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Revista Polis e Psique

On-line version ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.6 no.2 Porto Alegre July 2016

 

ARTIGOS

 

Burocracia: a política da indiferença1

 

Bureaucracy: politics of indifference

Burocracia: política de indiferencia

   

 

Edson Luiz André de SousaI e Luciane Gheller VeroneseII

I Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS, Porto Alegre, RS, Brasil.

II Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, UNIJUI, Ijuí, RS, Brasil.

 

 


RESUMO

O artigo estuda a temática da burocracia, pensada como política da indiferença a partir da metáfora da máquina e do anonimato como referentes do laço social nesse discurso. Enfatiza as formas burocráticas contemporâneas, típicas dos Estados capitalistas atuais, dando ênfase à burocracia no serviço público brasileiro, que mescla indiferença, desrespeito com jeitinho e compadrio. Aponta para a necessidade de profanar a burocracia, atentando aos restos não burocratizáveis, ou seja, realça a importância de um trabalho singularizado, artesanal, que não suspenda a capacidade de pensar e fortaleça o espaço público.

Palavras-chave: Burocracia; Psicanálise; Política; Laço Social.


ABSTRACT

This article examines the issue of bureaucracy, considered as an indifference policy through the metaphor of the machine and the anonymity as referential of the social bond in this speech. It also emphasizes the contemporary bureaucratic characteristics, typical from modern capitalist States, emphasizing the bureaucracy in the Brazilian public service that mixes indifference, disrespect knack and cronyism. Points to the need for defiling the bureaucracy, paying attention to the not bureaucratize remains, ie, stresses the importance of a singled, handmade, which does not suspend the ability to think and strengthen the public space.

Keywords: Bureaucracy; Psychoanalysis; Policy; Social Bound.


RESUMEN

El trabajo estudia el tema de la burocracia, la idea de que la indiferencia política de la metáfora de la máquina y el anonimato como en relación con el vínculo social que habla. Destaca formas burocráticas típicas contemporáneas de Estados capitalistas actuales, haciendo hincapié de la burocracia en la administración pública brasileña que mezcla la indiferencia, falta de respeto y el amiguismo. Señala la necesidad de profanar la burocracia, prestando atención a los restos no burocratizáveis, es decir, subraya la importancia de un trabajo singularizado, el trabajo artesanal, que no suspenda la capacidad de pensar y fortalesca el espacio público.

Palabras-clave: Burocracia; Psicoanálisis; Política; Vínculo social.


 

 

Quer vivamos em uma democracia ou sob o jugo de regimes ditatoriais, quer trabalhemos em uma dada coletividade ou pertençamos a determinada comunidade, em suma, qualquer que sejam as circunstâncias históricas, nunca devemos ceder nem ao procedimento do silêncio nem à aceitação da arbitrariedade legal.
Elisabeth Roudinesco

Considerações iniciais

O estudo da burocracia pode ter seus primórdios em tempos tão remotos quanto à história do convívio entre os homens, sendo difícil, por vezes, desvincular a estrutura das relações humanas sem um grau de organização pautada em princípios normativos, com planejamentos, hierarquia de autoridade e divisão de trabalho. Faz-se, porém, necessário distinguir a burocracia como um elemento operacional de ordenação de tarefas e objetos que auxilia o andamento e as relações de trabalho e a burocracia que extrapola a dimensão da relação com os objetos e invade a relação entre os sujeitos, produzindo um pathos2, um estilo de viver pautado na redução da lei simbólica às normas e regulamentos, na impessoalidade das relações interpessoais e principalmente no empobrecimento da experiência como valor de transmissão. É nesta vertente que nossos estudos concentram seus esforços.  

Em contextos institucionais públicos, é comum o relato acerca da indiferença, seja no modo como são tratados os pedidos, seja no seu endereçamento, na dificuldade de acolhimento ou encaminhamento. Através da justificativa que todos são iguais perante a lei, coloca-se o paradoxo - é de todos e de ninguém. “É da instituição”. Pensar sobre o terceiro desta forma redunda num trabalho que desconsidera a singularidade e propõe a massificação. Interessa-nos pensar quais as consequências psíquicas para o sujeito que vive dentro de um cenário destes.

O presente ensaio se propõe a lançar interrogações sobre a temática da burocracia a partir da metáfora da máquina como protótipo da gestão das organizações, das relações anônimas como referentes primordiais do laço social e da atualidade discursiva da burocracia na cultura do “novo capitalismo”.


A montagem burocrática e seus impasses para o laço social

As perguntas específicas devem receber respostas específicas; e se a série de crises que temos vivido desde o início do século pode nos ensinar alguma coisa é, penso, o simples fato de que não há padrões gerais a determinar infalivelmente os nossos julgamentos, nem regras gerais a que subordinar os casos específicos com algum grau de certeza.
Hannah Arendt

Uma forma de conceber a burocracia é a partir de “uma estrutura social na qual a direção das atividades coletivas fica a cargo de um aparelho impessoal hierarquicamente organizado, que deve agir segundo critérios impessoais e métodos racionais” (MOTTA, 2000, p. 7). Assim, os efeitos do excesso de racionalidade técnica reduzem sujeitos a “coisas”, ou seja, indivíduos desprovidos de autoria, tal como o trabalho desenvolvido pelo processo de engrenagem das máquinas.

