Introdução
A droga é capaz de modificar funções biológicas e fisiológicas e/ou de comportamento e alterar áreas cerebrais importantes, estimulando o uso compulsivo, resultando em um vício (Cebrid, 2011; Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas, 2013). Em um contexto histórico, a droga foi consumida por diferentes culturas, em rituais religiosos, lazer, aumento da disposição e para curas ou fins terapêuticos. Devido a esse histórico, a conexão entre o uso de drogas e os problemas sociais é recente, tornando-se um grave problema de saúde pública (Gabatz et al., 2013; Paiva et al., 2014). Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) (Gazeta, 2017), mais de 500 mil mortes anuais são causadas pelo consumo de drogas, e a situação está se agravando, sugerindo-se que o consumo de drogas não seja visto apenas como criminal, mas também como questão de saúde.
Segundo o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (2021), o relatório mundial sobre drogas avaliou a pandemia como um potencializador ao risco de dependência. Aproximadamente 5,5% da população mundial, entre 15 e 64 anos, já fez uso de drogas em algum momento, e 13% do número total da população desenvolveu transtornos associados ao uso de substâncias. Projeções recentes destacam um aumento global de 11% no número de usuários de substância psicoativas até 2030, com base em dados demográficos. Entre 2010 e 2019, o número de usuários aumentou 22%, considerando o crescimento populacional mundial.
Além dos prejuízos causados na vida do usuário, o consumo de drogas pode gerar impacto no âmbito da família do usuário. A política de saúde mental destaca a importância de apoio, não somente ao usuário, mas também para a família. Sugere inclusão dos familiares no tratamento, com o objetivo de prevenção ou de enfrentamento dos desafios relacionados às drogas e de terem os mesmos cuidados que os usuários, proporcionando suporte, pois o sofrimento não é apenas de quem está doente (Pegoraro & Caldana, 2008; Silva Figueiró, 2014).
Familiares que se dedicam ao cuidado apresentam, frequentemente, sobrecarga de tarefas e mudança de rotina em benefício do usuário de substância. Eles alteram suas prioridades financeiras, tanto para a manutenção do uso do seu familiar quanto para o tratamento dele. Suas relações sociais tendem a ser marcadas por privações e afastamentos de convívio social, com o objetivo de evitar comentários que estigmatizam, provocando desestabilidade psicológica, bem como geram sofrimento, cansaço, vergonha, medo, angústia, ansiedade, culpa, impotência e possibilitam manifestações de doenças, como depressão. Por vezes, distanciam os usuários de assumirem as responsabilidades por suas ações e, até mesmo, de evoluir no tratamento (Silva Figueiró, 2014; Costa et al., 2017).
Essas características evidenciam o quão vulneráveis são os familiares, podendo gerar fortes prejuízos à saúde, atingindo cerca de 100 milhões de pessoas no mundo (Orford et al., 2013). A codependência, por exemplo, pode ser desenvolvida a partir do cuidado excessivo de familiares usuários de drogas. O termo codependência é oriundo dos Alcoólicos Anônimos (AA), que mostra o problema de dependência química como de todos, e não apenas para o usuário; pessoas que constituem a sua rede social também fazem parte (Gonçalves, 2017). O codependente assume responsabilidades que não são suas, concentrando-se na vida do outro e tendo impacto na sua qualidade de vida, ficando vulnerável e, por vezes, acreditando que é vítima das atitudes do usuário. São afetados fisicamente, socialmente e psiquicamente, podendo desenvolver sintomas psicopatológicos que são acompanhados de sofrimento, gerando um vínculo de doença e necessidade de controle. Geralmente apresentam dificuldade em aceitar ajuda e reconhecerem a codependência (Costa et al., 2017; Gonçalves, 2017; Oliveira et al., 2019).
