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Estudos Interdisciplinares em Psicologia
On-line version ISSN 2236-6407
Est. Inter. Psicol. vol.12 no.2 Londrina May/Aug. 2021
https://doi.org/10.5433/2236-6407.2021v12n2p99
ARTIGOS ORIGINAIS
O sujeito do autor: o que aparece quando eu escrevo e desapareço?
The subject of the author: what appears when i write and disappear?
El sujeto del autor: ¿lo qué aparece cuando yo escribo y desaparezco?
Mauricio Winck Esteves; Luis Artur Costa
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
RESUMO
O artigo parte da problematização da noção de sujeito no exercício da escrita para fazer uma crítica ao sujeito da modernidade. Reflete sobre a emergência desse sujeito moderno nas filosofias de René Descartes, Immanuel Kant e na psicanálise de Sigmund Freud, em suas articulações com os mecanismos disciplinares e biopolíticos, demonstrando a emergência de um triplo enlace entre autoria, culpa e propriedade. Ressalta a articulação na modernidade de duas tecnologias de produção do sujeito: a culpa e o alterocídio, duas faces do ressentimento as quais são apresentadas por Friedrich Nietzsche e Achille Mbembe. Por fim, desde a perspectiva dos modos de subjetivação, busca-se traçar algumas linhas de uma autoria no avesso do ressentimento moderno-colonial: uma autoinvenção coletiva.
Palavras-chave: autoria; ressentimento; culpa; alterocídio.
ABSTRACT
The article starts from the problematization of the notion of subject in the exercise of writing to criticize the subject of modernity. Reflects on the emergence of this modern subject in the philosophies of René Descartes, Immanuel Kant and Sigmund Freud's psychoanalysis, in its articulations with disciplinary and biopolitical mechanisms, demonstrating the emergence of a triple link between authorship, guilt and property. It emphasizes the articulation in modernity of two subject production technologies: guilt and alterocide, two faces of resentment presented by Friedrich Nietzsche and Achille Mbembe. Finally, from the perspective of the modes of subjectivation, we seek to trace some lines of authorship on the reverse side of modern-colonial resentment: a collective self-invention.
Keywords: authorship; resentment; guilt; alterocide.
RESUMEN
El artículo parte de la problematización de la noción de sujeto en el ejercicio de la escritura para criticar el sujeto de la modernidad. Reflexiona sobre el surgimiento de este sujeto moderno en las filosofías de René Descartes, Immanuel Kant y en el psicoanálisis de Sigmund Freud, en sus articulaciones con mecanismos disciplinarios y biopolíticos, haciendo visible el surgimiento de un triple vínculo entre autoría, culpa y propiedad. Destaca la articulación en la modernidad de dos tecnologías para la producción del sujeto: la culpa y el alterocidio, dos caras del resentimiento presentadas por Friedrich Nietzsche y Achille Mbembe. Finalmente, desde la perspectiva de los modos de subjetivación, buscamos trazar algunas líneas de autoría en el reverso del resentimiento colonial moderno: una autoinvención colectiva.
Palabras clave: autoria; resentimiento; culpa; alterocidio.
UM ACONTECIMENTO: ESCREVER E DESAPARECER
Este texto dá corpo a um exercício ensaístico disparado por uma experiência comum a quem escreve coisas que pensa: a experiência de desaparecer como indivíduo. Contudo, ele não toma essa experiência em si mesma, e sim como um acontecimento (um devir da escrita) a ser levado para a vida, a ser mobilizado em uma direção clínico-política (Esteves, 2019). Por isso lançamos esta provocação: "O que aparece quando eu escrevo e desapareço?" Assim, é a própria ficção de um sujeito que aqui é tomada como objeto. Seu aparecimento e desaparecimento são percorridos sobretudo "fora" da escrita. Em meio a isso, toda a discussão é atravessada pela ênfase em duas tecnologias de produção do sujeito: a culpa, que aqui tomamos como uma mnemotécnica (Nietzsche, 1887/2009), e o alterocídio (Mbembe, 2014), um modo radical de coisificar o outro em outridade (Kilomba, 2008/2019). Articuladas, essas duas tecnologias fazem do ressentimento um modo de valoração que se produz em detrimento da experiência e das experimentações.
O autor, tal como aparece na modernidade, é o duplo literário e penal do sujeito. Pode ser o proprietário ou o culpado, quando quem fez alguma coisa se reconhece e é levado a se reconhecer na coisa feita. Em uma concepção capitalista-disciplinar e, fundamentalmente, jurídico-legal que reitera a metafísica da gramática ao submeter predicados a um pretenso sujeito substantivo (Nietzsche, 1887/2009). Pode ser também o merecedor ou o maldito. Autor reificado em infâmia ou fama desde um recorte da sua trama, um recorte que o duplica: "Ao outro, a Borges, é que sucedem as coisas [...] eu vivo, eu me deixo viver, para que Borges possa tramar sua literatura" (Borges, 1960/2008, p. 54). Mas qualquer que seja a imagem que se faça do autor, ela é sempre o efeito de uma longa meditação sobre o sujeito. E se o tema da "morte do autor" pretende anunciar a morte daquele que escreve, do sujeito individual cuja imagem se desfoca diante dos olhos do leitor, não necessariamente isso significa uma superação do modelo precedente. Conforme sinalizava Foucault (1969/2009), em sua exposição intitulada "O Que é um Autor?", algumas categorias que eventualmente foram colocadas no lugar do autor acabaram por afirmar novas formas de inteligibilidade da autoria no que pretendia ser seu desaparecimento. A escrita, por exemplo: será que o desaparecimento do sujeito que escreve, do sujeito individual, não é interpretado de tal maneira que as suas características empíricas acabam por ser alçadas a um anonimato transcendental? Assim, segundo o diagnóstico foucaultiano, sobre o devir da escrita que fazia morrer o autor individual agia um "bloqueio transcendental": uma sobrevida à autoria individual, ainda que na forma lógica de um sujeito universal.
Foucault (1969/2009), em alternativa a esse bloqueio, desejava destacar o que um tal desaparecimento fazia aparecer: o jogo da função autor, uma das especificações, ele dizia, da função sujeito, o conjunto de práticas através das quais os discursos circulam, são valorizados, atribuídos e apropriados e que variam de acordo com cada cultura. O sujeito, assim, seria tomado como uma função variável do discurso, nunca fixo senão pelas práticas que o fixam, ora funcionando como um autor, ora funcionando de outro modo, como em um jogo no qual a função de cada peça mudasse ao sabor dos acontecimentos do jogo. Isto posto, não bastaria simplesmente recusar a tradição que fez do autor (da obra ou do crime) um duplo do sujeito, seria preciso antes perguntar: "segundo que condições e sob que formas alguma coisa como um sujeito pode aparecer na ordem dos discursos?" (Foucault, 1969/2009, p. 287). Assim como o desaparecimento do sujeito não deveria ser entendido em termos de uma escrita originária, e sim como um devir gerado por um princípio ético que dominou a prática de alguns escritoresi, também seria um erro dizer que o seu aparecimento foi o produto de uma ideologia que alienou uma massa de produtores, que os enganou. Pensamos, diferente disso, que toda ideologia é uma tecnologia ou um modo de subjetivação que produz real, é um modo de relação paradoxal entre um eu faltante e um outro excedente (e vice-versa). Trabalha as relações de atribuição e apropriação através das quais surge um isso - um sujeito, um autor - que torna seu ou meu ou nosso aquilo que é do outro. Domestica, adoça e inteligibiliza acontecimentos em atributos: tributações que endividam e enriquecem seus pretensos sujeitos.
UMA DETERMINAÇÃO TRANSCENDENTE: APAREÇA, AUTOR!
Argumentamos em favor da hipótese de que o ressentimento perpassa a produção do sujeito-autor, incidindo sobre ela por meio de duas tecnologias: a culpa e o alterocídio (Mbembe, 2014). Combinadas, atuando reciprocamente, elas produzem aquilo que é um sujeito e aquilo que não o é, aquilo que é capaz de autoria e aquilo que não é. Ambas se apoiam em uma série de dualismos que constituem a dupla natureza do humano e a subordinação de uma natureza à outra: da animalidade à humanidade. Subordinação que, por sua vez, é, ao mesmo tempo, uma relação de apropriação e uma relação de identificação entre o sujeito e os predicados (eu tenho coisas em meu nome., /eu sou o que faço...), de tal maneira que um eu descontinuo, que passa por diferentes estados intensivos, vai se inventando como coisa contínua, intencional e substantivada. Tal duplicidade sujeito-predicado/causa-efeito obteve sua primeira formulação nítida na metafísica aristotélica. Da qual se desdobrou a série de dualismos que se articulam ao surgimento da noção de sujeito própria à modernidade filosófica. O primeiro desses dualismos, pode-se dizer, foi o dualismo cartesiano (Descartes, 1641/1999). Trata-se de um dualismo ontológico que divide uma multiplicidade para individualizá-la: res cogitans (alma ou eu), indecomponível e não transformável, e res extensa (corpo ou não-eu/outro), decomponível e transformável. O modo de subjetivação cartesiano distingue dois sujeitos: "quando Descartes diz: posso inferir 'penso, logo existo', ao passo que não posso fazer o mesmo para 'caminho, logo sou', levanta a distinção dos dois sujeitos" (Deleuze & Guattari, 1980/1995, p. 8687). Mas cada um já é dois, sob o domínio do primeiro. Pois a coisa pensante não pensa no vazio, o pensamento se desdobra em um corpo que, como multiplicidade inatribuível que é, não pode perdurar, no tempo, como coisa igual a si mesma. Isso quer dizer que se produz um substrato não transformável que conduz as transformações de um corpo que não pode nunca ser o mesmo. E, na outra ponta, ainda que o eu de Descartes não possa constatar sua existência na ação de caminhar, ele a constata através da consciência que tem do caminhar, através do livre consentimento que dá aos movimentos articulados das suas pernas e, sobretudo, através da possibilidade que tem de brecar esses movimentos por meio de uma vontade prudente, uma ação da alma instigada por um afeto da alma.ii Assim, esse sujeito que é a condição do pensar também é o proprietário do pensamento, do corpo que anda, da voz como um efeito vibrátil-sonoro das cordas vocais, das palavras que articulam-se à mão e à caneta e que escrevem-se no corpo da folha. Qualquer autômato hidráulico escreve, mas para Descartes apenas o cogito é capaz de ser autor da escrita pelo domínio do corpo.