A extrema hierarquização e fragmentação das tarefas/ responsabilidades dificulta a implicação no trabalho, a comunicação entre pares, superiores e usuários do serviço, produzindo anonimato, alienação, uniformização dos modos de pensar e agir, independentemente do contexto em questão. Também a ênfase na aparência e não no conteúdo, no passado desconectado do presente e do futuro (sempre foi assim...), na dissociação entre fins e meios, entravam processos criativos e produtivos nas relações de trabalho. São abordagens pautadas em tentativas de simplificação do que é complexo, da complexificação do que é simples, da suspensão do estatuto da dúvida e da cristalização de rotinas estereotipadas.

No âmbito do Estado moderno, as contribuições do sociólogo alemão Max Weber são fundamentais ao tema. Baseado em elementos jurídicos do século XIX, concebidos por teóricos do Direito, o conceito de burocracia indicava funções da administração pública, que eram guiadas por normas, atribuições específicas, esferas de competência bem delimitadas e critérios de seleção com aptidão técnica. Daí a exigência de exames, concursos e diplomas como instrumentos de base à admissão e promoção de funcionários especializados a fim de buscar a excelência dos serviços. A lei seria o ponto de equilíbrio último, que referendaria as regras e regulamentos escritos, constituindo aplicações concretas de normas gerais e abstratas, fundadas no princípio da autoridade legal, legítima e racional, estabelecido por relações hierárquicas entre superiores e subordinados, nos cargos de direção e chefia, a fim de que os mandatos fossem cumpridos.

Os pressupostos da burocracia estatal idealmente traziam diversas vantagens: a racionalidade expressa na busca de meios para atingir os fins da organização; a precisão da descrição e análise dos cargos como aposta no conhecimento exato de cada responsabilidade; a distribuição do trabalho a partir de rotinas, realizadas metodicamente, que, consequentemente, tornar-se-iam previsíveis e acabariam por conduzir a confiabilidade entre as pessoas, evitando, assim, o atrito entre elas; e a rapidez dos processos decisórios, obtida pela tramitação de ordens e papéis e pela uniformidade, além do apoio em regulamentos que colaborariam para a redução de erros e custos. 

De acordo com tal lógica, a facilidade de substituição daquele que é afastado e os critérios de seleção apenas por competência técnica garantiriam a continuidade do sistema burocrático, e este último evitaria o nepotismo. Como trabalho profissionalizado, com ênfase em treinamentos e especializações dos funcionários, o mérito pessoal acarretaria benefícios para as organizações. Nesse sentido, a burocracia é, segundo Weber (2004), uma estrutura de dominação racional-legal caracterizada pela existência de áreas de competências fixas e oficiais, ordenadas de acordo com regulamentos, e autoridade estável baseada no princípio da hierarquia e, quando necessário, com a utilização da coerção como uma forma de poder.

Sua natureza específica, bem recebida pelo capitalismo (e também por outras formas de regime, como por exemplo, o comunismo), desenvolve-se mais perfeitamente na medida em que a burocracia é 'desumanizada', em que consegue eliminar das relações de trabalho o amor, o ódio e todos os demais elementos pessoais, irracionais e emocionais que fogem ao cálculo. Destacam-se neste modelo, então, a hierarquia, a impessoalidade e a separação entre as esferas pública e privada.

Segundo Motta e Vasconcelos, no ordenamento burocrático, busca-se organizar, de forma estável e duradoura, a cooperação de um grande número de indivíduos, cada qual detendo uma função especializada, separando a esfera pessoal, privada e familiar da esfera do trabalho, visto como esfera pública de atuação do indivíduo. Nas sociedades tradicionais, normalmente a esfera familiar e a esfera do trabalho se confundiam, dado o caráter pessoal das relações. Também nessas sociedades o trabalhador não era um produto, mas vendia produtos, ele controlava o processo e o produto, não havendo separação entre capital e trabalho. Na sociedade industrial, há um empenho de ruptura desses padrões (2006).

Nesses termos, a organização estruturada em princípios burocráticos seria eficiente por excelência, pois partiria do detalhamento, antecipadamente, do modo como as coisas devem acontecer. O controle garantiria o sucesso.

Idealmente constituídos para operar em qualquer contexto, os princípios burocráticos, embora organizem socialmente funcionamentos institucionais, seguem lógicas próprias ao estilo de uma época e de um lugar. Contemporaneamente, encontramos questionamentos acerca desta perspectiva de gestão: a metáfora da máquina clássica (como foi ilustrada por Charles Chaplin em Tempos modernos3) permanece, principalmente em cenários públicos, porém emperrada, pouco eficiente dadas as suas características de rigidez que obstaculizam a participação democrática dos que dela fazem parte ou dos que a ela pretendem servir.

Goffman (1979) assinala que nos lugares públicos há a predominância de uma forma de interação social qualificada como "desatenção civil" expressa em pequenos gestos de falta de investimento entre os sujeitos: contato visual mínimo, distanciamento cuidadoso na proximidade física, entre outros. No mesmo norte, Sennett enfoca a questão denominando-a de “respeito”.

A falta de respeito, embora seja menos agressiva que o insulto direto, pode assumir uma forma igualmente ofensiva. Nenhum insulto é feito ao outro, mas ele tampouco recebe reconhecimento; ele não é visto – como um ser humano pleno, cuja presença tem importância. Quando uma sociedade trata a grande maioria das pessoas desta forma, julgando apenas alguns poucos dignos de reconhecimento, é criada uma escassez de respeito, como se não houvesse o bastante desta preciosa substância para todos. Como muitas formas de escassez, esta é produzida pelo homem; ao contrário da comida, o respeito nada custa. Por que, então, haveria uma crise de oferta? (2004, p. 17).

