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Revista Polis e Psique
On-line version ISSN 2238-152X
Rev. Polis Psique vol.5 no.3 Porto Alegre Dec. 2015
ARTIGOS
Oswald de Andrade: poesia e psicanálise
Oswald de Andrade: poetry and psychoanalysis
Oswald de Andrade: la poesía y el psicoanálisis
Andréia Proença MachadoI e Edson Luiz André de SousaII
I Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil.
II Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil.
RESUMO
Oswald de Andrade, importante artista do Modernismo brasileiro, fez de sua poesia e do seu pensamento inventivo o caminho para denunciar a massificação das idéias vigentes em sua época e a importância da crítica no processo de transformação social. A radicalidade da poesia de Oswald de Andrade é fator de certo estranhamento até os dias atuais, o que nos leva a uma interlocução com a psicanálise, através do texto O Estranho (1919), de Sigmund Freud. Esse estranhamento frente ao que não encontra uma resposta imediata é a chave para abrirmos interrogações sobre a massificação dos modos de sentir e de viver.
Palavras-chave: Oswald de Andrade; poesia; psicanálise; utopia.
ABSTRACT
The important Brazilian Modernist artist Oswald de Andrade used his poetry and in-ventive thought to denounce the mass vulgarisation of the ideas of his time and to pro-claim the importance of critique within the process of social transformation. The radi-calism of Oswald de Andrade's poetry evinces to this day a certain alienating effect which compels us to confer with psychoanalysis and its articulation of the Freud’s text, The Stranger (1919). The estrangement which does not offer an immediate answer is the key to further questioning the mass vulgarisation of modes of feeling and living.
Keywords: Oswald de Andrade; Poetry; Psychoanalysis; Utopia.
RESUMEN
Oswald de Andrade, importante artista del modernismo brasileño, hizo de su poesía y de su pensamiento inventivo lo camino de denunciar la masificación de las ideas existentes en su tiempo y la importancia de la crítica en el proceso de transformación social. El radicalismo de la poesía de Oswald de Andrade es un cierto factor de extrañeza hasta nuestros días, lo que nos lleva a un diálogo con el psicoanálisis, a través del texto El extranjero (1919), de Sigmund Freud. Este distanciamiento frente a que no encontrarán una respuesta inmediata es la llave para abrir preguntas sobre la masificación de las formas de sentir y de vivir.
Palabras-clave: Oswald de Andrade; Poesia; Psicoanálisis; Utopía.
Oswald de Andrade: poesia e psicanálise
Como mostrar um vazio? E como fazer desse ato uma forma – uma forma que nos olha? Geroges Didi-Huberman
Em 1965, Haroldo de Campos escreve um texto sobre a poesia de Oswald de Andrade, intitulado “Uma poética da radicalidade”. Traz uma explicação de Marx para o que é ser radical: “Ser radical é tomar as coisas pela raiz. E a raiz, para o homem, é o próprio homem” . Haroldo de Campos caracteriza a poesia de Oswald como sendo uma “poética da radicalidade”. A poesia “Pau Brasil” teria representado uma guinada de 180º no status quo da época e, sendo radical na linguagem, foi encontrar a inquietação do novo sujeito brasileiro. Esse se constituía no encontro da língua que se falava nas esquinas da cidade lotada de migrantes e nas mudanças estruturais vivenciadas pelo processo de industrialização que acontecia, mais precisamente em São Paulo.
A radicalidade da poesia oswaldiana se afere, portanto, no campo específico da linguagem, na medida em que esta poesia afeta, na raiz, aquela consciência prática, real, que é a linguagem. Sendo a linguagem, como a consciência, um produto social, um produto do homem como ser em relação, é bom que situemos a empresa oswaldiana no quadro do seu tempo.(...) Evidentemente que a linguagem literária funcionava, nesse contexto, como um jargão de casta, um diploma de nobiliarquia intelectual: entre a linguagem escrita com pruridos de escorreição pelos convivas do festim literário e a linguagem desleixadamente falada pelo povo (mormente em São Paulo, para onde acudiam as correntes migratórias com as suas deformações orais peculiares), rasgava-se um abismo aparentemente intransponível.” (Campos, 1965/2003, p.19).