Com efeito, para ter a si e ao outro sem perder-se é preciso ser produzido como a causa permanente e inalienável de ter a si e ao outro. O dualismo ontológico implica, igualmente, uma ontogênese dual: pois enquanto a causa das aparições objetivas da extensão é lida em termos de uma física mecanicista, do encontro entre os corpos, a causa das aparições objetivas referidas à alma é lida em termos do livre-arbítrio ou vontade ilimitada (causa subjetiva). Contudo, para o bom manejo da sua vontade ilimitada a alma precisa limitá-la a partir da dúvida metódica. Caso contrário, ela se inclinará ao equívoco de ordem epistêmica ou moral. Para Descartes, todo equívoco é o efeito de uma carência do entendimento (que não é ilimitado e que deve ser conduzido pelo método) em uma alma cuja vontade, por ser ilimitada, acaba por querer até mesmo aquilo que é contrário à sua natureza - acolhendo o falso, mal e contingente em lugar do verdadeiro, bom e eterno (Descartes, 1641/1999). A dúvida metódica tem por objetivo intuir as ideias inatas da Razão (Deus, coisa pensante, extensão, causa e efeito, formas geométricas perfeitas, etc.) e fundar sobre elas um limite (a posteriori) à vontade ilimitada ou livre-arbítrio: o método científico (Descartes, 1637/1999), que seria o respeito à origem e essência do entendimento e das coisas em si mesmas, o dever da verdade.
O método é uma tecnologia de subjetivação, uma convergência tática de técnicas arranjadas à produção de um si mesmo. Uma variação, por um lado, do poder pastoral e das práticas de conversão ou metanoiaiii (a alma como uma tecnologia) e, por outro lado, uma das peças que compõe essa mesma variação na constituição dos dispositivos disciplinares. Em direção ao que desejava Descartes: limitar a vontade para fazê-la domar tanto a imaginação quanto as paixões que são sentidas na alma a partir do corpo.iv A liberdade do sujeito cartesiano, tal como nas disciplinas, é uma liberdade prescrita, exige obediência à verdade e ao bem, depende de um adestramento empírico-mecânico, de uma coação a partir de um Arquiteto único e central. Como dizia Foucault (1975/2013), a alma da qual os teólogos falavam não foi substituída por um sujeito que a psicologia "descobriu". Diferente disso, a alma foi uma tecnologia na qual o poder se apoiou e a partir da qual o sujeito foi produzido como um objeto para um saber possível. E é na alma, ajustada ao método, que as tecnologias da culpa e do alterocídio encontram um importante ponto de apoio para produzir os seus efeitos, para além dos argumentos teológicos sobre os quais elas se fundaram. Afinal, é justamente pela imposição de um limite a posteriori à vontade ilimitada, um limite que o sujeito deve tornar claro e distinto, que a liberdade poderá ser submetida à consciência de ter agido mal e à necessidade de se corrigir - tornar impossível o "eu não sabia". E o outro é aí o indomesticável ou o "selvagem", que por não querer ser conduzido/colonizado deixa de ter valor (de uso, em um capitalismo industrial e disciplinar).
ENTRE O APARECIMENTO E O DESAPARECIMENTO: BLOQUEIO TRANSCENDENTAL SOB O EFEITO DA DETERMINAÇÃO TRANSCENDENTE
Enquanto que em Descartes a unidade do eu é operada por meio da suposição de uma substância imortal, a alma, em Kant o eu é uma unidade formal: fenômeno, efeito de síntese das condições de possibilidade a priori. Entretanto, por meios diferentes se pode produzir uma mesma coisa: a operação sintética é alçada ao anonimato transcendental. A alma como substância abstrata dá lugar à unidade lógica da consciência de si (apercepção originária ou transcendental) ou unidade lógica do sujeito universal: "o sujeito da consciência em geral, sendo, portanto, a mesma unidade lógica pressuposta em toda e cada consciência e autoconsciência individual" (Giacoia Jr., 2012, p. 104-105). O sujeito kantiano é aquele que tem a posse de si, ou seja, que se apreende como uma unidade discreta na forma necessária e universal do sujeito transcendental. Com isso, a relação hierárquica de propriedade entre sujeito e predicado é mantida.
Já não há mais um dualismo ontológico em duas naturezas separadas, mas sim sínteses diversas entre antagonismos vários em um teatro legislativo pleno de atores: razão pura e natureza, entendimento e intuição sensível, sujeito transcendental e "coisa em si". Tudo é fenômeno, efeito das ligações que reúnem a multiplicidade em um sujeito para um sujeito. Contudo, a coisa em si que Kant enxotou pela porta da frente volta pela porta dos fundos.v Se não podemos falar de um dualismo ontológico, o mesmo não vale para uma ontogênese dual, plena de conflitos, contradições, aporias. O arbítrio ou a vontade no humano se diferenciam como uma outra causalidade. E a articulação entre liberdade e culpa se mostra ainda mais cerrada. Não como no sujeito cartesiano-disciplinar, que adestra e limita uma suposta vontade ilimitada a partir dos exercícios restritivos-repetitivos do espírito e do corpo a adestrarem um sujeito modelar-normal. Para além do corpo-máquina a ser domado pela analítica-disciplinar cartesiana, emerge o corpo-biopolítico transcendental, composto por condições de possibilidade a serem constantemente revistas em seu cálculo a partir de fórmulas gerais, trocando a precisão da essência pura do cogito pelas aporias possíveis do entendimento em sua probabilística jurídica. Não falamos, então, da construção da reta cartesiana, mas sim da instauração do jogo da legislação da razão pura em seu domínio prático, isto é, da tensão do juízo pela formulação de um princípio ético logicamente estabelecido para o exercício da liberdade: um dever universal por ser formal, pretensamente sem conteúdo, ilusoriamente sem posição. Em oposição à causalidade que deriva da necessidade sensível, na qual toda causa é determinada por outra causa anterior em uma regressão ao infinito de condicionalidades determinísticas, a causalidade oriunda da formulação desse princípio ético se apresenta como uma condição deduzida dos princípios da razão pura (que é causa de si mesma), uma condição incondicionada. Uma espécie de protoação em pura forma por meio da qual o sujeito individual acolhe o princípio universal de todo o agir, isto é, a máxima moral da razão que ele representa para si (Kant, 1785/2011). Contudo, pelo fato dessa máxima moral ter de competir com as necessidades sensíveis que afetam diversamente a cada sujeito individual ou coletivo histórico, não basta que a sua acolhida seja universal, ela também tem de ter a força de uma necessidade racional. É por isso que esse princípio ou essa máxima se apresenta na forma lógica do imperativo categórico do dever.
O dever, como sublinha Giacoia Jr. (2012, p. 54), "nos termos de Kant, define-se como aquela ação à qual alguém está obrigado [...] obrigação é justamente a necessidade de uma ação livre sob um imperativo da razão". Em outras palavras, Kant (1785/2011) distingue na autoimposição de uma obrigação moral um comando necessário da razão de todo ser racional. E na medida em que ele apresenta esse comando como uma condição incondicionada, a sua consecução é justamente a consecução da liberdade (para quem pensa a liberdade como arbítrio/livre-arbítrio/ato espontâneo). O imperativo categórico, como uma forma lógica abstraída de quaisquer conteúdos, é a produção de uma condição incondicionada: "Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal" (Kant, 1785/2011, p. 62). O arbítrio vai se configurar aí como uma arena de combate no interior da qual há um confronto entre os móbiles sensíveis da ação e a razão por meio do imperativo categórico. Desse confronto saem as máximas morais individuais e coletivas que determinam o arbítrio com vistas à ação. As quais são formalizadas na forma lógica do imperativo categórico, que "ganha" em todos os casos. Ao fim e ao cabo, ninguém escapa de ser julgado pela máxima moral da razão que acolhe e representa para si.
Mas por mais complexa que seja a máquina kantiana do arbítrio, ela precisa recorrer a uma experiência comum: a "voz da razão" que fala na consciência. A fundamentação da heteroimputação - juízo moral sobre a ação que recai sobre o caráter "inteligível" do agente para delimitar responsabilidade penal - requer a possibilidade de uma autoimputação. A consciência moral é, em Kant, a sede de emergência do único "fato da razão": um sentimento de respeito pela lei moral produzido, na sensibilidade, pela consciência da lei moral (o imperativo). É dela também, da consciência da lei moral, que deriva o processo por meio do qual a consciência moral se torna a sede de um tribunal sob a determinação formal da lei moral (Giacoia Jr., 2012). Como se o confronto ante cada determinação do arbítrio se prolongasse em uma batalha judicial, na qual, após transcorrida a ação, a voz que outrora aconselhava se transformasse em um juiz que dá ouvidos (e voz) às arguições da acusação e da defesa e que, a partir daí, profere a condenação ou a absolvição. E havendo a condenação, o arrependimento ou o sentimento de culpa estaria fundado na recordação do feito, na dor da repetição cujo sentido é o modo "atemporal" da razão pura prática.vi Contra o esquecimento, a consciência moral repercute o acontecido através de uma infalível memória do dever, por meio da qual o dever retoma o seu reinado, mesmo quando, eventualmente, ele é destronado pelo esquecimento.
O dever assim concebido reterritorializa a desterritorialização, justificando diversamente a mesma crença na gramática que faz Descartes voltar a si, intercedendo contra o seu desaparecimento na dúvida hiperbólica: desterritorialização representada pela dúvida metódica, a partir da qual o cogito se concebe e elabora as reterritorializações, como rebatimento entre sujeito de enunciação e sujeito de enunciado (Deleuze & Guattari, 1980/1995). A consciência moral do dever recorda ao sujeito sua obrigação em relação a sua pretensa proveniência, e assim o faz contra o descentramento da desterritorialização, mobilizando para isso as representações transcendentes, isto é, pela crença nos gêneros e funções da gramática. Isso que ela mobiliza, um determinado processo de socialização, é a sua própria procedência: o recentramento da subjetividade ocorre pela dívida em relação ao processo do qual ela provém. É isso um bloqueio transcendental sob o efeito das determinações transcendentes: "Como se diz, a substância deveio sujeito" (Deleuze & Guattari, 1980/1995, p. 88). Fazemos unidade substantiva, individual e coletiva, por obediência a um determinado processo de socialização que aprisiona o devir por sovinice na política dos afetos, pela coação de sentido às palavras.
Também aqui, como no sujeito cartesiano (individual), se trata de visar o sujeito universal da autoconsciência como uma produção, como um modo de relação em convergência tática com outras técnicas. Reconhecemos aqui, é claro, a moral de um rebanho (Nietzsche, 1887/2009), a qual parte da negação do outro para tomar a si como um ponto de referência pretensamente absoluto. Porém, diferente de Descartes, e daí em outra direção, há uma maior ênfase na autonomia do cuidado de si (epimeléia heautoú), há uma retomada da ética antiga - sobretudo da ética estóica, conforme Rohden (2005). Logo, é um rebanho no qual cada um pode/deve se tornar o seu próprio pastor. Por isso, o lugar do sujeito kantiano não é nos espaços disciplinares, nos quais o que encontramos é um sujeito preso a uma relação de pura obediência. Seu lugar é no espaço pensado pela biopolítica (Foucault, 2004/2008). Ele é o sujeito da biopolítica. Posto que o princípio do seu agir faz da liberdade uma necessidade a parte das necessidades (uma necessidade em si mesma), ele se coaduna ao governamento dos liberais e dos fisiocratas, para os quais está pressuposta a necessidade da não necessidade, o imperativo da probabilidade e não da determinística obediência cega ao código. Com isso, passamos da normação disciplinar, que produz o normal e o anormal através de uma norma fixa (transcendente), à normalização da biopolítica, quando a produção se dá mediante uma norma variável, uma norma em jogo no interior das normalidades diferenciais (Foucault, 2004/2008). Um ideal sem conteúdo, puramente formal, transcendental, torna possível uma variação sem o abandono de um centro, isto é, sem o abandono da busca por um centro cuja possibilidade de assegurá-lo é sempre relativa a um entorno mutante (não uma essência ideal, um ideal-dado atemporal, e sim um ideal de possível, um exercício possível no tempo).