Dessa forma, os processos de gestão orientados na metáfora do funcionamento de uma máquina propõem uma maneira mecanicista de agir frente aos impasses que se produzem nas instituições.

Essa organização discursiva, em que o protagonismo da máquina é evidente, é ilustrada na literatura de forma magistral por Franz Kafka em obras como O castelo, O processo e Na colônia penal, nas quais o autor descreve os aparelhos como engrenagens, cuja centralidade é o vazio decorrente do anonimato. A condição de desamparo e injustiça são seus efeitos.

Escrita no ano de 1914, mas publicada apenas em 1919, Na Colônia Penal revela a atemporalidade da obra de Kafka que transborda os textos e se transforma em parte do cenário das situações de vida dos homens de todas as épocas.

A obra descreve a viagem de um explorador para “a ilha”, a convite de seu comandante, em cujo lugar funciona o estabelecimento penal, para aquele testemunhar a cerimônia de execução, pela máquina, de acordo com a imposição da sanção atribuída à violação da norma vigente no local. A máquina é operada por um oficial e insculpe nas costas desnudas do condenado a punição decorrente do rigor da lei. A função do aparelho é, literalmente, fazer sentir a sentença na própria carne, com o suplício funcionando como meio inibidor de outras transgressões.

A temática abordada oferece um leque de possibilidades para pensar nos vários matizes burocráticos constatáveis nas organizações. O julgamento severo da “máquina de fazer justiça”, que sentencia com a inscrição na carne e pune com a morte (mesmo que seja simbólica), é efeito da indiferença imposta pela norma diante daquilo que lhe escapa, a singularidade.

Hannah Arendt, em Responsabilidade e julgamento (2004), indica que cada homem deve ser responsável individualmente, não como dente de uma engrenagem, mas na sua responsabilidade específica. Segundo a autora, para fazer o mal, não é necessária uma capacidade de vilão, basta suspender a capacidade de pensar. É o caso de Eichmann, que não cometeu os homicídios nos campos de concentração, mas sua posição anônima permitiu que eles acontecessem. É em torno desta questão que discorreremos a seguir, pois tal como a herança transmitida por Primo Levi4 acerca da sobrevivência nos campos de concentração, relatando a importância de manter a dignidade humana para não se transformar em animal e seguir vivendo, apostamos na condição humana capaz de criar novas maneiras de pensar sobre a organização e transpor a burocracia a fim de não nos transformarmos em máquinas e seguirmos vivendo com dignidade.


Do servidor inexistente à servidão existente: anonimato e poder como referentes no laço social

O domínio de Ninguém é claramente o mais tirânico de todos, pois aí não há ninguém a quem se possa questionar para que responda pelo que está sendo feito.
Hannah Arendt

Um dos traços fundamentais nas organizações burocráticas é o anonimato e seus efeitos para o laço social na Instituição Pública. Em nossa experiência, inúmeras vezes nos deparamos com a aparente confusão acerca da responsabilidade decorrente do lugar ocupado como parte inerente do sistema de administração do funcionamento burocrático. As incoerências e ineficiências são em geral marcas constitutivas, desejadas, porém encobertas na famosa expressão “eu não sabia”, sustentadas na alegação de ignorância e da complexidade de um sistema altamente compartimentado em que as informações são limitadas e o controle desempenhado por “alguém” que dificilmente pode ser nomeado. Justamente, trata-se da impossibilidade de nomeação, já que o “eu” em questão não pode ser reconhecido como sujeito na medida em que denega os atos que realiza.

Perplexidade e paralisia tal enunciado produz, é uma espécie de efeito de vertigem que deixa desorientado o interlocutor, “como assim não sabia?” A indignação, perpassada por matizes passionais e com apelos racionais, que segue a questão, é mais um ponto que costuma reforçar a falta de implicação do autor do enunciado, pois o questionamento retorna para quem o fez, isentando desse modo, quem o proferiu.

Tal perspectiva é descrita por Costa, relendo Arendt, ao afirmar que “a burocracia é o domínio de ninguém, ou o domínio de um intrincado sistema de departamentos no qual nenhum homem, nem o único, nem o melhor, nem poucos, nem muitos, pode ser considerado responsável” (1991, p. 46-47).

Conforme escrito anteriormente, em contextos burocráticos há uma extrema hierarquização dos trabalhos, dos lugares, de forma que as responsabilidades ficam fragmentadas infinitamente, dificultando a autonomia e produzindo o anonimato, transmitindo a mensagem que nunca é personalizada, mas em “conformidade com a letra da lei”. O exposto é corroborado por Arendt discorrendo acerca do caso de Eichmann5 em sua dificuldade em reconhecer-se como autor dos atos que praticou.  

Hannah Arendt acompanhou o processo de Eichmann como correspondente da revista The New Yorker. Em seu texto Eichmann em Jerusalém apresentou a tese acerca da banalidade do mal, que diz respeito à obediência cega a normas e regulamentos a partir da suspensão da capacidade de pensar. Segundo a autora, a condição de Eichmann era adesista, mostrava uma ausência de desejo relativa a suas escolhas (“não entrou para o partido por convicção, nem jamais conheceu seu programa, não leu Mein Kampf. Até que alguém lhe sugeriu, Por que não se filia à SS? E ele respondeu: Por que não? Foi assim que aconteceu)” (1999, p. 45).