Oswald de Andrade nasceu e morreu em São Paulo: 1890-1954. Desde cedo, ligou-se a boêmia literária da sua cidade, formando-se em Direito, no ano de 1919, depois de um curso espaçado. Fundou um semanário combativo e humorístico – O Pirralho – no ano de 1911, que durou vários anos, ainda que intermitente. Nele, publicou seus primeiros escritos, já indicando o caminho que tomaria como um dos mais brilhantes articulistas e polemistas de sua época e das que viriam. Nesse mesmo ano, fez a primeira viagem à Europa, onde ocorreu o intercâmbio com a vanguarda artística, sobretudo na França. Oswald nasceu numa família proprietária de terras, que vivia da monocultura do café. Ele próprio comenta sobre a importância do café e o consequente movimento modernista ter ocorrido em São Paulo:
Se procurarmos a explicação do porquê o fenômeno modernista se processou em São Paulo e não em qualquer outra parte do Brasil, veremos que ele foi uma consequência da nossa mentalidade industrial. São Paulo era de há muito batido por todos os ventos da cultura. Não só a economia cafeeira promovia os recursos, mas a indústria com a sua ansiedade do novo, a sua estimulação do progresso fazia com que a competição invadisse todos os campos de atividades (Andrade, 1954, p.31).
Nos anos que precederam a Semana de Arte Moderna, Antônio Cândido (Cândido & Castello, 1964, p.64) nos diz que Oswald de Andrade “foi uma espécie de preparador do Modernismo, sugerindo a ruptura com os velhos padrões, estimulando rebeldias estéticas, agitando o meio no sentido de uma mudança cujos rumos não discernia claramente, embora a sentisse indispensável”. O Manifesto Pau-Brasil (1924), que acompanha o lançamento do livro de poemas e que dá vazão ao movimento, tem como primeira frase: “A poesia existe nos fatos”. Somos convocados a abandonarmos a ideia de aura, fascínio contemplativo do objeto único na arte, e a abrirmos a janela para o concreto cotidiano das nossas cidades. Os fatos, aquilo apreendido nas bancas de jornais, são passíveis de poesia. O livro traz, além do seu conteúdo lírico, informativo, satírico, a possibilidade plástica, figurativa em seu escrito. As palavras abrem caminho para a imaginação da cena.
Esta preocupação com a fisicalidade do livro corresponde [...] a uma poesia de acentuado pendor plástico. A ‘fanopeia’ da teoria imagista de Ezra Pound (‘the throwing of an image on the mind’s retina’), que Eliot disciplinou num sentido mais restrito de símile concreto com o seu ‘objective correlative’ (ou seja, a correlação entre uma emoção particular e um conjunto de objetos, uma situação, uma cadeia de eventos), está presente espontaneamente na poesia de Oswald (Campos, 2003, p.61).
Polêmico, irônico, militante político, Oswald de Andrade foi conhecido “por sua personalidade exuberante e indômita, [...] sempre manteve em alerta o espírito barulhento e combativo. Veemente nas intervenções públicas, [...] enfrentou desafios e vaias, rebatendo com sua irreverência desconcertante [...]” (Fonseca, 2008, p.11). Foi o artista, do período, que mais se utilizou da invenção e do humor como instrumentos para se repensar a história nacional, a literatura e a arte. Além das obras já citadas, Oswald de Andrade escreve a peça de teatro O rei da vela, em 1937. Essa peça é dirigida e encenada por Zé Celso Martinez Corrêa no ano de 1967, em São Paulo, dedicada a Glauber Rocha. Em plena ditadura militar no país, a experiência de ver Oswald resgatado pelo Teatro Oficina vira referência para grupos de artistas que elaboravam o Tropicalismo. Caetano Veloso (2012, p.47) comenta esse encontro:
Fui ver O rei da vela – a peça de Oswald de Andrade que o Oficina tirava de um ostracismo de trista anos – cheio de grande expectativa. Mas não imaginava que iria encontrar algo que era ao mesmo tempo um desenvolvimento dessa sensibilidade e sua total negação. Zé Celso se tornou, aos meus olhos, um artista grande como Glauber. [...] Eu havia escrito ‘Tropicália’ havia pouco tempo quando O rei da vela estreou. Assistir a essa peça representou para mim a revelação de que havia de fato um movimento acontecendo no Brasil. Um movimento que transcendia o âmbito da música popular.” (Veloso, 2012, p. 47)
Mais adiante, Caetano acrescenta:
Para mim, Oswald estava apenas nascendo, e suas figuras pareciam disparatadas justamente porque, em vez de servir como ilustração para ideias supostamente indiscutíveis, instigavam a imaginação a uma crítica da nacionalidade, da história e da linguagem. Em breve eu descobriria que o teatro de Oswald de Andrade era a parte mais fraca do seu teatro. Tudo o que eu vira ali, estava melhor posto em sua poesia, seus romances e seus manifestos (Veloso, 2012, p. 47).