Nessa mesma afluência entre Kant e biopolítica, encontramos, para além da res extensa e da res cogitans, uma noção de res pública que é, ao mesmo tempo, a dimensão compatível ao uso universal da razão e a dimensão na qual as condições empíricas para tal uso podem ser agenciadas. Através das lentes da biopolítica, segundo Foucault (2004/2008), o público é a população enquanto uma superfície de contato. A população, com os seus fenômenos calculáveis em estatísticas, é o objeto alvo do qual se ocupa a biopolítica, é o meio sobre o qual ela age e que ela procura agenciar probabilisticamente. E se apresenta em dois sentidos: como espécie humana, inserida entre os outros seres vivos, e como o público, que é "a população considerada do ponto de vista das suas opiniões, das suas maneiras de fazer [...] aquilo sobre o que se age por meio da educação, das campanhas" (Foucault, 2004/2008, p. 99). A população, portanto, é tudo o que se estende do arraigamento biológico pela espécie à superfície de contato para transformações calculadas e refletidas, oferecida pela esfera pública. Assim, a biopolítica exige uma (relativa) livre inscrição das opiniões e circulação das ideias no público: apenas pela livre expressão na esfera pública a humanidade chegaria da menoridade à maioridade, ao Esclarecimento (Aufklärung).
Para Kant (1784/2012), em linhas gerais, o Esclarecimento (Aufklärung) é o processo pelo qual a humanidade deve sair de um estado de menoridade ou imaturidade: um estado no qual o sujeito obedece irrefletidamente; um estado no qual ele transfere a autonomia do cuidado de si a um outro, um pastor ou um agente disciplinarvii, que exerce o cuidado pelos outros (epimeléia tôn allôn); um estado em que, se nele ele permanece estando em posse de si, então trata-se de um estado autoimposto e, portanto, a ele deve ser imputado. É para refletir acerca da permanência e da saída desse estado que Kant evoca as noções de privado e público. Não como dois diferentes estados de coisas e sim como dois diferentes usos das faculdades da razão. O uso privado seria o uso da razão nas relações em que a obediência precisa estar à frente da reflexão, nas nossas atribuições como indivíduos-elementos funcionais de um corpo social ou político. Já o uso público seria o uso da razão na dimensão do universal, onde a obediência deve ser suspensa em prol da livre reflexão. Um tal uso é, precisamente, aquele que é exercido pelo escritor em sua relação com o leitor: "Entendo por uso público de sua própria razão aquele que qualquer homem, enquanto estudioso, realiza diante de todo o mundo letrado" (Kant, 1784/2012, p. 147). Nesse sentido, segundo o diagnóstico kantiano, a autoimposição da menoridade seria o efeito da generalização da obediência em detrimento da reflexão. Por conseguinte, enquanto que restringir a livre reflexão no uso público seria um entrave ao Esclarecimento, dar condições a essa livre reflexão o favoreceria. O escritor, o "homem culto", despertaria no leitor o gosto pela reflexão e seria um agente da passagem de uma obediência irrefletida para uma obediência refletida, em favor do dever, da virtude de não obedecer senão a si mesmo. Porém, em uma esfera pública delimitada apenas pela forma (racional) do debate e não pelo conteúdo das proposições, o efeito desta modulação liberal do público, para muitos, foi a conclusão de que "tudo é permitido". Até mesmo a contestação da ordem, a qual, no lugar em que se recebe, é atestada e cumprida: o soldado deve cumprir a ordem que o seu superior lhe dá, mesmo que não concorde com ela, no entanto, ele pode, "enquanto estudioso do assunto, fazer observações sobre os erros no serviço militar, e expor essas observações ao seu público, para que as julgue" (Kant, 1784/2012, p. 148).
É a isso que podemos chamar de um bloqueio transcendental. A escrita devém uma prática dessubjetivante que opera a desterritorialização do cogito substantivo, no entanto, há uma reterritorialização do cogito por meio do sujeito anônimo-universal, transcendental, o qual autoriza o escritor a falar em seu próprio nome na forma do universal. Desde a dúvida hiperbólica de Descartes é sempre uma mesma coisa, porém diferida no recurso utilizado para contornar o ceticismo radical: tudo é colocado em questão, resta um eu, o qual volta a viver e a obedecer como autor e réu da ação e do pensar. É transgredido o limite transcendente da res cogitans, mas o sujeito leva consigo um limite móvel, que torna sempre a reencontrar: o limite transcendental. Em Kant, toda transgressão, toda abertura, se faz em nome da lei do dever, contrária ou favorável a ela, a ser julgada por ela (pois esse dever é poder). Por conseguinte, qualquer que seja a transgressão própria ao discurso literário no qual o sujeito deveio um morto no jogo da escrita, e ainda que então ela se dê a partir de um outro princípio ético que não mais o dever, podemos supor que, entre uma e outra, operam certas condições de possibilidade que são comuns a ambas. Quando o sujeito-autor desaparece, contra a produção de outro bloqueio transcendental, é a elas que devemos remeter o seu aparecimento e, em parte, também o seu desaparecimento, o seu fundamento ou o seu arriscado afundamento no anônimo-universal - entre a assunção de uma diferença/limite e o indiferenciado, com o declínio da negatividade da disciplina e do dever e com o incremento neoliberal à positividade do poder (Han, 2014/2018).
Entre essas condições, estão os aparatos jurídico-institucionais dos direitos de propriedade do autor. Os quais possibilitam um tipo de apropriação dos discursos cuja forma se constituiu através de uma apropriação penal. Isto é, a necessidade de remeter um discurso ao nome de um autor se deu, inicialmente, contra a circulação ilimitada de discursos que, sob a ótica do binômio proibido/permitido, eram visibilizados como transgressores. Nessa dimensão (do público), antes que o discurso fosse tomado como um bem (um produto) de apropriação limitada e circulação ilimitada, a limitação da apropriação visava limitar sua circulação anônima e incontida e sua "mistura" devido ao contágio entre seus modos - não como um bem e sim como um gesto visibilizado no campo bipolar do lícito e do ilícito, do sagrado e do profano (Foucault, 1969/2009). Foi somente com a instauração de um regime de propriedade sobre os textos, entre o fim do século XVIII e o início do século XIX, que "a possibilidade de transgressão que pertencia ao ato de escrever adquiriu cada vez mais o aspecto de um imperativo próprio da literatura" (Foucault, 1969/2009, p. 275).
Portanto, tanto o aparecimento como o desaparecimento do sujeito-autor dependem de uma espécie de triplo enlace entre autoria, culpa e propriedade, o qual libera o discurso transgressor ao mesmo tempo em que mantém a exigência de que alguém dele se aproprie e por ele responda diante do mercado, da lei e da moral. E na dimensão própria ao dever ou, mais precisamente, à face jurídica do dever, a culpa com autoria ou a transgressão, própria àqueles que se dão o limite do dever, contrasta com uma culpa sem autoria, ou seja, com o alterocídio. É assim que, no sistema jurídico kantiano, há uma coisa que é também pessoa ou sujeito, uma coisa em si, com a condição de ser imputável. E há uma outra coisa que é tão somente coisa, que não pode ser imputável e que não goza dos direitos da pessoa ou do sujeito (Kant, 1785/2011). Na dimensão legal da autoria, a lei do dever é uma condição. E em contraste, na racista e misógina hierarquização kantiana da humanidade o alterocídio (Mbembe, 2014) e a necropolítica (Mbembe, 2003/2018) são as tecnologias de governo destinadas aos minorados: objetualizados são considerados incapazes de autoria, mas portadores de uma culpa inerente à própria condição, independente de ação e arbítrio. Majorados e autores seriam apenas aqueles que comungam do pretensamente universal exercício do arbítrio segundo o dever imposto pelo imperativo categórico: na assunção de uma certa lei como limite de um certo contrato, de uma certa sociedade, tornados absolutos pela forma que se quer universal e civilizatória sem ver seu avesso. Aos minorados por estigmas de raça, classe, gênero, especismos, entre outros, caberia a culpa sem autoria, enquanto aos demais culpa e autoria seriam uma unidade indevassável no mérito e na responsabilização. Em Kant, assim, assumir o livre exercício do dever é tornar-se sujeito, inclusive de direitos.
Em outro lugar, na psicanálise edificada sobre o Édipo universal, podemos encontrar algo parecido. Essencialmente através da edipianização (castração pela lei paterna/simbólica), isto é, por meio da legitimação de um uso transcendente das sínteses passivas do inconsciente, que produz e reproduz o triângulo sob a ação do significante, que converte o inconsciente maquínico e produtivo em um teatro familiar (Deleuze & Guattari, 1972/2011). Mas também através de um princípio ético (transcendental) sob o efeito desse uso transcendente das sínteses (o desejo como falta). O que equivale a uma psicanálise castradora e a uma psicanálise do castrado, cuja interpretação é o silêncio que evoca e invoca a "falha estrutural" produzida (vejam bem...) pela estruturação.
O pontapé inicial dessa operação, na psicanálise, pode ser encontrado na universalização do Complexo de Édipo através do parricídio contra o pai da horda primeva, o mito da transgressão em bando à "lei do mais forte" que funda uma lei autoimposta perenizada por uma culpa filial. Foi a partir desse mito que Freud (1913/1996) derivou o surgimento da consciência moral e da culpa ressentida, tramando-o à triangulação edipiana. O Édipo foi aí remetido à origem da Civilização (da Cultura), como solução neurótica ao conflito internalizado: os machos irmãos se unem em sua ira contra o pai tirano, que interditava suas incursões sexuais com as fêmeas da horda e as possuía exclusivamente para si, eles o matam e o canibalizam. Porém, após a desforra, um sentimento de culpa (um remorso, uma angústia) acaba se abatendo sobre todo o bando, sentimento que é a resolução, para Freud, de uma ambivalência: é que o ódio-temor à força do pai era acompanhado por um amor a ela e à organização por ela constituída (e libidinizada-libidinizadora por-de todos). Uma admiração-inveja, uma ambição de querer ser a sua força/ ter o que ela possuía, ambição de identificação buscada no ritual da incorporação canibalística. Um amor à ordem do mundo que, quando perdido, resta como excesso, ansiedade e angústia a serem debelados por uma nova ordem que restaure o amor perdido: totem, lei, luto e melancolia (Butler, 1997/2017). Assim, em direção à restauração, a identificação ritualizada institui o superego, o qual, por sua vez, afetado pela ambivalência, passa a interditar a exteriorização da agressividade, a sua repetição, e a faz retornar sobre o ego, o qual se pune para anular o acontecimento do crime. Ou seja, não para quitá-lo em definitivo, e sim como uma obediência atrasada a uma lei violenta, para se esquivar da violência da lei (o excesso), para não se confrontar com o real do crime.
