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Revista Psicologia e Saúde
On-line version ISSN 2177-093X
Rev. Psicol. Saúde vol.5 no.2 Campo Grande Dec. 2013
A saúde mental na atenção básica: a percepção dos profissionais de saúde
The mental health in primary care: perceptions of health professionals
La salud mental en atención primaria: percepciones de profesionales de la salud
Tânia Regina Aosani1; Karla Gomes Nunes2
Núcleo de Apoio a Saúde da Família (NASF). Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE)
Universidade de Santa Cruz do Sul
RESUMO
Estudo realizado em uma Unidade Básica de Saúde, localizada no Oeste de Santa Catarina com o objetivo de analisar a percepção dos profissionais de saúde sobre o atendimento em saúde mental, assim como as estratégias por eles desenvolvidas para lidar com as demandas desse campo no seu cotidiano de trabalho. Tendo a Análise do Discurso como perspectiva teórico-metodológica, optou-se como procedimento para o levantamento dos dados pela pesquisa documental e entrevistas semiestruturadas. Como resultado alcançado pode-se observar duas formas de perceber a saúde mental pelos participantes do estudo, uma que está presente em suas formas de atuação profissional enquanto trabalho desenvolvido na UBS, e outra, que se apresenta como uma nova percepção de saúde mental e de atendimento nesse campo de trabalho e que vem se constituindo através da experiência profissional dos mesmos.
Palavras-chave: Atenção básica de saúde; Reforma psiquiátrica; Profissionais de saúde; Saúde mental.
ABSTRACT
Study in a Basic Health Unit, located in western Santa Catarina in order to analyze the perception of health professionals about mental health care, as well as the strategies they developed to cope with the demands of the field in their daily work. Having Discourse Analysis as a theoretical-methodological approach, was chosen as a procedure for the collection of data by documentary research and semi-structured interviews. As a result achieved can be seen two ways of perceiving mental health by study participants, one that is present in forms of professional work while at UBS, and another, which presents itself as a new perception of mental health and assistance in this field of work and has constituted through the same experience.
Key-words: Primary health care; Psychiatric reform; Health professionals; Mental health.
RESUMEM
Estudiar en una Unidad Básica de Salud, ubicado en el oeste de Santa Catarina con el fin de analizar la percepción de los profesionales de la salud sobre el cuidado de la salud mental, así como las estrategias que han desarrollado para hacer frente a las demandas del campo en su diario trabajar. Tener análisis del discurso como un enfoque teórico-metodológico, fue elegido como un procedimiento para la recogida de datos por la investigación documental y entrevistas semiestructuradas. Como resultado logrado se puede ver de dos formas de la salud mental, la percepción de los participantes del estudio, uno que está presente en las formas de trabajo profesional y al UBS, y otro, que se presenta como una nueva percepción de la salud mental y asistencia en este campo de trabajo y se ha constituido a través de la misma experiencia.
Palabras-clave: Atención primaria de salud; Reforma psiquiátrica; Profesionales de la salud; Salud mental.
A Rede de Atendimento em Saúde Mental
Este estudo surgiu da necessidade em se obter maior conhecimento a respeito da realidade do atendimento a pessoa em sofrimento psíquico nos serviços substitutivos aos hospitais psiquiátricos, em um município com menos de 20.000 habitantes. Nesse contexto, a Atenção Básica de Saúde desempenha um importante papel no processo da reforma psiquiátrica brasileira. Segundo Mello (2007), nos municípios pequenos é por meio da Atenção Básica de Saúde que se estrutura a rede de atendimento a saúde mental, uma vez que segundo critérios populacionais os municípios com menos de 20.000 habitantes não dispõem de serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico, tais como: os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), leitos em hospitais gerais e Ambulatórios. Nesses municípios, a Atenção Básica de Saúde deve ser responsável por organizar e desenvolver o atendimento a esta demanda obedecendo ao modelo de cuidados de base territorial, com o objetivo de acolher e estabelecer vínculos terapêuticos.
A Unidade Básica de Saúde na qual foi desenvolvida esta pesquisa está localizada em um município, com população, segundo IBGE (2010), de 6.378 habitantes e se localiza na região do Extremo Oeste de Santa Catarina, a 745 quilômetros da capital Florianópolis.
Este município apresenta como estrutura de atendimento à saúde da população um Hospital Geral com 20 leitos para internação pelo Sistema Único de Saúde (SUS), e convênios e uma Unidade Básica de Saúde (UBS). A UBS foi escolhida como campo de pesquisa por ser o serviço que oferece o atendimento de nível básico a população e o atendimento em saúde mental através de acompanhamento médico e farmacêutico individual e, ainda, por meio da distribuição de medicamentos. Compõem a UBS duas Equipes de Estratégia de Saúde da Família (ESF), as quais são responsáveis pelo atendimento básico de saúde de toda a população. As equipes são formadas por profissionais da área da enfermagem, médico clínico geral, odontólogo, técnicos de enfermagem e entre 12 a 16 agentes comunitários de saúde.
Para o desenvolvimento dos objetivos propostos, a pesquisa foi realizada por meio de um estudo qualitativo organizado em duas etapas: 1) Pesquisa documental, nesta fase se realizou um levantamento de dados históricos da Unidade Básica de Saúde por meio de consulta aos registros, documentos e atas referentes à instituição pesquisada; 2) Entrevistas semiestruturadas, as mesmas foram utilizadas para obter informações junto aos trabalhadores de saúde da Unidade Básica.