Estimular o reconhecimento e a aplicação de estratégias de enfrentamento é importante, no sentido de minimizar os impactos físicos, emocionais e psicológicos envolvidos na codependência (Pereira & Branco, 2016; Ribeiro et al., 2015). Os estudos em relação às estratégias de enfrentamento têm buscado entender como os indivíduos agem em situações estressantes, vivenciadas no contexto em que estão inseridos, e propõem avaliação de pensamentos e ações que as pessoas utilizam para lidar com demandas internas ou externas de um evento específico (Folkman & Moskowitz, 2000; Lazarus & Folkman, 1984). As estratégias de enfrentamento, geralmente, são classificadas em duas categorias: enfrentamento com foco no problema, em que o indivíduo se aproxima do fato estressor com soluções para o problema; e o enfrentamento com foco na emoção, no qual a pessoa decide se afastar do problema ou manejá-lo de forma paliativa. Além dessas, outras estratégias podem ser utilizadas, como busca de suporte social, religioso ou de distrações (Carver et al., 1989; Vitaliano et al., 1985).
Com frequência, o cuidador apresenta comportamentos e pensamentos disfuncionais, podendo levar ao adoecimento físico e psicológico. Neste sentido, faz-se necessário entender o impacto da codependência na saúde das famílias. Sendo assim, o objetivo desta pesquisa foi investigar a percepção dos familiares de usuários de substâncias químicas sobre o impacto da drogadição na dinâmica familiar e estratégias de enfrentamento do problema adotados.
Método
Esta pesquisa está delineada como um estudo qualitativo de caráter exploratório. Foram incluídas na pesquisa 16 pessoas, selecionadas por conveniência, entre 22 e 64 anos, todos familiares de usuários de substância, que frequentavam o grupo de apoio da Cruz Azul no Brasil, por no mínimo três meses. Foram excluídos os que não compareceram nos dias selecionados para coleta de dados, os funcionários da instituição e os que faziam uso de drogas. O estudo foi realizado entre março e setembro de 2021. A Cruz Azul do Brasil é uma entidade sem fins lucrativos, de caráter civil privado, e realiza um trabalho social cristão diacrônico. Tem como finalidade ajudar dependentes do álcool e de outras drogas, seus familiares e outras pessoas afetadas direta ou indiretamente, por meio de grupos de apoio que ocorrem presencialmente. Devido à pandemia covid-19, os encontros vinham sendo realizados de maneira virtual.
Foram utilizados na coleta de dados dois instrumentos: 1) Questionário de dados sociodemográficos, que teve como objetivo a caracterização dos participantes: sexo, idade, -estado civil, escolaridade, profissão, percepção da sua saúde mental, grau de parentesco com o usuário de substâncias, tempo em que frequentam o grupo de apoio e informações dos usuários, como sexo, idade, se já estiveram internados (e quantas vezes), como receberam a orientação de pedido de apoio; 2) Entrevista semiestruturada, com 22 questões para avaliar a percepção dos cuidadores sobre a drogadição na dinâmica familiar e estratégias de enfrentamento nesse cenário.
Após a autorização da Cruz Azul do Brasil para realizar a pesquisa, a proposta foi apresentada aos responsáveis pelos grupos de cada cidade e posteriormente apresentada aos grupos com os familiares, nos dias e horários de encontro. Estes receberam a explicação verbal sobre os procedimentos da coleta de dados e foram convidados a participarem. Os que aceitaram receberam pela plataforma Google Forms o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), para assinatura. Após a assinatura do TCLE, os participantes preencheram o questionário sociodemográfico. A entrevista semiestruturada foi realizada com 16 familiares, que preencheram os instrumentos mencionados e foram selecionados de forma aleatória. Os encontros foram agendados em dia e horário da conveniência do participante e foi realizada videochamada, via Google Meet, que foi gravada para transcrição dos dados. A média de duração foi de aproximadamente 60 minutos. Após a entrevista, uma cartilha informativa elaborada pela própria pesquisadora, sobre qualidade de vida e autocuidado, foi disponibilizada aos participantes.
As entrevistas foram transcritas e analisadas a partir da Análise de Conteúdo (Bardin, 2011). Estas foram avaliadas por três juízes, que compararam as entrevistas de forma independente, para, em seguida, constituir a análise final. As informações utilizadas no estudo foram apresentadas por meio de códigos de identificação, preservando a identidade dos participantes da pesquisa.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Luterana do Brasil (CAAE 16233419.4.0000.5349), respeitando os preceitos éticos, as diretrizes e normas estabelecidas na Resolução n. 510/2016, do Conselho Nacional de Saúde (CNS) (Ministério da Saúde, 2016).