É pela referência a esse hipotético crime real tornado irreal em uma realidade psíquica, a essa espécie de salto da natureza à Cultura, que Freud supunha a universalização do Édipo, daí derivando a origem do clã totêmico - de seus dois tabus (a proibição de matar o totem, substituto do pai, e a exogamia) e da refeição totêmica (rememoração comemorativa da partilha do pai). E o uso transcendente das sínteses do inconsciente, a edipianização, encontrava aí um princípio em defesa da sua necessidade prática, já a meio caminho de uma lei transcendental: um Édipo filogenético ao Édipo ontogenético, um modelo, um princípio invariável (inato), uma Castração a demandar a operação de um verbo, castrar, uma travessia necessária. Perda traumática e restauração filogenéticas a serem repetidas na ontogênese do sujeito para reiterar a Civilização. Assim, tudo o que se entende por processo civilizatório (a organização social, as religiões, a moral, a ética, etc.), desde sempre na contramão de uma animalidade minorada (um "estado de natureza"), seria efeito diferido de um crime tornado comum, um crime a exigir cumplicidade, uma culpa filial. Todas as conquistas culturais seriam devidas a essa dívida primeira, eternizada por um recalcamento originário, motivo pelo qual a sua expiação em definitivo seria um contrassenso sinalizado, por exemplo, nas formas extremas do ascetismo, frutos de uma ambivalência inextinguível. Pagar essa ilusão equivaleria a romper com o "futuro" que ela nos promete: uma unidade ainda que por vir, um ideal do ego (eu sei - ele sabe - que você quer ser como o/a papai/mamãe, mas agora você não pode, um dia você poderá...).
Contra a consciência moral ressentida, porém, como bem observa Giacoia Jr. (2001),não a favor do seu ultrapassamento, da sua inversão, a psicanálise edipiana produz a revogação (interminável) da dissolução de um conflito, sempre a dar de cara, mais à frente, com o rochedo da castração - o limite como falta. Nessa perspectiva, a lei simbólica põe o objeto causa do desejo que ela mesma interdita, que ela mesma faz faltar, motivo pelo qual se pensava que a transgressão da lei seria também a sua confirmação (falta móvel). Essa dialética entre lei e transgressão era um dos alvos da crítica de Deleuze e Guattari (1972/2011) à psicanálise edipiana, os quais também contestavam o que então se colocava no lugar do objeto real, da Coisa, e através do que se inferia um desejo transgressivo diverso da transgressão real aos interditos: o fantasma, a encenação do desejo. Reduzia-se assim a produção do desejo à produção de fantasmas, como uma duplicação da realidade social em realidade psíquica, uma expressão, uma imaginação estruturada pela lei simbólica, um gozo castrado. E ignorava-se, com isso, a emergência da transgressão em seu sentido histórico. Pois, como foi realçado por Birman (2008), na esteira da genealogia foucaultiana, a problemática da transgressão (noção que emergiu apenas no século XV) se constituiu e se aprofundou no final do século XVIII, disparada pela crise moral da religião e pelo discurso filosófico da morte de Deus. Face a isso, ler o problema da transgressão a partir da castração, fundá-la numa suposta lei transcendental e a-histórica, seria ignorar o acontecimento histórico da queda dessa lei simbólica (transcendente), o qual, em seus efeitos, tornou a transgressão uma espécie de imperativo. Igualmente, com isso, ao se instalar no registro da lei, a psicanálise se ocupou de uma forma estrita do poder (o poder soberano), sem ater-se ao poder que então passou a agir sobre esse imperativo da transgressão, desconhecendo o que se passava com seu próprio sujeito: os regimes de subjetivação, as tecnologias de um poder pastoral e as suas variações na normação disciplinar e na normalização biopolítica. E ela mesma, por meio da edipianização, se aliançou a esse exercício do poder.
Por conseguinte, quando a ética da psicanálise se funda a partir do teatro familiar edipiano e sua noção de interdição-castração mais do que na agonística com o real-(im)possível, vemos ela se aproximar de uma ética fundada no dever. Como em uma ética do dever, ela finda por tomar as relações de poder preferencialmente por sua acepção repressiva e adaptativa-conservadora em detrimento de sua compreensão como jogo inventivo e prática produtiva (da qual a própria negatividade do dever é uma das suas narrativas possíveis no poder pastoral, disciplinar ou biopolítico). Em função disso, ambos os horizontes éticos podem reiterar a experiência de uma consciência moral ressentida, ou a fazendo derivar de um fato da razão ou a fazendo derivar de um fado, uma culpa filial. Nessa mesma medida, através da afirmação de uma lei transcendental, a autoria individual do cogito ou do sujeito barrado é reafirmada, na forma de um sujeito universal. E em outra direção, complementar a essa, uma ontogênese dual vem fazer a função do dualismo cartesiano, por meio da qual o sujeito promove o alterocídio consigo e com o outro, restringe para si e para o outro o quão longe é aceitável que seja possível se aventurar na dúvida hiperbólica.
RESSENTIMENTO, CULPA E ALTEROCÍDIO
Podemos encontrar em Nietzsche (1887/2009), em "Genealogia da Moral", uma outra hipótese para a gênese da consciência moral, hipótese na qual a culpa aparece como uma tecnologia de produção do sujeito, uma mnemotécnica que escava profundidades e ruminações para promover generalidades e semelhanças. O essencial dessa mnemotécnica teria surgido em um processo pré-histórico de hominização, a favor da capacidade de fazer promessas e contra o esquecimento ativo. Esquecimento que, para Nietzsche (1887/2009, p. 43), seria uma força ativa, benéfica, condição de suma importância para fruição dos "aquis" e "agoras" do presente: "espécie de guardião da porta, de zelador da ordem psíquica, da paz, da etiqueta: com o que logo se vê que não poderia haver felicidade, jovialidade, esperança, orgulho, presente, sem o esquecimento". No entanto, para que o animal esquecediço pudesse prometer, para que pudesse responder por si como porvir, foi preciso dilatar o seu querer e escandir o presente em passado e futuro, foi preciso ensiná-lo a prever, a calcular, a distinguir o casual do necessário, a estabelecer os meios e os fins para os meios. É esse o sentido de uma mnemotécnica: talhar uma memória da vontade para apassivar o esquecimento ativo, em favor da capacidade de fazer promessas.
E o mais poderoso auxiliar dessa mnemotécnica foi a dor. É o que se pode ver em alguns dos seus efeitos tardios: a atmosfera dos suplícios, os cruéis castigos no exercício do poder soberano-monárquico (apedrejamento, esquartejamento, esfolamento, etc.) e os exercícios do ideal ascético, do poder pastoral, para fixar as ideias valorativas desse ideal (do autoflagelo às privações, o jejum, a vigília, etc.). Entretanto, a equivalência entre dor e remissão, elemento articulador dessa mnemotécnica, Nietzsche a remete não apenas a um passado muito remoto, mas também a uma outra esfera, a saber: na gradual configuração de sistemas de equivalências entre bens e de contratos ajustados à proteção dos credores, ou seja, na relação entre credor e devedor, em um direito pessoal primitivo. Nessa relação, o devedor empenhava ao credor, por meio de um contrato, "seu corpo, sua mulher, sua liberdade ou mesmo sua vida [...] o credor podia infligir ao corpo do devedor toda sorte de humilhações e torturas" (Nietzsche, 1887/2009), p. 49). Estabele cia-se aí um sistema de equivalências entre coisas distintas. O credor trocava um dano material, uma dívida não paga (terras ou bens de qualquer tipo), por uma espécie de satisfação íntima: causar dor ao devedor, vê-lo sofrer, fazê-lo sofrer. Um dano pecuniário era convertido em um direito sobre o corpo do outro, em uma ocasião para subjugar o outro no interior de uma relação contratual, ritualizada. O credor se apropriava do corpo do devedor. Portanto, a ideia de culpa, depois interpretada em termos metafísicos, seria derivada do conceito material de dívida, enquanto que a necessidade do castigo teria se constituído como um prazer substitutivo a um dano material e, portanto, às margens de um problema acerca da liberdade da vontade.
Por muito tempo, ao largo de uma interpretação religiosa da dívida, o que se passou, segundo essa hipótese, foi um trabalho do animal homem sobre si mesmo, uma autoconfiguração da memória através de meios rudimentares. O salto de aperfeiçoamento dos hábitos de trocar, imaginar equivalências, medir valores, estabelecer preços, comparar, calcular etc., teria decorrido dessa primordial relação contratual entre credor e devedor. E a gênese do Estado, igualmente. Se antes tratava-se de fazer a faculdade de prometer subsistir como disposição psíquica permanente em credores e devedores, no caso da gênese do Estado, "a tarefa consiste em organizar uma população errante, até então unicamente arrastada pelo torvelinho dos impulsos, nela imprimindo a forma estável da sociedade e da paz" (Giacoia Jr., 2001, p. 115). A violência do Estado (em defesa da ordem) age sobre a plasticidade do esquecimento ativo, através da dor (que comporta a privação, a desonra), ela é um meio para a produção do que Nietzsche (1887/2009) chamou de psicologia da interiorização. E age sobre a violência em jogo na satisfação substitutiva, no prazer em ver-fazer sofrer, no prazer da guerra, no prazer em fazer inimigos (e, no caso do ressentimento, sobre o ódio fermentado, a vingança). Inicialmente, teria sido isso a má consciência: todos esses prazeres, contrários à forma estável da sociedade, vão se voltando para dentro e vão inaugurando a câmara de tortura do culpado.
Essa interiorização é a constituição do que depois se entenderá por alma: como escreveu Foucault (1975/2013), a "prisão do corpo". A passagem de uma coisa à outra se deu a partir das interpretações religiosas da matriz obrigacional, de uma lenta e gradual espiritualização das categorias de credor e devedor. Em um primeiro momento, se inscrevendo entre os membros das comunidades de estirpe, das aldeias, tribos ou clãs e seus ancestrais primordiais, os quais passam a valer como os credores: "a figura do ancestral comum passa a ser interpretada como responsável pela doação do mais precioso dos bens: a vida protegida e a prosperidade assegurada pela coletividade" (Giacoia Jr., 2001, p. 118). Recai sobre as gerações subsequentes o dever de uma retribuição. A manutenção das benesses adquiridas exige que se conscientize nelas uma tal obrigação, a qual se torna mais ingente quanto mais forte se torna a consciência de liberdade/poder da coletividade. Até que a figura do credor vai se tornando divina. E as formas de monoteísmo, portanto, seriam o resultado de um aumento superlativo da consciência de poder em decorrência do surgimento das potências imperiais (Giacoia Jr., 2001). Porém, nesse estado de coisas as figuras do credor e do devedor permanecem exteriores uma à outra. Não há ainda o definitivo colapso entre as esferas do sagrado e do profano. Esse colapso, como foi destacado por Agamben (2005/2007), só ocorrerá a partir das tendências messiânicas do cristianismo.