O desenvolvimento desse estudo possibilitou a identificação dos desafios e das potencialidades da equipe de saúde no atendimento em saúde mental realizado na Atenção Básica de Saúde, a qual, nesse estudo, apresenta uma realidade de poucos recursos, sejam eles financeiros, humanos ou estruturais. A pesquisa possibilitou ainda compreender como esse atendimento é realizado no seu cotidiano e como é percebido pelos profissionais que o desenvolvem.
O Contexto das Reformas: A Reforma Psiquiátrica e Sanitária no Brasil e os Novos Serviços
O início do processo de Reforma Psiquiátrica no Brasil é contemporâneo da eclosão do movimento sanitário, nos anos 70, em favor da mudança dos modelos de atenção e gestão nas práticas de saúde, defesa da saúde coletiva, equidade na oferta dos serviços, e protagonismo dos trabalhadores e usuários dos serviços de saúde nos processos de gestão e produção de tecnologias de cuidado. É um processo político e social complexo que pode ser compreendido como um conjunto de transformações de práticas, saberes, valores culturais e sociais sendo que é no cotidiano das instituições, dos serviços e das relações interpessoais que o processo da Reforma Psiquiátrica avança, marcado por impasses, conflitos e desafios (Mello; Mello & Kohn, 2007).
A partir do ano de 1960 começa a se articular no Brasil o movimento social pelos direitos dos pacientes psiquiátricos, com a emergência do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), movimento sanitário, associações de familiares, sindicalistas, membros de associações de profissionais e pessoas com longo histórico de internações psiquiátricas. É, sobretudo, o Movimento de Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), através de variados campos de luta, que passa a protagonizar e a construir estratégias de denúncia que se opõem à violência dos manicômios e à discriminação ao portador de sofrimento psíquico. Opondo-se ainda à hegemonia de uma rede privada de assistência. Junto a isso, construiu-se coletivamente uma crítica ao chamado saber psiquiátrico e ao modelo hospitalocêntrico na assistência às pessoas com transtornos mentais (Amarante, 1995).
A Reforma Sanitária brasileira buscava assegurar a saúde como um direito de todos, já que somente os trabalhadores assalariados tinham acesso aos serviços e tratamentos em saúde. Em 1986 com a realização da VIII Conferência Nacional da Saúde (CNS), que contou com a participação de técnicos do setor saúde, gestores e da sociedade organizada, foi proposto um modelo de proteção social com a garantia do direito à saúde integral. Eram as bases que alicerçaram o Sistema Único de Saúde (SUS). Em seu relatório final, a saúde passa a ser definida como o resultado não apenas das condições de alimentação, habitação, educação, trabalho, lazer e acesso aos serviços de saúde, mas, sobretudo, da forma de organização da produção na sociedade e das desigualdades nela existentes (Escorel, 2008).
A partir disso, e com a Constituição Federal de 1988, a reforma sanitária passa a apresentar proposições concretas. A primeira delas é propor a saúde como direito de todos: sem as restrições que exigiam a vinculação formal ao trabalho com a consequente contribuição à Previdência Social. Não se poderia excluir ou discriminar qualquer cidadão brasileiro do acesso à assistência pública de saúde. A segunda proposição defendia que assistência à saúde deveria garantir o acesso da população às ações de cunho preventivo e/ou curativo, bem como estar integradas em um único sistema. A terceira preconizava a descentralização da gestão, administrativa e financeira, de forma que se estivesse mais próximo da quarta proposição: o controle social das ações de saúde (Escorel, 2008).
No campo da assistência psiquiátrica, essas modificações também produzem seus efeitos. Na década de 1990, o Ministério da Saúde (MS) passou a propor uma política de Saúde Mental a partir das experiências municipais inovadoras, associadas às reflexões e às propostas operadas pelo movimento da reforma psiquiátrica, possibilitando aos gestores, profissionais, usuários e à sociedade civil o conhecimento e o acesso a um novo projeto de atenção em Saúde Mental (Brasil, 2005).
O redirecionamento da assistência em saúde mental se consolida com a aprovação da Lei Federal 10.216 de 2001, a qual dispõe sobre a proteção e o direito das pessoas com transtornos mentais, privilegia o oferecimento de tratamento em serviços de base comunitária e dá novo impulso e ritmo para o processo de Reforma Psiquiátrica no Brasil. É no contexto da promulgação dessa lei e da realização da III Conferência Nacional de Saúde Mental, ainda em 2001, que a política de saúde mental do governo federal, alinhada com as diretrizes da Reforma Psiquiátrica, passa a consolidar-se, ganhando maior sustentação e visibilidade (Brasil, 2005).
A reforma psiquiátrica, atualmente, é discutida como parte das políticas de saúde, no âmbito das três esferas de governo, tomando como desafio a desinstitucionalização e não se restringe à substituição do hospital psiquiátrico por um aparato de cuidados externos. Ela exige que, de fato, ocorra um deslocamento das práticas psiquiátricas para práticas de cuidado realizadas na comunidade, compreendendo a cidade como o lugar da inserção e a possibilidade de ocupação, produção e compartilhamento do território a partir de uma cidadania ativa e efetiva. (Gonçalves & Sena, 2001).
