ser e agir para ser amado (bonito/a, inteligente etc), atributos que lhe foram ditados pelos personagens de sua vida que ocuparam o lugar do Outro para o sujeito. É, portanto, uma instância psíquica, que como um lugar pode alojar alguém a quem o sujeito enderece suas demandas, seja o líder, o hipnotizador, um médico, um parceiro amoroso – o "objeto externo", segundo Freud.
Como Lacan nos indica em O seminário, livro 11, há uma confusão entre o significante ideal e o objeto a. É nisso que reside o poder hipnótico do líder. Assim, o objeto a está em jogo na constituição da massa e sua obediência cega e automática, pois está sob o ideal do Eu, lugar que o líder ocupa para cada um desse grupo. Trata-se, no caso, do objeto escópico, o olhar, como objeto pulsional, representante do supereu com seu poder de vigilância e severidade. Nessa fusão de ideal do Eu com o mais-de-olhar, o líder é onividente, como o Big Brother, que é a ficcionalização do Outro do olhar.
A armadilha panóptica digital torna a todos softidiots – os idiotas do software. Estamos presos a uma grande rede mundial virtual e digital de manipulação de dados, informação e espionagem que entrou na política de forma decisiva na votação do Brexit, no Reino Unido (promovendo sua retirada da Comunidade Europeia), assim como a eleição de Trump e de Bolsonaro. A enxurrada de fake news, de ataques aos opositores, de calúnias, slogans, memes, encontrando alvos certos e personalizados de propaganda são modalidades da tática panóptica que atinge seus alvos para promover o ignoródio.
Com Freud, tivemos a teoria da psicologia das massas, com Lacan a teoria dos discursos no campo do gozo para dar conta cada um em sua época ao mal-estar na civilização. Hoje estamos diante de uma nova ordem mundial e temos que ver em que a psicanálise pode nos ajudar para analisarmos e combatermos esse ataque cibernético inumano.
Por um lado, um ataque sem tréguas do ultra neoliberalismo do discurso capitalista, promovendo o concentracionismo e a mentalidade rentista e individualista que induz a um onanismo consumista que não tem barreiras nem fim produzindo a falência, a inadimplência, as dívidas, a pobreza e o suicídio. Pois, como já vimos em vários capítulos deste livro, o discurso capitalista não tem nenhuma impossibilidade interna. Ele não tem barreiras – sua roda gira permanentemente. Por outro lado, a indústria da (des)informação digital, o ataque à linguagem com suas leis e a dialética, o bombardeamento de memes para não se pensar e de produtos que são impostos como necessários, em suma, a lavagem cerebral para nos transformar a todos em softidiots.
Fala-se hoje em "era da pós-verdade", em que memes e slogans são mais importantes do que fatos reais da era da infocalipse – apocalipse informática. Nossas impressões digitais não estão mais nos dedos e sim nos dados digitais. Todos os frequentadores da internet têm suas impressões digitais mapeadas através das curtidas das redes sociais, dos dados pessoais, do gosto pessoal – se você pesquisa o preço de uma calça, ela passa a andar atrás de você –, gosto sexual, posição política, crença religiosa. Você é espionado 24 horas por dia e a internet te conhece mais do que as pessoas mais próximas. Com todos esses dados, será que a internet tem um Inconsciente? Os algoritmos e sua combinação são o equivalente ao funcionamento do Inconsciente em sua combinatória significante, como Lacan o comparou com a cibernética desde a década de 1950. Na era da robotização e da inteligência artificial, procura-se substituir até mesmo o seu Inconsciente pela realidade virtual.
A psicometria digital, que é estudada em uma disciplina extraída da formação militar, se chama Op-psi – operação psicológica, tem até o grau de neurose como critério para saber que tipo de mensagem enviar para você. Programas de psicometria digital foram usados pela Cambridge Analytica, empresa que promoveu a campanha digital de Trump, cujo diretor era o Steve Banon, que participou da campanha de Bolsonaro.
