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Revista Polis e Psique

On-line version ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.11 no.1 Porto Alegre Jan./Apr. 2021

https://doi.org/10.22456/2238-152X.101071 

ARTIGOS

 

Para emagrecer o preconceito contra gordos: discursos anti-gordofobia no YouTube

 

Slimming down prejudice against fat people: anti-fatphobia discourses on YouTube

 

Para adelgazar el prejuicio contra gordos: discursos anti-gordofobia en YouTube

 

 

Evelyn Cristina de Sousa Penas; Idilva Maria Pires Germano

Universidade Federal do Ceará (UFC), Fortaleza, CE, Brasil

 

 


RESUMO

Este artigo analisa os discursos contra a gordofobia veiculados em três vídeos brasileiros publicados no YouTube em 2018 com grande visualização. O objetivo é explorar como plataformas digitais tais como YouTube podem dar visibilidade a discursos contra-hegemônicos acerca dos corpos gordos, colaborando na disseminação de informações e estratégias de mobilização e combate às formas de discriminação e preconceito. Os vídeos foram submetidos à análise temática e discutidos à luz de uma literatura crítica sobre a produção da identidade e diferença. A análise identifica três temas principais: "gordura como falha física e moral", "normatização do corpo e discriminação contra gordos" e "afirmação da identidade gorda, autoestima e autoaceitação". As situações apresentadas nos vídeos criticam os processos rotineiros de exclusão dos indivíduos gordos. Concluímos que os vídeos analisados, mediante paródia, ironia e uso de câmera oculta, ajudam a circular narrativas alternativas que suspendem certas verdades naturalizadas sobre os gordos e seus corpos.

Palavras-chave: Gordofobia; Identidade; Contra-Narrativas; Plataformas Digitais; Youtube.


ABSTRACT

This article analyses discourses against fatphobia (discrimination towards fat people) based in three Brazilian videos posted on YouTube in 2018 which had numerous viewers. The aim is to explore how digital platforms like YouTube provide visibility to counter-hegemonic discourses about fat bodies, helping to spread information and strategies to mobilize and combat forms of discrimination and prejudice. The videos underwent thematic analysis and were discussed on the basis of a critical literature on the production of identity and difference. The analysis identified three main themes: "fat as physical and moral failure", "normatization of body and discrimination against fat people", "affirmation of fat identity, self-esteem and self- acceptance". The situations presented on the videos criticize common processes of exclusion of fat people. We conclude that these videos, by use of parody, irony and candid camera, help to circulate alternative narratives that suspend certain naturalized truths about fat people and their bodies.

Keywords: Fatphobia; Identity; Counter-Narratives; Digital Platforms; Youtube.


RESUMEN

En este artículo se analizanlos discursos contra lagordofobia(discriminaciónde las personas gordas) emitidos entres vídeos brasileños publicados enYouTube (2018) com granvisualización. Exploramos cómolas plataformas digitalescómoYouTubepueden dar visibilidad a los discursos contrahegemónicos sobre loscuerposgrasos y difundir informaciones y estrategias para movilizar y combatirlas formas de discriminación y prejuicio. Los vídeos recibieronanálisis temático y discusiónbasadaen una literatura crítica sobre laproducción de identidad y diferencia. Identificamos los temas "lagrasa como fracaso físico y moral", "normalizacióndelcuerpo y ladiscriminación contra gordos" y "laafirmación de laidentidad gorda, la autoestima y laautoaceptación". Los videoscriticanlosprocesosordinarios de exclusión de losindividuos gordos. Concluimos que estosvideos, a través de parodia, ironía y cámara oculta, ayudan a circular narrativas alternativas que suspendenciertas verdades naturalizadas sobre las personas gordas y sus cuerpos.

Palabras clave: Gordofobia; Identidad; Contra-Narrativas; Plataformas Digitales; Youtube.


 

 

Introdução

Ao se falar do corpo no campo das ciências humanas, sociais e da saúde, costuma-se abordar o fenômeno da ditadura estética que prevê o enquadramento dos corpos em determinados padrões de normalidade. A cultura "fitness" e os imperativos de "qualidade de vida" e "estilo de vida saudável" - indicando geralmente a meta da magreza ou a redução da massa de gordura na composição corporal- compõem uma série de discursos poderosos de adequação e regulação dos corpos na atualidade. São discursos hegemônicos que se refletem como uma gordofobia profunda, generalizada e excludente, com efeitos perversos sobre as pessoas gordas e sobre toda a sociedade.

O termo gordofobia se refere à aversão à gordura, ao medo excessivo de engordar e a variadas formas de discriminação e estigmatização contra pessoas gordas, isto é, percebidas como acima do peso e longe da forma corporal considerados ideais, segundo certo padrão de normalidade física compartilhado na cultura. A rejeição a pessoas gordas é fenômeno difuso, sem critérios seguros que a justifiquem, levando a se perceber a pessoa gorda de forma negativa em termos globais, não apenas quanto à sua aparência. A imagem do corpo gordo na atualidade leva frequentemente a associá-lo a defeitos e incapacidades de base subjetiva, tais como fraqueza da vontade e vício. Trata-se de um fenômeno histórico e cultural, já que em outros momentos e contextos, a gordura já foi sinônimo de riqueza e distinção social (Sant'Anna, 2016).