A rede substitutiva ao hospital é caracterizada com base na corresponsabilização pelo cuidado, composta por vários dispositivos que são elaborações a respeito de novas estratégias para trabalhar em Saúde Mental. Estes dispositivos são: acolhimento, apoio matricial às equipes da atenção básica, e equipe de referência. O acolhimento como postura e prática nas ações em saúde, favorece a construção de uma relação de confiança e compromisso dos usuários com as equipes e os serviços. Acolher é dar a "acolhida", aceitar, dar ouvidos aos usuários do serviço (Brasil, 2006).
O Apoio matricial constitui um arranjo organizacional em que uma equipe de referência deve ser responsável pelo acompanhamento matricial de seis até nove equipes de saúde da família (ESF) ou de atenção básica em geral. Assim como a equipe de referência que tem por objetivo produzir e estimular padrões de relação que perpassem todos trabalhadores e usuários, favorecendo a troca de informações e a ampliação do compromisso dos profissionais com a produção de saúde. A equipe de referência trabalha de maneira multidisciplinar sendo responsável pela saúde de certo número de usuários inscritos, segundo sua capacidade de atendimento e gravidade dos casos. São essas estratégias de assistência que possibilitam a atenção psicossocial às pessoas em sofrimento psíquico, isto é, são também essas ações de saúde mental, as quais se orientam pelas demandas dos sujeitos, do território e dos municípios, de maneira articulada na Atenção Básica, Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Serviços Residenciais terapêuticos (SRT), leitos em hospitais gerais, ambulatórios e Programa de Volta para Casa (Mello, Mello & Kohn, 2007).
A responsabilização compartilhada dos casos de saúde mental entre esses diversos setores rompe com a lógica do encaminhamento, pois visa aumentar a capacidade resolutiva de problemas de saúde pela equipe local. Tal compartilhamento se produz em forma de corresponsabilização pelos casos, que podem efetivar-se por meio de discussões conjuntas de casos, intervenções conjuntas junto às famílias e comunidade ou em atendimentos conjuntos pela equipe, e também na forma de supervisão e capacitação profissional (Mello, Mello & Kohn, 2007).
A Saúde Mental na Atenção Básica de Saúde
A atenção básica, através da Estratégia de Saúde da Família (ESF), configura um campo de práticas e de produção de novos modos de cuidado em saúde mental, na medida em que tem como proposta a produção de cuidados dentro dos princípios da integralidade, da interdisciplinaridade, da intersetorialidade e da territorialidade. Atualmente, a articulação entre a Política de saúde mental e atenção básica é um desafio a ser enfrentado. Isso porque, depende da efetivação dessa articulação a melhoria da assistência prestada e a ampliação do acesso da população aos serviços, com garantia de continuidade de atenção.
Nos últimos anos, o desenvolvimento da Estratégia Saúde da Família marca um progresso da política do SUS. Atendendo ao compromisso da integralidade da atenção à saúde, a Estratégia de Saúde da Família (ESF), criada na década de 1990, vem investindo na promoção da saúde da população e na prevenção de doenças, investimento este de suma importância para a saúde coletiva. O campo de intervenção de cada equipe de atenção básica é sempre composto pelas pessoas, famílias e suas relações com a comunidade e com o meio ambiente. Nessas relações a questão de saúde mental também se apresenta, trazendo para a equipe de saúde da família um novo contexto de atuação antes restrito a família, ao tratamento médico e a internação psiquiátrica.
Já está em tempo de ser considerado que associado a toda e qualquer doença existe um componente de sofrimento subjetivo, às vezes atuando como entrave à adesão a práticas preventivas ou de vida mais saudáveis. Pode-se dizer que todo problema de saúde é também - e sempre - mental, e que toda saúde mental é também - e sempre - produção de saúde (Brasil, 2003).
Perante o exposto, existe a necessidade de refletir sobre as questões de saúde mental na dinâmica das equipes de saúde, o que pode ocorrer por meio da discussão de casos, da organização coletiva de atendimento humanizado a essa demanda e do, trabalho em equipe. Para tanto, a capacitação contínua do profissional é necessária, pois ele é de suma importância para as práticas de saúde, especialmente quando se leva em conta que a chegada de usuários com sofrimento psíquico nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) é bastante frequente. Grande parte das pessoas com transtornos mentais leves ou graves está sendo atendida pelas equipes de atenção básica, principalmente nos pequenos municípios (grande maioria dos municípios brasileiros), onde não é possível a implantação de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) (Coimbra et. al., 2007).
Contudo, nem sempre o serviço de atenção básica apresenta condições para oferecer suporte a essa demanda de atendimento. Às vezes, a falta de recursos, de pessoal e a falta de capacitação prejudicam o desenvolvimento de uma ação integral pela(s) equipe(s). Desta forma, demarca-se aqui a necessidade dos serviços serem conhecidos, assim como suas dificuldades e potencialidades de atendimento em saúde mental, a fim de se desenvolver uma prática de cuidado ao portador de sofrimento psíquico que possa ser efetiva.
Metodologia de Pesquisa e Discussão dos Materiais
O estudo aqui desenvolvido foi do tipo qualitativo. Como estratégias de coleta de dados foram utilizadas: pesquisa documental e entrevistas semiestruturadas. Estas últimas, gravadas em áudio, após a aceitação dos sujeitos em participar da pesquisa e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
A pesquisa documental foi realizada por meio de uma investigação aos registros, documentos e atas referentes à instituição pesquisada. A busca desses dados se deu na própria instituição, na biblioteca municipal, prefeitura e através de conversas e relatos de funcionários antigos da UBS e da secretaria de saúde.
