SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.14 special issueAn analysis of the current Brazilian context based on Freud's 'Group Psychology and the analysis of the ego' author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

article

Indicators

Share


Trivium - Estudos Interdisciplinares

On-line version ISSN 2176-4891

Trivium vol.14 no.spe Rio de Janeiro Apr. 2022

 

ARTE

 

Abdias nascimento e o museu de arte negra em Inhotim: algumas encruzilhadas

 

Abdias nascimento and the black art museum in Inhotim: some crossroads

 

Abdias nascimento y el museo de arte negro de Inhotim: algunas encrucijadas

 

 

Marcelo Fonseca Gomes de Souza

Docente do curso de Psicologia da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Membro do Ocupação Psicanalítica. E-mail: marcelofgsouza@ufrb.edu.br

 

 

Exu tu que és o senhor dos caminhos da libertação do teu povo sabes daqueles que empunharam teus ferros em brasa contra a injustiça e a opressão Zumbi Luiza Mahin Luiz Gama Cosme Isidoro João Cândido sabes que em cada coração de negro há um quilombo pulsando em cada barraco outro palmares crepita os fogos de Xangô iluminando nossa luta atual e passada
(Padê de Exu Libertador – Abdias Nascimento)

 

No dia quatro de dezembro de 2021, dia de Iansã, foi inaugurada, na Galeria Mata, no belíssimo Inhotim, em Brumadinho, o primeiro ato da exposição 'Abdias Nascimento e o Museu de Arte Negra'. A exposição, que deverá permanecer no local até o final de 2023, homenageia os 10 anos da morte desse grande intelectual e artista brasileiro. Ela será composta por quatro atos e sua curadoria foi construída numa parceria inédita entre o Instituto Inhotim e o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-brasileiros – IPEAFRO.

 

 

É impossível chegar à exposição e desfrutar de sua representatividade e sua beleza sem, antes, considerar o lugar onde ela está instalada e o necessário caminho a ser percorrido para alcançá-la. E isso não por uma razão qualquer. A trajetória presenteia-nos com uma longa série de encruzilhadas, refletindo a complexidade da história brasileira, marcada, de um lado, pelas diferentes facetas das violências engendradas pelo racismo - a violência colonial, a escravização e o genocídio do povo negro -; mas, por outro lado, também marcada por múltiplas formas de resistência, duramente tecidas ao longo do tempo, representando a luta contínua e incansável pela preservação da vida, da cultura e da ancestralidade. (Nascimento, 2016).

A primeira dessas encruzilhadas a ser atravessada cuidadosamente antes de alcançar o destino final é o próprio caminho até o museu, testemunho vivo da história do nosso país. Ninguém alcança os jardins cuidadosamente projetados de Inhotim - uma verdadeira coleção de palmeiras e orquídeas multicores -; ou chega às monumentais galerias que abrigam obras de célebres artistas contemporâneos do Brasil e do mundo, sem antes vislumbrar o cenário que margeia esse oásis de beleza e cultura. Inhotim é cercado por companhias de mineração e pelo cenário árido das serras nuas que a ganância extrativista produziu. Inhotim guarda, na memória viva de suas(seus) trabalhadoras(es), muitas(os) delas(es) moradoras(es) de Brumadinho, a dor pulsante das vidas tragadas pela lama da barragem de rejeitos da Vale. O museu e o seu entorno são como a frente e o verso da vida civilizada moderna: a relação palpitante entre a criação sublime e a destruição impiedosa da vida gerada pelo avanço irrefreável do capital.