O colapso acima referido, segundo a genealogia nietzschiana, poderíamos entendê-lo através da ação conjunta de dois acontecimentos: o efeito de uma psicologia da interiorização, isto é, a saída (para dentro) que as forças ativas encontraram depois que foram comprimidas pela camisa de força do Estado, a autotortura como uma satisfação substitutiva; e a moralização das categorias de credor e devedor, efetuada por uma particular interpretação religiosa da matriz obrigacional, isto é, a interpretação da moral judaico-cristã. Ao mal estar que resultou da psicologia da interiorização, o sacerdote ressentido foi o primeiro a dar a ele um sentido moral. E o máximo do sentimento de culpa se deu com o sacrifício do Credor por amor aos devedores e pelo arraigamento da origem da culpa na própria natureza do devedor ("o pecado original", a "mácula"), o que estabeleceu o paradoxo de uma expiação permanente, exigida pela má consciência, de um pecado inexpiável. Assim, a relação entre credor e devedor deixa de ser uma relação de exterioridade, derivada da matriz obrigacional do direito pessoal, e é transformada na consciência de uma dívida permanente (Giacoia Jr., 2001). Isso abre o caminho "para o surgimento de figuras mais sutis da rigidez moral no Ocidente e prepara o surgimento da noção venerável de santidade do dever, em que acabam por se fundir, na alma do próprio devedor, as figuras do antigo credor e devedor" (Giacoia Jr., 2001, p. 125). Nesse sentido, a consciência moral do dever aparece como o efeito da culpa enquanto uma mnemotécnica.
Essencial nesse processo foi a interpretação do sacerdote ressentido, através da qual o embate titânico entre o esquecimento ativo e a memória da vontade, em cujo horizonte estava a consciência de liberdade/poder, acabou se acomodando a um sentido de rebanho. O ressentimento tornou ressentido o sujeito da má consciência e não cessou de torná-lo ressentido. É que a moralização das categorias de credor e devedor consistiu em fazer da má consciência uma superioridade moral - Giacoia Jr. (2001) vê nisso um movimento complementar de interiorização das correntes pulsionais agressivas. Essa moralização é justamente a transvaloração dos valores afirmativos de si e do mundo em valores de uma moral do rebanho: bom e ruim valem como sinônimos de nobre e plebeu, eles marcam uma diferença de estamento como simples privilégio de pertencimento à linhagem dos conquistadores; bom e mau são valores que operam sobre as condutas, eles visam abolir toda e qualquer diferença (não a de estamento, a abolição dessa funciona apenas como uma promessa em favor da abolição das outras, ela é o pretexto indispensável). Uma conduta sem valor algum, que foi um efeito indesejado da psicologia da interiorização, aos poucos passou a ser superestimada e "desejada"; valendo-se de uma sedução gramatical (a duplicação do eu do enunciado em um eu da enunciação), essa superestimação foi inventando um sujeito-desejo do efeito indesejado, ela possibilitou "aos fracos e oprimidos de toda espécie, enganar a si mesmos com a sublime falácia de interpretar a fraqueza como liberdade, e o seu ser-assim como mérito" (Nietzsche, 1887/2009, p. 34).
E o paradoxo, nisso tudo, é que as provações e privações que esse sujeito impõe a si são uma forma de lidar com a vingança insatisfeita, em favor da promessa de uma outra vida. Em verdade, a transvaloração dos valores operada pela casta sacerdotal brotou, ela mesma, da impotência dessa casta diante do modo de valoração nobre-aristocrata (fundado na conquista, no prazer da guerra, na demonstração da força...). A recriação desses valores, que fez recair sobre o conquistador o valor de mau, foi uma tentativa de reparação através de uma vingança imaginária, foi "um ato da mais espiritual vingança" (Nietzsche, 1887/2009, p. 23). E foi precisamente pela prescrição dessa modalidade de reparação que o sacerdote ascético viabilizou a manutenção dos valores transvalorados. Essa modalidade de reparação é a própria mnemotécnica da culpa.
Ela age sobre o ressentimento do rebanho mudando a sua direção: em nome de uma justiça futura, mais além, o culpado que o ressentido procura fora (em um bode expiatório), ele não cessa de reencontrá-lo dentro de si e de renunciar à sua vida para expiar a culpa. No limite, o que se quer é transformar também o mau em um bom, em um culpado, porém, antes que se o converta a culpa não pertence a ele: o mau é o outro, mas somos nós, os bons, que temos a culpa por todo o Mal... Ao mau, ao outro não convertido, a culpa não pode pertencer, pois ele é o próprio Mal, a culpa lhe é inerente (a mácula, a nódoa...). A culpa sem autoria/posse, forjada pelo alterocídio (Mbembe, 2014), é um complemento necessário à mnemotécnica da culpa: "Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesma, já de início a moral escrava diz Não a um 'fora', um 'outro', um 'não-eu' - e este Não é seu ato criador" (Nietzsche, 1887/2009, p. 26). E ao outro, àquele em que o ressentimento não "vinga", o alterocídio deve predominar, com seus mil modos de fazer morrer, os quais começam com a atribuição de um valor mortificador.
A ficção de um sujeito universal da autoconsciência tem como seu complemento necessário a ficção de um Outro do humano, o qual estaria do outro lado de uma linha invisível que dele nos separa, outro lado no qual a lei seria a lei da violência pura e simples. Trata-se, em suma, de inventar um não sujeito para dar sentido à invenção do sujeito. Essa segunda ficção pode ser encontrada em Mbembe (2014), em "Crítica da Razão Negra". Com Mbembe, podemos pensar nas fontes baptismais da nossa modernidade a partir da articulação entre duas tecnologias, as quais se produziram no interior do projeto colonialista/imperialista e impulsionaram o modo capitalista de produção: o alterocídio, como condição de possibilidade ao comércio de escravizados e ao genocídio dos povos africanos e indígenas, somado à organização da mão de obra em uma massa de escravizados (ou pessoas em situações análogas de exploração) nas plantations da América, já segundo parâmetros industriais. Enquanto a primeira efetua uma desqualificação moral do Outro, a segunda se apoia na primeira em favor de uma instrumentalização prática do Outro (produção de mais valia).
A diferença entre os regimes de escravatura transatlântica e as formas autóctones de escravatura nas sociedades pré-coloniais se deve, precisamente, à articulação entre essas duas tecnologias. O escravizado de origem africana, ao mesmo tempo em que era explorado nas colônias de plantação, era formalmente diferenciado do servo branco, em torno da lógica racista que diferenciava o servo situacional do servo por natureza. Aos visibilizados pela imagem colonial do Negro - e aos seus descendentes - se anunciava uma servidão perpétua, a qual era tornada possível por meio da construção da sua incapacidade jurídica: "A perda do direito de apelar aos tribunais faz do Negro uma não-pessoa do ponto de vista jurídico." (Mbembe, 2014, p. 42). Como objeto dessa dupla captura (desqualificação moral e instrumentalização prática), esse escravizado de origem africana, diz Mbembe (2014, p. 90), "representa [...] uma figura relativamente singular de negro, pela particularidade de ser uma engrenagem essencial de um processo de acumulação à escala mundial."
O genocídio dos povos africanos e indígenas é tanto uma modalidade do alterocídio como uma consequência da lógica alterocida. Nessa lógica, o Outro já está morto antes de morrer. Isto é, aquele cuja vida pretensamente pertence ao seu senhor, para a lógica colonial, já perdeu a vida antes de morrer: "A morte do escravo assinala o fim do objecto e a sua saída do estatuto de mercadoria" (Mbembe, 2014, p. 142). Uma particular mobilização do medo e do ódio é uma condição para essa morte. O ódio apazígua o medo fóbico, mas o medo fóbico impede a passagem do ódio a algum outro afeto (quiçá o amor), ele faz o ódio ser ressentido. O alterocídio é a mobilização imaginária dessa disposição afetiva, através da qual o Outro é constituído "não como semelhante a si mesmo, mas como objecto intrinsecamente ameaçador, do qual é preciso proteger-se, [...] ou que, simplesmente, é preciso destruir, devido a não conseguir assegurar o seu controlo total" (Mbembe, 2014, p. 26).
Decisivo, sobretudo para a invenção colonial do Negro como forma de expropriação, foi o tratamento moral do problema da raça. A raça, sob os efeitos da falaciosa equação cristianismo = civilização, é uma espécie de enquadramento para a projeção do delírio. Como contrapeso necessário a uma biopolítica, a serviço de um deixar/fazer morrer, a "raça é, simultaneamente, ideologia e tecnologia de governo" (Mbembe, 2014, p. 71). É assim que, sob a trama do mito da superioridade racial, sob a ficção de uma autoconsciência universal, as raças ditas inferiores foram constituídas como figuras "do dissemelhante, da diferença e do poder puro do negativo [...] manifestação por excelência da existência objectal" (Mbembe, 2014, p. 28). A partir dessa hierarquização moral da ontologia, a "África, de um modo geral, e o Negro, em particular, eram apresentados como símbolos acabados desta vida vegetal e limitada [...] o exemplo total deste ser-outro" (Mbembe, 2014, p. 28). Assim, particularmente no contexto do racismo colonial, o ressentimento alterocida teve a sua expressão máxima.
O alterocídio faz da submissão do Outro ao Mesmo uma necessidade, em função de uma ameaça sempre presente, a finitude, e da qual o Outro vem a ser o signo. Submetê-lo, assim, é como engendrar um morto para negar nossa finitude - o Corpo sem Órgãos (CsO). O CsO, enquanto modelo da morte, é condição à experiência inconsciente da morte (o devir) através da atração-repulsão com a qual junta-disjunta os órgãos-objetos parciais. Enquanto que a cada vez que o sujeito se fixa como um Eu, dá-se o retorno ao modelo da morte, intensidade-zero, em um ciclo que se fecha. Nesse sentido, a morte não se opõe ao devir, à vida mesma, mas é condição ao recomeço a partir da intensidade-zero (Deleuze & Guattari, 1972/2011). Com o alterocídio é como se a referência do modelo da morte fosse cristalizada exclusivamente no/ao Outro, objetificando-o como um não-sujeito. Isso reflete a negação inerente ao Mesmo, ao alterocida, em relação ao fato de que não vive, de que é um morto fixado em uma forma por força de uma sedução gramatical, isto é, de que não sabe morrer, de que não faz a experiência da morte.
E o engendramento de um morto (um CsO esvaziado) é condição imprescindível ao modo capitalista de produção, ou seja, às práticas de apropriação e exploração.
Os efeitos do alterocídio, nessa fase de instrumentalização prática, passam a ser dirigidos pela mnemotécnica da culpa. Sempre que um sujeito é levado a experimentar um ódio acompanhado de impotência perante o mundo, nele começa a vingar a semente do ressentimento. É sobre essa disposição afetiva que se impõe uma mnemotécnica, uma modalidade de reparação imaginária que reafirma o modo de valoração que a tornou necessária. O credor vai se interiorizando no devedor ao fazê-lo contrair uma dívida consigo, em favor de uma dádiva: "O futuro do Negro era sempre um futuro delegado que o seu senhor lhe oferecia como uma dádiva, a alforria" (Mbembe, 2014 p. 259). Na alforria prometida, talvez pela primeira vez, a mnemotécnica da culpa começou a ser ajustada à produção de mais valia do capitalismo. A produção de uma relativa desvitalização do corpo é um dos pontos de encontro entre o regime de plantação e o regime disciplinar fabril: a obediência articulada à submissão faz aumentar as forças do corpo, em termos de utilidade, entretanto, o crescente dessas forças em termos de utilidade equivale ao seu decrescimento em termos políticos (Foucault, 1975/2013). Porém, somente no primeiro regime o estado de exceção sobre o qual se funda a produção de mais valia funciona como regra.