Já é de nosso conhecimento o papel fundamental que diferentes obras artísticas tiveram na construção da psicanálise. Algumas imagens necessárias para a sustentação da teoria freudiana foram encontradas na escrita de Sófocles, Shakespeare e Dostoiévski, por exemplo. Seriam desses três autores as obras-primas mais representativas da história da literatura, para Freud: “Édipo Rei, de Sófocles, Hamlet, de Shakespeare, e Os irmãos Karamazov, de Dostoiévski” (Sousa & Endo, 2009, p.62).
Mas, qual seria o interesse de Freud em aproximar as questões próprias das obras de arte e de seus autores com as especificidades da constituição do sujeito e suas manifestações do inconsciente? No trabalho desenvolvido por Lúcia Serrano Pereira (2003, p.11), referente a obra “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, em que trata do tema do estranho, encontramos uma possível resposta:
Podemos ter como hipótese que Freud se aproxime da literatura a partir das questões que o interpelavam, que produziam os impasses na clínica que se iniciava, na escuta/formulação recente do inconsciente. Não era a beleza estética que perseguia, mas deixava-se trabalhar por aquelas obras que de uma forma ou de outra traziam à cena as fraturas, os conflitos, os pontos de estranhamento, aquilo que poderia fazer ecoar essa borda do impossível, e que constituíam os enigmas que tratava de decifrar (Pereira, 2003, p. 11).
Essa aproximação, que ocorreu durante toda a vida de Freud, pode guardar em si certo parentesco com a atividade artística, com o ato criativo. O artista não mais pensado como um sujeito dotado de certa capacidade especial de elaboração de sua sexualidade infantil e de suas fantasias; a obra seria a concretização sublimatória dessa elaboração, de acordo com as ideias levantadas por Freud. A psicanálise se dedicava, então, a “analisar” as produções artísticas e, até mesmo, a decifrar a subjetividade dos artista e escritores por meio das suas obras.
Podemos é fazer o caminho inverso: admitir as contribuições da arte para pensarmos o fazer psicanalítico. Isso porque é um fazer que se dá no próprio ato de feitura, sendo invenção de valores originais, criação de novas realidades. Como diz Noemi Kon (2001, p.45), “não se trata de descobertas de subterrâneos enterrados, mas da criação de uma multiplicidade de sentidos, da construção de novas realidades”.
Em 1919, Freud escreve “O Estranho”, texto sobre a questão da estética a partir de algumas reflexões sobre o conto “O Homem de Areia”, de E.T.A. Hoffmann. Diz ele: “o estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar” (Freud, 1919/1969, p.305). Demonstra os diferentes usos linguístico da palavra heimlich (não-estranho, familiar, doméstico, íntimo), chegando ao encontro de um significado que se aproxima do seu negativo: unheimlich . Freud ilustra “Das Unhemlich” com suas próprias vivências. Ele viajava num trem, quando avista um homem sério, envelhecido, por quem sente pouca simpatia. Em fração de segundo, reconhece que “aquele senhor” era seu próprio vulto refletido no vidro da janela. Freud conta, também, da sensação de se encontrar perdido, dando voltas circulares em um local. Acrescenta, em seguida, que percebe que as ruelas, pelas quais vagava, eram as de uma zona de prostituição e que ele mesmo era pouco propício a sentimentos de estranhamento.
Freud nos lembra, então, que esse estranho não é nada novo ou alheio, porém algo que é familiar e há muito estabelecido na mente, e que somente se alienou desta através do processo da repressão. Lacan nos fala que essa experiência do Unheimlich é fugidia demais na vida real e que a estrutura da fantasia não está longe da estrutura da angústia. A angústia é tomada como um afeto deslocado, não recalcado, lembrando os ensinamentos de Freud. Se tomarmos a experiência frente ao novo, o estranhamento como algo insurgente, como um afeto capaz de associar-se à fantasia, produtor de angústia, portanto, podemos supor esse deslocamento como potência criadora.