Para além da reinvindicação dos direitos sexuais e reprodutivos, os múltiplos protestos e movimentos contemporâneos autonomeados feministas articulam em suas demandas um conjunto heterogêneo de marcadores de diferença, que incluem a própria gordura corporal. A resistência contra os padrões de normalidade e feminilidade herdeiras do patriarcado constitui-se parte importante da missão de politização do corpo levada a cabo pelos feminismos ontem e hoje. Nesse cenário, como mostra Carmo (2018, p. 213), o corpo opera "como a própria mensagem", e disseminam-se com manifestos de matiz interseccional, conduzidos por pessoas gordas e coletivos anti-gordofobia. A denúncia da magreza imperativa conecta-se, assim, com denúncias de opressões de classe, raça, gênero, geração, sexualidade, entre outras. Embora a gordofobia não seja exclusivamente dirigida às mulheres, participa de forma contundente no controle e na regulação dos corpos femininos, resultando em lutas pelo direito às "dobras" e na subversão de convenções corporais.

Com efeito, ao passo que se veiculam discursos hegemônicos contra pessoas gordas, surgem contra-narrativas que os contestam e colocam em jogo novos sentidos sobre o corpo, oferecendo modos alternativos e mais igualitários de concebê-lo. Neste sentido, as redes sociais digitais aparecem como meio cada vez mais utilizado para questionar e rejeitar discursos gordofóbicos que circulam de forma livre e velada em nossa sociedade lipoaversiva. Embora o ambiente digital também tenha servido para denegrir minorias e populações consideradas "diferentes", incluindo pessoas gordas, esse espaço também tem sido empregado para a defesa do direito à diferença, para estimular a autoestima de pessoas gordas e para mobilizar simpatizantes para a transformação cultural em relação aos padrões corporais dominantes.

O debate sobre a gordofobia e o ativismo gordo no ambiente digital são particularmente importantes, pois frequentementes e alega que não seria uma causa relevante ou prioritária para a militância política. De fato, ter um corpo gordo e ser identificado no campo nosológico da "obesidade"- termo que patologiza os corpos mais volumosos, qualificando-os como doentes que carecem de tratamento médico, psicológico, farmacêutico e nutricional-muitas vezes é concebido como fracasso pessoal, como consequência do sedentarismo e da falta de força de vontade desses indivíduos. Nessa equação unilateral "gordo = doente", a luta contra a gordofobia arrisca-se a não ser reconhecida como legítima. Na contra-argumentação ativista, especialmente disseminada em sítios e redes sociais digitais, a discriminação decorrente da gordura corporal é semelhante a outras formas de discriminação como o racismo, sexismo, homofobia e o "ageísmo" (discriminação etária), como foi apresentado no Fat liberation manifesto, elaborado pelas ativistas gordas Judy Freespirit e Aldebaran, integrantes do Fat Underground, movimento de mulheres gordas feministas radicais dos Estados Unidos (Araújo, Coutinho, Alberto, Santos & Pinto, 2018).

Considerando que o corpo é constructo multidimensional, com significação biológica, histórica, sociocultural e política, o ativismo gordo enfrenta uma complexa teia de discursos e dispositivos anti-obesidade. No que tange à dimensão da saúde física, durante o século passado, a gordura corporal excedente tornou-se paulatinamente uma doença a ser combatida pelo saber biomédico, que fortaleceu a concepção da obesidade como perigo e o controle da alimentação e do peso (Rangel, 2018). Do ponto de vista econômico, tais argumentos ganharam força realçando-se os custos que a obesidade implica para o sistema público de saúde. Na dimensão estética, a magreza é considerada, desde o início do século XX, sinônimo da beleza (Sant'Anna, 2016) e pessoas que não se enquadram nesses moldes, especialmente as mulheres, passam crescentemente a ser estigmatizadas e culpabilizadas por supostas falhas de autocontrole (Campos e cols., 2015). O ativismo gordo, em resposta, busca enfrentar tais narrativas repudiando, especialmente, a sua tendência à padronização dos corpos.

Amparado pelos feminismos e por outras lutas por reconhecimento, ativistas vem criticando a patologização dos corpos gordos e das estruturas de poder que a sustentam e usam os meios digitais para desnaturalizar a negatividade em torno da pessoa gorda, reivindicando a sua inserção igualitária nos espaços sociais. As vozes de contestação ganham amplitude nas redes sociais como o YouTube, Facebook e Instagram, além de outros espaços de visibilidade, veiculando conteúdos que abordam novos valores sobre a beleza corporal e demandam os direitos das pessoas gordas.

Com efeito, a dinâmica dos movimentos sociais e das múltiplas agendas de ação política hoje é tributária dos impactos das tecnologias da informação e da comunicação (TICs) nos processos de reconhecimento identitário, luta por visibilidade e combate à opressão de grupos minoritários. As novas tecnologias digitais participam estreitamente das mudanças globais nos processos contemporâneos de sociabilidade e subjetividade. Nesse panorama, transforma-se o modo de produzir e consumir conteúdos, bem como de reconhecer e ser reconhecido, o que se dá de forma rizomática, nos moldes característicos da sociedade em rede (Castells, 2013). A possibilidade de uma produção mais horizontal de conteúdos, diferente de outros meios comunicacionais, favorece que múltiplos atores levantem pautas e conquistem apoio de outros agentes em diferentes locais do planeta. No rol dos ativismos digitais (que envolvem, por exemplo, ações antirracistas, antissexistas e contra variadas formas de "fobias" sociais), inclui-se o ativismo gordo, influenciado pelos novos movimentos sociais, especialmente o movimento feminista em sua crítica ao patriarcado e a opressão estética vivida por mulheres (Rangel, 2017).