Tinha quase total incapacidade de olhar qualquer coisa do ponto de vista do outro. “Se considerava um idealista que na sua versão não permitia jamais que suas emoções pessoais interferissem em suas ações” (1999, p. 54). “Seria capaz de ter mandado seu próprio Pai para a morte se isso tivesse sido exigido” (1999, p. 33). Sua condição empobrecida poderia ser resumida no seguinte fragmento:

Minha única língua é o oficialês. Mas a questão é que o oficialês se transformou em sua única língua porque ele sempre foi genuinamente incapaz de pronunciar uma única frase que não fosse um clichê (será que foram esses clichês que os psiquiatras acharam tão ‘normais’ e ‘desejáveis’?) (1999, p. 61).

Quando conseguia formular uma frase própria, repetia até torná-la clichê. Sua incapacidade de falar era referida a sua incapacidade de pensar, em resumo, sua fala era vazia. Sua memória só funcionava a respeito de coisas que influenciavam diretamente sua carreira, produzindo progressos pessoais. Ele afirmava orgulhosamente sempre ter “cumprido seu dever”. Prestar obediência cega a normas e regulamentos era seu propósito. Ele cumpria o seu dever, “uma lei era uma lei, não havia exceções” (1999, p. 154).  

No julgamento, a defesa alegou atos de Estado a fim de desresponsabilizá-lo. Era pertencente a uma estrutura altamente estratificada, em seus distintos níveis, e, nessas condições, a responsabilidade corriqueiramente fica a cargo de alguém anônimo, é de todos e de ninguém.

Diante da morte seguiu usando clichês: “Ele estava animado, esqueceu que era o seu funeral” (1999, p. 274). Talvez fosse mais uma forma anônima de responder frente à responsabilidade que lhe cabia. “Ele cumpria o seu dever, como repetiu insistentemente à polícia e à corte; ele não só obedecia a ordens, ele também obedecia à lei” (1999, p. 152). Ele era um burocrata vazio, uniforme, inconsistente, limitado, normal.

A questão posta fica assim formulada: quando a norma toma o lugar da lei, que fica positivada e não pode ser interpretada, segundo condições que convoquem à justiça, é nesses casos que a burocracia produz seus efeitos mais perversos.

Porém, há uma distância importante entre o estilo representado por Eichmann e a caricatura do funcionário público burocrata, enquanto o primeiro está convicto da importância de sua função, inclusive para a busca do reconhecimento pessoal, o segundo nada pretende edificar, aliás, o reconhecimento quando alcançado é às avessas, ou seja, é por não fazer, por atravancar o caminho de outros, por produzir imobilismos e engessamentos, força contrária ao processo produtivo, é que consegue algum reconhecimento.

Tais questões são trabalhadas por Costa: “ao contrário do burocrata nazista ou imperialista, engajado na expansão da causa, do império ou do movimento, o burocrata do serviço público é imobilista. Ele não visa expandir ou fazer crescer nada. O próprio aumento da burocracia lhe é indiferente ou incômodo” (1991, p. 52). A arte de não fazer, engavetar está na ordem do dia.  Seu objetivo é manter o mesmo ou dificultar, pois é assim que buscam algum reconhecimento (CODO, 2002, p. 300-301). Passividade mortífera que propicia o exercício burocrático da profissão ou da cidadania, levando os sujeitos a uma montagem instrumental.

As interrogações levantadas por Costa são de extrema relevância:

Como e por que os indivíduos aderem à burocracia, mesmo quando essa adesão reverte em prejuízo do que a maioria da coletividade julga útil, sensato e desejável pelos padrões culturalmente hegemônicos? O que na vida burocrática tanto seduz o burocrata? (1991, p. 60).

É a própria dimensão da alteridade que fica problematizada. Segundo o autor, “o burocrata não é necessariamente um ‘sádico’ ou um ‘monstro de insensatez’, mas não pode deixar de agir como age, nem sentir como sente, porque acredita que sem a ‘máquina’ não tem como agir, sentir, ou digamos de imediato, ter a satisfação ou gozar.” (1991, p. 93). Compartilhar da estrutura da máquina garante um lugar, mesmo que o preço a pagar seja obedecer sem parar para pensar nas consequências do que é feito, ou melhor, do que não é feito, é proceder conforme gestos automáticos, despidos de vínculos pessoais e sociais, ou ainda, calculando benefícios proporcionados pelo compadrio.

Na obra O futuro de uma ilusão, Freud aborda a origem psíquica das ideias religiosas. A essas conceitua como ilusões decorrentes dos desejos frente ao desamparo que é produzido por sua condição humana de fragilidade em relação à força e às intempéries da natureza, bem como de seu infantil que perpetua de alguma forma durante a vida.

Quando então o adolescente percebe que está destinado a ser sempre uma criança, que jamais poderá prescindir de proteção contra poderes desconhecidos, empresta-lhes os traços da figura paterna, cria os deuses, dos quais tem medo, que procura agradar, e aos quais, no entanto, confia a sua proteção. Assim, o motivo de anseio pelo pai é idêntico à necessidade de proteção contra as consequências da impotência humana; a defesa contra o desamparo infantil empresta seus traços característicos à reação contra o desamparo que o adulto é forçado a reconhecer, reação que é precisamente a formação da religião (2010, p. 71-72).