Resultados e Discussão
A pesquisa foi realizada com 16 participantes, familiares de usuários de substância psicoativa, que frequentam o grupo de apoio da Cruz Azul no Brasil, nos estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Houve a predominância do sexo feminino (93,8%). A idade dos participantes era entre 22 e 64 anos, sendo 56,6% entre 22 e 42 anos; a escolaridade mais frequente foi de nível superior (56,3%), e 50% dos cuidadores eram companheiros(as). Seis meses foi o menor tempo participação, e o maior foi de seis anos, no grupo de apoio. Os familiares relatam que 74,8% dos usuários já foram internados devido ao uso de substância. No interior do Rio Grande do Sul, foi realizada uma pesquisa com cuidadores de usuários de drogas ilícitas que corrobora esses resultados, em que aproximadamente 85% dos familiares cuidadores são mulheres e, em muitos casos, são elas que assumem a responsabilidade pelo sustento da família, algumas, dependentes de benefícios sociais, como Bolsa Família (Cosentino et al., 2017).
A Análise de Conteúdo gerou seis categorias temáticas, que foram definidas com base na literatura, nas falas dos participantes e nos objetivos aglutinados a partir do maior -número de respostas. Foram elas: 1. Como é lidar com o usuário de drogas - subcategoria: 1.1 Manipulação do familiar pelo usuário; 2. Estratégias de enfrentamento do cuidador - subcategorias: 2.1 Grupo de apoio Cruz Azul, 2.2 Rede de apoio e 2.3 Espiritualidade e religiosidade; 3. Percepção dos familiares sobre os impactos da drogadição; 4. Sentimentos apresentados pelos familiares; 5. Estigmas enfrentados pelo familiar; e 6. Codependência.
1. Como É Lidar Com o Usuário de Drogas
Esta categoria apresenta os problemas ou as dificuldades com os usuários de drogas, compreendendo as formas de lidar com a situação. Os entrevistados relataram agressividade, falta de paciência, mudança de comportamento e falta de diálogo (principalmente por estarem sob o uso de substância com frequência). Acreditam que não podem contar com o usuário e nem confiar neles, referem roubos para sustento do uso e mudanças de humor influenciadas pelo uso, conforme notado em algumas falas:
Quando eu descobri que ele tinha caído no crack, foi pior, porque tipo, ah, ela já sabe, né? Ele levava tudo de dentro de casa, na minha frente . . . O pai dele trabalhava com caminhão e quando eles acordaram, tava só caminhão, erguido nos macaco, e ele tinha levado todos os pneus do caminhão (P9 - Esposa).
Na verdade, o usuário tem duas personalidades. O meu sobrinho, comigo ele era uma coisa . . ., todo bonzinho, e quando eu virava as costas ele era aquele malandrão, com os amigos dele, fazia, acontecia (P10 - Tia).
A família geralmente é vista como uma peça fundamental no cuidado; por vezes, é responsabilizada pelo uso de drogas dos usuários, sendo, também, delegada a acompanhá-los no processo de tratamento e recuperação (Oliveira et al., 2016). Alves et al. (2015) relataram sobre os benefícios da intervenção profissional na prevenção de transtornos psicológicos nos familiares, derivados da sobrecarga do cuidado com o usuário de drogas.
Além disso, o desaparecimento de casa por parte dos usuários, após fazerem o uso de substância, foi um relato comum entre seis familiares, conforme as falas:
Um dia ele extrapolou, ficou dois dias sumido, e aí quando ele voltou pra casa, voltou com o carro de um amigo, porque o dele ele tinha batido, daí . . . chegou todo alterado, estranho, tava até violento (P1 - Avó).
Ele sumiu por um tempo, uns três, quatro dias . . . . Aí eu fiquei sem ter contato com ele, né? Fiquei assustada, pensando que tinha acontecido alguma coisa com ele . . ., quando ele sumia eu ia atrás dele preocupada, com medo dele não voltar mais. De alguém matar ele ou dele passar mal, eu tinha muito medo assim (P2 - Esposa).