As experiências de desassossego, as manifestações do inconsciente sob a forma de sonhos, lapsos e atos falhos, os estranhamentos pelos quais o sujeito passa sempre foram temas recorrentes nos escritos psicanalíticos. Desde Freud, sabemos que “Isso” que irrompe na fala encadeada do Eu causa desconforto à ideia imaginária de domínio sobre si. A partir das manifestações do inconsciente é que Freud pode desenvolver a teorização sobre esse “outro” que, carregado de enigmas, insiste em se atravessar na linha da vida cotidiana. Esse “estranho” que não é o inverso de familiar, “mas um familiar parasitado por uma inquietude que o dispersa”, desloca o sujeito do seu reinado consciente e sugere que algo a mais está em jogo. Abre-se, dessa forma, o caminho para novas possibilidades de se estar no mundo, para uma nova escrita da ficção da vida, partindo de um questionamento sobre essas fissuras que causam estranheza.
O ato criativo, o ponto de intenção do artista e o vazio que o acompanha, reverbera na obra de arte que vemos, ouvimos, sentimos. Esse encontro, essa estranheza frente ao que não encontra uma resposta imediata, é a chave para abrirmos interrogações sobre a massificação dos modos de sentir e de viver. Algumas obras de artes podem ser vistas, então, como pontos que questionam o social e que contribuem para essa “desestabilização” do sujeito a respeito das suas certezas cristalizadas. Somos convocados a questionar certo vício do olhar, já acostumado à banalização da rotina, às ordens midiáticas do consumo desenfreado, à falta de crítica quanto ao modo de viver em sociedade, enfim, à ausência da fantasia e da esperança criadoras.
Em “O Estranho”, Freud sustenta que o estranhamento pode advir de objetos e cenas que causam terror ao sujeito, do sentimento do duplo, de formas de superstição, de pessoas as quais atribuímos intenções maldosas, do efeito ligado às práticas mágicas, da visão do genital feminino pelo neurótico masculino, dizendo que “esses resultados preliminares satisfizeram o interesse psicanalítico pelo problema do estranho, e que aquilo que resta pede provavelmente uma investigação estética” (Freud, 1919/1969, p.307). A partir daí, Freud distingue o estranho que experimentamos daquele que “simplesmente visualizamos ou sobre o qual lemos”, atribuídos ao domínio da ficção, da literatura imaginativa. Segundo ele, é um ramo muito mais fértil do que o estranho na vida real, “pois contém a totalidade deste último e algo mais além disso, algo que não pode ser encontrado na vida real”. O conteúdo da literatura não está submetido ao teste de realidade e o resultado disto parece paradoxal a Freud (1919/1969, p.310): “(...) em primeiro lugar, muito daquilo que não é estranho em ficção se-lo-ia se acontecesse na vida real; e, em segundo lugar, que existem muito mais meios de criar efeitos estranhos na ficção, do que na vida real”.
O escritor imaginativo teria, então, a escolha de criar o seu mundo de representação coincidindo ou não com as realidades que nos são familiares ou se afastando delas. Entrar na literatura é aceitar essas regras e reagir às diferentes rotas que o escritor nos leve, guiando nossa corrente de emoções. A construção poética, muitas vezes, nos causa estranhamento. Na medida em que “estranho” também pode ser tomado como “espantoso” em vez de “assustador”, na tradução espanhola. Assim como se trata também de angústia, no espanhol, e não somente medo, como na tradução portuguesa. Se o surgimento do mal-estar na sociedade está relacionado à diminuição da função simbólica, quando esta já não dá mais conta do contexto histórico em que os sujeitos estão inseridos e necessita dar conta de um excesso através do surgimento de novas formas simbólicas, a escrita de vanguarda carrega consigo grande capacidade de causar angústia: retrata algo que não sabemos nomear, que nem bem podemos atribuir empatia ou rechaço. Apenas sabemos que algo novo nos é apresentado e que outra cena nos convoca a novas significações sobre o mundo.