Os sujeitos participantes da pesquisa foram todos os profissionais da equipe de saúde da Unidade Básica, atuantes no período da pesquisa e que trabalhavam diretamente no atendimento a população, sendo eles: um Enfermeiro, um Fisioterapeuta, um Médico clínico geral e dois Técnicos de enfermagem. O processo de pesquisa das informações foi orientado pela busca de descrição e interpretação dos dados baseada na Análise do Discurso, de perspectiva francesa, cujo expoente é Michel Pêcheux. A análise do discurso pode ser definida como o conjunto de elementos que cerca a produção de um discurso: o contexto histórico-social, os interlocutores, o lugar de onde falam e do assunto de que estão tratando. Todos esses aspectos devem ser levados em conta quando se procura entender o sentido de um discurso. O discurso é o espaço em que saber e poder se unem, se articulam, pois quem fala, fala de algum lugar, a partir de um direito que lhe é reconhecido socialmente (Orlandi, 2003).
A realização das entrevistas orientou-se por um roteiro de questões que visava favorecer a fala dos trabalhadores sobre modo como percebem a saúde mental, problema de saúde mental, como é percebida a questão do cuidado em saúde mental na UBS, como cada um se percebe realizando esse atendimento e quais as potencialidades e dificuldades sentidas pelos profissionais. A partir disso, foi possível perceber quais eram as recorrências nas falas e, assim agrupá-las em torno de categorias.
Resultado e Discussão
Através da análise dos dados coletados por meio da pesquisa documental foi possível observar que a forma de atendimento aos usuários de saúde mental se estabeleceu através do encaminhamento dos casos para internação psiquiátrica em hospitais credenciados da região. Os casos mais graves, ao retornarem, recebiam como atendimento prestado pela equipe da ESF aplicação e o controle das medicações. Para os demais casos, procedia-se à entrega de medicação, avaliação médica e acompanhamento psicológico. Isso tudo quando existiam os profissionais contratados. Tais informações indicam certo desencontro entre as ações registradas como o trabalho realizado na UBS ao que propõe o Ministério da Saúde como formas de atenção à saúde mental na Atenção Básica. Conforme o Ministério da Saúde, os municípios com menos de 20.000 habitantes devem possuir equipe composta por um médico generalista com capacitação em saúde mental e um técnico de saúde mental de nível superior que desenvolva o apoio matricial. Desse modo, ao contrário das ações de saúde mental na Atenção Básica se restringirem à dispensação de medicamentos, elas devem obedecer ao modelo de redes de cuidado de base territorial, o que produz a atuação transversal com outras políticas específicas, objetivando-se sempre o estabelecimento de vínculos e o acolhimento (BRASIL, 2003).
Já na realização das entrevistas, os dados que emergiram foram organizados em três categorias de estudo designadas como: a percepção dos profissionais da UBS sobre saúde mental; O cuidado em saúde mental na Atenção Básica de Saúde e, as dificuldades e potencialidades no atendimento em saúde mental na UBS.
A Percepção dos Profissionais da Unidade Básica Sobre Saúde Mental
A temática da saúde mental é enunciada pelos profissionais como um conjunto de fatores caracterizando-se tanto pelos transtornos mentais, os distúrbios psicológicos e psiquiátricos, percebidos na prática de trabalho como: o surto, a tentativa de suicídio, a depressão, o alcoolismo, a esquizofrenia, os quadros agudos de estresse, estresse pós-traumático, quadros de agressividade, somatização. Acrescenta-se a percepção de usuários como aqueles que se apresentam toda a semana na Unidade buscando atendimento médico ou medicação, sendo esta apresentação denominada de comportamentos poliqueixosos. Tais percepções são enunciadas pelos trabalhadores por meio das seguintes falas: "Saúde mental é um desequilíbrio mental, psiquiátrico de uma pessoa" (A1). "Saúde mental engloba todos os transtornos mentais" (A3). Em outro momento, um dos entrevistados complementa: (...) uma pessoa não tando bem da cabeça não ta bem do corpo, não tando bem do corpo não ta bem da cabeça então assim, é um conjunto né (A1).
Por um lado, a saúde mental é relacionada aos aspectos orgânicos, cuja intervenção poderia se dar, apenas, pela intervenção bioquímica. Por outro lado, na última passagem, o profissional sinaliza a necessidade de se avaliar cada caso individualmente, indicando que há diferenças de "pessoa para pessoa". Desse modo, demarca-se aqui certa perspectiva de saúde mental que percebe muitas vezes as dores sentidas no corpo e as queixas inicias de um usuário como relacionadas a uma dimensão do sofrimento psíquico, a qual não diz respeito apenas ao indivíduo, mas ao contexto social e familiar nos quais estão incluídos os sujeitos que demandam atendimento.
Uma abertura para complexidade que envolve a percepção do sofrimento psíquico. Delineia-se no relato de outro profissional um registro que se diferencia das práticas tradicionalmente atribuídas à psiquiatria, as quais se baseavam no esbatimento dos sintomas, produzido pela prevalência dos fármacos como principal forma de intervenção. Para esse participante do estudo, os casos de saúde mental representam, no transcorrer de seu dia a dia de trabalho, uma demanda por um atendimento mais especializado, uma ajuda realmente efetiva. Para ele, quando a pessoa quando está na fase do adoecimento mental é porque a sua necessidade já passou de ser básica.