É possível observar nos relatos que o sumiço dos usuários é temporário. O uso de substância é uma das causas de desaparecimento e geralmente os familiares reconhecem esse motivo, vinculando o sumido a uma recaída ou a uma crise de abstinência. As drogas ilícitas, principalmente crack, são as que apresentam maior dependência e consequentemente grande potencial para abandono do seu meio social, para vivenciar em ambientes de uso contínuo (Pereira, 2019).
1.1 Manipulação do Familiar pelo Usuário
Na categoria “Manipulação do familiar pelo usuário”, alguns dos entrevistados referiram que os usuários utilizam comportamento manipulador para se beneficiarem, conseguindo o que querem. Na percepção dos entrevistados, os usuários se vitimizam, mentem e ameaçam agir contra si próprios. Aproveitam-se do contexto, fazendo com que os familiares se sintam usados e passados para trás, conforme relatos:
Ele me usou muito, né . . . me manipulou muito . . ., ele trabalhava para o uso da droga, né. Eu que pagava dentista, roupa, celular, pagava tudo, na verdade eu bancava a droga dele, sempre banquei e nunca que dei conta disso, né (P10 - Tia).
Dependente químico sempre tenta te passar para trás, ele me passou para trás muito tempo, eles têm uma estratégia de mentir com uma cara de pau impressionante . . . . Ele chorava, sabe aquela coisa, “aí me arrependi”, e eu acreditava naquilo (P9 - Esposa).
Conforme relatos, o uso de drogas tende a levar a mentir, abandonar sua família, manipular as pessoas e roubar (Santos et al., 2021). Os discursos dos cuidadores são acompanhados de percepções de um comportamento manipulador e sedutor do usuário de drogas, dificultando, assim, estabelecer uma confiança estável (Silva et al., 2021).
2. Estratégias de Enfrentamento do Cuidador
Os entrevistados foram questionados sobre as estratégias utilizadas para enfrentar a situação de drogadição. As principais estratégias de enfrentamento mencionadas pelos participantes foram grupos de apoio Cruz Azul, redes de apoio e espiritualidade e religiosidade. Em uma pesquisa recente, resultados semelhantes foram identificados, em que os tipos de ajuda mais recorrentes foram grupos de autoajuda e ajuda religiosa, além de psicoterapia (Melo & Cavalcante, 2019).
2.1 Grupo de Apoio Cruz Azul
Os grupos de apoio são conhecidos como centros que oferecem assistência à pessoa e a seus familiares que têm histórico de dependência química. Os entrevistados da pesquisa frequentavam um grupo de apoio e referiram benefícios, como compartilhar seus sentimentos e gerar consciência acerca do cenário vivenciado. Relataram percepções sobre acolhimento e orientações, além de escuta ativa e oportunidade de fala. Conhecem pessoas com o mesmo problema, o que as ajuda no enfrentamento das situações geradas pelos usuários.
A responsabilidade não é totalmente minha, e foi isso que eu entendi com os grupos de apoio, né . . . . A gente fala no grupo e escuta, e a gente percebe que tem outras pessoas que carregam a mesma situação ou alguma coisa parecida ou até mesmo pior. E lá a gente divide o nosso fardo, né? . . . . Mas com o grupo de apoio eu acho que é ali a chave (P8 - Filha).
Eu, com as dicas no grupo, eu aprendi muita coisa, descobri que eu tava mais doente do que ele. Tudo que eu aprendia lá eu trazia pra dentro de casa . . . . Eu comecei a perceber no grupo de apoio que eu era dependente dele, sabe? . . . . Lá fui entendendo a -história, entender o que que é a drogadição. Que é uma doença, que o drogado ele não faz -porque ele quer (P12 - Esposa).
O grupo de apoio voltado aos cuidadores é uma estratégia para enfrentar os desafios de lidar com usuários de substâncias. Cavaggioni et al. (2017) apontam o grupo de poio como uma das estratégias de enfrentamento mais benéficas no acompanhamento dos cuidadores, apresentando resultados importantes aos familiares e aos usuários de drogas.