A imagem subalternizante do Negro afirmada pela lógica colonial não existe enquanto tal, mas é incessantemente produzida por uma desqualificação moral e por uma instrumentalização prática, no encontro entre duas tecnologias de submissão e exploração: "Produzir o Negro é produzir um vínculo social de submissão e um corpo de exploração" (Mbembe, 2014, p. 40). A produção colonial da ideia de Negro é a tentativa de capturar, esvaziar e coisificar pessoas, como condição para expropriar e negar a elas o que é de sua autoria: "Tudo o que foi produzido pelo escravo foi-lhe retirado - produto do trabalho, progenitura, obras intelectuais. Não é considerado autor de nada que lhe pertença" (Mbembe, 2014, p. 90). E é também, em outro sentido, fazê-las assumirem a autoria e a curadoria de uma forma aparente, da alucinação que lhes projetaram: "A alienação começa precisamente a partir do momento em que o Negro [...] reproduz fielmente esta imago não apenas como se ela fosse verdadeira, mas também como se ele fosse o seu autor" (Mbembe, 2014, p. 196). Condenado a um silêncio sepulcral, reduzido a sepulcro ao ser objetivado como Negro pela lógica colonial, a quem foi adornado com esse nome, a perspectiva de um Esclarecimento só se torna possível por meio de um enclausuramento, isto é, por meio da fundação de "uma esfera pública que nada tem a ver com a esfera pública oficial. Em larga medida, o termo «Negro» assinala este estado de diminuição e de enclausuramento." (Mbembe, 2014, p. 92). Para quem foi situado à força em um mundo à parte, como condição para ser expropriado, a estratégia de trincheiras é o caminho lógico da resistência: para transvalorar o estigma em potência coletiva de luta.
Esse mundo à parte, que paulatinamente passou do estigma à potência de afirmação da diferença, foi colonialmente delimitado como um mundo no qual reinava um estado de natureza, um mundo sem lei, supostamente em oposição ao mundo dos ditos civilizados. Assim, todos os critérios jurídicos, morais e políticos reconhecidos aquém da linha que faz divisa com o Outro Mundo, são considerados, para lá dessa linha, não aplicáveis. O Outro Mundo, portanto, é tanto o enclausuramento como a fronteira que não cessamos de recriar, o "espaço aberto para a luta desenfreada, aberto à livre concorrência e à livre exploração, onde os homens podem defrontar-se como animais selvagens" (Mbembe, 2014, p. 109). Ao tomar o Outro como um não civilizado, a lei imposta à força pela lógica colonial se justifica em nome de uma suposta superioridade moral e de um suposto processo civilizacional: "existe um direito, para os civilizados, de dominar os não-civilizados, [...] devido à sua intrínseca inferioridade moral, de anexar as suas terras, ocupá-las e explorá-las" (Mbembe, 2014, pp. 110-111).
Boaventura de Souza Santos vê nisso a ação de um "pensamento abissal". O abismo entre mundos produz o "outro lado da linha" como uma realidade inexistente para quem vive do lado de cá, ele torna impossível a copresença dos dois lados da linha. Para além da distinção que se produz no campo do direito (que forja o estado de exceção do outro lado da linha), um outro exemplo do abismo entre mundos, segundo esse autor, foi aquele que se produziu no campo do conhecimento. O pensamento abissal, em seu lado de cá, concedeu à ciência moderna o monopólio da distinção universal entre o verdadeiro e o falso. Enquanto que, também do lado de cá, estabeleceu distinções visíveis entre as formas científicas de verdade e as formas não-científicas, porém também aceitas, isto é, a filosofia e a teologia. Essas distinções visíveis estão assentes na "linha abissal invisível" que as produz do lado de cá enquanto que, em seu outro lado, onde se encontram os conhecimentos populares, leigos, camponeses, indígenas e entre outros, não se aplicam nem a distinção entre o verdadeiro e o falso e nem os critérios filosóficos e teológicos de veridicção (Santos, 2007). Do outro lado da linha, existem apenas "crenças, opiniões, magia, idolatria, entendimentos intuitivos ou subjectivos" (Santos, 2007, p. 73).
É no outro lado onde tudo se abisma em um indiferenciado inventado em benefício de um uso exclusivo e limitativo das sínteses disjuntivas do inconsciente: entre as funções diferenciantes do triângulo edípico e a ameaça do indiferenciado (Deleuze & Guattari, 1972/2011). O alterocídio, podemos também vê-lo como a invenção de um indiferenciado, uma ameaça às diferenciações exclusivas asseguradas pela lei simbólica: "O cogito, a ser sempre recomeçado como um processo, com a possibilidade de traição que o assola, Deus enganador e Gênio maligno" (Deleuze & Guattari, 1980/1995, p. 86). À vista disso, podemos também tomá-lo como um epistemicídio (Santos, 2007). A invenção de um Outro Mundo é tanto a condição para a expropriação e, atualmente, para o consumo das perspectivas, para a predação fetichista do capitalismo, como também, enquanto uma das possibilidades de um entrincheiramento, para o enclausuramento das perspectivas: isoladas, sem alianças entre diferentes diferenças. Forjar um Outro Mundo, um mundo apartado do comum, é forjar desamparo e isolamento, exposição e solidão.
No entanto, não faltam sinais que hoje nos apontam para uma extensão, a outras partes do mundo, da lógica colonial alterocida imposta à África: ampliação da objetualização do Outro denominada por Mbembe (2014) como devir Negro do mundo. Visivelmente, em uma de suas formas, esse devir nos leva em direção ao abismo, ao indiferenciado que quer tornar tudo igual, igualmente morto. É devir o animal que se vê no Outro: "o colonizador, ao habituar-se a ver no outro a besta, ao exercitar-se em tratá-lo como besta, para acalmar sua consciência, tende objetivamente em transformar-se ele próprio em besta" (Césaire, 1955/2020, p. 25). Pensemos, por exemplo, no atual fenômeno da pós verdade, na utilização perversa das fake news (uma indiferença entre verdade e mentira, que oblitera a produção de uma ficção comum), no levante das novas formas de fascismo (o reverso da neurose, a não negociação, a morte a tudo e a todos), etc.
Mas para além dessa queda no indiferenciado, que dá sustento à expressão máxima do ressentimento alterocida, estamos também a acompanhar o devir Negro do mundo (Mbembe, 2014) em uma versão neoliberal, a qual amplia a retirada massiva de direitos com a lógica do "empresário de si mesmo". Esse é o sujeito da otimização e do desempenho. É o sujeito que transforma a si mesmo em mercadoria para explorar a si mesmo, na medida em que já se tornou supérfluo ao capitalismo. Em uma das suas faces, é o influenciador digital que administra uma marca, que assume a autoria de uma imago e que é condicionado por uma valorização em cifras (likes, views, compartilhamentos, etc.). E se, nessa lógica neoliberal, tudo pode adquirir um valor de mercado, então o trabalho tende a se infiltrar em tudo. Em proveito do desejo de ter uma outra vida/ser um outro, a vida inteira tende a ser oferecida em sacrifício. Esse sujeito é um servo da liberdade individual: "é um servo absoluto, na medida em que, sem um senhor, explora voluntariamente a si mesmo" (Han, 2014/2018, p. 10). O sujeito do ressentimento, entre o alterocídio e a mnemotécnica da culpa, constantemente produzido por essas tecnologias, tende por fim a assumir a forma da mercadoria. Sujeito dividual, constantemente separado de si mesmo, ele deseja tornar-se outro e vive uma mimetização do devir. Vive enclausurado em um estado fronteiriço, em um limite no qual não cessa de desaparecer.
O QUE APARECE QUANDO EU ESCREVO E DESAPAREÇO?
Se o Outro Mundo é cada vez mais o nosso, é porque, em verdade, "apenas existe um mundo. Ele é um Todo composto por mil partes. De todo o mundo. De todos os mundos" (Mbembe, 2014, p. 300). E o Outro, no fundo, é a gente mesmo (somos o outro do outro do outro...): "O outro mais não é do que a diferença e o semelhante reunidos" (Mbembe, 2014, p. 297). Mesmo por isso, precisamos afirmar que um sujeito não é uma forma dada. Um sujeito é antes uma dobra em perpétuo devir. Produto de modos de subjetivação que não cessa de ser produzido. É na experiência que um sujeito aparece. E quando escrevemos e desaparecemos o que aparece é o limite. Mas o limite não é outra coisa que não o limite da experiência. O limite do que podemos experimentar, isto é: as condições de possibilidade da experiência. Estas, no entanto, fazem parte das experimentações. Fazer a experiência de si - "autoexperimentar-se" - equivale ao movimento pelo qual nos deslocamos ao deslocar o que nos fixa e nos imobiliza. Vejamos aqui: avistamos agora, no horizonte, uma autoria no avesso do ressentimento. Porém, este "avistar" é o efeito de uma genealogia nietzschiana que reverberou em nós, que operou um deslocamento em nosso olhar, ao deslocar as coisas que olhávamos. É para ir a um outro futuro que voltamos ao passado. Se a consciência moral ressentida é efeito de uma mnemotécnica, se ela é o estágio de um processo, então o seu ultrapassamento é uma possibilidade real. Para tanto, em lugar da promessa de uma outra vida, trata-se de reativar o embate titânico entre o esquecimento ativo e a memória da vontade, em proveito de uma reconfiguração das promessas. Com isso, o que queremos é uma autoinvenção coletiva.
Existe um esquecimento da memória da vontade, um esmaecimento dos traços distintivos, com o qual se põe em destaque as semelhanças. Mas também existe uma recordação do esquecimento ativo, com a qual os traços distintivos são percorridos em uma experiência com a verdade. Quando desaparecemos, esquecemos de nós mesmos. E então recordamos que somos vários. Que somos vozes recortadas por/de um "agenciamento coletivo de enunciação". Entre outras coisas, com esse conceito de Deleuze e Guattari, queremos dizer que existe um discurso indireto que é primeiro em relação ao discurso direto: "O discurso direto é um fragmento de massa destacado, e nasce do desmembramento do agenciamento coletivo; mas este é sempre o rumor onde coloco minha própria voz" (Deleuze & Guattari, 1980/1995, p. 25). As falas usuais são recortadas do murmúrio por força dos seus usos recorrentes, por força do hábito. Com isso, criamos um território. Um sentido comum. Um silêncio: "VLADIMIR [...] O ar fica repleto dos nossos gritos. (Escuta) Mas o hábito é uma grande surdina" (Beckett, 1952/2015, p. 95). E se, em certa medida, o silêncio se produz enquanto [juntos] falamos coisas escritas, o silêncio cessa em outros momentos, como quando o pensamento se faz escrita: "Escrever é talvez trazer à luz esse agenciamento do inconsciente, selecionar as vozes sussurrantes, convocar as tribos e os idiomas secretos, de onde extraio algo que denomino Eu [Moi]. EU [JE] é uma palavra de ordem" (Deleuze & Guattari, 1980/1995, p. 25). Em certas circunstâncias, a escrita força uma desterritorialização, ela devém uma prática dessubjetivante: um desaparecer, um sucumbir, um morrer pelas próprias mãos. E, com sorte, voltamos ao mundo dos vivos com outra apreciação acerca de quem somos e de quem são os outros. Com sorte, retornamos para uma outra mesma casa. A repetição deixa de ser enfadonha para quem aprende a sucumbir. A experiência-limite do limite como experiência: a vida extraída da morte, o possível extraído do impossível. Só pode fazer um pleno CsO para si quem aprende a não temer o limite, a morte, a finitude. Não temer é ser ao mesmo tempo corajoso e prudente. Pois a falta de prudência nos coloca em desconexão. E a morte pela morte é o fascismo: a morte do Mesmo que passa pela morte do Outro.