Assim, as doutrinas religiosas concebidas como ilusões abrem possibilidades para que ele interrogue: “outros bens culturais não teriam natureza semelhante, bens que respeitamos e que permitimos que controlem nossa vida. Os pressupostos que regulam nossas instituições estatais não teriam de ser chamados igualmente de ilusões?” (FREUD, 2010, p. 91). Não seria este um dos possíveis fundamentos para a servidão voluntária à burocracia?

Nesse norte, podemos pensar acerca do paradoxo que se coloca quando o tema da lei se faz presente. A maior justificativa burocrática para o não funcionamento dos serviços diz respeito às proibições da lei, talvez seja aí que o anonimato melhor se configure enquanto desresponsabilização pelo que deveria ser feito. Sob a justificativa de que a lei não permite, muitos projetos são engavetados e desejos esvaziados.

Gloriosamente os burocratas quase nada resolvem na primeira vez que o pedido é encaminhado, orientados pelo princípio da lentidão, abusam do poder, transformando coisas simples em complicações difíceis de serem resolvidas e culpabilizando o pedinte pelos entraves do processo (foi ele quem não encaminhou certo, quem não apresentou todos os documentos, quem esqueceu um carimbo...). Está-se diante de um especialista na arte de inviabilizar e as condições ritualísticas impostas “pelo sistema” remetem ao labirinto mitológico do Minotauro. Encontrar um fio de Ariadne para transitar nos intrincados corredores, departamentos, sessões etc., não é tarefa fácil. Acessar o carimbo que dá passagem implica o decifrar uma intrincada rede de códigos. Cenário kafkaniano conhecido por qualquer um que necessitou fazer valer sua condição cidadã: de uma simples reclamação pela falha de um serviço, o da telefonia móvel, por exemplo, a questões mais complexas como tratamentos de saúde de alta (e também média e baixa) complexidade, o cenário é desolador.

No entanto, chama a atenção, entre nós brasileiros, que esse espaço destinado ao cumprimento da lei é facilmente substituído por acordos verbais tecidos na informalidade e com alguma frequência na ilegalidade, como, por exemplo, a contratação de profissionais via “seleção pública” (uma mescla composta de uma prova comprobatória do mérito, mas que também segue critérios de indicação partidária) em detrimento de profissionais concursados à espera de nomeação.

Estes elementos apontam para os conflitos implícitos, desde nossas origens, entre o igualitário e o hierárquico e conduzem para uma maneira singular de lidar com a lei, ou seja, de supor que a lei é igual para todos, porém uns são mais iguais que outros. A suposta harmonia de convivência étnica e a alegria de viver do brasileiro encobrem as formas discriminatórias e autoritárias que constituem a base de nossa sociabilidade. No Brasil, a particularidade da gestão entre o normativo e seus arranjos é negociada na sutilidade, conduzindo a um estilo que denominamos burocracia híbrida. As relações entre mandar e pedir ficam suavizadas na ginga produzida pelo “jeitinho”. Mestre da sedução, este dispositivo, associado a sua forma correlata, o “Você sabe com quem está falando?” (DaMATTA, 1997), contorna as desigualdades sociais e a impessoalidade característica dos serviços públicos brasileiros, faz “funcionar a máquina” e cria formas alternativas de viabilizar o trabalho.

Hannah Arendt, em As origens do totalitarismo (2000), trabalha o conceito de mal (radical) e aponta as condições de nudez e superfluidade da condição humana decorrente da tecnificação das condições da vida contemporânea. Segundo a autora, o mal radical não somente produz homens supérfluos, mas trabalhadores e serviços supérfluos, cristaliza situações impensáveis e conduz a massacres administrativos, combatendo toda forma de espontaneidade. Nessa perspectiva, podemos aproximar a condição do burocrata àquela descrita por Arendt (2000) como animal laborans, que, por sua atividade e aspirações, não sabe como construir um mundo nem cuidar bem do mundo criado pelo homo faber, ele é indiferente ao mundo. Seu horizonte se coloca como saciedade e não como ideais.

Portanto, é fundamental agir interrogando acerca do pertencimento baseado no interesse comum, questionar posições “neutras”, indiferentes, que, tais quais formigas ou abelhas, não distinguem o interesse privado do público e tratam a vida pública como o somatório das vidas privadas. Torna-se fundamental refletir sobre a implicação do sujeito com a norma, sobre as distinções entre o planificado pelo discurso burocrático e o vivido pelos sujeitos na instituição.

Assim, a aposta no pensamento não apenas contemplativo, mas como posição reflexiva, pode ser um modo de fazer frente ao vazio do discurso, escutado nas falas sem autoria, compostas pela saturação das palavras, que falam, mas não dizem nada e servem apenas para encobrir possibilidades de enfrentamento dos impasses. Muitas vezes elas entram em sintonia com os pedidos, mas justamente para impossibilitar que os encaminhamentos ocorram. Agir desarticulando promessas ocas, que imobilizam o desejo de transformação, pode ser uma aposta no pensamento como estratégia de combate à banalidade do mal.