O grupo de apoio promoveu aos participantes a percepção da realidade e do problema vivido, proporcionando alívio nos sentimentos e melhora do isolamento social em um ambiente com trocas de experiências e reflexões. É uma ferramenta assertiva que promove educação, prevenção, promoção da saúde e compreensão da doença, disponibilizando para as famílias sentimentos de acolhimento e pertencimento, além de fortalecimento em um ambiente livre de julgamentos e críticas (Alvarez et al., 2012; Bombarda et al., 2020).
2.2 Rede de Apoio
As redes de apoio são definidas como pessoas e instituições capazes de fornecer suporte emocional ou financeiro. Os entrevistados relataram nesta categoria que, sozinhos, não conseguem enfrentar o contexto de drogadição, e comentaram sobre a importância de ter ajuda financeira e de apoio. A rede de apoio dos familiares entrevistados era muito restrita e pouco estruturada, entretanto encontravam auxílio na família, nos amigos ou nos membros da igreja.
O pessoal da minha igreja, meus pastores, né? Que me ouvem e me ajudam bastante em questão de oração e de conversar (P15 - Filho).
Eu acredito que é importante, sim, ter uma ajuda, porque sozinho você não consegue, isso é bem verdade, . . . minha família, ela tem uma cabeça aberta, e era o que eu queria, então eles me apoiaram, né (P5 - Esposa).
A rede de apoio que mais se destacou nas falas é de instituições religiosas. A rede de apoio formada por entidades religiosas oferece um ambiente seguro, proporcionando vínculos e laços afetivos de modo a auxiliar no processo de reinserção social e proporcionar equilíbrio e força em situações estressantes e de sofrimento (Díaz Heredia & Muñoz Sánchez, 2013; Henriques et al., 2018; Pires & Sampaio, 2021).
2.3 Espiritualidade e Religiosidade
A fé e a crença em um ser superior foram uma estratégia encontrada pelos familiares para enfrentar as vivências do uso de substância por um integrante da sua família. A espiritualidade e religiosidade fazem parte integrante da rotina dos cuidadores.
Enquanto ele estava internado, . . . eu ficava a madrugada inteira, orando, orando, pedindo, assistindo ministração sabe, é onde, assim, era o meu conforto na verdade (P3 - Esposa).
Hoje em dia . . . eu acho que eu sou mais forte . . . . E daí eu pensei assim, ué, Deus me escutou mais rápido, parece, tipo descansei em Deus, entendeu? . . . Eu creio que, né, porque nós somos evangélicas e foi por conta de muita oração que ele melhorou (P9 - Esposa).
As práticas religiosas e espirituais foram capazes de proporcionar aspectos positivos, dando conforto e maior compreensão aos cuidadores, dando assistência às necessidades integrativas de dimensão do ser humano, biopsíquica, espiritual e social, agindo de forma determinante na saúde da pessoa que acredita (Manchola et al., 2016; Arrieira et al., 2017; Thiengo et al., 2019).
3. Percepção dos Familiares sobre os Impactos da Drogadição
Esta categoria trata da percepção dos familiares em relação às implicações que o consumo de drogas trouxe para a vida dos usuários e familiares. Foram relatadas tentativas de suicídio e overdose, mudança de personalidade e contravenções. Outros aspectos levantados foram desarmonia familiar, perdas financeiras, falta de controle de impulsos, afastamento social dos usuários e seus familiares e prejuízos profissionais.
Os riscos são terríveis, né, no caso do meu, ele teve tentativa de morte, mas podia ter conseguido, né? . . . aí também a desarmonia familiar, né? . . ., porque daí a pessoa passa a não ligar pra mais nada, né? e aí depois vêm as desavenças (P1 - Avó).
O maior risco é da pessoa acabar fazendo uma coisa errada ou no caso do meu marido fica dirigindo por aí . . . . Ele já bateu o carro, a percepção da gente altera, né, não adianta. Ou uma polícia parar, acontecer alguma coisa . . . . De ter atitudes erradas, né, com as pessoas, tudo culpa do uso (P4 - Esposa).
O abuso de drogas pode ser identificado como causador de morbidade e mortalidade, corroborando os resultados desta pesquisa (Alvarez et al., 2012; OMS, 2014).
