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Revista Polis e Psique

On-line version ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.11 no.spe Porto Alegre  2021

 

ENTREVISTA

 

Corpos e existências: vidas não passíveis de luto

 

Bodies and existences: lives not subject to mourning

 

Cuerpos y existencias: vidas no sujetas al duelo

 

 

Giovanna Liz Oliveira Mantovani; Vanilson Oliveira da Silva; Anita Guazzelli Bernardes

Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), Campo Grande, MS, Brasil

 

 


RESUMO

O objetivo deste artigo é refletir sobre a relação entre políticas sociais e performances dos corpos em termos de governo das vidas. O que interessa a esta discussão é percorrer um campo de problematização dessa articulação - políticas sociais e corpos - a partir da emergência da atual crise sanitária, causada pela pandemiade COVID-19. Essa problematização focaliza os efeitos sociais nas relações de governo dos corpos dentro de uma racionalidade de colonialidade e de racismo, ou seja, queremos pensar certas linhas de governo das vidas que se intensificam em formas de abandono, tornando-as não passíveis de luto. Para tanto, tomaremos duas performances de corpos em nossa atualidade - mulheres em situação de violência e usuários de drogas em situação de rua -, na medida em que ambas indicam mecanismos distintos de regulação de corpos e formas de abandono das vidas.

Palavras-chave: Corpo; Pandemia; Abandono; Políticas Sociais; Governo.


ABSTRACT

This paper aims to reflect on the relation between social policies and body performances in terms of government of lives. We are interested in problematizing that articulation - social policies and bodies - regarding the emergence of the current health crisis caused by Covid-19 pandemic. The focus of this problematization are the social effects on the relations of government of bodies within a rationality of coloniality and racism, i.e. we intend to think about some lines of government of lives that have been strengthened as abandonment forms, thus becoming non-subject to mourning. In order to do that, we have considered two current body performances - women facing violence situations and homeless drug users, as both evidence different mechanisms of body regulation and forms of life abandonment.

Keywords: Body; Pandemic; Abandonment; Social Policies; Government.


RESUMEN

El objetivo de este artículo es reflexionar sobre la relación entre las políticas sociales y el desempeño de los cuerpos en términos de gobierno de vidas. Lo importante en esta discusión es atravesar un campo de problematización de esta articulación - políticas sociales y cuerpos - desde el surgimiento de la actual crisis de salud, provocada por la pandemia de COVID-19. Esta problematización se centra en los efectos sociales sobre las relaciones de gobierno de los cuerpos dentro de una racionalidad de colonialidad y racismo, o sea, queremos pensar en ciertas líneas de gobierno de vidas que se intensifican en formas de abandono, haciéndolas no sujetas al duelo. Para ello, tomaremos dos representaciones de cuerpos en nuestro tiempo, mujeres en situación de violencia y usuarios de drogas en la calle, ya que ambas indican diferentes mecanismos de regulación de cuerpos y formas de abandono de las vidas.

Palabrasclave: Cuerpo; Pandemia; Abandono; Políticas Sociales; Gobierno


 

 

Introdução

A temática do corpo é frequente na literatura. Diferentes autores a vêm problematizando, sobretudo, na perspectiva de que o corpo é uma superfície política, estando em jogo diferentes modos de performá-lo e situá-lo no mundo. O que interessa a esta discussão é percorrer certo campo de problematização, como parte de um projeto de pesquisa, considerando o que tanto a literatura quanto certas provocações dos corpos e com os corpos desafiam a Psicologia no âmbito da produção de conhecimento. Não se trata de abordar a Psicologia como um bloco homogêneo: historicamente, a área apresenta diferentes modos de composição e engajamentos políticos no que se refere à produção de conhecimento e às possibilidades de intervenção. Porém, nossa atualidade impõe certos elementos incontornáveis para fazermos uma ontologia do presente, na medida em que as Psicologias, assim como as ciências humanas de modo geral, se encontram com as dimensões da colonialidade e do racismo que as compõe.

Neste texto, o fio condutor para pensaré o que a COVID-19 produz em termos de efeitos sociais. Trata-se de considerar o que a COVID-19 põe em jogo, não propriamente como ineditismos das relações de governo dentro de uma racionalidade da colonialidade e do racismo, mas como aquilo que acentua esses processos. Ou seja, queremos apontar algumas linhas de governo das vidas que se intensificam em termos de formas de abandono de certas vidas, de certos corpos,que se tornam não passíveis de luto. A necessidade de colocá-las em análise se refere a uma política de afirmação e insistência de formas de compreensão que possam interrogar práticas permanentemente e, com isso, traçar outros itinerários para o campo, no que diz respeito à compreensão do que performamos com corpos, a partir de uma política de regulação da vida.

O objetivo deste artigo é refletir sobre a performance de certos corpos, a partir dos arranjos que a COVID-19 coloca em jogo em termos de formas de governo da vida.Para tanto, em um primeiro momento, discutiremos essa articulação entre corpos, gestão e abandono da vida a partir da colonialidade e do racismo. Tomaremos, então, duas performances de corpos em nossa atualidade - mulheres em situação de violência(s) e usuários de drogas em situação de rua -, na medida em que ambas indicam mecanismos distintos de regulação de corpos e formas de abandono das vidas.

 

Corpos, gestão e abandono da vida

No ensaio sobre a necropolítica, Mbembe questiona logo de início: "sob quais condições práticas se exerce o direito de matar, deixar viver ou expor à morte?" (2016, p. 123). Ao refletir sobre os próprios questionamentos, diz que, para se exercer o direito de matar, é necessário que exista a ideia de um inimigo ficcional que garanta a legitimidade da morte e a isenção de justificativas. Podemos considerar que a produção da figura de um inimigo se dá de forma situada e depende de certas condições de determinado tempo/espaço, por isso, a ideia do inimigo é sempre maleável, plástica. A partir do século XVIII, observa Mbembe (2018), o pensamento europeu engendrou a noção de identidade de forma hierárquica e como diferença, e todos aqueles que não eram europeus (superiores) foram considerados como "outro" (inferiores). Essa lógica da diferença serviu para justificar o tráfico da população africana pelos europeus durante a colonização, visto que os negros eram considerados como mercadorias/objetos, e não como vidas. Assim, negro e raça se tornam sinônimos e exemplos de não humanidade.

Atualmente, em nossa sociedade, a articulação de diferentes elementos produz o negro como inimigo social, criminoso, inferior. Essa produção é um dos efeitos da colonialidade e encontra subsídio para existir no que entendemos por racismo estrutural. Silvio Almeida (2016), em entrevista à TV Boitempo,fala que o racismo estrutural é uma forma de racionalidade que constitui os sujeitos e as relações sociais ao produzir arranjos econômicos, políticos e subjetivos que naturalizam a violência a pessoas negras e sua ausência nos espaços de poder.

Diante da pandemia de COVID-19, torna-se visível o recrudescimento da precariedade da vida em seus múltiplos aspectos. Não que a precariedade não existisse antes do surgimento do vírus; pelo contrário, talvez só estivesse em uma zona de opacidade, e agora, devido ao contexto que irrompe e se impõe, somos convidados a parar e olhar com maior atenção as invisibilidades que nos atravessam e constituem a sociedade.

Engana-se quem acredita que a atual crise no Brasil é fruto da pandemia. Já na década de 1950, Carolina Maria de Jesus narrava o cotidiano em seu quarto de despejo e a luta diária contra a fome e a miséria. Mulher negra, moradora da favela do Canindé, em São Paulo, catadora de papel e mãe de três crianças, dizia frequentemente em suas escrevivências: "estou triste porque não tenho nada para comer [...] já estou tão habituada com as latas de lixo, que não sei passar por elas sem ver o que há dentro" (Jesus, 2000, p. 114). A crescente privatização das instituições, aliada à complexificação da economia e à precarização da vida, submete inúmeras pessoas a uma condição experenciada por Carolina de Jesus no passado.