A contemporaneidade da burocracia na cultura do "novo capitalismo": o sujeito entre o supérfluo e o flexível

(...) para a destruição da experiência, uma catástrofe não é de modo algum necessária, e que a pacífica existência cotidiana em uma grande cidade é, para este fim, perfeitamente suficiente.
Giorgio Agamben

A reestruturação das burocracias governamentais e de corporações rígidas não sustentou o sonho de um mundo mais comunitário e solidário entre os homens. O questionamento da jaula de ferro e de contextos de longo prazo legou um mundo esfacelado, cujas condições sociais são instáveis e fragmentárias, demandando dos sujeitos constante capacidade de se reinventarem a fim de atender às exigências da realidade, principalmente às de mercado.

A contemporaneidade se traduz pela reflexividade, enquanto um estatuto da dúvida, pelas incertezas frente a um mundo com pouco amparo e pela fugacidade orientada no instantâneo. O risco e a instabilidade estão na ordem do dia, pois as relações na modernidade tardia são negociadas constantemente6.

Distintamente das culturas tradicionais, nas quais o trabalhador não era produto, mas vendia produtos, a cultura ocidental moderna estabelece relações de curto prazo. Narrativas de longo prazo, baseadas no princípio da fidelidade, como as relações de trabalho orientadas pelo “até a aposentadoria nos separe” ou por “casamentos até que a morte os separe” são questionadas, em prol de maior liberdade e felicidade. A flexibilidade do tempo, do espaço e dos laços conduz à mobilidade social nos novos tempos, a partir da autonomia do sujeito e dos efeitos do individualismo, os quais possibilitam recomposições nos cenários da vida. Segundo Sennett, (2006, p. 13), “quando as instituições já não proporcionam um contexto de longo prazo, o indivíduo pode ser obrigado a improvisar a narrativa de sua própria vida, e mesmo a se virar sem um sentimento constante de si mesmo”. Para elas, as vidas estão à deriva, e a única constante capitalista é a instabilidade.

A nova ordem aposta nas habilidades potenciais em detrimento da experiência e suas condições de reconhecimento de um passado valoroso. O fascínio pelas novidades lança os homens deste tempo a uma condição de recursos, à mercê de serem supérfluos e, portanto, descartáveis.

As fronteiras entre o público e o privado se relativizam. Pode-se trabalhar em casa, a qualquer hora do dia ou da noite, porém com muito mais controle a partir das metas ascendentes de produção. A intimidade passa ser invadida pelas exigências do trabalho. A abordagem tecnocrática de uma racionalidade ilimitada sem paixão abre espaço para um novo ideal de trabalhador, idealizado na figura de experts que encarnam um lugar de ferramenta performática. Tais traços são as marcas da burocracia contemporânea. A metáfora da máquina permanece, porém é uma máquina quase autônoma, idealizada no protótipo do computador de última geração.

A complexidade dessa cultura incide sobre as instituições que são atravessadas por dispositivos de poder global com efeito local. Em uma “sociedade do risco”, com poucos refúgios em “um mundo sem coração”, o serviço público, em muitos casos, desponta como porto seguro. As condições de adaptação de acordo com as novas exigências faz com que a burocracia se reinvente. A jaula de ferro se transforma na “jaula de goma”, a antipática burocracia se reveste de elementos sedutores expressos pela caricatura do sorriso da instituição. Seus tons-cinza são atenuados por cores pastéis e as repartições labirínticas dos departamentos derrubadas com a promessa de horizontalização dos laços.

Paradoxalmente, esse contexto é favorável ao fortalecimento burocrático, com ênfase em ambientes competitivos e o lobby de si mesmo. A neutralidade do poder que opera sem responsabilidade segue sustentada no funcionamento evasivo de uma rotina orientada pelo controle de arquivos, de encaminhamentos dos pedidos, dos “segredos”,7 enfim das formas de pensamento e vida institucional.

Sennett (2006) escreve que o capitalismo primitivo era mal estruturado, sem métodos contábeis e com grandes propensões de falências das empresas, dada sua instabilidade material e mental. Porém, a organização capitalista a partir de modelos militares disseminados na sociedade civil, no final do século XIX, propiciou a expansão dos funcionamentos burocráticos nas instituições, orientados pelo ideal de eficiência e rigidez na cadeia de comando.

O trabalho era orientado por uma clara divisão de tarefas (com funções fixas e estáticas), organizadas em postos de trabalhos escalonados na pirâmide racionalizada, na qual as ordens seguiam essa estrutura, mas eram traduzidas/interpretadas por cada um em cada nível que dava lugar a todos (mesmo que na base da pirâmide). Essa organização objetivava evitar o conflito social, ou seja, possibilitar o pertencimento. Ela foi também a fundamentação política para o inchaço das burocracias estatais.

Os critérios de reconhecimento formais, estabelecidos pela perícia (implicação no trabalho) e pela meritocracia, na atualidade, também são questionados. A conquista de um lugar na pirâmide estabelecida, que propõe objetificar o mérito com avalição impessoal, em especial nas instituições sanitárias públicas, nem sempre respeita esse modo de gestionar. A título de ilustração podemos citar a prática de gestores das instituições indicados pelo partido que está no governo, os chamados cargos em comissão (CC), ou cargos de confiança, os quais, em muitos casos, são pessoas de fora da instituição e que, com frequência, nunca tiveram experiências com as questões que vão se deparar. Até mesmo a formação técnica para a ocupação do cargo é considerada dispensável. Por outo lado, quando a chefia escolhida é “alguém de dentro”, esse funcionário recebe função gratificada (FG) e também corre o risco de um compromisso de lealdade com o poder instituído. Assim a justiça organizacional prometida pelo ordenamento burocrático não é respeitada, e o critério do mérito substituído pelo compadrio.