A concepção de saúde mental é diferente da compreensão do que é problema de saúde mental. Segundo o relato dos profissionais, se constitui um problema de saúde mental quando o usuário chega para atendimento com um quadro grave, como um surto ou tentativa de suicídio. Nestes casos, o profissional se depara com a realidade de atendimento oferecida pela UBS, em questão, e pelo Hospital Geral existente no município. Observa-se que no discurso dos entrevistados, o problema de saúde mental remete para uma problematização sobre a formação das equipes, muitas vezes, incompletas, e ainda para a falta de capacitação na área de saúde mental. Acrescenta-se a discussão sobre a ausência de um profissional especialista, como um psicólogo ou psiquiatra, para dar suporte aos trabalhadores e para reverter a ausência de matriciamento. Diante da abertura de um espaço para a reflexão sobre o que existe, mas também sobre o que falta, os profissionais deparam-se com a pergunta: para onde e para quem encaminhar? Conforme um dos entrevistados:
(...) Eu acho que temos um problema quando não sabemos o que fazer com uma pessoa que ta precisando de ajuda, que ta precisando de assistência e não tem pra onde encaminhar não tem pra onde ir, não tem quem atenda (A3).
Por meio das entrevistas, reiterou-se um dado da pesquisa documental, isto é, foi possível entender que o atendimento aos casos mais graves de saúde mental, realizado na UBS pesquisada, é percebido como pouco singularizado, quase que orientado por um roteiro prévio: realização de uma consulta médica, seguida pela internação no hospital geral do município, com o objetivo de iniciar o uso de medicação. Durante a internação, aguarda-se a consulta com o médico psiquiatra, para a posterior internação em clínicas de reabilitação (antigos hospitais) existentes na região. Tais internações ocorrem por um período de até 30 dias, depois desse tempo os pacientes retornam ao município. Os demais casos considerados de menor gravidade recebem atendimento médico na UBS, com acompanhamento do uso de medicação. Nos momentos em que há o psicólogo na equipe, este também realiza atendimentos na UBS.
O estabelecimento de vínculo com o usuário, uma das premissas importantes do movimento pela Reforma Psiquiátrica, é outra dificuldade salientada pelos profissionais entrevistados. Os mesmos situam este aspecto entre os problemas de saúde mental. Nesse sentido, os trabalhadores indicam que a relação de ajuda, pautada pela confiança, perpassa não só pela disposição dos profissionais em acolher, mas também depende dos recursos de trabalho que os mesmos dispõem. Segundo os entrevistados, a existência de recursos (entre eles, os recursos humanos) tem impacto sobre a relação de confiança dos usuários com a equipe e com a oferta de cuidados que ela faz. Uma das entrevistas é significativa a esse respeito:
(...) Um problema também é fazer com que ele aceite a se tratar, aceite a conversar, aceite a se abrir mais com agente pra gente poder ajudar, então isso eu acho assim, que é um problema porque agente só vai poder ajudar a pessoa a dar o primeiro passo se ele confiar na gente (A1).
Visibiliza-se certo descompasso entre os aspectos considerados necessários para o estabelecimento de uma relação de ajuda e o modo como os trabalhadores percebem o atendimento que realizam aos casos caracterizados como de saúde mental na UBS. Em sua maioria, os entrevistados mencionam que os casos são atendidos. No entanto, a maneira como se dá o atendimento não lhes parece suficiente. Assim, parte das denúncias feitas em relação aos hospitais psiquiátricos, parece também ecoar no discurso dos trabalhadores da UBS, quando eles enunciam a redução da oferta de cuidados em saúde mental a um único aspecto: o medicamento. Conforme um dos entrevistados: "o atendimento é realizado parcialmente, porque é só entrega de remédio" (A3). A respeito dos casos de saúde mental, outro trabalhador diz: "são atendidos, mas na UBS eles tratam o atendimento em saúde mental como entrega de medicamento" (A4). Nas palavras de outro participante:
Saúde mental aqui é controlada, tem a consulta com o médico e o uso de remédio, eu acho assim que ai entra a prevenção. A prevenção que começa lá no agente de saúde, na família (...) (A2).
Tal forma de atendimento em saúde mental, por meio do fornecimento de medicação e consulta médica, é reiterada como insuficiente quando se trata da assistência que deve ser oferecida fora dos muros dos hospitais psiquiátricos. Frente ao descompasso entre o que prevê os textos que regulamentam as políticas públicas de saúde mental e as condições de trabalho disponíveis em uma UBS, os profissionais demonstram as estratégias que utilizam para oferecer uma forma de cuidado em saúde mental. São significativos os relatos a esse respeito: "Eu procuro conversar, escuto e encaminho quando necessário à consulta (A2)". "Procuro diferenciar o atendimento no sentido de esclarecer melhor sobre sua medicação, orientações e atenção também" (A2). "Gosto de conversar com essas pessoas, eu aprendo com isso, eu gosto de ouvir eles e gosto também de transmitir algo pra motiva eles" (A1).