Lúcia Serrano Pereira (2003, p.35) nos diz que, para Lacan, “o estranho surge quando a falta pode faltar”, falta essa que nos faz desejantes. Com respeito a isso, Neusa Souza faz uma interessante observação:
A experiência do estranho parece indicar um momento de ruptura no tecido do mundo, essa teia de véus, imagens, sentidos e fantasmas que constituem o pouco de realidade que nos é dado a provar. Mesmo que o estranho seja a experiência do informe, da perda das imagens, palavras e sentido, mesmo assim o sujeito se vê constrangido, a posteriori, a organizar essa experiência por meio de formas, palavras e personagens que compõem um novo cenário, e que, de novo, restituem a consistência e o véu, véu de Maia, essa ilusão tão necessária para viver (Pereira, 2003, p. 35).
E não é preciso rebuscar esse encontro, deslocar-se demasiado: basta estarmos dispostos a encontrar o inusitado que emerge na contagem dos dias. Como diz Hélio Oiticica, “o próprio dia-a-dia (...) é a construção de uma obra, o dia completo é a obra”, pois “cada dia, o dia-a-dia, é a vanguarda, entende?” (Favareto, 2000, p.27). E se a vida diária, com seus costumes, repetições de gestos e de rotas, pode ser pensada como uma obra de vanguarda é pelo fato de ofertar a chance de desacostumarmos nosso olhar frente àquilo que parece ser “mais do mesmo”. O dia-a-dia será mais que vanguarda: será pós-vanguarda do dia que virá.
A poesia de Oswald de Andrade, que traz objetos cotidianos enumerados, utilização de lugares-comuns, de linguagem publicitária, entre outras expressões cotidianas, aproxima-se do conceito de ready made, criado por Marcel Duchamp na segunda década do século XX. Foi quando objetos pré-existentes e triviais ganham as luzes do museu e se transformam em arte. Ainda que modificados por Duchamp, carregam a simbologia dos seus usos corriqueiros, tendo, agora, estatuto de “obra de arte”. A seguir, um poema de Oswald que compila títulos de livros observados durante uma visita à biblioteca nacional do Rio de Janeiro (2003, p.167): “biblioteca nacional / A Criança Abandonada / O Doutor Copelius / Vamos com Ele / Senhorita Primavera / Código Civil Brasileiro / A arte de ganhar no bicho / O Orador Popular / O Polo em Chamas”.
A maneira do ready made de Duchamp, Oswald aproveita-se ainda da tradição, equiparando-a ao que ele próprio denominou de “riqueza dos bailes e das frases feitas”, no “Manifesto da Poesia Pau Brasil”. Compõe poemas com clichês linguísticos, “cuja sintaxe nasce não no ordenamento lógico do discurso, mas da montagem de peças que parecem soltas” (CAMPOS, 2003, p.23). Outro exemplo: “nova Iguaçu / Confeitaria Três Nações / Importação e Exportação / Açougue Ideal / Leiteria Moderna / Café do Papagaio / Armarinho União / No país sem pecados”.
Em resposta ao nosso “lado doutor”, Oswald sugere a incorporação do usual e do cotidiano na atividade criadora. O resultado é um efeito de estranhamento ou de “desconforto” proporcionado pela linguagem literária e que Haroldo de Campos caracterizou como “anti-ilusionismo”, sendo a poesia dele resultante, em tomadas e cortes rápidos. Decorre daí a observação de uma espécie de poesia de postura crítica, que comporta uma abertura para o leitor participar do seu processo criativo.
Não encontramos no texto de Freud, diretamente, uma relação entre estranhamento a partir do humor, da sátira, da paródia, da alegria. Partindo da hipótese de que o humor pode desencadear a sensação de estranhamento, de que a alegria é uma potente forma de contestação social e que, por estar restrita a determinados meios de comunicação de massa, causa estranheza quando ganha as ruas, aparece em músicas ou invade a poesia, podemos desenvolver a interlocução do humor, na literatura, com o conceito de estranho, da psicanálise, esperando, sempre, que a arte nos inspire a pesquisa clínica. Partimos do pressuposto de que o estranhamento frente a uma obra de arte ou escrita literária é capaz de criar novas formas de imaginar o mundo e de questionar o lugar do sujeito frente à sua história. Dessa ruptura da massificação do habitual e do discurso alienante, podemos vislumbrar aquilo que vivia encoberto sobre a névoa das leis do sistema em que estamos inseridos. Uma arte, uma poesia que inspire a potência utópica capaz de nos fazer cair do alto de nossas certezas, reconfigurando a escrita da vida. Como nos inspiram Edson Sousa e Manoel Ricardo de Lima (2009, p.55) neste trecho:
Esta é a poesia e a utopia que nos interessa, ou seja, a que resiste a captura por uma imagem como um furo na imagem e subtraia do sujeito a sensação de que finalmente encontrou a palavra justa, o lugar ideal. A utopia cumpre sua função quando nos faz cair do alto de nossas certezas abrindo na carne as imperfeições dos ideais que construímos. Nossa chance de rebeldia está em poder deixar-se cair evidenciando que a poesia é por definição um ato de rebeldia.