Outro ponto que merece destaque é relativo à implicação. Fazer bem feito requer tempo e dedicação. O questionamento da morosidade burocrática e a pressão pela produção em curto prazo podem contribuir para reduzir a capacidade de pensar e criar, produzindo maior risco de práticas anônimas e desimplicadas com ideais de respeito às demandas endereçadas à instituição.

Ainda podemos destacar o que Sennett (2001) chamou de “a corrosão do caráter”, o risco decorrente da recomposição das equipes, que no caso do serviço público, ocorre a cada novo governo, seja municipal, estadual ou federal, gerando instabilidade e dificuldades na continuidade de um projeto compartilhado. Como, então, sustentar os laços de trabalho se a cada eleição significativas partes das equipes são substituídas por aqueles que apoiaram o partido que venceu o pleito?

A busca de ordem, de acordo com uma lógica temporal de longo prazo, cumulativa e previsível, permitia narrativas orientadas pela maneira como as coisas deveriam acontecer. O Bildung8 possibilitava a construção da metáfora da escada, na qual “é possível subir, descer ou permanecer estagnado, mas sempre haverá um degrau onde pisar” (SENNETT, R., 2006, p. 30).

Porém, no novo contexto, as antigas regras cambiaram e para os jovens tecnocratas as transações substituíram as relações. A nova cultura se orienta por outros representantes do poder: os acionistas que não raro são literalmente estrangeiros (pertencentes a outras nacionalidades e indiferentes à cultura das organizações). Eles impõem resultados a curto prazo, transmitindo uma imagem de flexibilidade e capacidade dinâmica de lidar com mudanças, impulsionadas pelas novas tecnologias de comunicação, fixando mais controle, menor mediação e redução das condições de interpretação das ordens dadas, enfim uma nova forma de centralização.

A reinvenção constante, seja em termos pessoais ou institucionais, está na ordem do dia, como também as tarefas ou contratos de curto prazo que alteram o trabalho em conjunto. Esse modelo das corporações se estabelece como um novo parâmetro para os governos inflados, morosos e que estão sendo conclamados a abandonar a jaula de ferro.

 No entanto, seria ilusório supor que a flexibilização legou uma redução do controle. Nosso ponto de vista se alinha ao pensamento de Sennett (2006), o qual descreve a centralização do poder a partir de uma unidade de processamento do conjunto, que ele denomina, baseado em Foucault, de “vigilância panóptica”. Tal modelo lança mão de estratégias desenvolvidas por consultorias que poupam os executivos, que se encontram no centro da máquina, de responderem pelos rumos das organizações, eximindo-os da prestação de contas. Os efeitos de tal política são sentidos na alta rotatividade das autoridades institucionais e na fragmentação (geográfica ou intraorganizacional), deixando os trabalhadores entregues a si e precisando responder às diretrizes do controle central.

Também caracteriza esse modelo uma crise de lealdade, de confiança e de acúmulo de conhecimentos dos funcionamentos institucionais que pode reforçar o anonimato e a indiferença. Ao revés do que se poderia esperar da flexibilização e do achatamento da pirâmide hierárquica, a vida não se desburocratiza, mas a burocracia se reinventa, agora com efeitos mais perversos.

Sobre o tema, Motta afirma que as “virtudes da burocracia são as virtudes do capitalismo: um mundo de dominação e de falta de sentido. Assim, a burocracia que é a forma de organização mais racional, acaba sendo a mais irracional” (2001, p. 32).

No ambiente do culpado são os outros, no qual as desculpas são permitidas, e lei alguma foi feita para ser aplicada indistintamente, pergunta-se: quais as possibilidades, em nosso contexto, de transpor uma política como a burocrática que tem em um dos seus ideais indivíduos sem uma participação responsável efetiva?


Considerações finais

O modo de vida burocrático (com todas as suas métricas) conduz o homem na busca de lugares mais valorizados hierarquicamente, seja em termos de prestígio ou de consumo. Seu desejo de reconhecimento o deixa emaranhado nas armadilhas das estruturas estratégicas da organização. Com o protagonismo da máquina nas relações de produção, ocorre uma maior subordinação do trabalhador à estrutura, à autoridade da estrutura.

Os controles dos ritmos, a fragmentação e a proliferação de funções compõem esse cenário. A precariedade e o descaso como é tratada “a vida dos outros” retrata a condição hegemônica do pensamento burocrático em nosso tempo.

A desatenção civil e a falta de respeito compõem o cenário burocrático, trazendo muitas consequências para o laço social, tais como: a ausência de valor singular produzido pela inacessibilidade aos aparatos burocráticos e o conflito daí manifesto, a dificuldade de acesso aos representantes do poder e a luta pela personificação. Essas questões fizeram discorrer, neste ensaio, sobre o que denominamos políticas da indiferença.

No intento de delimitar esta política, abordamos o conceito de burocracia, enfatizando a metáfora da máquina burocrática e o anonimato como referentes do laço social neste discurso. Também sublinhamos suas formas contemporâneas, típicas dos Estados capitalistas atuais.