O cruzamento de dados de cada um é estudado por robôs a partir de cinco critérios chamados OCEAN: openness (abertura), conscientiousness (conscientização), extraversion (extroversão), agreeableness (amabilidade), neuroticism (neurose) aplicados a cada eleitor, formando grupos variados combinando os outros fatores pessoais já citados. Com isso, eles sabem exatamente que tipo de mensagem enviar a quem para conquistar o voto. É o chamado behavior microtargeting5. Somos todos mapeados e alvos personalizados prontinhos para votarmos no boi e irmos todos para o matadouro.
Na era do panoptismo digital, todo o dispositivo é um mecanismo para fazer existir o olhar como instância superegoica na extimidade do sujeito, ou seja, em sua exterioridade íntima. O mundo externo penetra na sua intimidade e, para isso, nem precisa levar seu celular para a cama ou para o banheiro. Esse artifício utiliza a topologia própria da relação do sujeito com o objeto a que está em exclusão interna em relação a ele (no furo interno da banda de Möebius).
Isso se torna ainda mais evidente quando o líder vem se dirigir através de vídeo para o cidadão que está na sua cama acordando e ligando seu celular – é mais eficiente do que o Grande Irmão falando na televisão na casa do espectador do romance de George Orwel. Na nova psicologia das massas, é o objeto a, como mais-de-gozar, que se presentifica um a um, não sendo mais necessário nem mesmo um pensamento, uma reflexão, um sistema de valores ou uma filosofia para constituir o grupo. Isso não quer dizer que esses não sejam utilizados para impor um pensamento único. Mas a estrutura da massa prescinde da identificação ao líder que tem por base o ideal do Eu, pois o líder vem no lugar da causa de desejo, como olhar e voz, e como supereu.
A mola fundamental da operação analítica é manter a distância entre o ideal e o objeto a, para poder esvaziar de gozo esse lugar do ideal do Eu e fazer cair o objeto a, para que o sujeito o localize como causa de seu desejo, ou seja, como uma formação sua e não do Outro. A psicanálise nos mostra que esse olhar estruturalmente não tem substância, é um furo; o Outro é cego e seu lugar um deserto de gozo. Para "contrariar o desejo do tirano" (Lacan, 1998, p. 796), que Lacan eleva à condição de máxima da psicanálise, é preciso saber que o Outro não é Um e que, também para ele, o olhar é um objeto perdido e, sem o objeto, o Outro não existe. Barrar o olhar do Outro é torná-lo inconsistente.
Uma psicanálise não suprime inteiramente o olhar correlatado ao dar-a-ver do sujeito, mesmo quando ele encontra a inconsistência do Outro. Mas o sujeito, depois de uma análise, percebe seu caráter de semblante de ser, o que o esvazia de sua virulência mortífera. Eis um ensinamento que o psicanalista pode levar do divã para a pólis.
Referencias
Bentham, J. (2002). Panoptique. Mémoire, édité par Laval, Paris: Mille et une nuits, (Originalmente publicado em 1791 [ Links ]
Cristiani, A. (2020) Entrevista ao Jornal do Brasil, 04/11/2000. [ Links ]
Debord, G. (1996) La societé du spectade. Paris: Folio. [ Links ]
Foucault, M. (2014) Vigiar e punir. São Paulo: Vozes. [ Links ]
Huchon, T. (2018) Driblando a Democracia: Como Trump Venceu. Paris. DVD (52 min). [ Links ]
Lacan, J. (1989) O seminário, livro 11: os quatro conceitos da psicanálise, 1964. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. [ Links ]
Lacan, J. (1998) Kant com Sade. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. (Originalmente publicado em 1963) [ Links ]
Rancière, J. (2020) O silogismo da corrupção. Folha de São Paulo, 22/10/2000. [ Links ]
1 Apresento este desenvolvimento em meu livro Um olhar a mais (Quinet, 2002).
2 Capítulo "Delírio de observação" do livro Um olhar a mais (Quinet, 2002).
3 Redação Galileu, 19 set 2018. Disponível em https://revistagalileu.globo.com/Tecnologia/noticia/2018/09/china-afirma-que-utilizara-sistema-de-ranking-social-partir-de-2020.html
4 A definição de Lacan: "a paranoia é a voz que sonoriza o olhar que aí é prevalente" (Lacan, 1974-1975, inédito).
5 Documentário de Thomas Huchon, 2DF/Arte, 2018.