4. Sentimentos Apresentados pelos Familiares
Nessa categoria, foram elencados relatos de sentimento de culpa, angústia, tristeza, desprezo, frustração, fracasso, medo, desconfiança, raiva, vergonha, vitimização e solidão vivenciados pelos familiares. Os entrevistados relataram sentimento de responsabilidade pelo usuário em evitar recaídas, punindo-se quando o dependente não atinge um objetivo. Também, comentaram sobre desenvolvimento de problemas de saúde e psicológicos como consequências emocionais.
Me senti uma fracassada. Tudo que eu fiz por ele parecia que não valeu nada . . . . Ele tentou se matar, né? Se cortou . . ., e eu não fui ajudar de medo, ele tava no uso, né? Eu não sabia o que fazer, eu tava perdida, eu tava no fundo do poço assim. Não tinha mais vida, não tinha mais nada, né . . . . Meu mundo acabou. Eu não sei, parecia que eu tinha perdido o chão assim, só chorava (P10 - Tia).
Foi sensação de impotência diante dessa situação, porque era uma coisa nova pra mim, e também, tristeza, desgosto, sabe?! E agora, o que eu vou fazer? Culpa também entrou, sabe? Tá, mais aonde foi que eu falhei? . . ., eu já me senti muito sem força, né, muitas vezes eu me sentia muito sozinha (P11 - Mãe).
Os cuidadores vivenciaram emoções que não estavam preparados para enfrentar. O uso de drogas pode desencadear nos familiares sofrimentos e estresse. A família se -autorresponsabiliza pelos usuários de drogas, tanto pela dependência quanto pelas recaídas, culpabilizando-se quando não conseguem evitar o uso (Rodrigues et al., 2018).
Nesta pesquisa, os cuidadores relataram somatizações, que podem surgir como consequência de conflitos psíquicos não atendidos (Rangel & Godoi, 2009). As doenças psicossomáticas têm aparecido com maior frequência, tornando-se importantes as discussões e os estudos com o objetivo de propiciar alternativas para o tratamento (Cardinal et al., 2017).
5. Estigmas Enfrentados pelo Familiar
Esta categoria apresenta a forma como o indivíduo é rotulado e/ou estereotipado, frequentemente causando descriminação e exclusão em alguns contextos. Os entrevistados relataram sobre preconceitos e julgamentos que os usuários de substâncias sofrem por parte da comunidade em que estão inseridos. Frequentemente, são chamados de vagabundos, preguiçosos, sem vergonha, que não valem nada, não prestam. Além disso, são caracterizados como agressivos, que podem matar e roubar. Outro aspecto levantado foi a rejeição social, familiar e de si mesmo que os dependentes sofrem ao serem criticados. Importante ressaltar que, nesta categoria, os familiares reconhecem a drogadição como doença.
Tem muita gente também que fala “Ah, porque é vagabundo, porque tem preguiça de trabalhar” . . ., mas na verdade ela tá doente, né (P8 - Filha).
A minha mãe, quando soube, ela ficou com medo, porque a gente via muita reportagem em que os maridos espancavam e matavam as mulher por isso, né? (P9 - Esposa).
A estigmatização é conceitualizada como um atributo depreciativo generalizado que é dado a uma pessoa que possui determinadas características, geralmente relacionadas à nomeação social, a partir do que o indivíduo transmite sobre si (Goffman, 1988). O uso de drogas ainda é associado à criminalidade, violência, malandragem, dificultando o trabalho dos profissionais (Santos et al., 2021).
6. Codependência
Nesta categoria, foi identificado que os familiares se percebem como codependentes. Tal percepção de si mesmos pode facilitar a utilização de estratégias de enfrentamento e possibilitar a mudança de comportamentos. Os familiares acreditam ser responsáveis pelo usuário de substância, fazendo aquilo que acham ser importante para eles, pensam que, se não estiverem por perto, o dependente não conseguirá viver. Quando existe a necessidade de internação, sentem-se fracassados. Constantemente adotam um comportamento controlador a fim de garantir que os usuários seguirão as normas propostas para evitar recaídas, monitorando o dinheiro, o lazer, a rotina, para se certificarem de que estejam seguros. Consequentemente, privam-se das suas necessidades e vontades, priorizando o cuidado do outro, não reconhecendo os seus limites, o que resulta em prejuízos físicos e emocionais. Os familiares costumam olhar para si apenas se sua vida é motivo de recaída do usuário.