O objetivo central deste artigo é explorar como plataformas digitais tais como YouTube vem fornecendo novos espaços para a produção e recepção de discursos contra-hegemônicos acerca dos corpos gordos, colaborando na disseminação de informações e estratégias de mobilização e combate às formas de discriminação e preconceito contra tais populações.

Este trabalho identifica e problematiza alguns discursos correntes sobre a gordofobia, bem como analisa certas narrativas que os contestam, partindo de vídeos publicados no YouTube. Apresentamos o processo de análise dos três vídeos contra a gordofobia produzidos no Brasil que tiveram grande visualização no YouTube em 2018. O material é discutido à luz de uma literatura sobre a produção social da identidade e da diferença e reprodução dos processos de exclusão (Silva, 2008; Woodward 2008; Hall, 2008), de modo a compreender como os vídeos operam para contestar os discursos naturalizados sobre as pessoas gordas.

 

Método

Neste artigo são analisados os três vídeos brasileiros com mais visualizações no YouTube, buscados no dia 30 de setembro de 2018 mediante o uso do termo "gordofobia" na ferramenta de busca da plataforma. Os vídeos selecionados foram:

1) "Gordas não aguentam mais ouvir: Dieta para emagrecer o preconceito contra gorda - gordofobia" - publicado pelo Canal DR Oficial; duração 2min 51s; aproximadamente 1.238.000 visualizações;

2) "Gordofobia ao contrário: magra demais ou gorda padrão ft. Karyna Rangel e JoyceShow"- publicado pelo Canal DR Oficial; duração 4min 7s; aproximadamente 1.239.000 visualizações;

3) "Gordofobia - Preconceito contra obeso: teste do Coronato"- publicado no Canal ElcioCoronato; duração 11min 26s; aproximadamente 885.000 visualizações.

Os três vídeos têm como objetivo comum denunciar o preconceito endereçado às pessoas gordas, utilizando-se de estratégias distintas. Dois utilizam o humor para parodiar e ironizar percepções comuns e equivocadas que se tem das pessoas gordas em situações cotidianas e um se vale de um teste com câmera escondida, em que atores simulam uma pessoa gorda sendo discriminada para testar como outras pessoas reagem a isso.

Quanto à observância de cuidados éticos, esta pesquisa segue as orientações da Resolução nº 510 de 7 de abril de 2016, do Conselho Nacional de Saúde (CNS), que trata das especificidades éticas das pesquisas nas Ciências Humanas e Sociais e de outras que utilizam metodologias próprias dessas áreas. Os vídeos selecionados na plataforma YouTube são de domínio público e seu acesso e análise não preveem avaliação específica pelo sistema CEP/CONEP.

A análise temática dos vídeos selecionados seguiu as etapas propostas por Braun e Clarke (2006) para tratamento das informações, adaptando-as para as características do material audiovisual sob investigação. A análise temática pode ser definida como um método para identificar, analisar e relatar padrões, isto é, os temas emergentes no conjunto de dados. Um tema reúne certo conteúdo relevante sobre os dados em relação a determinadas questões de pesquisa e representa algum nível de resposta ou significado padronizado dentro do conjunto de dados. Conforme o recorte qualitativo desta pesquisa, a análise temática empregada não visou registrar a frequência de temas levantados no material colhido, mas buscou identificar, segundo o julgamento das pesquisadoras, os temas centrais que emergem nos vídeos, segundo o escopo e as metas da investigação.

O processo de análise iniciou-se na própria coleta, enquanto as pesquisadoras exploravam livremente o conjunto de dados, e seguiu, de forma adaptada, as etapas sugeridas por Braun e Clarke (2006): 1) familiarização com os dados, assistindo-se repetidas vezes os vídeos, transcrevendo passagens consideradas relevantes para a problemática do estudo e realizando apontamentos iniciais; 2) codificação inicial, descrevendo, de forma sistemática, características observadas em cada vídeo, incluindo gênero discursivo, conteúdos ou repertórios veiculados nas cenas, efeitos performativos da narrativa audiovisual, entre outros aspectos considerados pertinentes ; 3) busca por temas, agrupando-se os códigos iniciais em possíveis temas, a partir das similaridades encontradas entre trechos previamente selecionados; 4) revisão dos temas, retornando à codificação inicial e verificando a articulação entre os vários temas propostos no mapa temático da análise; 5) definição e nomeação de temas, após a revisão, para refinar cada tema em suas particularidades e gerar categorias claras e bem definidas; 6) produção do relatório, como momento final da análise, selecionando-se extratos do material empírico representativos das categorias temáticas construídas e descrevendo a relação entre o modelo de análise, a questão da pesquisa e a literatura de base.

 

Resultados e Discussão

A partir dos vídeos analisados identificaram-se os seguintes temas gerais: "gordura como falha física e moral", "normatização do corpo e discriminação contra gordos" e "afirmação da identidade gorda, autoestima e autoaceitação". O primeiro refere-se aos discursos moralizantes que culpabilizam e responsabilizam o indivíduo gordo pelo seu excesso de peso, incitando-o à vigilância alimentar e à adoção de hábitos ditos saudáveis com a meta de redução da gordura corporal. O segundo tema inclui os discursos que reafirmam o padrão de massa corporal considerado normal, as regras que o regulam e a discriminação endereçada às pessoas gordas. Por fim, o terceiro tema abrange a defesa da identidade gorda como um lugar de fala legítimo, os discursos de autoestima, aceitação e valorização de si, e a exortação contra o enquadramento a cânones de saúde e beleza.

No primeiro vídeo analisado, "Gordas não aguentam mais ouvir: Dieta para emagrecer o preconceito contra gorda", o convite bem-humorado a assisti-lo realça a necessidade de reduzir o volume da discriminação e opressão contra elas, isso sim, considerado fundamental.

O vídeo denuncia o discurso hegemônico e busca instruir os espectadores sobre o que não se deve dizer ou fazer às mulheres gordas. É dividido em vários episódios que alternam entre cenários (conversa entre duas jovens, interação entre vendedor e compradoras numa loja de roupas, situações de paquera) e, em geral, utiliza o humor e a paródia como ferramenta para a crítica.

A cena inicial mostra duas jovens bonitas e maquiadas, uma magra e outra gorda, se divertindo e bebendo num cenário alegre e colorido. A moça magra diz à gorda: "Aí, amiga, você que é assim fortinha, fofinha, macia...". A moça gorda a interrompe imediatamente: "Não, não, eu tenho uma coisa para te falar. Eu pensei que tava óbvio, mas eu sou gorda. Nenhuma musa fitness vai morrer não: GORDA! Fala comigo: Gor... da... É isso que eu sou!". A cena sublinha a performance de empoderamento da atriz gorda que recusa os eufemismos substitutos do termo "gorda", apropriando-se do termo usualmente acusatório e ressignificando-o como forma de resistência. A atuação combinada das duas atrizes - a gorda altiva e a magra constrangida - tem o efeito de positivar o qualificativo gordo como parte da identidade pessoal e não como ofensa. Reivindicar termos depreciativos atribuídos a certos modos de existência, reconhecendo neles a sua dignidade, pode ter um caráter libertador e minar seu poder de controle, como revelam outros movimentos e protestos, como o da Marcha das Vadias.

A identidade, tal como a diferença, é uma relação social, uma construção que se dá numa arena de posições em confronto. Imersas em relações de poder, as identidades são condicionadas pelo fato de que tais relações "não convivem harmoniosamente, lado a lado, em um campo sem hierarquias; elas são disputadas" (Silva, 2008, p. 81). A afirmação da identidade e a produção da diferença revelam o interesse e as disputas entre diferentes grupos sociais assimetricamente situados no acesso aos bens sociais. Para Hall (2008), as identidades são, portanto, mais o produto da marcação da diferença e da exclusão do que o signo de uma unidade idêntica, sem diferenciação interna. Logo, o indivíduo gordo é produzido através da marcação da sua diferença em relação ao indivíduo "normal" (magro), posicionado como referência de superioridade. No vídeo em discussão, a narração disputa o sentido dominante sobre "ser gorda", deslocando-o de um campo semântico em que domina a abjeção para outro centrado na valorização e do respeito.

É com base na pluralidade das identidades e na sua possibilidade de transformação histórica que se pode fazer tal deslocamento acerca do "ser gorda". Como afirma Stuart Hall (2008, p. 108):

As identidades não são nunca unificadas; que elas são, na modernidade tardia, cada vez mais fragmentadas e fraturadas; que elas não são, nunca, singulares, mas multiplamente construídas ao longo de discursos, práticas e posições que podem se cruzar ou ser antagônicos. As identidades estão sujeitas a uma historicização radical, estando constantemente em processo de mudança e transformação.

A cena seguinte é composta por duas mulheres gordas e um vendedor em uma loja de roupas. O atendente oferece às clientes um "pretinho básico para dar uma enxugadinha" e uma delas responde que não está "procurando pano de chão para enxugar nada". O chiste resulta de uma reversão da palavra "enxugar" (no mundo da moda e do fitness, usada metaforicamente no sentido de "reduzir medidas", "emagrecer", "afinar") ao seu significado predominante ("secar uma superfície molhada"). O efeito desse deslocamento semântico é ironizar a fala do vendedor e colocar sob suspeição os saberes e práticas naturalizados sobre o desejo e as demandas das pessoas gordas. Além disso, a cena mostra a reação das mulheres recusando as "verdades" pressupostas pelo atendente, considerando-se "gostosas" sem nenhum acanhamento.

Noutra cena que se passa em uma festa, um casal está flertando e o homem diz "ah, mas você tem um rosto tão lindo! Olha só: É só fechar a boca que você fica perfeita!". A personagem rebate a crítica, revirando os olhos em tom irritado: "Você também. É só fechar a boca que você fica perfeito!". Novamente, o humor da cena resulta do uso renovado da expressão "fechar a boca" que deixa de significar "comer com moderação" ou "fazer dieta" para significar "deixar de dizer besteira". Tal mudança de campo semântico mais uma vez ajuda a suspeitar de certas convicções socialmente compartilhadas sobre pessoas gordas e de certas formas de interação sentidas como opressoras.

A última cena também mostra um casal; o rapaz diz para a moça: "que bom que você está tentando emagrecer, né?! Não é por nada não, eu só falo isso para o seu bem, pelo bem da sua saúde". A interlocutora ironiza o discurso do estranho que, embora a conheça há apenas cinco minutos, já "virou seu endócrino". Ao final da cena, o rapaz aparenta envergonhar-se, enquanto ao fundo se ouve um efeito sonoro com a palavra looser (perdedor, em inglês) dirigida a ele. Ainda se pode perceber como o discurso médico-científico, implícito na fala do rapaz, é criticado por meio da ironia da personagem. Aqui se encena o processo chamado por Ferreira (2011) de estetização da saúde, entendida como "a valorização de parâmetros estéticos como definidores das condições de saúde" (p. 93). A crítica contida no chiste é direcionada à pressuposição do rapaz de que, por ser gorda, a moça deveria ter algum problema de saúde e deveria emagrecer como forma de cuidar de si, opinião pautada apenas em determinados critérios estéticos.

O vídeo denuncia como as pessoas gordas - usualmente estigmatizadas como feias ou doentes - passam por várias situações embaraçosas no seu dia-a-dia, em que outros assumem o direito de opinar sobre o que devem fazer, comer ou vestir. O termo "gordice", por exemplo, é comumente utilizado para se referir ao ato de comer alimentos "que engordam" e ditos não saudáveis. Em uma das cenas, duas mulheres conversam em uma festa e umas delas exclama "Vou fazer uma gordice! Olha aquela mesa de brigadeiros". A mulher gorda responde: "Eu não chamaria isso de 'gordice'. Falar merda pra gordo pra mim é idiotice, escrotice, babaquice. Dá licença", antes de se retirar, deixando a sua interlocutora desconcertada. Na fala da personagem magra evidencia-se a culpa por comer os brigadeiros e a penitência que adviria desse ato, isto é, jejuar. O complexo culpa-penitência do exemplo evoca o que Ortega (2008, p. 41) afirma sobre os tabus que envolvem o corpo: "O tabu que se colocava sobre a sexualidade descola-se agora para o açúcar, as gorduras e as taxas de colesterol. Os tabus passam da cama para a mesa. O glutão sente-se com frequência mais culpado que o adúltero".

Quanto à moda direcionada ao público gordo, em sua maior parte, é voltada para esconder o corpo ou para criar a ilusão de que é mais esbelto: roupas escuras, cortes alongados, listras verticais e outras estratégias de ocultamento dos contornos naturais. O vídeo aponta ainda para o tipo de corpo supostamente desejado pelos homens. Quando a moça magra fala para a gorda "ainda bem que tem homem que gosta do seu tipo, né não?", subentende-se que gostar de mulheres gordas é uma exceção e privilegia-se a aparência como critério central para a relação amorosa. Esse saber naturalizado desconsidera todos os outros atributos dos amantes e fortalece a convicção de que certos tipos de corpo não merecem ser apreciados e amados. Com efeito, o discurso de subversão dessa verdade surge na fala da interlocutora: "É, muita gente gosta de uma pessoa maravilhosa, que se ama, que é empoderada! Você não acha não? Não acha?". A resposta rápida, ressignificando o saber equivocado, reforça que as qualidades de uma pessoa vão muito além da aparência física e da sua forma corporal.

Mediante esses discursos dominantes que se tornam cristalizados em variadas situações cotidianas, demarca-se uma identidade hegemônica, a da magreza, e o seu Outro, a pessoa gorda. A normalização, isto é, a escolha arbitrária de uma identidade como referência de normalidade, é uma das formas mais sutis de manifestação do poder no campo da identidade e da diferença (Silva, 2008). A oposição das personagens gordas implica um trabalho ativo de negociar contra as posições em jogo que lhes condenam à inferioridade e à abjeção e que a normalização tende a fixar rotineiramente. É possível identificar ao longo de todas as cenas a tensão entre os discursos socialmente dominantes sobre as pessoas gordas - ser gordo é ser doente, gordos não merecem ser amados, gordos devem usar determinadas roupas - e as novas posições reivindicadas por gordos e gordas nessa arena discursiva.

Como assinala Silva (2008), a inclusão configura um exercício de poder, em que a afirmação da identidade e a produção da diferença implicam sempre operações de incluir e excluir. Tais operações acarretam processos classificatórios centrais na vida social, que hierarquizam os grupos sociais, privilegiando alguns em detrimento de outros, como no caso dos diferentes corpos. Classificar um corpo como magro ou gordo trata-se de um processo de diferenciação, logo, de um exercício de poder. Atualmente, ao corpo magro cabe a beleza, a sedução, as roupas da moda. Ao corpo gordo restaria a vergonha, a culpa, o desleixo. As cenas analisadas, assim, rejeitam as formas usuais de classificar as pessoas gordas, ampliando o repertório para novas formas de inclusão/exclusão.

O segundo vídeo, "Gordofobia ao contrário: magra demais ou gorda padrão", denuncia as dificuldades rotineiras de gordos numa sociedade que persegue a magreza, mediante a reconstrução irônica da relação entre gordura e magreza. As cenas subvertem as posições entre gordos e magros numa sociedade imaginária que cultuasse a gordura. Considerando a hipótese do corpo gordo como padrão de beleza, o vídeo inverte o alvo das situações constrangedoras, lançando sobre os magros a carga de preconceito que os gordos costumam enfrentar. A crítica apresenta de modo franco o que pessoas gordas vivenciam no âmbito do trabalho, nas relações amorosas e de amizade, com a pressão estética associada ao discurso da saúde e da responsabilização pessoal. Numa cena, a moça magra escuta da outra: "eu acho que você precisa dar uma engordadinha, ganhar um peso a mais. Na verdade, não é por questão de estética, você já é linda, é por questão de saúde". Nesse trecho, ironiza-se o discurso da promoção da saúde, em cujo nome pessoas acima de certo peso ou volume são reguladas e discriminadas. De maneira geral, a regulação dos corpos contemporaneamente se vale da linguagem dos riscos disseminada no âmbito da Nova Saúde Pública (Castiel &Álvarez-Dardet, 2007) que sublinha o monitoramento dos "fatores de risco" e sua probabilidade de gerar doenças. Esse paradigma, contudo, tende a culpar a vítima e a responsabilizá-la individualmente por seu adoecimento. Noutra cena do vídeo, uma moça tenta persuadir a companheira magra a engordar e assim atingir o corpo ideal, enfatizando o poder do esforço pessoal: "Mas amiga é só você se esforçar que você consegue, sério!".

Com efeito, segundo Castiel e Álvarez-Dardet (2007), não somente o discurso leigo sobre os corpos "acima do peso", mas também o tratamento etiológico da obesidade se mostram culpabilizantes, individualistas e com nuanças autoritárias ideologicamente discutíveis. Para eles, é um erro tratar a questão da obesidade como mera ausência de força de vontade. Abordar a obesidade em perspectivas individualizantes diminui a responsabilidade coletiva e aumenta a responsabilidade pessoal para enfrentar essa problemática complexa. Os autores apontam ainda que os argumentos pautados na responsabilidade pessoal criam deveres e obrigações, implicando, necessariamente, na prestação de contas com instâncias reguladoras. Esse discurso da obesidade como conjuntura pandêmica tem levado as pessoas ao controle excessivo dos seus corpos (Araújo e cols., 2018), atendendo a demandas do mercado das quais nem sempre estão conscientes e, assim, inadvertidamente acaba-se fortalecendo a normatividade forjada pela indústria médico-farmacêutica, alimentícia, da moda e da beleza.

O terceiro vídeo analisado, "Gordofobia- preconceito contra obeso: teste do Coronato", faz parte de uma série de vídeos chamada Teste do Coronato, exibida em um programa de TV em novembro de 2015 e postada no YouTube em abril de 2016. Tudo acontece em uma lanchonete com atores que encenam uma situação com teor gordofóbico para observar a reação dos demais clientes. Enquanto isso, por trás das câmeras, o apresentador dá instruções aos atores sobre como se portar. Inicialmente, um ator gordo faz um pedido, um "X-tudo", e o garçom o humilha, dizendo que ele está muito gordo para comer aquele sanduíche demasiadamente calórico. O garçom pergunta: "X-tudo? Você tem certeza que você quer um X-tudo?". Mesmo com a resposta afirmativa, o garçom insiste: "Não, é porque assim... desculpa falar, mas com o seu peso, sei lá, você não acha meio gordo para comer um X-tudo?". Embora o cliente confirme o pedido, o garçom continua: "Não, é porque assim, eu tô falando pro seu bem, entendeu? Não é porque eu não quero que você coma um X-Tudo, é porque você é gordo"; "escolhe aí direito, tem um monte de salada aí"; "eu me nego a te servir um X-Tudo";"cria vergonha na cara! Tu é gordo, meu." O garçom fala em um tom de voz alto para que os outros clientes escutem, mesmo assim, muitas pessoas apenas observam sem esboçar reação às ofensas dirigidas ao cliente.

A situação apresentada no vídeo evidencia como o indivíduo gordo costuma ser alvo de constrangimento público e, em outros casos, também de zombarias uma vez que seu corpo se afasta do padrão considerado normal. Em um estudo discursivo sobre preconceito e discriminação no gênero piada, Sampaio (2017) afirma que "a piada que vitimiza o gordo retrata a inadequação do sujeito acima do peso, em que o sobrepeso é vergonhoso e, por conseguinte, para uma sociedade que impõe padrões de beleza inalcançáveis, o diferente assume posições estigmatizadas" (p. 25).

Quando revelado que tudo foi um teste, o apresentador vai até o local e pergunta aos clientes presentes se eles haviam cogitado intervir e qual seria sua postura numa situação semelhante em seu dia a dia. Alguns respondem afirmativamente, alegando que o rapaz foi exposto a uma situação de humilhação e que haviam pensado em pedir a troca do garçom ao gerente. Em outro momento, outro cliente, autodeclarando-se gordo, esclarece ao apresentador: "Isso daí é uma coisa que acontece direto, eu sou obeso, eu sei. (...)Se a pessoa tem qualquer outro defeito, ninguém fala nada. Agora, o gordo, todo mundo acha que tem direito de se meter. Dando opinião, mandar o cara emagrecer, fazer uma dieta, fazer exercício, qualquer coisa". Quando questionado sobre sua reação a esse tipo de situação, ele responde que "é claro que incomoda".O desabafo desse cliente corrobora o argumento apresentado por Sibilia (2010) de que vivemos em uma cultura marcada por lipofobia, em que a gordura se torna marca daquilo que deve ser evitado a todo custo.

Pode-se observar na fala do garçom e na fala do cliente que as prescrições à adoção de hábitos saudáveis, como 'fazer uma dieta, fazer um exercício', são comumente direcionados à pessoa gorda, como se apenas sua aparência e seu peso determinassem sua condição de saúde. Mas, como lembram Castiel e Álvarez-Dardet (2007):

Os discursos sobre a saúde nunca se referem tão-somente a dimensões da saúde. Se tais discursos significam modos de pensar, escrever, falar sobre a saúde e suas práticas, é preciso situá-los em determinados momentos históricos e saber as razões por que se legitimam ao acompanharem a ordem econômica, política e social onde são gerados, sustentados e se ajustarem a ela (p. 25)

É preciso considerar aspectos históricos, sociais, políticos e econômicos para compreender os discursos sobre a saúde. O que se observa na atualidade é a culpabilização como ferramenta para a promoção da saúde, no âmbito de uma lógica de 'disciplina e punição', que parece mais enraizada em países de tradição puritana ou que de alguma forma sofreram sua influência (Castiel & Álvarez-Dardet, 2007). Nessa lógica, o indivíduo obeso (mas não só ele) deve ter uma alimentação regrada, caso contrário, deve ser punido e responsabilizado por seu fracasso pessoal.

No vídeo, um dos poucos a intervir na cena sugere que o cliente humilhado reaja às ofensas do garçom e enfatiza: "O cara falar isso aí para você... Está errado". Ainda interpela o garçom questionando sua atitude, classificando-a como antiética. No meio da discussão, o garçom insiste na fala moralizante: "Se eu fosse gordo, eu teria vergonha na cara". Outras pessoas também se solidarizam com o cliente nesse momento, incentivando-o a procurar outro lugar para comer e reforçando a retórica da autoestima: "então tenha autoestima. Porque você não é menos que ninguém". Contudo, como lembram Vaz, Sanchotene e Santos (2018), as regras básicas do discurso anti-gordofobia de não se importar com a opinião alheia e não buscar agradar o outro são exercidas com dificuldade e tensão, pois as narrativas de autoaceitação demandam a capacidade de o indivíduo se sentir e ser reconhecido como atraente, mesmo que sua forma física seja julgada "inadequada" ou preterida" (p. 106).

No vídeo, o garçom reproduz os imperativos da alimentação saudável que o saber biomédico contemporâneo prega para a prevenção de doenças e a promoção do bem-estar dos indivíduos e populações. Em alguns momentos, justifica sua atitude como uma preocupação com a saúde do cliente, bem alinhada com a perspectiva de prevenção dos riscos em saúde: "mas cara, daqui a pouco você tem um infarto, eu sei lá... Olha o seu tamanho, meu. Eu não vou te servir um X-Tudo, cara". O garçom vale-se de uma retórica autoritária que chama o cliente à responsabilidade, culpando-o por seu excesso de peso e indicando-lhe o caminho para a boa alimentação e peso normal. Embora a cena exagere no tom agressivo contra o cliente-ator, a atuação de ambos é bastante fiel à realidade no que tange ao aspecto persecutório do discurso biomédico sobre a saúde hoje (Castiel & Álvarez-Dardet, 2007) e sua insistência em disciplinar o desejo de comer (César, 2009). Em especial, ilumina os efeitos subjetivos nefastos sobre os indivíduos e coletividades que se afastam dos estilos de vida, comportamentos e ideais de saúde e bem-estar consolidados pelo poder biomédico. Resta-lhes a submissão aos ditames da biopolítica ou a convivência com a culpa e a humilhação. No vídeo, a contestação a essa tendência surge na voz de uma cliente solidária: "Como assim a pessoa fala pro moço que ele é gordo e que ele não tem o direito de comer o que ele quer comer? A gente tá almoçando, se ele é gordo, se eu sou gorda, se ela é gorda, ninguém tem nada a ver com isso, gente. A gente tá almoçando, a gente come o que a gente quer. [...] O que que é isso? Não, é um absurdo. Eu fiquei realmente indignada".

Mais curioso na análise do vídeo é que, mesmo quando há a demonstração de solidariedade com o cliente ofendido, não significa necessariamente a adoção de uma postura anti-gordofóbica. Considerando que o garçom agiu de forma grosseira e agressiva, essa atitude por si poderia provocar uma reação de empatia nos demais clientes, independente de o ator ser gordo ou não. Assim, não se pode presumir que a razão de alguns terem reagido contra o garçom foi o fato de se oporem efetivamente à gordofobia dominante na cultura. Outro ponto interessante a sublinhar é que o próprio apresentador, no diálogo que segue o teste, parece sucumbir ao uso de eufemismos na sua referência a pessoas gordas. Ele acaba rejeitando o termo "obeso" quando um dos clientes se autodeclara dessa forma, reconhecendo seu interlocutor como tendo "sobrepeso". Esse diálogo, embora bem-intencionado, é revelador do emprego acentuado de eufemismos em relação a gordos e gordas, que colaboram para negá-los, silenciá-los e excluí-los, como bem mostram os dois outros vídeos analisados.

As situações apresentadas nos vídeos selecionados mostraram, a partir de diferentes perspectivas, os processos de diferenciação e exclusão vivenciados pelos indivíduos gordos cotidianamente. As relações de identidade e diferença ordenam-se aos moldes de oposições binárias, tais como masculino/feminino, branco/negro, heterossexual/homossexual, magro/gordo, bonito/feio. Silva (2008), citando o filósofo francês Jacques Derrida, assinala que em uma oposição binária, um dos termos é privilegiado e recebe um valor positivo, enquanto seu oposto é considerado negativo. Problematizar esses binarismos é também questionar a identidade e a diferença como relações de poder. A diferença é constituída por atos de criação linguística, práticas materiais e simbólicas, isto é, não é natural e portadora de uma essência. É por meio da linguagem utilizada em relação ao indivíduo gordo que esse é relegado a um lugar de diferença. À medida que se considera o processo de diferenciação como uma construção, a diferença pode ser considerada histórica e social (Silva, 2008). É a partir dessa visada, então, que se pode cogitar desconstruir e desnaturalizar tais relações de poder, aqui especialmente entre corpos magros e gordos.

Em meio a uma cultura de supervalorização do corpo e da imagem, o peso e a forma corporal são, desde o nascimento, marcas identitárias dos indivíduos. A identidade hegemônica é permanentemente assombrada pelo seu Outro que dá sentido à sua existência, pois algo só pode ser considerado norma se houver algo que, por ser diverso, se desvie do que é posicionado como norma (Silva, 2008). Nesse sentido, o corpo gordo é a sombra do corpo magro, o corpo deficiente é a sombra do corpo fisicamente capaz, o corpo transexual é a sombra do corpo cis-gênero.