O devir negro no mundo, explica Mbembe (2018), concebe que negros não são somente pessoas de origem africana ou aqueles que foram escravizados ao longo do período de colonização, mas todos os que estão expostos às mesmas condições precárias de vida. Devir enquanto possibilidade de tornar-se, vir a ser, frente a uma "institucionalização enquanto padrão de vida e à sua generalização pelo mundo inteiro" (2018, p. 20). Podemos perceber certo devir negro experenciado por populações trans (transexuais, transgêneros e travestis), imigrantes, povos indígenas, desempregados, pessoas em situação de rua, usuários de drogas, mulheres em situação de violência e tantos outros que não correspondem ao padrão branco-heteronormativo. No devir negro, não é apenas o racismo que está em jogo, mas também as diferenças culturais, religiosas, políticas e econômicas. Ao classificar, dividir e hierarquizar, o reconhecimento do outro se dá pela diferença, acarretando até mesmo alterocídio, ou seja, "constituindo o outro não como semelhante a si mesmo, mas como objeto propriamente ameaçador, do qual é preciso se proteger, desfazer, ou o qual caberia simplesmente destruir". (Mbembe, 2018, p. 27).

Da mesma forma, a lógica neoliberalista faz com que a tudo se atribua um valor de mercado, inclusive à vida, e umas passam a valer mais do que outras. Todas aquelas consideradas como humanidades subalternas ou não humanidades são expostas a maiores condições de violência, desigualdade e preconceito. Mbembe (2018) fala que, nesse contexto, os seres humanos são transformados em números, códigos ou coisas animadas. Em tempos de COVID-19, vemos tal contexto tomar corpo e se materializar na desumanização da vida, que passa a contar meramente como número. Milhares de vidas perdidas se somam na enorme estatística do extermínio. Não sabemos seus nomes, tampouco suas histórias. São vidas precárias, não passíveis de luto, como diria Butler (2018). Isto é, vidas que não podem ser consideradas perdidas se antes não forem consideradas vivas. Mas o que faz com que uma vida seja reconhecida como tal?

Ao pensar sobre as vidas precárias e as vidas passíveis de luto, Butler (2018) diz que o reconhecimento dos sujeitos enquanto vidas que importam depende de certas condições, normas e categorias. Da mesma maneira, a precariedade da vida também implica as relações que a produzem. Isso quer dizer que uma vida não se torna precária por si só, e sim que depende de outras vidas e de certas condições (sociais, econômicas, políticas) para torná-la vivível. Em outras palavras, isso implica a garantia de direitos, como alimentação, educação, moradia, trabalho, saúde, entre outros. A precariedade como condição generalizada capilariza-se pelo tecido social. Entretanto, há uma diferença em afirmar que a vida é precária, no sentido de que sua existência não está garantida e, portanto, pode ser a qualquer momento eliminada ou perdida, e em estar na condição de precariedade, "condição politicamente induzida na qual certas populações sofrem com redes sociais e econômicas de apoio deficiente e ficam expostas de forma diferenciada às violações, à violência e à morte" (Butler, 2018, p. 46).

Já que a composição de enquadramentos da vida e da condição precária dependede jogos de poder, e considerando que estes são sempre móveis, suscetíveis a deslocamentos e rupturas, o desafio é fazer com que o reconhecimento da condição precária se transforme em posicionamento ético e político que tensiona os agenciamentos que a produz, lutando-se pelo engendramento de políticas sociais que tornem possível que as vidas saiam daquela condição. Se uma vida é passível de luto somente quando tem valor e por isso é preservada, então: como transformar a comoção pela perda de vidas precárias em práticas de contestação e cuidado? Como fazer uma torção de vidas não passíveis de luto para vidas passíveis de luta?

 

Racionalidade da colonialidade e do racismo

A discussão sobre a condição em que as vidas passíveis de luto e não passíveis de luto são pensadas requer uma indagação sobre os elementos que se sobrepõem nos espaços e territórios em que elas se constituem e se movem. Uma vida, um corpo, em determinado campo social, vem arranjado sob o efeito de instituições e discursos forjados historicamente nas variadas relações de poder que os afetam. Processos de uma logicidade colonizadora e racista emergem nas práticas institucionais e nas condutas dos sujeitos, que se configuram no plano de uma vida passível de luto ou de uma vida não passível de luto.

Portanto, pensar a colonialidade e o racismo para entender os arranjos em que vivem mulheres em situação de violência e usuários de drogas nos centros urbanos se torna, neste momento, um procedimento necessário para o desenvolvimento do trabalho que por ora se desenvolve. Achille Mbembe, Judith Butler, Michel Foucault e Silvio Almeida são interlocutores que possibilitam tal reflexão, já que estão analisando, cada um à sua maneira,modos de governo da vida que têm o racismo e a colonialidade na produção de vidas matáveis e não passíveis de luto.

Pensar sobre os elementos que atravessam a realidade de certos corpos - no caso em estudo, os de mulheres em situação de violência no interior de suas casas e os de usuários de drogas nos centros urbanos - pode assinalar o racismo em suas modalidades de colonialidade dos corpos de certos sujeitos constituindo a nossa atualidade. Há de se pensar que a sociedade ocidental, desde o século XVII, se constitui naquilo que Michel Foucault denominou de Racismo de Estado(Foucault, 1976/2010). Nesta compreensão, vale considerar que, em sociedades como a brasileira, impera uma maneira de desenvolvimento estatal cujos discursos e procedimentos institucionais "vão fazer o discurso das raças funcionar como princípio de eliminação, de segregação e, finalmente, de normalização da sociedade" (Foucault, 2010, p. 52). O que emergiu como Racismo de Estado desde os idos de 1600 d.C. e se articula de variadas maneiras até os dias atuais em sociedades ocidentais, por meio de seus discursos e práticas, não se trata de uma luta de raças, de uma contra a outra, mas de um racismo em que a sociedade exercerá, sobre ela mesma, "um racismo interno, o da purificação permanente, que será uma das dimensões fundamentais de normalização social" (Foucault, 2010, p. 52-53).

Entretanto, é importante ter claro que a discussão foucaultiana sobre Racismo de Estado não foi direcionada à sua articulação com a colonização e, posteriormente, com a colonialidade. O autor focou suas análises na organização dos Estados nacionais europeus, e não propriamente nas invasões europeias em continentes como o americano e o africano. Isso implica que o Racismo de Estado em países tributários dos diferentes modos de colonização será constituído por figuras que apenas emergem nesses encontros: negros, indígenas, selvagens, etc.Ou seja, a marca do colonialismo europeu nas Américas e na África produzirá outra modalidade de racismo, que não se pautará apenas no deixar morrer da biopolítica, mas também em um fazer morrer da necropolítica, conforme indica Mbembe (2018). Há, nesses casos, uma dimensão da vida precária, não passível de luto - uma vida passível de extermínio.

Um dos elementos que permitem, na nossa atualidade, essas formas de governo apoiadas em um racismo de Estado que constitui a própria colonialidade são as estratégias de normalização, inclusive, do próprio extermínio de vidas.Os discursos de normalização social, presentes nos modos de governo da vida e de corpos, articulam-se por meio de saberes e mecanismos políticos que tratam as vidas como territórios a serem marcados com os procedimentos de regulação. Indica-se nestes todo um sistema de valoração e princípios de regulação a que indivíduos de um meio social deverão sujeitar-se. As leis, regras e princípios são estabelecidos pela raça colonizadora de territórios, de saberes e de corpos. Nesse sentido, observa-se que discursos hétero-normativos ainda apoiam estratégias de hierarquização de gênero para justificar as práticas de violência contra a mulher.A mulher, como corpo colonizado, é uma modalidade de subjetividade encontrada em discursos que amalgamam público e privado, tornando o corpo não apenas superfície de investimentos do poder, mas também superfície de violências. A classificação de gênero em si já remonta às estratégias do Racismo de Estado, que estabelece hierarquizações, deveres e direitos dentro de seu campo de ação.

Observa-se, também, que os discursos de limpeza social, constituídos pelos higienismos que organizaram os espaços urbanos a partir do século XVIII na Europa, aparecem no nosso presente em relação a algumas populações que transitam entre a figura do necessitado e a do delinquente - usuários de drogas e moradores de rua. Esses discursos que classificam usuários de drogas e moradores de rua como sujeitos a serem"reintegrados socialmente", a partir de mecanismos que os encaminhem a procedimentos de profissionalização e geração de renda, indicam que, no corpo social, algumas modalidades de subjetivação devem ser consideradas dispensáveis, dignas de desaparecimento e não passíveis de luto. O discurso de normalização social, dentro de um Racismo de Estado, aparece nas instituições justificando a prática de violência e suspensão de direitos à vida.

Neste texto, uma das linhas que aproximam esses grupos - mulheres e usuários de drogas/moradores de rua -é a das performances entre o público e o privado, entre o laico e o religioso. Trata-se de vetores que constituem os enlaces desses sujeitos pelos mecanismos de controle e regulação, bem como pela possibilidade de extermínio dessas vidas, na medida em que seus enquadramentos se constituem por tutela e abandono ao mesmo tempo.

A relação entre o público e o privado se dá nas formas de subjetivação que constituem esses corpos. Em termos públicos, quando se trata de corpos públicos, investidos por políticas públicas; por exemplo: a Política de Atenção Integral à Saúde da Mulher ou mesmo as estratégias dos CAPS AD. Por outro lado, em termos privados, esses corpos desaparecem do público e se tornam responsáveis pelas próprias violações, quando o que acontece dentro das casas não é tomado como responsabilidade de todos nós, ou quando o usuário da droga é criminalizado por sua própria dependência. É importante também considerar, nesse jogo, que o religioso e o laico entram como vetores para reforçar a relação entre o público e o privado. O religioso surge no desaparecimento do laico, quando o Estado não responde pelos investimentos na vida; o religioso ocupará esse espaço. Neste caso, o religioso opera no abandono da vida pelo laico, marcando não uma separação entre ambos, mas uma articulação que permite a privatização do público. Não são, assim, vetores opostos: são vetores que se potencializam e marcam as linhas de composição da relação entre público/privado, entre religioso/laico, em uma racionalidade decolonialidade dos corpos. Trata-se de colonialidade de corpos porque não se direcionam a qualquer corpo. São corpos performados por cor, classe, gênero, etnia.

A seguir, serão discutidas experiências que mulheres em situação de violência vêm atravessando em tempos de pandemia, uma vez que o procedimento de isolamento sugerido, e até decretado, pelo Estado tem desencadeado o recrudescimento da vulnerabilidade/desproteção de certos corpos de mulheres e de agressões contra eles, por conta da proximidade com o agressor. Posteriormente, serão apontadas também ações estabelecidas pelo Estado em tempos de COVID-19 que têm enfraquecido ainda mais a condição de sobrevivência de usuários de drogas e moradores de rua.

 

Pandemia do vírus e pandemia da violência-corpos-mulheres

Desde o início da pandemia de COVID-19, nota-se um aumento do número de casos de violência contra as mulheres, não só no Brasil, como também em outros países do mundo. Em uma transmissão on-line sobre os tempos de pandemia e a possibilidade de construir movimentos, Angela Davis (2020) fala que, apesar de a pandemia de COVID-19 nos impor certo distanciamento social, devemos permanecer atentos à condição de mulheres que estão vivendo em situação de violência e que encontram em seus lares não um local seguro e acolhedor, mas sim o confinamento e o convívio com seus possíveis agressores, já que, em cerca de 70% dos casos de violência contra as mulheres, o autor é companheiro, ex-companheiro ou familiar da vítima, de acordo com informações do Ministério da Saúde (Toledo, 2020).

Se olharmos para o contexto de violência contra as mulheres que ocorre na América Latina, é possível considerar que a violência é resultado de um agenciamento social produtor de desigualdades e assimetrias nas relações de poder entre mulheres e homens, em alguns casos culminando na expressão última da violência, o feminicídio. Em entrevista ao jornal eletrônico El País, Judith Butler (2020) torna a pensar sobre as vidas não passíveis de luto e interroga: é possível que algumas vidas sejam consideradas choráveis e outras não? Em que circunstâncias é possível lamentar uma vida perdida?