Em direção ao avesso do ressentimento, então uma mudança quase imperceptível acontece. Pode ocorrer que nem nos demos conta. Nossos nomes passam a esconder o que revelamos. Começam a funcionar como se fossem pseudônimos coletivos: "Por que preservamos nossos nomes? Por hábito [...] Para passarmos despercebidos. Para tornar imperceptível, não a nós mesmos, mas o que nos faz agir, experimentar ou pensar" (Deleuze & Guattari, 1980/2011, p. 17). Então é ainda por hábito que diremos eu, mas não mais em um mesmo sentido. Não mais em um sentido simbólico, em obediência à ordem de fazer unidade (EU/JE), e sim em um sentido imaginário e real, em proveito de uma autoinvenção coletiva (Eu/Moi). Como um mero recurso estilístico, se assim quisermos, como uma regra facultativa. Não chegamos, no entanto, a lugar algum. Estamos indo. Não se trata de uma habilidade que podemos ter. E tampouco é um estado que podemos alcançar. É um porvir, mas não há unidade no porvir. Falamos aqui de uma pragmática das multiplicidades. É um fazer: fazer n-1. Portanto, não é um estado a ser atingido. É mais um estar pronto a experimentar o que sentimos. Pois falamos de estados que provêm de quantidades intensivas, as quais à primeira vista são impensáveis e imperceptíveis: "o dado alucinatório (eu vejo, eu escuto) e o dado delirante (eu penso...) pressupõe um Eu sinto mais profundo, que dá às alucinações seu objeto e ao delírio do pensamento seu conteúdo" (Deleuze & Guattari, 1972/2011, p. 33). Trata-se de um "sinto que devenho.", um "sinto que não sou mais eu mesmo.". Se experimentamos o que sentimos, então somos contagiados com a parte do Outro que nos afetou. Não falamos sobre o Outro ou em seu lugar. Há uma parte do Outro no que falamos. Não o capturamos sem que sejamos capturados, em uma dupla captura. Isso seria um dos muitos sentidos que podemos dar a um amor fati nietzschiano. É sentir e é se pôr em experimentação para sentir. Amar é ligar as multiplicidades de um outro
às minhas, fazê-las penetrar nas minhas e penetrar as suas. Núpcias celestes, multiplicidades de multiplicidades. Não existe amor que não seja um exercício de despersonalização sobre um corpo sem órgãos a ser formado; e é no ponto mais elevado desta despersonalização que alguém pode ser nomeado, recebe seu nome ou seu prenome, adquire a discernibilidade mais intensa na apreensão dos múltiplos que lhe pertencem e aos quais ele pertence (Deleuze & Guattari, 1980/2011, p. 63).
Com o amor fati, tornamos leve o mais pesado de todos os pesos: o eterno retorno. Escapamos à gravidade do juízo celeste, agora nenhuma lei geral assenta os nossos pés sobre a terra. Não obstante, por amor, nos agarramos a ela para dançar, fazendo da gravidade um jogo. A repetição deixa de ser uma maldição: a diferença radical é afirmada. A virada talvez seja esta: a derrocada histórica da lei simbólica-transcendente nos ameaça com o niilismo passivo do cansado, com a posição melancólico-fascista de retomada da origem perdida, ou ainda, com uma espécie de dever de devir (superego que prescreve o gozo do novo), uma desterritorialização sempre territorializada na plataforma abstrata do capital como comutador universal, ao modo das subjetividades-mercadorias, das experimentações imprudentes que reiteram individualismos, fetiches da novidade, palavras de ordem ao modo "sair da zona de conforto" e "pensar fora da caixa", etc. No entanto, essa mesma derrocada da lei transcendente compreende - na lógica de um amor fati/eterno retorno da diferença/ avesso do ressentimento - a abertura de uma brecha à autoinvenção coletiva. Embora importante, a afirmação identitária da diferença, conforme Mbembe (2014), constitui-se como o platô de um projeto mais vasto, em cujo horizonte estaria uma afirmação radical da diferença. A esse respeito, cabe lembrar que o ato decisivo na construção da identidade, sobretudo ao ter em conta a plasticidade própria aos modos de subjetivação, em oposição às caducas determinações transcendentes, não é tanto uma designação, mas sim a resposta a uma pergunta: "Tudo começa portanto por um acto de identificação: «Eu sou um negro». O acto de identificação constitui a resposta a uma pergunta que se faz: «Quem sou eu, portanto?»; ou que nos é feita: «Quem são vocês?»" (Mbembe, 2014, p. 255). O substantivo Negro deslocado pela transvaloração que o faz passar de estigma à potência coletiva de luta, na perspectiva de um devir Negro, pode mobilizar sua potência para uma radical desconstrução da forma moderno-colonial "homem" e a afirmação de uma nova concepção de humanidade para muito além daquela instituída pelo iluminismo europeu (Mbembe, 2014). Não haveria aí, quem sabe, uma articulação possível entre as perspectivas do devir Negro e do além-do-homem, o übermensch nietzschiano?
O ponto de partida para tal articulação talvez possa ser procurado na relação que ambas as perspectivas estabelecem com a hierarquia ontológica própria da modernidade e das suas ciências, a qual erige uma noção de humanidade desde uma perspectiva pretensamente universal que passa a servir de ponto de referência absolutizado e como modelo de valoração escalonado em diferentes níveis de proximidade a tal ponto assumido como ideal, geral e neutro. Assim, não apenas muitos humanos foram objetificados como não humanos, mas também, assume-se que tal objetificação e subalternização seriam um atributo adequado a tudo e todos que são vistos como não humanos: a objetificação hierarquizante das ontologias é o ponto alterocida que inaugura a modernidade (Mbembe, 2014). É exatamente por tal proveniência que o devir Negro é tanto um combate a ser travado contra os efeitos do etnocentrismo bem como, igualmente, contra os efeitos do antropocentrismo: "Opondo-se ao mundo dos não-humanos, a Humanidade opõe-se a si mesma. Pois, afinal, é na relação que mantemos com o conjunto do vivo que se manifesta, em última instância, a verdade daquilo que somos" (Mbembe, 2014, p. 301). Quanto ao além-do-homem, igualmente, nada é mais estranho a essa elevação do que a sua interpretação a partir de uma perspectiva evolucionista: a transvaloração transforma as cadeias de filiações da "árvore da vida" e sua hierarquia bio-ontológica (replicando a geometria vertical da teologia católica que vai de Deus aos demônios, passando pelas "feras") em um rizoma imanente, trama molecular de parentescos múltiplos e singulares. O próprio Nietzsche, em Ecce Homo, colocou a suspeita de darwinismo levantada contra ele entre uma das interpretações que caminhavam no sentido oposto aos valores apresentados na figura de Zaratustra (Nietzsche, 1888/1999). Assim, um dizer-não àqueles que perpetuam a desqualificação moral do gesto alterocida, conforme a perspectiva do além-do-homem, tem o valor de um dizer-sim do amor fati, pois quando perpetuam um tal gesto eles negam a si mesmos, isto é, a vontade de potência.
Que uma tal hierarquização não se sustente, nas perspectivas aqui afirmadas, muito se deve à circunstância de que a sua força decorre da moral judaico-cristã e que, portanto, tal como ela, está fadada ao declínio (uma tal decorrência pode ser entrevista, por exemplo, nas semelhanças existentes entre as primeiras árvores filogenéticas e as escalas desenvolvidas pelo cristianismo medieval, derivadas do conceito de A Grande Cadeia do Ser, de Platão e Aristóteles). Com o declínio dessa moral, também o que dela foi útil ao racismo científico, a crença em uma verdade de cogência universal, deve necessariamente declinar. Todavia, não logramos a força necessária a uma tal atitude sem que também entremos em declínio, negando a nós mesmos, isto é, negando o negador que há dentro de nós, uma negação em benefício de algo/alguém que, através de nós, se afirma para além de nós.
A esse retorno da negação contra si mesma se relaciona o conceito nietzschiano de autossupressão. A virada ao avesso do ressentimento é, em parte, a autossupressão do mesmo. E esta opera-se em uma intrincada articulação com a autossupressão da vontade incondicional de verdade (Giacoia Jr., 2010): admitido o vínculo entre moral religiosa e moralidade científica, o condicionamento desta pela fé inabalável daquela em um incondicional, que erige a verdade como valor absoluto, o ateísta a historicizar a si mesmo é obrigado, em função da sua insuperável devoção à veracidade, do seu dever a ela, a fazer a experiência do seu parentesco com o ideal ascético da moral religiosa, vindo assim a atinar que a moral ocidental é, ao fim e ao cabo, tirania e violência em proveito da sua conservação e em detrimento de perspectivas outras: ao delimitar o bem e o mal de modo a operar o alterocídio das diferenças ao objetificá-las como mal, a moral demonstra-se defensora de imoralidades muitas como o regime escravocrata, o genocídio das populações indígenas e africanas, a exploração massiva do proletariado, etc. Paradoxalmente, assim, em Nietzsche, a ética advém do exercício de ser amoral: para além do bem e do mal. Com isso, a consciência moral se torna o contrário de si mesma: obrigação a se desobrigar de qualquer obrigação que se queira afirmar a qualquer custo, incondicionalmente, ao preço de um (im)possível amanhã. Esse dever em relação à veracidade, levado até as últimas consequências, não é outra coisa que não o próprio ressentimento da má consciência, da culpa, da violência que esculpiu ao homem da modernidade-colonialidade. Com a perda do fundamento da moral ocidental essa ideia de humanidade alterocida deve, por fim, colapsar sobre seu peso. Mesmo por isso, essa "boa consciência" não nos serve, é preciso restituir a má consciência ao devir e ao plano comum das singularidades: "O caminho passa pela produção, a partir da crítica do passado, de um futuro indissociável de uma certa ideia de justiça, da dignidade e do em comum" (Mbembe, 2014, p. 296).
CONSIDERAÇÕES FINAIS: E QUAL DESAPARECIMENTO QUEREMOS?