Mesmo que as dificuldades apareçam em um primeiro plano, observa-se que os trabalhadores se vinculam a uma perspectiva de cuidado em saúde mental que aposta na potência dos serviços comunitários. Mesmo que enfatizem a falta de capacitação, eles dão indícios de uma construção cotidiana que dá espaço para busca por relações de cuidado pautadas pelo vínculo, escuta e acolhimento. Eles percebem que o modo como orientam suas ações não é um modo de trabalho hegemônico, mesmo no dia a dia de trabalho na Unidade Básica, instituição de saúde que ainda sustenta formas de cuidado centradas na resolução imediata do "problema", por meio da consulta médica e prescrição de medicação. Uma descontinuidade em relação a um modelo orientado pela massificação das práticas se delineia, quando, na sua maioria os profissionais relatam que atuam de maneira a desenvolver uma escuta ao paciente, que procuram "orientar, conversar e dar atenção à pessoa". E isso parece remeter à tensão do trabalho vivo, daquele que se faz em ato no cotidiano das práticas de saúde. Por isso, não se pode falar em contradição, mas de tensionamento quando as falas apontam dois registros: um que denuncia uma prática institucional de atendimento em saúde mental orientada por um modelo que medicaliza a doença mental e cuida conforme um modelo prévio. E outro que indica a construção, a partir da experiência da prática profissional, delineando as estratégias com as quais cada um age frente a essa demanda.
O Cuidado em Saúde Mental
Esta categoria foi desenvolvida a partir das questões que abordavam o cuidado em saúde mental na UBS e o modo como os profissionais se sentem em relação a este atendimento. As respostas não se dissociam do tensionamento apontado anteriormente. Assim, quanto ao cuidado no atendimento em saúde mental a maioria relata que não há cuidado. Mesmo quando se tem, ele não é efetivo. Tais afirmações aparecem nas seguintes passagens: "não se consegue fazer, a equipe tenta, mas não é efetivo porque ele não tem continuidade" (A3). "Eu acho que falta cuidado com eles, respeito, porque tem pessoas que não levam em consideração o estado de cada um (...)" (A2). "está sendo cuidado, mas de forma tardia, falta cuidado com eles. É feito quando o paciente surta, mas depois é abandonado" (A1).
Aqui, agente não está conseguindo ter essa relação de cuidado, é só por meio de medicamento que agente consegue acompanhar. É a dificuldade na quantidade de profissionais, infra-estrutura, quer carro para fazer visita não tem, agente não consegue fazer nem as visitas domiciliares (...) (A5).
Percebe-se aqui uma preocupação do profissional na questão do cuidado em saúde mental e da dificuldade que enfrentam para desenvolver o trabalho frente a uma realidade institucional de poucos recursos. Essa inferência decorre dos relatos dos profissionais sobre o modo como se sentem ao realizarem o atendimento em saúde mental:
Um pouco frustrada porque às vezes agente tem que deixar a pessoa ir embora sem resolver né, resolver o problema, sem poder atender da forma mais adequada. [Silencio] e também insegura no sentido de que o que aquela pessoa vai fazer quando sair daqui se agente não deu toda aquele atendimento holístico né, do todo, o que ela vai fazer quando sair daqui, insegura nesse sentido. E, para continuar, eu tive que fechar os olhos, pra eu não sofrer demais, pra conseguir trabalhar sem sofrer tanto, porque as coisas não se resolvem. E eu sofro com o que não se resolve A3).
Outro entrevistado complementa:
O máximo que eu consigo fazer eu faço, mas eu sinto que ainda é pouco né, e se fosse fazer toda a saúde mental precisaria de muito mais (...) (A5).
Quando os profissionais se referem ao cuidado em saúde mental e ao modo como se percebem atuando, parece existir certa insatisfação perante o trabalho desenvolvido na UBS. Os profissionais enunciam o que consideram necessário para que o portador de sofrimento mental seja cuidado. Mais que isso, para que os trabalhadores também o sejam. As referências à atuação da equipe, à falta de resolutividade dos casos, parece remeter ao desejo de um trabalho mais conjunto, no qual se compartilhe o comprometimento com os casos de saúde mental.
Os trabalhadores apontam as faltas, mas de distanciam de um comportamento poliqueixoso, na medida em que apontam possibilidades para que seja realizado o atendimento em saúde mental nos serviços básicos de modo efetivo. Desse modo, conforme os participantes do estudo, para que a atenção básica de saúde se responsabilize pelo cuidado dos pacientes em sofrimento psíquico, atendendo ao que preconiza a reforma psiquiátrica e a lei 10.2016/ 2001, são necessários os seguintes recursos: espaço e forma de trabalho que possibilitem a continuidade do acompanhamento (de forma longitudinal); existência de uma equipe completa e capacitada, com acesso às ferramentas de trabalho e infraestrutura; suporte da gestão e espaços de organização e planejamento coletivo das ações em saúde, incluindo a prevenção.
Diante de tais colocações, coloca-se a pergunta: é possível a atenção básica dar conta da demanda que lhe é imputada com o movimento pela reforma psiquiátrica? Os trabalhadores apontam que sim, mas que existem recursos que precisam ser garantidos. Dessa forma, os trabalhadores pontuam que há um percurso a ser feito, de negociações, conquistas e aprendizagens, para que a Unidade de Saúde responsável pela Atenção Primária alcance seu objetivo maior: oferecer o atendimento básico a população, ser a porta de entrada e desenvolver a prevenção e promoção de saúde. Assim, podem-se construir outras práticas de atenção que não se restrinjam aos casos de saúde mental que já chegam para atendimento, em sua maioria, graves. Abrindo-se espaço para as ações de prevenção, as quais estiveram ausentes nos relatos dos trabalhadores quando os mesmos faziam referência ao seu cotidiano de trabalho.