A segunda dessas encruzilhadas relaciona-se com as ciladas do tempo. Foi no dia de Iansã, a senhora dos ventos, dos raios e das tempestades, que a exposição foi aberta. Iansã é deusa guerreira. É inconformada, arrebatada, corajosa, atrevida e, com seus mistérios, domina os quatro elementos que comandam a natureza (Passos, 2004). Iansã é deusa que corporifica a transgressão do gozo feminino, sua insubmissão inconteste à frágil norma fálica. Como toda encruzilhada, entretanto, apresenta mais de um caminho, os dias que se seguiram ao dia da deusa não foram fáceis. Se há uma tempestade que desarranja e subverte, rompendo os limites estreitos da norma, há outra, contudo, que mostra a triste repetição das coisas tais como sempre foram. As chuvas que assolaram Minas Gerais, especialmente aquelas que caíram sobre Brumadinho, provocaram alagamentos, deslizamentos, desabrigamentos e mortes. Todo mundo sabe como a extorsão da riqueza dessas Minas têm sistematicamente deixado pelo caminho a herança lúgubre da violência e da destruição. Todo mundo sabe que os corpos que majoritariamente habitam os tristes cantões das cidades, os morros íngremes, as beiras dos córregos poluídos, e que estão mais facilmente expostos aos cataclismas naturais, cujas consequências são intensificadas pela atividade exploratória do meio ambiente e pelas desigualdades abissais que as acompanham, tem a cor da pele preta (González, 2020). Mais que isso: é de conhecimento geral que neste país, e mais especialmente neste estado, não obstante as mutações das formas de exploração capitalista, a dominação e a opressão colonial atravessaram nossa história, perpetuando o racismo como um crime verdadeiramente perfeito (Munanga, 2017).

Destaco uma terceira e última encruzilhada relacionada à dinâmica do espaço ocupado pela obra artística de Abdias Nascimento em um lugar como Inhotim. Os objetos de arte contemporânea – e é assim que a arte de Abdias pode ser classificada -, antes de representarem uma promessa de conciliação fácil entre o artista e o público, tendem, ao contrário, a colocar em questão justamente sua própria inadequação a uma ordem simbólica homogênea. Nesse sentindo, esses objetos seriam uma espécie de real em ato, isto é, uma expressão da falta ou do excesso que tende a colapsar as imagens reconciliadoras do mundo e, consequentemente, revelar a precariedade das nossas formas homogêneas de enlaçamento social. Entretanto, vale a advertência: em um mundo que tende a colonizar perpetuamente nossas experiências insurgentes, nada garante que o efeito de ruptura esperado seja alcançado. Afinal, os museus de grande prestígio - Inhotim é um deles - ainda são espaços coloniais onde circulam predominantemente aqueles que trazem no corpo as marcas de seus privilégios de raça e de classe e que ainda não se deixaram tocar verdadeiramente por aquilo que deveria perturbá-los e descentrá-los.

 

 

Abdias Nascimento, "O Vale de Exu", 1969. Coleção Museu de Arte Negra – Ipeafro.

Na exposição 'Abdias Nascimento e o Museu de Arte Negra' muitos caminhos se cruzam. Não sem razão foi com um pequeno trecho de Padê de Exu Libertador, do próprio Abdias, que esse textinho foi aberto. Caso possamos pedir alguma coisa, que seja para que Exu nos guie nas encruzilhadas, de tal sorte que a obra viva de Abdias nos alcance naquilo que seu exemplo nos legou:

- Contra a colonialidade destrutiva das formas históricas de exploração do capitalismo, que sempre andaram de mãos dadas com certa expressão hegemônica da moralidade judaico-cristã, a defesa da potência múltipla das cosmogonias africanas, frequentemente assentadas numa relação de respeito, mistério e encantamento contínuo com a natureza.

- Contra a pobreza da norma destrutiva do poder europeu, masculino, branco e heteronormativo, a abertura para outros modos de sociabilidade e de gozo que se insurjam e implodam esse indigente regime fálico e racista;

- Contra a tentativa contínua de domesticação e docilização das insurgências, a defesa da arte como expressão capaz de colapsar as imagens reconciliadoras do mundo possibilitando a atravessamento dos imensos abismos da herança colonial.

Asè!!

 


Clique para ampliar

 

Referências

Gonzalez, Lélia (2020). Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rios, Flávia & Lima, Márcia (orgs.) Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Munanga, Kabengele (2017). As ambiguidades do racismo à brasileira. Em: Kon, Noemi Moritz; Silva, Maria Lúcia & Abud, Cristiane Curi (orgs.) O racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise. São Paulo: Perspectiva.         [ Links ]

Nascimento, Abdias (2016). O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Perspectiva.         [ Links ]

Passos, Marlon Marcos Vieira (2008). Oiá-Bethânia: os mitos de um orixá nos ritos de uma estrela. Dissertação (Pragrama multidisciplinar de pós-graduação em estudos étnicos e africanos). Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA.         [ Links ]

Creative Commons License All the contents of this journal, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution License