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Revista Polis e Psique

On-line version ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.8 no.3 Porto Alegre Sept./Dec. 2018

https://doi.org/10.22456/2238-152X.71229 

ARTIGOS

 

Sexualidade infantojuvenil e judicialização

 

Children and adolescent sexuality and judicialization

 

Sexualidad infanto-juvenil y judicialización

 

 

Cristiana de França ChiaradiaI, Maria Lívia do NascimentoII

I Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, RJ, Brasil.

II Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, RJ, Brasil.

 

 


RESUMO

Este artigo visa mostrar modos de judicialização da sexualidade infantojuvenil, principalmente através da negação desta sexualidade como um direito, restringindo-a apenas à contravenção e suas punições. Também, discute o chamado abuso sexual e um novo dispositivo de controle da sexualidade chamado estupro de vulnerável. Mostra como a biopolítica vai ampliando a governamentalidade da conduta sexual de crianças e adolescentes, usando como estratégia a punição das relações sexuais com menores de 14 anos.

Palavras-chave: judicialização; sexualidade infantojuvenil; dispositivos de controle; estupro de vulnerável; biopolítica.


ABSTRACT

This article seeks to show ways in which children and adolescent’s sexuality becomes a justiciable issue by exploring the dichotomy of denial of children an adolescent’s sexuality as a right at the same time that it is taken for granted in cases of transgression and punishment. In addition it discusses the so called sexual abuse and a new sexuality control apparatus called rape of the vulnerable. It shows how biopolitics is expanding the governmentality of sexual conduct of children and teens, using the strategy of punishment of below 14 years old sexual relations.

Keywords: judicialization, children and adolescents sexuality, control apparatus, rape of the vulnerable; biopolitcs.


RESUMEN

Este artículo se propone a presentar modos de judicialización de la sexualidad  infanto-juvenil, principalmente a través de la negación de esta sexualidad como un derecho, retringiéndo la apenas a la contravención y a los castigos. También discute el denominado abuso sexual y un nuevo dispositivo de control de la sexualidad denominado violación de vulnerable. Muestra como la biopolítica amplía poco a poco la gubernamentalidad de la conducta sexual de niños y adolescentes, usando como estrategia el castigo de las relaciones sexuales con menores de 14 años.

Palabras-clave: judicialización; sexualidad infanto-juvenil; dispositivos de control; violación de vulnerable; biopolítica.


 

 

Judicializando a Sexualidade Infantojuvenil

Olhar a sexualidade infantojuvenil implica contextualizá-la, pois a forma como é compreendida, e como suas manifestações são ou não permitidas, depende da sociedade e do momento histórico. O foco do debate sobre as manifestações sexuais nunca é aleatório, ele se insere em um movimento maior da sociedade, em um movimento que define atos desejáveis e indesejáveis. A masturbação é um bom exemplo disso, pois já foi fortemente combatida (Foucault, 1992, 2013, 2014b, Rago, 2015), e mesmo atualmente em que “o discurso médico e, às vezes, o religioso, aliás, passam a defender o prazer sexual como benéfico à saúde, ao corpo e à alma” (Rago, 2015, p. 254), não é prática sempre aceitável.

Os controles da masturbação praticamente só começaram na Europa durante o século VIII.    Repentinamente, surge um pânico: os jovens se masturbam. Em nome deste medo foi instaurado sobre o corpo das crianças − através das famílias, mas sem que elas fossem a sua origem − um controle, uma vigilância, uma objetivação da sexualidade com uma perseguição dos corpos. Mas a sexualidade, tornando−se assim um objeto de preocupação e de análise, como alvo de vigilância e de controle, produzia ao mesmo tempo a intensificação dos desejos de cada um por seu próprio corpo... O corpo se tornou aquilo que está em jogo numa luta entre os filhos e os pais, entre a criança e as instâncias de controle. (Foucault, 1992, p. 146-147)

Se, naquele momento, o foco foi a masturbação, na contemporaneidade o foco recai sobre o abuso sexual (Gabel (org.), 1997, Braun, 2002, Mattos, 2002, Habigzang e Caminha, 2004, Sanderson, 2005, Méllo, 2006, Marra, 2016). Analisar a judicialização da sexualidade infantojuvenil implica compreender este contexto para identificar os discursos das estratégias da biopolítica que visam, por meio da punição, controlar as condutas sexuais infantojuvenis.

Nossa legislação ainda ignora a sexualidade da criança e do adolescente como um direito, demonstrado por um silêncio, sobre esta questão, no Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 1990). Porém, o mesmo foca na punição das chamadas contravenções à sexualidade. Foi nesta perspectiva, e como uma forma de inibir a pedofilia, que se criou uma lei mais severa, a Lei 12.015/2009, que amplia a pena e a própria definição do que seria uma violência sexual.

Aqui não questionamos esta lei como uma estratégia de maior repressão aos pedófilos, também não apoiamos nenhum tipo de violência sexual com crianças ou adolescentes. Nos dispusemos a construir um olhar incomodador sobre a mesma, visto que além de punir os chamados abusadores, ela cria um novo tentáculo judicial, um novo dispositivo legal que proibe qualquer “ato libidinoso com menor de 14 (catorze anos)” (Brasil, 2009).  A lei presume que, até esta idade, não há escolha e que todo ato sexualizado é violento. De forma sutil, todas as crianças e parte dos adolescentes, os com menos de 14 anos, são enquadrados como vulneráveis no tocante à sua sexualidade. Neste sentido, com o discurso de proteção da infância e da juventude, os tentáculos da judicialização determinam que as crianças não podem e quando os adolescentes podem manifestar sua sexualidade.

Uma estratégia biopolítica vem sendo tecida sobre os corpos, visando um controle da sexualidade e normatizando os modos de bem vivê-la. Como uma serpente, há uma ampliação do seu território, colocando como transgressoras práticas sexuais sem violência que, até então, eram consideradas normais e saudáveis. Por isto, neste artigo faremos um debate sobre a infância e a sexualidade, mostrando que, em nome da prevenção ao abuso sexual, a judicialização vem tecendo novas amarras no governo da vida.

 

Infância, Sexualidade e Direitos

Vivemos em uma sociedade que judicializa a vida, com regras e controle das condutas em todos os espaços. No contexto familiar não se passa diferente, pois os modos como os íntimos devem se comportar naquele ambiente também é regido por leis.

A relação com crianças e adolescentes é uma das mais controladas atualmente. Deste modo, não bater nos filhos; não negligenciar suas necessidades, físicas, emocionais ou sociais; vigiar suas atividades sexuais; acompanhar sua vida escolar, são todas atividades reguladas com base no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Brasil, 1990) já a partir do Art. 5º: “Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais. ”

No que tange à sexualidade, poder-se-ia dizer que há uma “liberdade” no modo de proceder no cotidiano, desde que não ultrapasse o que diz o ECA e outras legislações referentes a esse campo. Uma liberdade que faz com que a família vá marcando, desde o nascimento, como os filhos devem se relacionar com a sexualidade. Essa relação vai se construindo por meio de múltiplos discursos que, sutil e gradativamente, vão definindo códigos e condutas sobre a sexualidade.

Na vida de uma criança, desde muito cedo, as roupas usadas, a organização dos quartos e da casa, os brinquedos disponíveis e, principalmente, o trato que se tem com as pessoas, sejam crianças ou não, criam práticas e discursos instituídos que construirão um modo de viver a sexualidade.

Nos funcionamentos cotidianos são indicadas as formas de se posicionar frente às condutas sexuais: usar ou não a cor rosa, poder ou não brincar com bonecas ou carrinhos, poder ser médico ou enfermeiro, poder ser feminino ou masculino nas brincadeiras, condições produtoras de dados sobre a sexualidade. Informações que dificilmente terão espaço para uma problematização, pois segundo Chiaradia (2011) o silenciamento e a interdição, ainda nos tempos de hoje, são a base dos ensinamentos sobre o assunto.

Esta aprendizagem ocorrerá a partir de muitos não ditos que informarão que se brinca com pessoas da mesma faixa etária, que interagir com o outro sexo é saudável e esperado, que ser heterossexual é melhor do que ser homossexual. Tal construção subjetiva se faz de modo “naturalizado”, implantando a crença em situações de vida certa e em destinos pré-construídos. Desse modo, se espera que as experiências aconteçam com uma espontaneidade inconsequente, com uma ingenuidade salutar, ou seja, as experiências não devem se remeter a posturas eróticas de adultos, seja através de imagens ou de ações.

O ECA não afirma a sexualidade como um direito. Pode-se dizer que ela apenas se insere no que consta como direito ao desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, pois a mesma perpassa todos estes pontos. Subentende-se que a sexualidade está inserida nos ítens do direito a um desenvolvimento integral, já que não há menção a ela no texto, a não ser como contravenção. Nos referidos itens, a sexualidade aparece apenas como negatividade, ao referir o que é considerado desvio. Desse modo, seu registro aparece nos artigos legais que especificam punições evocados por meio das expressões sexo explicito, cenas sexualmente explícitas, atividades sexuais explícitas, exploração sexual ou abuso sexual. Três de seus artigos são elucidativos a esta questão:

Art. 130. Verificada a hipótese de maus-tratos, opressão ou abuso sexual impostos pelos pais ou responsável, a autoridade judiciária poderá determinar, como medida cautelar, o afastamento do agressor da moradia comum.

Art. 240. Produzir, reproduzir, dirigir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio, cena de sexo explícito ou pornográfica, envolvendo criança ou adolescente. Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.

Art. 241. Vender ou expor à venda fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente . Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa (Brasil, 1990) .

A sexualidade, para os legisladores, não é algo que mereça ser nomeado como fazendo parte dos direitos das crianças e adolescentes. Assim sendo, só é marcada como contravenção às regras sociais presentes na educação infantojuvenil. O Estatuto reflete, pois, a postura da sociedade, silenciando sobre a sexualidade como um direito e punindo o que considera excessivo.

 

Abuso Sexual

Ao discutir as forças que constituem e atravessam as produções sociais e jurídicas sobre o abuso sexual se compreende que para que ocorra um abuso sexual não é preciso deixar marcas físicas como hematomas, dilacerações, doença venérea ou uma gestação; nem provas materiais como vídeos ou fotos. Bragagnolo (2006) aponta que o considerado abusador, para escapar de punições, evita deixar registro de seu ato. Assim sendo, podem ser encontradas definições de abuso sem contato físico. A Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e Adolescência (Abrapia, 2002) cita cinco formas de abuso sexual sem contato físico: abuso sexual verbal, telefonemas obscenos, exibicionismo, voyeurismo e outros como: “Mostrar para crianças fotos ou vídeos pornográficos. Fotografar crianças nuas ou em posições sedutoras com objetivos sexuais” (p.9).

Uma ampliação foi necessária para se adequar as práticas que não se restringem a atos que marcam o corpo, como o exemplo do estupro, que é algo detectável por escoriações, vestígios materiais ou por consequências do ato, como doenças sexualmente transmissíveis ou gravidez. Deste modo, passa a ser considerado abuso sexual o enquadramento de qualquer ato libidinoso envolvendo crianças e uma parcela dos adolescentes. Foi a partir da Lei 12.015 de 07/08/2009 que estes atos também assumem uma nova nomenclatura e serão chamados de estupro de vulnerável.

Dois artigos dessa lei tentam elucidar a abrangência que a mesma assume.

Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos: Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. [grifo nosso]

Art. 218-A. Praticar, na presença de alguém menor de 14 (catorze) anos, ou induzi-lo a presenciar, conjunção carnal ou outro ato libidinoso, a fim de satisfazer lascívia própria ou de outrem: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos. (Brasil, 2009)

Cometer estes e outros atos sexualizados implica em austera punição, já que é compreendido como algo irremediavelmente catastrófico, sendo crime de extrema gravidade, um crime hediondo. Pelas leis brasileiras, este tipo de crime é de ação penal pública incondicionada, o que impõe ao Ministério Público, a obrigatoriedade de dar início ao processo mesmo contra a vontade da família e da vítima.

A mera suspeita do ato gera indignação, revolta e atitudes punitivas extremas, por isto faz com que o suposto abusador receba uma tarja criminal que identifique sua potência perigosa, como um modo de proteger a sociedade. Qualquer acusação de abuso sexual de crianças se torna uma condenação antecipada ao autor da ação.

Tradicionalmente, o chamado abusador terá uma tarja sócio-criminal desprezível, na medida em que todos a sua volta o olharão com espanto e com desgosto por ter feito algo tão repulsivo. Sua vida e suas relações serão julgadas não só pela justiça, mas também pela sociedade. É como se tivesse uma doença contagiosa. Desse modo, um julgamento prévio será feito, nos moldes da Inquisição, e ele será expurgado do convívio em geral. Sua família e seu trabalho também sofrerão julgamentos e serão afetados.

Caso a atividade que exerça envolva o atendimento a menores de idade (professor, recreador, babás), possivelmente enfrentará furioso julgamento público, que impedirá a continuidade de sua atividade profissional, promoverá o fechamento de estabelecimentos de prestação de serviço, enfim bloqueará todo e qualquer contato com a população infantojuvenil.

A depredação e fechamento pela população da Escola de Educação Infantil Base, após falsa denúncia de abusos sexuais com as crianças lá matriculadas, ocorrida em 1994, em São Paulo, demonstra bem a indignação de uma comunidade frente à acusação de atos dessa natureza. A denúncia é uma condenação a priori e mesmo inocentado da acusação não será mais possível retomar as atividades anteriormente desenvolvidas, pois será eternamente um suspeito. O julgamento social é independente do julgamento jurídico. Aos profissionais desta escola, mesmo inocentados, não foi mais possível o exercício do magistério, pois a suspeita já foi uma condenação.

Já nos Estados Unidos, a marca do sentenciado como abusador sexual será após o julgamento e o cumprimento da sentença. De acordo com Wacquant (2003), o sentenciado será monitorado através do mapeamento de sua moradia e da restrição de seus movimentos: ele não poderá circular próximo a ambientes frequentados principalmente por menores de idade, como escolas, creches e parques infantis. A pena legalmente constituída é cumprida, mas não cessará sua punição, pois será perenemente monitorada.

A indignação causada pelo abuso sexual infantojuvenil faz com que o condenado seja marcado com uma tarja que o acompanhará por toda a sua existência. Sua punição não cessará enquanto o agressor viver, pois é entendida como uma forma de proteger outros de uma nova investida. A marca da ira social por macular uma criança ou adolescente não tem piedade e a suspeita já será uma condenação. Tomados por uma grande indignação se persegue os acusados como o ocorrido na escola citada acima, não importa se há culpa ou não, se há crime ou não.

O chamado abusador sexual, independente de culpa ou dos anos de prisão que cumpriu, será um eterno condenado, pois sua marca o acompanhará para sempre. Esta postura radical mostra as sutilezas do tema em questão, visto que é um debate que se evita, é um debate que se permite apenas como aumento do controle e da punição. Pouco se tenta entender que algo que se revela apenas como punição, está numa trama mais complexa, numa trama que disciplina a vida das pessoas.

 

Sexualidade Infantil, História e Judicialização

As práticas sexuais entre adultos e crianças nem sempre foram consideradas hediondas. Como mostra Méllo (2006)

...é importante observar que as atividades sexuais entre adultos e crianças nem sempre foram consideradas especialmente ilegais. Houve época em que um adulto estava submetido, pelo menos em princípio, às mesmas punições por cometer algum crime sexual com outro adulto ou com uma criança, ou seja, não seria punido somente por causa de o(a) seu (sua) parceiro (a) ser um (a) ‘menor’ (p.45).

Segundo Ariès (1981) a proibição de jogos sexuais está associada à construção da noção de inocência infantil, ideia ligada ao pudor, à castidade e a uma linguagem sem malícias. Na medida em que a noção de infância e sua inocência começam a ganhar força, os jogos sexuais para essa faixa etária vão ganhando visibilidade e sendo vetados à participação de adultos. Segundo o autor, foi somente no século XX que a infância surgiu como um período importante. “Antes, a infância era ignorada, considerada um período de transição rapidamente superado e sem importância.” (Ariés, 1981, p.138). Tinha-se uma compreensão de que esta fase da vida não deixaria marcas, que não tinha relevância na totalidade dos anos vividos. Os eventos deste período não tinham mérito, eram passageiros e sem força existencial. Porém, na medida em que a infância e sua sexualidade vão ganhando espaço no cenário teórico e social, tudo que lhes diz respeito vai sendo pesquisado e disciplinado. Desse modo, novas regras vão surgindo, sustentadas por um discurso que indica a necessidade de melhores cuidados e de uma educação mais eficiente para as crianças.

Na medida em que a infância ganha espaço, o mesmo se dá com a sua sexualidade. Porém, passa geralmente por uma negatividade, por proibições e controle de suas manifestações. O chamado abuso sexual se insere nessa malha de interdições e não ditos sobre a sexualidade, em especial a sexualidade infantil, obrigatoriamente regulada, negada e proibida no contemporâneo.

A negação da sexualidade infantil decorre do fato de se trabalhar com uma compreensão de criança irreal, que é assexuada e isolada da sociedade. É irreal, pois espera-se que se mantenha numa ignorância original, ou “pureza original”, sobre a sexualidade e não como uma pessoa que capta todas as nuances do seu entorno, como uma pessoa que vê televisão, que ouve música, que anda em diferentes ambientes e vê pessoas, ou mesmo animais, crescendo e procriando. Em outras palavras, é como se a criança não estivesse inserida nesta cultura e como se fosse possível ignorar que as questões sexuais estão inseridas no cotidiano. (Chiaradia, 2011, p. 309)

Suas manifestações devem estar associadas a uma inocência. As descobertas e jogos sexuais deveriam ocorrer entre pares, pois a idade funcionaria como um definidor a priori de inocência.

Assim, se estas descobertas e jogos sexuais ocorrem entre diferentes faixas etárias, o mais velho provavelmente será classificado como um abusador sexual, pois estaria usando da inocência do mais novo para seu prazer individual. Esta é a lógica tradicional, que enquadra a inocência em um lugar fixo, necessariamente aquele ocupado por quem é mais novo. Do mesmo modo, a “maldade” é localizada naquele que é mais velho.

Por um lado, há uma infância que, por sua própria natureza, está em perigo, e que se deve proteger contra todo perigo possível antes mesmo, por conseguinte, de qualquer ato ou qualquer ataque eventual. E, depois, à frente haverá indivíduos perigosos, e os indivíduos perigosos vão ser, evidentemente, o adulto em geral, de maneira que, no novo dispositivo que se está começando a estabelecer, a sexualidade vai assumir outro comportamento diferente do que existia. (Foucault, 2014a, p.98)

Durante todo o século XX, a inocência e a “maldade” tinham lugares fixos nos jogos sexuais. Porém, isto se modificou com a aprovação da Lei 12.015/2009, visto que um novo enredo começou a se apresentar para o chamado abusador sexual. Se os jogos sexuais eram proibidos entre idades, agora a experiência de vivenciar a sexualidade entre pares nos quais há menores de 14 anos pode ser legalmente penalizada, pois não é mais só a violência que é proibida, mas todo e qualquer ato considerado libidinoso como beijar, abraçar, “ficar” ou namorar.

Adentramos, portanto, em um novo tentáculo judiciário que permite apenas manifestações sexuais individualizadas até esta idade, tendo em vista que o contato entre pares, ou não, pode ser considerado um estupro de vulnerável. Neste sentido, a lei imprime um julgamento, definindo um território: qualquer pessoa que se envolva em atos libidinosos com um menor de 14 anos, independente da idade, pode ser considerado um estuprador.

Na medida em que amplifica seu controle, o chamado estupro de vulnerável é mais que uma judicialização do abuso sexual de menores de 14 anos: é um novo dispositivo de controle da sexualidade de crianças e adolescentes. A contravenção que era restrita a um ato considerado violento como o estupro, ou o abuso sexual, agora é ampliada para qualquer ato libidinoso com estas pessoas. O namoro antes dos 14 anos pode ser assim enquadrado, a não ser que seja um namoro sem carícias, sem contato, sem libido.

Foucault (1992) mostra que, a partir do século XVIII, uma rede de poder se constitui sobre a sexualidade infantil:

Foi constituída uma ‘sexualidade das crianças’ específica, precária, perigosa, a ser constantemente vigiada.

Daí uma miséria sexual da infância e da adolescência de que nossas gerações ainda não se livraram; mas o objetivo procurado não era esta miséria, não era proibir. O fim era constituir, através da sexualidade infantil, tornada subitamente importante e misteriosa, uma rede de poder sobre a infância. (Foucault, 1992, p.232).

Permanece a questão: que rede de poder é esta que estamos adentrando, com o discurso de proteção à infância e à adolescência quando se cria um dispositivo que proibe ato libidinoso, ou seja, qualquer manifestação sexual dos menores de catorze anos? Ou ainda, porque se permite que uma manifestação que antes era considerada uma expressão saudável da sexualidade como o namoro, possa ser, agora, enquadrada como estupro de vulnerável?

Temos, aqui, uma amplificação da normatização etária da proibição de manifestação sexual, nos encontramos em um novo ponto da judicialização da sexualidade, que vai além da proibição e da punição da violência sexual: vivenciamos uma judicialização que define um novo modo de viver a sexualidade.

 

Sexualidade, Governamentalidade e Biopolítica

Essas análises preliminares nos conduzem a pensar os funcionamentos do controle da sexualidade infantojuvenil como uma estratégia biopolítica, visto que atua diretamente nas condutas sexuais das crianças e dos adolescentes, disciplinando o que deve ou não ser vivenciado nestas faixas etárias.

Esta biopolítica usa da disciplinarização para modelar as práticas referentes ao uso do corpo indicando como a população deve se comportar e se relacionar. Assim, determina modos de viver e produz saberes que vão estabelecer estratégias de regulação sobre o corpo social. Regulação que atua pela norma, que vai definindo quem está fora da ordem, inclusive ao estabelecer uma legislação que pune a transgressão a essa ordem.

Desse modo, levantamos como problematização o fato que a Lei 12.015, que regula o chamado estupro de vulnerável, emerge em um ambiente de judicialização da vida, atuando por uma biopolítica que controla as condutas sexuais de crianças, adolescentes e adultos pelos dispositivos da disciplinarização, ao impor normas proibitivas para o uso de seus corpos, mas também regulando o corpo social, ao propor mecanismos de segurança e prevenção; enfim, estabelecendo um governo da vida. Se tomarmos Foucault como parceiro para pensar as problematizações acerca do governo da vida, somos impelidas a citar o curso “Segurança, Território, População”, por ele empreendido em 1978 (2008). Nesse curso, o autor analisa o que acontece quando a vida biológica converte-se em objeto de governo, quando a existência passa a ser tomada como biopolítica, na qual a população é “perpetuamente acessível a agentes e a técnicas de transformação” (Foucault, 2008, p. 93), que vão governando no sentido de conduzir à vida certa.

A maneira calculada e administrada da vida de uma dada população, como por exemplo a sexualidade de crianças e adolescentes, se faz pela lógica da segurança da sociedade (Foucault, 2002), no sentido da organização de parâmetros de proteção contra aquilo que se reconhece como perigo social. Perigo que está naquilo ou naqueles que escapam à gestão institucional, nos considerados distúrbios de difícil governamentalidade.

É nesse campo que se encontra a sexualidade dos menores de 14 anos. Sua ocorrência é considerada uma ameaça à vida em sua plenitude de regulação, há um escape que compromete um futuro saudável. Há que governar, no caso, trazendo uma lei que proteja essa população.

 

 

Referências

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Data de submissão: 14/02/2017
Data de aceite: 06/09/2018

 

 

I Cristiana de França Chiaradia possui graduação em Psicologia pela Universidade do Vale do Itajaí (1993) e mestrado em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (1998). Atualmente, cursa o doutorado em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail: cristifranca@hotmail.com

II Maria Lívia do Nascimento possui graduação em Psicologia pela Universidade de Brasília (1974), mestrado em Psicologia pela Universidade de Brasília (1978) e doutorado em Psicologia (Psicologia Social) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1990). Atualmente é professa titular da Universidade Federal Fluminense. E-mail: mlivianascimento@gmail.com

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