Eu sempre cuido mais dos outros do que de mim mesma . . . . Um dia tô lá, lavando o cabelo, ia fazer um dia de spa [risos], já aconteceu de eu largar tudo e ir ajudar alguém . . . . Então, a maior parte do tempo eu tô cuidando deles. Mas eu reconheço também que eu preciso cuidar de mim, porque às vezes o outro vai precisar de mim bem pra que eu cuide dele (P8 - Filha).
Fazendo as coisas que ele queria eu achava que eu ia conseguir mudar ele, só que não é assim, né? . . . . Eu não tinha cuidado comigo, eu só pensava nele . . . . Eu já fiquei muito mal, doente, tive que procurar ajuda psiquiátrica (P10 - Tia).
Os cuidadores podem apresentar falhas de julgamento em relação a algumas decisões tomadas. Para defender o familiar das drogas e da morte, os cuidadores tentam protegê-los, afastando-os de outros usuários e traficantes a qualquer custo, mesmo que isso lhes custe todos os bens materiais e a própria vida (Reis, 2014). A relação de codependência surge quando é desencadeado um funcionamento disfuncional no desenvolvimento da família. Esse funcionamento gera adoecimento dos familiares, tornando-os incapazes de viver sua própria vida para se dedicarem ao usuário. A codependência deve ser tratada como doença, pois o codependente também luta contra as drogas (Melo & Cavalcante, 2019; Bortolon et al., 2016).
É fundamental a inclusão dos familiares dos usuários de drogas no tratamento, para que eles saibam mais sobre a dependência química e sejam acompanhados. Muitas famílias não têm informações suficientes sobre a codependência, passando por situações de preconceito, conflitos, problemas de comunicação e sentimentos como vergonha e culpa. A intervenção pode promover uma reorganização das relações familiares e, consequentemente, uma melhora na qualidade de vida da família. A inclusão do familiar pode favorecer na adesão do dependente no tratamento, beneficiando a recuperação. A capacitação de profissionais no sentido de atenção à família faz-se importante (Braun et al., 2014).
Considerações Finais
Mediante este estudo, foi possível identificar a percepção dos familiares cuidadores sobre os desafios de lidar com os dependentes. Autorresponsabilização, autocrítica e autossacrifício foram apontados pelos cuidadores e, com isso, eles vivenciam a doença do usuário, arriscando adoecerem juntos, seja por um processo de codependência, seja por doenças psicossomáticas e psicológicas.
As estratégias de enfrentamento utilizadas pelos familiares desta pesquisa foram os grupos de apoio Cruz Azul, rede de apoio, espiritualidade e religiosidade. A codependência foi percebida, destacando-se o autossacrifício. Os familiares foram inclinados a renunciar a suas necessidades em prol das necessidades dos usuários de substâncias.
Diante das dificuldades e da gama de sentimentos que envolve o cuidado e o tratamento de dependentes químicos, sugere-se a extensão da intervenção terapêutica aos familiares e cuidadores. É importante que a atenção aos usuários abranja as pessoas que de alguma forma se relacionam com eles, proporcionando a necessária fonte de apoio. Além disso, intervenções junto aos profissionais de saúde e à equipe multidisciplinar seriam igualmente importantes para promover a saúde mental da equipe e, consequentemente, dos familiares.
Este estudo contribuiu para a compreensão dos impactos da drogadição na vida dos familiares. Como limitação deste estudo, pode ser apontado o trabalho com um grupo específico de familiares cuidadores vinculados à Cruz Azul do Brasil. Outro aspecto não observado neste estudo foi a interferência do tempo de cuidado do familiar na codependência. Novas pesquisas longitudinais incluindo outros grupos de apoio aos familiares de usuários de substâncias são recomendadas para aprofundamento e ampliação desta temática.