A autossupressão, haja vista a sua paradoxal relação com o tempo, pode ser descrita como um adensamento do presente: contração da memória da vontade por ação do esquecimento ativo sobre a capacidade de prometer, fazendo com que escapemos de uma ruminação impotente sobre um passado ou futuro inatingíveis, para percebê-los na duração do presente dentro do nosso campo de agência. Nesse instante denso, o desaparecimento que nos alcança é completamente distinto do apagamento operado pela lógica alterocida: no apagamento temos a consciência hipertrofiada de memória e promessa a impedir toda e qualquer diferença, ao passo que no esquecimento nos perdemos do eu e do nós em uma vertigem sem fim. A modernidade-colonialidade instaura a objetificação ao hierarquizar os seres, enquanto a autossupressão, por meio da autoproblematização, opera uma inversão do sujeito em objeto, e a violenta vivissecção da alma, depois de ter soçobrado a moral que era seu fundamento, é experienciada como perda do território, como desterritorialização (Giacoia Jr., 2010). No processo de desterritorialização moderno-colonial há destruição das referências de todos que são definidos, desde essa perspectiva, por sua não-europeidade, reterritorializando-os na plataforma da hierarquia ontológica que outorga ao homem branco hétero cis e proprietário o lugar de destaque, o ápice de uma cadeia predatória objetificadora dos "outros". Ao passo que na autossupressão o que colapsa é exatamente a moral que sustenta tal plataforma de hierarquias ontológicas, levando à desterritorialização dilacerante da própria modernidade-colonialidade em uma abertura para as singularidades em suas operações de diferença perante quaisquer modelos. Assim, paradoxalmente, a afirmação das identidades que escapam ao esquadro normativo hegemônico finda por tensionar, deslocar e colocar em xeque a própria noção de identidade, posto que esta é afirmada e sustentada, acima de tudo, pela posicionalidade que se quer universal, pela identidade que tenta negar sua própria existência ao reafirmar-se como se fora absoluta: a eurocentralidade.
A autossupressão da vontade incondicional de verdade, da moral e do ressentimento, é uma operação clínico-política que desloca a pretensa universalidade do imperativo categórico kantiano que pretende guiar adequadamente o juízo de "todos", "sempre", pois se colocaria como exercício incorporado da lógica moderno-colonial na dobra do sujeito. Nietzsche divisa tal movimento de colapso da modernidade-colonialidade na queda da lei simbólica-transcendente, com o niilismo extremo, o qual nos alcança quer a gente tome ou não consciência dele, quer dele nos sirvamos ou não em benefício de um além-do-homem. Movimento do além-do-homem que ataca a circunscrição do sujeito transcendental kantiano pelo deslocamento da sustentação do imperativo categórico em um contra-exercício de descolonizar-se, em um desaparecimento de nós e do nosso solo baseado na humanidade iluminista da modernidade-colonialidade. No entanto, tal colapso do lugar que se queria universal produz também reações que buscam violentamente reaver suas posições de privilégio: disso deriva que, ao lado da aposta em um (im)possível amanhã, aparecem as reterritorializações ditatoriais, fascistas, perversas, bem como as subjetividades-mercadorias, em um ocaso interminável. Em contraposição a essas tentativas de retomar o privilégio de objetificar-violar os "outros", afirmamos o desaparecimento que queremos: que cada qual possa inventar seus territórios a partir das suas experiências, em um constante exercício e desvio da resposta à pergunta sobre quem se é. E vale frisar, quanto a isso, que o tempo da resposta é o futuro da sua própria fabricação.
Contra o cogito cartesiano e a ameaça do solipsismo que ele nos coloca, contra o bloqueio transcendental da dúvida hiperbólica, o que queremos, com o desaparecimento, é estar em companhia. Uma autoinvenção coletiva é uma autoinvenção que se faz por companhia, em resistência ao neoliberalismo e à servidão de uma liberdade individual, em resistência ao solipsismo: "Inventor inventado inventando tudo isso por companhia" (Beckett, 1980/2012, p. 52). Uma autoinvenção coletiva passa, desde o início, pela compreensão de a quem devemos as nossas vidas: "Partilhar o mundo com outros seres vivos, eis a dívida por excelência" (Mbembe, 2014, p. 301). E passa, igualmente, não somente pelo abandono da má consciência interior ao estatuto de vítima, mas também pelo rompimento "com a 'boa consciência' e a negação da responsabilidade. Será nesta dupla condição que é possível articular uma política e uma ética novas, baseadas na exigência da justiça" (Mbembe, 2014, p. 297). E então, quem sabe, poderemos nos lançar em um devir Negro que seja como um chamado a um povo porvir, uma resistência aos alterocídios, um além-do-homem. Uma solicitude dos solitários de hoje, assim como falou Zaratustra: "Vós solitários de hoje, vós que vos apartais, havereis um dia de ser um povo: de vós, que vos elegestes a vós próprios, há de crescer um povo eleito - e dele o além-do-homem" (Nietzsche, 1883/1999, p. 218). Ser apenas um outro qualquer, um entre outros, plenos de singularidades e diferenças, eis o desaparecimento que pretendemos.
Vemos, assim, que por meio do acontecimento-escrita operamos deslocamentos que, em um só tempo, nos possibilitam fazer ver a intrincada máquina modernocolonial que constitui processos de individualização-propriedade e, a partir desta, tensionar nossos regimes do sensível, do dizível, do pensável e do fazível, para experimentar outros modos de pensar os processos de constituição do sujeito segundo ético-estéticas para além das operações ressentidas tão marcantes da modernidade. Emerge o desafio de compormos novas autorias em coletivos tão múltiplos e heterogêneos quanto abertos às constantes recomposições: abandonar o plano comum hierarquizado da humanidade iluminista em seu aprisionamento eurocentrado na branquitude, mas sem abrir mão de compormos um comum que transpasse tais narrativas coloniais e suas memórias mastodônticas, ensimesmadas e sacralizadas como propriedades de uma tradição demasiado familiar. Tal escrita se dá pela palavra, pelos corpos, pelas cidades, pelas políticas e muito mais, em uma discursividade que ultrapassa o verbal em sua concretude de construir novos territórios para nossos encontros (im)possíveis.
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Recebido em: 18/07/2020
1ª revisão em: 12/05/2021
Aceito em: 12/07/2021
CONFLITOS DE INTERESSES
Não há conflitos de interesses.
SOBRE OS AUTORES
Mauricio Winck Esteves é Bacharel em Psicologia pela Universidade de Santa Cruz do Sul e Mestre em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
E-mail: mwinckesteves@gmail.com
https://orcid.org/0000-0001-9658-4837
Luis Artur Costa é Professor adjunto do Departamento e do Programa de Pós-graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
E-mail: larturcosta@gmail.com
https://orcid.org/0000-0001 -6110-7512
i Como afirma Foucault (1969/2009, p. 268), ao falar da indiferença em relação ao sujeito da enunciação: "Nessa indiferença, acredito que é preciso reconhecer um dos princípios éticos fundamentais da escrita contemporânea. Digo 'ético', porque essa indiferença não é tanto um traço caracterizando a maneira como se fala ou como se escreve: ela é antes uma espécie de regra imanente, retomada incessantemente, jamais efetivamente aplicada, um princípio que não marca a escrita como resultado, mas a domina como prática."
ii Ao adotar a glândula pineal como principal sede material da alma, Descartes fala da vontade como a instância de um querer diverso dos apetites do corpo: "quando se quer caminhar ou mover o próprio corpo de alguma forma, essa vontade faz com que a glândula impulsione os espíritos para os músculos apropriados" (Descartes, 1649/1999, p. 131).
iii Termo oriundo do grego, no latim traduzido por penitência. Segundo Foucault (2012/2014, p. 118), pode assim ser definido (a partir dos textos gregos do período helenístico e do século II cristão): "é a mudança da alma [...] o movimento pelo qual ela se desvia do que olhava até então - as sombras, a matéria, o mundo, as aparências [...] o movimento pelo qual a alma, ao contrário, se vira para a luz, para o verdadeiro".
iv As paixões, para Descartes, assim como a imaginação, são sentidas ou formadas na alma a partir do corpo. As paixões "são provocadas, sustentadas e fortalecidas por algum movimento dos espíritos" (Descartes, 1649/1999, p. 122). A vontade limitada pelo método é o caminho que Descartes prescreve para domar as paixões: "visto que se pode, com um pouco de habilidade, modificar os movimentos dos cérebros animais desprovidos de razão, é evidente que se pode fazê-lo melhor ainda nos homens, e que mesmo aqueles que possuem almas mais fracas poderiam adquirir um domínio absoluto sobre suas paixões, se utilizassem suficiente destreza em domá-las e dirigi-las (Descartes, 1649/1999, p. 138).
v No uso teórico ou especulativo da razão pura (entendimento), o fenômeno é a única coisa que pode ser conhecida. E, por conseguinte, nada pode ser afirmado acerca de uma coisa que exista independentemente das formas a priori da sensibilidade, o espaço e o tempo, e das categorias ou conceitos do intelecto. Igualmente, o livre-arbítrio não pode ser provado, pois tudo o que nos é dado a conhecer na razão teórica ou especulativa deve, necessariamente, estar subordinado ao princípio da razão suficiente, segundo a qual toda causalidade está inserida em uma série de efeitos. No entanto, é exatamente em favor do livre-arbítrio no uso prático da razão pura que Kant revive a coisa em si e retoma o dualismo: "a distinção crítica entre fenômeno e coisa em si permite con siderar o homem como: a) submetido à necessidade natural, enquanto é tomado como fenômeno; b) capaz de uma causalidade sui generis, ou seja, de uma causalidade da vontade espontânea [...] Segundo essa segunda perspectiva, o homem pode ser pensado como noumenon" (Giacoia Jr., 2012, p. 48).
vi Parece que a suspensão do esquecimento, para Kant, encontra-se articulada com a existência da "coisa em si", com a existência inteligível, à qual pertence o evento, mas que não está, como ele, sujeita à ação remissiva do tempo. Assim, o arrependimento, que é ilógico sob a ótica da razão especulativa, torna-se inteiramente lógico sob a ótica da razão pura prática: "o arrependimento de uma acção já há muito realizada, em toda recordação da mesma; um sentimento doloroso [...] que é praticamente vazio na medida em que não pode anular o acontecido, e até seria absurdo [...] mas, enquanto dor, o arrependimento é inteiramente legítimo porque, quando se trata da lei da nossa existência inteligível (da lei moral), a razão não reconhece diferença temporal alguma, e apenas se interroga se o evento me pertence como acto" (Kant, 1788/1984 p. 114).
vii A crítica a uma generalização do poder disciplinar não é diretamente feita por Kant, porém, é possível lê-la nas entrelinhas (com a ressalva de que ele não visa a descontinuidade entre o poder pastoral e o poder disciplinar que, em alguma medida, mais fortalece do que enfraquece o primeiro, que o torna secular - e não visando essa descontinuidade, a crítica kantiana se tornou também um elemento da secularização do poder pastoral, fazendo da salvação de cada ovelha a salvação do rebanho).