Reforça-se aqui o aspecto produtivo do conflito existente entre a percepção da realidade institucional de atendimento a demanda em saúde e saúde mental e a forma compreendida pelos profissionais de saúde de como deve ser esse atendimento. Existe a percepção da necessidade de um atendimento humanizado, voltado para a realidade do usuário, por meio de uma relação de ajuda, sustentada pelo vinculo terapêutico.
Este cuidado ao ser enunciado como não passível de realização no contexto atual da Unidade Básica de Saúde, dá indícios do que está por ser feito e construído entre gestores, trabalhadores e usuários. Os trabalhadores indicam a existência de um sistema de funcionamento ainda inadequado para o atendimento em saúde e saúde mental, ao mesmo tempo indicam formas de modifica-lo.
As relações de poder, no sentido de formas de condução das condutas (Foucault, 1979-1980/2010), também perpassam as falas dos participantes do estudo, como se percebe na seguinte fala:
(...) porque aqui agente fica muito isolado e aqui digamos capacidade de se melhorar tem né a maioria tinha vontade de fazer né, só que assim profissionais tem potencialidade pra isso o problema é a administração né, que toda essa potencialidade é que o pessoal quer fazer, mas é barrado, daí até o profissional perde a vontade, perde o ânimo (A5).
Outorga-se à forma como se dá a gestão local parte das dificuldades encontradas pelos trabalhadores. Não se pode negar que os trabalhadores enfatizam que a falta de uma atuação em equipe, do comprometimento da gestão e da valorização profissional pode estar influenciado na qualidade do serviço. De modo correlato, o comprometimento da qualidade, o comprometimento do vinculo e o estabelecimento de uma relação de confiança entre pacientes e trabalhadores pode estar associado à alta na rotatividade dos profissionais. Conforme os documentos pesquisados, a equipe apresenta grande rotatividade, com permanência na UBS, em média, entre seis meses a um ano. Como parte dos resultados desta pesquisa, observou-se que a equipe de saúde está incompleta há 02 (dois) anos. Além disso, dos profissionais entrevistados, dois deles foram embora antes que completassem seis meses de trabalho, com a justificativa que atuariam em outras áreas de saúde.
Deve ser correlacionada com os dados do estudo, a presença de sofrimento nas falas dos profissionais, com a manifestação de sentimentos de frustração e desesperança. No geral, os trabalhadores consideram o sistema de trabalho existente na UBS desorganizado, distante de seu objetivo, sem papéis definidos, sem necessidades avaliadas. Cabe então perguntar, como uma unidade de saúde pode dar conta de sua demanda com essa realidade?
Dificuldades e Potencialidades no Atendimento em Saúde Mental na UBS
Pelos discursos apresentados referentes às dificuldades e potencialidades do trabalho em saúde mental, os mesmos demonstraram-se complementares. No sentido em que a dificuldade que se encontra nesse atendimento se constitui também como potencialidade dele.
As dificuldades percebidas são referentes à atuação em equipe, discussão de casos, organização dos atendimentos, realização da prevenção e estabelecimento do vinculo terapêutico. As potencialidades dizem respeito à realização de tudo isso, considerando que o papel da Atenção Básica é justamente de prevenção, promoção e recuperação da saúde.
Nesse sentido, a partir dos relatos dos profissionais se percebe uma mudança de percepção em relação ao fazer em saúde mental na Unidade Básica. O atendimento a essa demanda torna-se limitado quando compreendido como uma questão isolada do contexto social e tratável apenas pelo uso da medicação e pela hegemonia do saber médico. Há a formação de uma nova percepção que se constitui através da prática profissional e apresenta a importância e necessidade da atuação em equipe interdisciplinar, das novas formas de cuidado como o apoio matricial, da importância de se conhecer a realidade social do usuário o que vem a colaborar com os objetivos da Estratégia Saúde da Família (ESF) com a busca pela resolutividade, do acompanhamento e do vínculo terapêutico.
O modelo tradicional, ancorado na descrição e quantificação de sintomas, se traduz em uma prática institucional que desconsidera as potencialidades humanas e estigmatiza por meio de diagnósticos que definem, muitas vezes, uma condição de saúde como irreversível e apenas controlável por medicamentos. Quando estas estratégias se mostram insuficientes se ampliam as tensões entre o modelo tradicional e o contexto da reforma psiquiátrica, tensões que repercutem nas experiências de vida e trabalho dos profissionais de saúde da atenção básica. Esta tensão acaba por ser enunciada sob a forma de fatores estressantes que "barram os profissionais" e que obstaculizam seu desempenho profissional, obrigando-os a fazer, muitas vezes, concessões que os desmotivam e os angustiam.