Oswald de Andrade apropria-se, ao modo Duchamp, dos textos originais, dos “objetos” comuns da linguagem, intervindo neles vivamente, operando diversas e provocativas modificações, todas consoantes com seu ideal artístico.
Oswald de Andrade elabora séries móveis, autônomas e conjugáveis entre si. Rompe, ao fazer tudo isso, com toda sorte de fronteiras espaço-temporais, supera a distância que separa esses textos de que parte, desencanta-os de sua aura.[...] são as ruínas que o processo espoliador de colonização deixou que orientam o seu recorte. Ele busca as frestas e os fragmentos, operando muitas vezes com as lacunas da história pátria, escrita pela ótica do colonizador. Ele ‘perverte’ essa ótica, colhe nas frestas deixadas o sinal com que vai operar e clarificar as escamoteações ideológicas. Rumina sobre os objetos isolados, poda-lhes os excedentes. Mas, ao mesmo tempo, como um colecionador, reordena-os segundo afinidades secretas, mas objetivas (Helena, 1985, p.68)
A poesia com um fluir próprio, sem métrica, tendendo a uma espécie de “paráfrase” do texto colonial ou do tecido social, tem os títulos dos poemas como ruptura e corte. Indicam a cena em que palavras irão atuar, por vezes, somando-se ao conteúdo expresso, por outras, anunciando os desvarios da poesia que segue. Pelo rasgo linguístico, marcando o falar brasileiro do homem comum em contraposição à chamada erudição dos portugueses aqui instalados (ou outra cultura “letrada”, detentora do poder), o poema “o capoeira” (Andrade, 2003, p.125), curto e em forma de diálogo, carrega consigo um vasto campo de sentidos. Uma luta corporal mostra as diferentes apropriações da mesma língua: “o capoeira / - Qué apanhá sordado? / - O quê? / - Qué apanhá? / Pernas e cabeças na calçada”.
O corte repentino integra o movimento da língua falada com a velocidade da cena narrada. O vazio deixado pela ausência da descrição da luta é um expressivo silêncio. Como resultado, linguagem, sociedade e homens são apresentados de forma fragmentada. A gramática normativa, a autoridade e o Estado são atingidos.
Jacques Lacan, no Seminário 23, intitulado “O Sinthoma” (2007), em uma possível aproximação com a inventiva poesia de Oswald de Andrade, ressalta que o falante cria uma língua na medida em que o tempo todo dá a ela um sentido novo, uma criação que possibilita que a mesma se mantenha viva. É uma elaboração que vem como consequência de sua bipartição, feita no Seminário 20, entre linguagem e alíngua. A alíngua é um conceito que, como se pode observar na escrita e na própria posição de Oswald de Andrade frente a sua própria escrita, demonstra que a linguagem serve mais a uma satisfação indizível do falante do que à comunicação. Aqui podemos intuir que tanto o falante quanto o leitor estão nessa posição de satisfação frente ao texto, algo que não encontra termo adequado para ser nomeado, mas que determina o começo de uma leitura, de uma fala.
A alíngua pode ser compreendida como o resíduo do entrelaçamento entre o sujeito e a linguagem como sistema, ou seja, um ponto irredutível e inassimilável no ser falante. Ele é o próprio excesso que escapa ao significante e à representação. Discorrendo melhor sobre esse conceito, ele demonstra como a linguagem compartilhada exige uma socialização e uma universalização de algo particular, irredutível e intraduzível na relação de cada sujeito com a língua. O sistema linguístico se encarrega dessa socialização necessária ao signo para que a comunicação ocorra, mas que é constantemente transgredido pela fala. Diríamos, também, que essa característica é amplamente demonstrada na escrita de Oswald de Andrade (2003, p.102), quando junta a fala “culta” com a fala “cotidiana”, com seus “erros” gramaticais: “a contribuição milionária de todos os erros”.