A questão da indiferença articulou-se diretamente com o anonimato e com o desmerecimento, uma forma de reconhecimento às avessas, que sustenta a estrutura de poder, na medida em que deixa enredado o pedinte. O tratamento massificado destinado àqueles que necessitam dos serviços públicos ou os que nele trabalham, relação que se reproduz em vários níveis, redunda na própria falta de respeito para com as instituições públicas.

Nesse contexto, sinaliza-se para a construção de uma cultura que conduz a uma possibilidade de redução do distanciamento entre regras aviltantes, que fortalecem a burocracia e fragilizam a instituição pública, e outras formas de transposição desta política da indiferença. Propor espaços ao inusitado, à sensibilidade e ao sonho são modos de abalar o pensamento burocrático. Manter nas rotinas cotidianas reflexões, vislumbrar distintas perspectivas de intervir e partir de um trabalho singularizado, clínico e institucional são formas de manter a esperança na esfera pública. Pensar o trabalho como artesanal, no caso a caso, valorizando os restos, os rastros, a partir do engajamento, é necessário a um projeto compartilhado entre vários, rastros, em prol do bem comum, do bem público.

Assim, em um tempo marcado pelo anonimato e pela indiferença, profanar o discurso burocrático e possibilitar um lugar de sujeito na instituição é um constante desafio. Transpor barreiras, reconhecer e construir fronteiras, permitir passagens, eis uma travessia sempre em curso para todos aqueles que sonham com um amanhã capaz de testemunhar condições de vida mais além da burocrática.



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Data de submissão: 21/02/2016
Data de aceite: 20/07/2016

 

1 Artigo produzido a partir de questões trabalhadas na tese apresentada junto ao Programa de Pós-graduação, Doutorado em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS. A tese, defendida em novembro de 2015, teve como título “Barreiras, fronteiras e passagens: a burocracia e o laço social na saúde mental pública brasileira - travessia de uma experiência”, com a orientação do Prof. Dr. Edson Luiz André de Sousa.

2 Aproximamos aqui a concepção de burocracia ao conceito de pathos, cunhado pela psicopatologia fundamental, a partir de Pierre Fédida, como aquilo que transborda e faz padecer e que carece de escuta para possibilitar uma condição de experiência. Também como passividade, que comporta muita atividade e como paixão (pela instrumentalidade). A respeito do conceito de pathos, consultar BERLINCK, M. T. O que é psicopatologia fundamental. São Paulo: Escuta, 2008.

3 Modern Times (Tempos Modernos), EUA, 1936, filme de Charles Chaplin, uma dura crítica à sociedade industrial, com seu trabalho repetitivo e ritmos determinados pela máquina. Também ilustra o apagamento das condições singulares de produção e o sofrimento/adoecimento mental decorrente deste funcionamento. Na figura do operário Carlitos, o questionamento do capitalismo e também de outros sistemas como o comunismo, além de distintas formas de controle social, representadas por várias instituições modernas.

4 Prisioneiro e sobrevivente de campo de concentração nazista escreveu várias obras de testemunho de sua experiência, dentre as quais É isto um homem?, que abordaremos posteriormente.

5 Adolf Eichmann, tenente-coronel da SS Nazista, administrador do Programa da Solução Final, responsável pela logística de extermínio de milhões durante o Holocausto, através da organização do transporte aos campos de concentração. Em 1960, foi sequestrado num subúrbio de Buenos Aires por um comando israelense e levado para Jerusalém, a fim de ser julgado. Frustrando a expectativa, suscitada durante o processo, em vez do monstro sanguinário que todos esperavam ver, surge um oficial que, embora revelando alguma inteligência e capacidade, também expunha uma personalidade medíocre, incapaz de refletir sobre seus atos ou de fugir da ação burocrática. Segundo Arendt, o grande exterminador dos judeus não era um demônio e um poço de maldade, como acreditavam os ativistas judeus, mas alguem terrivelmente normal. Um típico burocrata cumpridor de ordens, com zelo, sem capacidade de julgar, um homem de carne, de osso, com uma história individual e qualidades peculiares, como qualquer outro, sem capacidade de reflexão. Disso decorre sua famosa tese da “banalidade do mal”.

6 Sobre esta questão consultar BECK, U., GIDDENS, A., SCOTT, L. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. Tradução de Magna Lopes. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1997.

7 ARENDT, H., (1999, p. 100) discute as razões da criação das regras de linguagem, da linguagem codificada e do segredo como mecanismos de controle e dominação.

8 SENNETT, R., (2006) emprega inicialmente esta palavra alemã para falar de um processo de formação pessoal e posteriormente é empregada no âmbito das organizações e implica uma condição de planejamentos estáveis e de longo prazo ou mesmo de uma vida toda.


I Professor titular do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia do Instituto de Psicologia UFRGS. Professor do PPG Psicanálise: clinica e cultura e PPG Psicologia Social e Institucional. Pesquisador do CNPQ. Pós-Doutorado pela Universidade de Paris VII e pela Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (EHESS), Paris. Coordena junto com Maria Cristina Poli o LAPPAP (Laboratório de Pesquisa em Psicanálise, Arte e Política). Professor visitante na Deakin University (Melbourne), Instituto de Estudos Criticos (Cidade do México), De Paul Universtiy (Chicago). E-mail: edsonlasousa@uol.com.br

II Professora do Curso de Psicologia da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, UNIJUI, RS, Doutora em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS, Mestre em Educação nas Ciências pela UNIJUÍ, Servidora Pública Estadual/RS. E-mail: veronese@unijui.edu.br

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