Comodissemos anteriormente, há certas condições de possibilidade para que uma vida seja vivível ou para que se torne precária. No caso das mulheres, uma dessas condições corresponde à intersecção entre os elementos de gênero, raça e classe. Butler diz que a violência e o feminicídio, além de corresponderem a um ato, são também mecanismos para a manutenção de um clima de terror constante e de dominação masculina. A construção binária de gênero feminino/masculino e mulher/homem transforma-se em modos de subjetivação e normas em que mulheres são tidas como propriedade dos homens e os homens são aqueles que exercem o poder de vida e de morte sobre elas, assim como o soberano tem o poder de vida e morte sobre seus súditos, como nos diz Foucault (2010) ao analisar a forma de governo das vidas em um regime de soberania. "Sendo o poder a ação sobre a ação do outro [...] é exercido também no nível da morte, na possibilidade de matabilidade e na ideia de que qualquer um/a pode ser soberano/a e decidir pela morte do outro" (Lima, 2018, p. 30). Nessa lógica, o imperativo imposto às mulheres é "submeta-se ou morra". Por isso, muitas passam por situações de violência em silêncio, já que temem pelo fim de suas vidas.

Bandeira (2019) fala que, desde o final dos anos 1970, no Brasil, havia mobilizações de movimentos feministas contra assassinatos de mulheres cometidos por companheiros ou ex-companheiros. Naquela época, a justificativa usada na maioria dos crimes era legítima defesa da honra dos homens. Atualmente, a Lei do Feminicídio (nº 13.104/2015)entende que se trata de um homicídio motivado por violência, discriminação ou menosprezo à condição de mulher. Apesar da mudança legislativa, a motivação do crime parece encontrar subsídios em discursos do passado, mesmo que atualizados ou ressignificados.Considerando que a maioria dos crimes de feminicídio ocorre dentro de casa, a violência sofrida é justificada pela ideia de a mulher não desempenhar bem o seu ofício de esposa, mãe e/ou dona de casa. Não obstante as conquistas rumo à igualdade de direitos, fruto de mobilizações e reivindicações realizadas por movimentos de mulheres e movimentos feministas, como a criação de políticas sociais de enfrentamento à violência e redes de atendimento especializado para as mulheres (Ligue 180, Casa da Mulher Brasileira, Lei Maria da Penha, Lei do Feminicídio, entre outras), a violência e o feminicídio naturalizaram-se, uma vez que, por mais revoltante e horrível que cada caso seja, as ocorrências compõem uma organização que não considera a vida das mulheres como passíveis de luto ou dignas de serem choradas, especialmente quando há uma interseccionalidade entre raça, gênero e classe social (Davis, 2016). Estas não são camadas que se sobrepõem, mas linhas que se encontram e se fortalecem, precarizando corpos de modos diferentes e, sobretudo, tornando alguns corpos mais matáveis do que outros, em termos necropolíticos.

Dado que a situação de enclausuramento devido à pandemia de COVID-19 dificulta o acesso aos mecanismos de proteção e aos serviços especializados de atendimento às mulheres, se faz ainda mais urgente pensar em estratégias de proteção a essas vidas, posto que a violência que estão vivendo acontece, muitas vezes, de modo silencioso e invisível.Tendo em vista essas questões, em julho deste ano, foi sancionada a Lei n° 14.022/20, que garante a continuidade do funcionamento dos serviços de atendimento às mulheres em situação de violência, tidos como serviços essenciais, mesmo em meio ao aumento de casos do novo coronavírus. Também haverá a ampliação dos atendimentos virtuais, que possibilitam solicitar medidas protetivas de urgência, on-line, por exemplo. Além das medidas que envolvem os mecanismos de proteção do Estado, a sociedade civil tem se organizado e formado alianças para enfrentamento da violência contra as mulheres. Uma das apostas para lidar com o problema é a construção de redes colaborativas ou grupos de apoio que promovem campanhas de prevenção e conscientização sobre a violência e também informam quais os centros de atendimento que estão abertos.

 

O combate aos corpos de usuários de drogas e de moradores de rua em tempos de pandemia

A sociedade brasileira vivencia experiências muito particulares no enfrentamento dos fenômenos da drogadição e da pobreza ao longo dos anos. Ambos os elementos se encontram nos grandes centros urbanos: corpos marcados pela dependência química e pela ausência de condições básicas de subsistência, como recursos para alimentação, moradia, educação e saúde. A sociedade, por meio de suas instituições públicas, busca lidar com uma problemática que, em tese, ela mesma produz a partir de seus arranjos e organização propostos histórica e socialmente como jeito de viver social: determinar um estilo de vida que se desenvolva no fluxo trabalho-renda-consumo. Algumas populações, como usuários de drogas e moradores de rua nos grandes centros urbanos, pessoas em permanente abandono, uma vez que nãoseguem esse fluxo, por conta disto, passam a conduzir-se dentro do meio urbano recebendo tratamentos distintos em relação à maioria da população.

Essa problemática é passível de discussão dentro da realidade que vem acompanhando as reflexões no tocante às dinâmicas da colonialidade e do racismo. A proposta de uma sociedade como um sistema de produção de renda e consumo, idealizada e estabelecida como a forma legítima de vida, em um sistema econômico e político que vem organizando o modo de ser das pessoas em sociedades como a brasileira, apresenta-se como a lógica da colonialidade do ser e dos saberes, conforme apontado anteriormente. O Racismo de Estado, como afirmado por Foucault, descreve a lógica de normalização da sociedade, indicandopráticas disciplinares de vida a serem seguidas e condutas a serem condenadas. Ou seja, o Estado, por meio de seus discursos e instituições, engendra um aparato tecnológico disciplinar, uma biopolítica, que objetiva a normalização de um grupo populacional, promovendo a vida de alguns e permitindo a morte de outros (Foucault, 2010, p. 206-207). Entretanto, em se tratando de um Racismo de Estado que opera dentro de uma lógica da colonialidade, essas vidas e corpos tornam-se o inimigo a ser exterminado, sem uma justificativa para seu próprio extermínio, além do fato de ser o próprio inimigo. Usuários de drogas e moradores de rua, dentro de um racismo da colonialidade, também têm cores, classes, gêneros. A biopolítica opera no encontro com a necropolítica nesses casos. A regulação acontece em um campo de exterioridade, ou seja, quem deve ser protegido dessa população, e não essa população que deve ser protegida.

Um olhar para a experiência que usuários de drogas e moradores de rua, nos centros urbanos brasileiros, vivenciam permite a identificação de como certa lógica do bom viver, de uma vida passível de luto, opera sobre aqueles que não carregam consigo os elementos que caracterizam tal ontologia de existência. Dependentes químicos e sujeitos em condição de risco social estruturam suas vidas de uma maneira que contraria as condições do que a sociedade considera como vida passível de luto. Logo, o tratamento recebido por estes corpos nos equipamentos sociais que consolidam os discursos de uma vida passível de luto atrela-se a práticas que conduzem mais à morte do que à vida, por não estarem os corpos situados em uma ontologia de vidas passíveis de luto: são apenas vivos passíveis de extermínio. A sua existência de vivo justifica o seu próprio extermínio. Esta dinâmica pode ser observada de modo intensificado quando a sociedade brasileira atravessa a pandemia de COVID-19.

A pandemia de COVID-19 veio acirrar as distinções operacionalizadas no dia a dia na relação sociedade e usuários de drogas/moradores de rua. Por meio dos órgãos públicos, interesses variados na sociedade acabam por incitar ações junto aos corpos de usuários de drogas e demais pessoas em risco social que registram e reforçam o local em que estes se encontram na população geral. Nas táticas efetivadas pelo Poder Público em tempos de pandemia, observa-se certa situalização dos corpos desta minoria em um campo que recebe investimentos de combate, e não de cuidado e proteção. A experiência da população de usuários de drogas e moradores de rua, no centro do município de São Paulo, em meio à pandemia de COVID-19, aponta para o local/situação que eles se encontram na relação Estado-sociedade-pessoas em risco social.