Em “Os chistes e sua relação com o inconsciente” (1986), Freud traça algumas considerações sobre o comportamento de uma criança no processo de aprendizagem. Seguindo seu raciocínio, o período em que uma criança adquire o vocabulário da língua materna proporciona- lhe um evidente prazer lúdico em experimentar, em “brincar” com esse vocabulário. A criança reúne as palavras sem respeitar a condição de que elas produzam um sentido, a fim de obter um gratificante efeito de ritmo ou rima. A recuperação desse prazer é observada no desrespeito diante das regras que estruturam a linguagem, conforme constatado por Freud em crianças mais velhas e adolescentes, que frequentemente criam uma “linguagem secreta” para uso entre os grupos de amigos.
Esse prazer também aparece na criação de alguns textos literários, como se o escritor pudesse retomar a liberdade criativa da linguagem que herdou da infância. Impossível não lembrar do “criançamento” da palavra em Manoel de Barros, outro poeta inventivo, que busca nas coisas ínfimas, nos “inutensílios”, a inspiração para sua produção literária. Assim como Oswald de Andrade, desenvolve um estilo próprio para refletir sobre a escrita e os modos de “brincar” com as palavras, sendo que, nessa “brincadeira”, encontramos a crítica sobre os valores impostos pela sociedade em que vivemos e a relatividade da importância destes. Quando o poeta desperta a atenção para fatos corriqueiros, para uma lesma no muro, um passarinho no céu, uma criança que corre, por exemplo, desperta-nos um olhar adormecido. Como se o véu ideológico dominante e massificador do social fosse retirado de nossos olhos; como se nos desse uma grande lupa para ver a riqueza das coisas “pequenas”: “Retrato do artista quando coisa / Escuto o perfume dos rios. / Sei que a voz das águas tem sotaque azul. / Sei botar cílios nos silêncios. / Para encontrar o azul eu uso pássaros. / Só não desejo cair em sensatez. / Não quero a boa razão das coisas. / Quero o feitiço das palavras”.
A função da linguagem por si só ultrapassa a capacidade de engendrar significação. Milner (1987) define a alíngua como um real impossível de ser traduzido que habita a própria língua, um impossível que não cessa de ser desconhecido. Barthes (1988) chama a atenção para o fato de que não há estado neutro na linguagem e que a literatura busca um outro estatuto, que é o do prazer. Há um prazer da linguagem evidenciado na experiência literária que não é objeto de interesse no cientificismo. Esse prazer da linguagem remete ao título de um de seus artigos, O Rumor da Língua (1988), em que o que é buscado é, como atesta o último ensino de Lacan, o não-sentido da língua, aquilo mesmo que escapa de seu aspecto de comunicação. A língua como fonte de prazer e como meio de gozo é evocada por Barthes nos termos de uma utopia. O “rumor da língua”, para ele, aponta para a utopia da língua como “música do sentido”, “esse não sentido que faria ouvir ao longe um sentido agora liberto de todas as agressões de que o signo, formado na “triste e selvagem história dos homens, é a caixa de Pandora” (Barthes, 1988, p.94).
Em Lituraterra, Lacan evoca a literatura para abordar o litoral existente entre os registros do simbólico e do real ou, em outras palavras, entre o saber e o gozo. Um litoral que, em suas palavras, desenha a borda do furo no saber. O real pode ser compreendido como a borda do sistema da linguagem, aquilo que excede ao registro do simbólico e da significação. A palavra, se de fato existe em função da comunicação e do entendimento, o tempo todo se choca com esse fato irrefutável: tudo não se diz. Nos termos de Milner (2005, p.7), “[...] há um impossível próprio à língua, que volta sempre ao seu lugar [...]: dito de outra forma, um real”. A letra, articulada ao real, é uma suplência que cumpre uma função distinta da representação, conjugando e separando esses dois campos, mantendo-os em uma constante conjunção e disjunção.
A letra é, dessa forma, um conceito que se articula com a alíngua, pois diz respeito àquilo que na escritura se encontra em uma proximidade maior do real em detrimento do simbólico. O “rumor da língua”, conforme evoca Barthes com Lacan, é a própria disjunção entre a letra e o sistema simbólico, o que desvela um gozo intraduzível e fora do campo do sentido. A própria escrita da poesia de Oswald de Andrade carrega consigo pontos da linguagem que resistem à assimilação: regionalismo peculiar, palavras ou poemas inteiros em francês, jogos de palavras, alguns neologismos. Isso torna a poesia, paradoxalmente, elogiada e rejeitada.