É a partir da construção de um corpo magro, dito "normal", repositório de privilégios, que se configura o corpo "anormal". Assim, em uma sociedade cujos valores são ancorados em um forte apelo imagético, na aparência e na performance, alguns corpos não são palatáveis e são no máximo suportados:

Em meio a uma sociedade onde a imagem é cada vez mais valorizada e as relações sociais usam as imagens como meio, o corpo torna- se o protagonista, nesse contexto, quanto melhor for o seu corpo maior é a garantia de visibilidade, sucesso, autoestima, saúde e felicidade; enquanto um corpo "feio" e "disforme" é tratado como simples consequência do desleixo e da falta de vontade de seus "proprietários", que findam por serem tachados de "fracos de vontade" e "desregulados". (Claro e cols., 2015, p. 1).

O corpo torna-se central nas relações sociais e pode ser vetor de exclusão/inclusão nos grupos sociais, fazendo parte do processo de classificação e hierarquização, visto que certos corpos são mais bem aceitos e desejados do que outros. Na cultura do culto ao corpo, nem todos os corpos são cultuados da mesma maneira (Sibilia, 2010).

De modo similar, uma identidade se afirma a partir da repressão daquilo que a ameaça e do estabelecimento de hierarquias (Hall, 2008). Negro e mulher são "marcas", em contraste com os termos não-marcados "homem" e "branco". "Gordo" e "gorda" são termos marcados, que dispõem o não-gordo como referência indiscutível e identidade privilegiada em nossa sociedade.

Como dito anteriormente, os três vídeos foram produzidos para contestar os discursos naturalizados sobre a pessoa gorda, suscitar reflexão nos espectadores e gerar impactos no processo de mudança social. Esse tipo de ação voltada à transformação social se alinha aos chamados "novos movimentos sociais", que têm se concentrado em lutas em torno da identidade (Woodward, 2008). Segundo Woodward (2008, p. 34) "a política de identidade concentra-se em afirmar a identidade cultural das pessoas que pertencem a um determinado grupo oprimido ou marginalizado. Essa identidade torna-se, assim, um fator importante de mobilização política". Os vídeos analisados parecem contribuir para a contestação do status quo no que tange à gordofobia e para o trabalho micropolítico de ativistas gordos e simpatizantes da causa.

 

Considerações Finais

Embora a gordura corporal seja alvo de estigmatização, irrompem formas de resistência a esse tipo de prática. O recorte analisado nesta investigação sublinha o caráter contestador de certos vídeos postados na plataforma YouTube que recusam formas de preconceito, discriminação e exclusão dos corpos gordos. Trata-se de contra-narrativas às percepções naturalizadas sobre o corpo gordo que se tornaram hegemônicas historicamente através do discurso médico-científico e de seu aparato biopolítico e das injunções do mercado. Os vídeos de contestação aqui analisados recusam a associação entre saúde e magreza, os imperativos morais travestidos de saúde, a imputação de falência moral e culpa às pessoas gordas e a discriminação rotineira, por palavras e atos, dirigida aos seus corpos. Em resposta, denunciam os meandros da normatização, desde as sutilezas da linguagem ordinária, e operam para o reconhecimento da identidade gorda em seus próprios termos. Por meio de encenações paródicas, irônicas e de um "teste" de comportamento com câmera oculta, colaboram para fazer circular narrativas alternativas que suspendam certas verdades cristalizadas sobre os gordos e seus corpos. Operam também subjetivamente na medida em que disponibilizam novas formas de auto-posicionamento de pessoas gordas, na direção da auto-aceitação, autoestima e dignidade.

As novas tecnologias da informação e da comunicação, especialmente o espaço digital que inclui as redes sociais, ampliam os horizontes para a negociação de discursos e formas de reconhecimento num espaço de grande visibilidade e de maior horizontalidade na produção e recepção de conteúdos. Os conteúdos postados nesses ambientes frequentemente reproduzem normas, ideologias e modelos de opressão de sua sociedade, incluindo modos de discriminação gordofóbica. Contudo, é possível identificar, ainda que timidamente, movimentos de resistência e contestação a essa forma de discriminação. A importância desses espaços é notória, visto que são as mídias digitais as grandes formadoras de opinião entre as multidões, especialmente do público mais jovem.

O preconceito e a discriminação contra as pessoas gordas são, muitas vezes negligenciados ou colocados sob suspeita, resultando no silenciamento de muitas de suas vítimas e no ofuscamento do seu sofrimento. Na contramão dos discursos e práticas excludentes hegemônicos contra os corpos gordos, os vídeos analisados surgem como potentes vozes de oposição com as quais pessoas gordas podem se identificar e se fortalecer coletivamente.

Defende-se neste trabalho a necessidade urgente de discutir a problemática do preconceito contra pessoas gordas, visto que vivemos numa sociedade dominantemente lipoaversiva onde regem a cultura fitness e os padrões de magreza e esbeltez, apesar do significativo crescimento da população com sobrepeso e obesidade. É preciso compreender que o debate sobre gordofobia é complexo e multidimensional e qualquer mudança no sentido da inclusão dessas populações exige amplas transformações micro- e macro-políticas visando uma sociedade mais aberta à alteridade.

 

Referências

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Submissão: 15/03/2020
1° avaliação: 21/10/2020
Aceite: 20/11/2020

 

 

Evelyn Cristina de Sousa Penas é psicóloga e mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará.
E-mail: evelyn.sousapenas@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2971-0394
Idilva Maria Pires Germano é doutora em Sociologia, professora titular do Departamento de Psicologia da UFC e membro permanente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia na UFC.
E-mail: idilvapg@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0062-9899

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