Os profissionais percebem o cuidado em saúde mental quando existe a prática da escuta, da orientação, da atenção ao usuário. Porém, mesmo que tais ações perpassem seus cotidianos de trabalho, essa prática parece não estar perceptível a eles. É como se a utopia do que desejam realizar estivesse sempre distante de dia a dia, ao mesmo tempo em que ela é desenvolvida. Esses descompassos dão mostras da relevância de estudos que se voltem para o que se faz nos pequenos municípios, os quais se vêm alijados de recursos, mas também de subsídios teóricos e técnicos, ao mesmo tempo em que estão construindo uma nova (e invisibilizada) história de assistência em saúde mental no Brasil. Construir espaços de fala e de escuta entre trabalhadores, gestores e usuários, pode resultar na construção de processos de reconhecimento profissional e na produção de si de diferentes modos, pois os trabalhadores ao não se perceberem como protagonistas da reversão de um modelo assistencial dão mostras do quanto podem estar distantes do seu fazer em saúde, dos seus objetivos profissionais, assim como da instituição e das pessoas com as quais trabalham.
A desorganização do serviço de saúde, a falta de profissionais, a necessidade de qualificação e incentivo profissional se concretiza como grandes dificuldades no cotidiano de trabalho dessa equipe de Atenção Básica, embora isso nem sempre seja perceptível dessa forma aos profissionais, os quais destacam, por vezes, como uma "falha" pessoal o trabalho não realizado. A realidade institucional acopla-se à experiência de si.
Considerações Finais
A partir da realização desta pesquisa, foi possível perceber que os profissionais de saúde atuantes na Unidade Básica de Saúde pesquisada referem-se à saúde mental de duas maneiras: uma diz respeito ao trabalho desenvolvido na UBS e que traz consigo uma realidade social e cultural de atendimento a demanda de saúde mental voltada ao saber médico e ao uso de medicação como tratamento. A outra se apresenta como uma nova concepção de saúde mental e de atendimento nesse campo de trabalho, constituindo através da experiência profissional. O atendimento em Saúde mental até então desenvolvido é relatado como uma prática insuficiente, pois desconsidera a real necessidade do usuário. Ela é entendida como uma questão de saúde que merece atenção especial no sentido da responsabilização pelo cuidado, da formação da equipe, da rede de atendimento, da aproximação de suas práticas ao território, ao contexto familiar, social e da importância do vínculo terapêutico.
Como a literatura se apresenta nem sempre os profissionais e equipes de saúde presentes nos serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico estão preparados para atender as demandas de saúde mental existentes, uma vez que a maior parte da literatura sobre esse tema é voltada para a realidade dos grandes centros urbanos. Assim, serviços como a Atenção Básica, localizada nos pequenos municípios, recebem as demandas do Ministério da Saúde, da população em geral, do atendimento à saúde mental e dos próprios trabalhadores e gestores, sem que tenha tempo e respaldo para elaborar formas de trabalho que sejam coerentes com os serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico. Por vezes, tal sobrecarga pode resultar novamente no desenvolvimento de práticas que reduzam o tratamento de um transtorno mental à internação psiquiátrica. Assim, novamente o velho modelo de atendimento mantém-se presente, mesmo que em novos espaços de atuação. Da análise dos documentos junto ao conjunto de entrevistas emerge mais uma indagação: será que estamos preparados para assumir um novo modelo?
O trabalho em Saúde Coletiva, mas especificamente na Unidade Básica de Saúde (UBS) apresenta-se, frente ao contexto da reforma psiquiátrica e ao atendimento à demanda em saúde mental em nível comunitário, por meio das equipes de saúde e Estratégia de Saúde da Família (ESF), como um desafio para os profissionais que fazem parte deste contexto. Por vezes lhe causando sofrimento por perceberem uma necessidade de mudança em suas atuações profissionais, mas presos ainda em um contexto institucional e histórico de atuação.
Frente às questões colocadas, observa-se a relevância desta e de outras pesquisas que podem ser desenvolvidas acerca do tema, pois ainda são escassos os trabalhos referentes ao modo como os profissionais de saúde da Atenção Básica trabalham com as demandas de saúde mental, principalmente em municípios pequenos, com menos de 20.000 habitantes que não comportam outros dispositivos de cuidado como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), e geralmente são lugares distantes das capitais e centros de pesquisas. Só no Estado de Santa Catarina 79,01% do total dos municípios têm população inferior a 20.000 habitantes (IBGE, 2010). O que demonstra uma realidade social pouco considerada quando da necessidade de inclusão de novos programas na rede de atendimento a saúde e saúde mental. Entretanto, são nesses lugares que as pessoas vivem, trabalham e constroem as suas histórias, o que requer que elas possam receber cuidados também nas localidades onde vivem, sejam elas grandes aglomerados urbanos ou pequenos municípios, como o que aqui abordamos.
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Recebido: 30/08/2012
Última revisão: 11/09/2013
Aceite final: 20/09/2013
Sobre os autores:
Tânia Regina Aosani - Psicóloga da equipe do Núcleo de Apoio a Saúde da Família (NASF) e Psicóloga Clínica na Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) - Escola Especial Professore Silvestre Mazon do Município de Romelândia/SC, Pós-Graduada em Saúde Mental e Coletiva e em Psicologia Hospitalar pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (UNOESC) Campus de São Miguel do Oeste. E-mail: tani_smo@hotmail.com
Karla Gomes Nunes - Psicóloga, Docente do departamento de Psicologia da Universidade de Santa Cruz do Sul, especialista em Temas Filosóficos (UFMG), mestre em Desenvolvimento Regional (UNISC). Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da UFRGS e Bolsita do CNPQ. E-mail: kgnpsico@yahoo.com.br
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