Muitas das suas criações operam como recriações que, inevitavelmente, tocam a poética da alíngua. A linguagem utilizada por Oswald é trabalhada em via de decomposição, de dissolução, recheada de ecos. Alguns exemplos (Andrade, 2003): “festa da raça / Hu certo animal se acha também nestas partes / A que chamam Preguiça / Tem hua guedelha grande no toutiço / E se move com passos tam vagarosos / Que ainda que ande quinze dias aturado / Não vencerá distância de hu tiro de pedra”. Também, “o gramático / Os negros discutiam / Que o cavalo sipantou / Mas o que mais sabia / Disse que era / Sipantarrou”.
Oswald de Andrade critica, através da sua proposta estética, a rotina que associa o significante ao significado, que faz com que o significado tenha sempre a tendência a representar uma mesma coisa, cristalizada. A literatura mostra que é próprio da linguagem estar ligada a algo que, no real, faz furo, que interrompe a linearidade do discurso para que surjam respiros de outras interpretações possíveis.
Por via do humor, que está presente na ironia, na paródia, na crítica ácida dos poemas de Oswald de Andrade, podemos interpelar a sisudez dos códigos instituídos. O humor seria uma criação simbólica repentina, quando através da surpresa e do inesperado eclode um sentido novo. É articulado e depende totalmente da linguagem e do deslizamento do sentido da palavra. E rimos daquilo que é “aceito” pela nossa cultura como risível, pois o riso é um fenômeno que acontece pela comunhão dos códigos sociais. Os historiadores Bremmer e Roodenburg (2000, p.13) afirmam que:
De Freud a Bergson e Mary Douglas, psicólogos, filósofos, sociólogos e antropólogos têm se empenhado em encontrar uma teoria abrangente para o humor e o riso. Uma falha comum a todas as tentativas é o pressuposto tácito de que existe algo como uma ontologia do humor, que humor e riso são transculturais e anistóricos. Contudo, o riso é um fenômeno tão determinado pela cultura quanto o humor.
Oswald de Andrade soube se utilizar do humor para falar da sociedade que via degradados os seus valores e não encontrava um modo próprio de resgatar a originalidade criativa que, para ele, passava pela “devoração crítica”. Seus poemas talvez busquem desmistificar uma ideologia dominante, rompendo com o círculo de automatismos cristalizados. Pelo estranhamento frente à nova linguagem que surge, a diferente forma proposta por Oswald e o grupo das artes modernistas, o leitor, o receptor dessa arte, encontra-se num lugar de instabilidade, podendo vir a criar um outro lugar para si e para a vida em sociedade, já que tudo é novo frente a seus olhos e sentidos. Segundo Lélia Parreira Duarte (2006, p.63):
Esse riso estaria na base de toda a revolução modernista, que colocou em causa certezas e sacralidades, relativizadas através da demonstração de que existem pelo menos dois pontos de vista possíveis e de que artifícios de enunciação podem inverter ou subverter a seriedade crítica supostamente presente no enunciando.
As jogadas irônicas de um poeta como Oswald de Andrade, que encena a linguagem e, em vez de utilizá-la a favor de qualquer tipo de poder, lembra ao seu leitor, através do estranho e do inesperado, que ali se faz alíngua, travessia de litoral entre meios de diferentes densidades, escrevendo literatura. Confessa-se produção, invenção, síntese de noções antitéticas como a objetividade e a subjetividade, o sério e a brincadeira, o sonho e a realidade, o sublime e o patético, tornando-se representante da representação, seguindo o pensamento de Lacan.
Referências
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Data de submissão: 23/02/2015
Data de aceite: 28/04/2015
II Professor titular do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia do Instituto de Psicologia UFRGS. Professor do PPG Psicanálise: clinica e cultura e PPG Psicologia Social e Institucional. Pesquisador do CNPQ. Pós-Doutorado pela Universidade de Paris VII e pela Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (EHESS), Paris. Coordena junto com Maria Cristina Poli o LAPPAP ( Laboratório de Pesquisa em Psicanálise, Arte e Política). Professor visitante na Deakin University ( Melbourne), Instituto de Estudos Criticos (Cidade do México), De Paul Universtiy ( Chicago). E-mail: edsonlasousa@uol.com.br