No dia 8 de abril de 2020, em meio ao fenômeno da pandemia de COVID-19, no centro da cidade de São Paulo, em uma região conhecida como Cracolândia, sob determinação do prefeito da cidade, foi fechado o ATENDE 2 (unidade de Atendimento Diário Emergencial). Reportagens, como a publicada pelo G1 São Paulo (Paulo, 2020) destacam que a ação deflagrada pela prefeitura foi organizada de maneira a levar os indivíduos em situação de risco social e dependentes de álcool e drogas para uma unidade SIAT II (Serviço Integrado de Acolhida Terapêutica), a 3 Km do local. A Folha de São Paulo (Sant'Anna; Bergamo, 2020), outro site jornalístico, informou que 213 indivíduos que estavam presentes no ATENDE 2foram transportados para o novo local em ônibus disponibilizados pelo poder público.

A ação promovida pela prefeitura, no momento em questão, ressalta o tratamento dado pela liderança às pessoas que se encontram em condições de dependências químicas, alcólicas e em situação de vulnerabilidade social na região. Elementos como a pobreza, que atravessam a relação Poder Público e indivíduos em condições de risco social, podem responder às razões e às finalidades de tal operação. Para discutir a maneira como tais fatores operacionalizam esta relação, é importante entender o funcionamento da relação entre o ATENDE 2 e usuários de álcool e drogas presentes na Cracolândia.

O ATENDE-2 é um espaço, denominado de "equipamento" pela Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS), localizado próximo à Cracolândia, estabelecido a partir de iniciativas do Programa Redenção, cujo objetivo é assistir pessoas que se encontram em condição de vulnerabilidade social, seja por conta de dependência química ou alcólica, seja por não disporem de um local para residirem (Prefeitura de São Paulo, 2020). O ATENDE-2 é um trabalho de significativa relevância na região por disponibilizar serviços básicos aos que buscam seus recursos. órgão oferece "alimentação, higiene pessoal e ressocialização para os beneficiários. A estrutura conta com espaços de descanso, banheiros e refeitório, além de ofertar serviços como cortes de cabelo, oficinas socioeducativas e encaminhamento para regularização dos documentos" (Prefeitura de São Paulo, 2020). Por conta da utilidade de seu atendimento à população de usuários de drogas e moradores de rua que transitam no centro da cidade de São Paulo, o fechamento da unidade e a remoção dos indivíduos que ali buscavam atendimento trouxeram-lhes certos impactos. A maneira como a operação da prefeitura foi desenvolvida, promovendo ainda mais aglomeração ao juntar dependentes e moradores de rua dentro dos ônibus em tempo de pandemia, acabou por expor esta população a mais riscos do que aqueles que fazem parte de sua condição de vida.

Uma análise do movimento deflagrado pela prefeitura da cidade de São Paulo permite identificar as dinâmicas que operam na relação poder público e grupos em condições de risco social. Também possibilita identificar os efeitos de tais táticas na realidade de vida deste grupo populacional, bem como o tipo de modalidades de subjetivação reinscritas em seus corpos.

Para a análise proposta, é importante pensar que há um investimento do Estado nos corpos dos indivíduos inseridos em sua rede de tratamento social. Para Michel Foucault (2010), a partir da constituição dos Estados Modernos, por meio de mecanismos disciplinares e regulamentadores, passou-se a organizar no tecido social uma tratativa direcionada ora para o corpo individualizado, ora para o corpo social. A rede de usuários do serviço ATENDE 2 aparece como esse grupo de sujeitos que se configuram como corpos a serem tratados, como aqueles que não se encaixaram em outras redes de atenção ao indivíduo por parte do Estado. O Estado, por meio de suas instituições de ensino, formação e controle de pessoas, tais como famílias, escolas, cursos técnicos, exércitos, polícia, aparelho judiciário, igrejas, etc., não obteve êxito em localizar tais pessoas em áreas de atuação que convergissem para a pressuposta ordem que eleaponta como seu objetivo para o corpo populacional. A operação realizada pela prefeitura por meio de equipamentos estatais - a polícia e o meio de transporte - atua sobre os corpos de dependentes químicos e moradores de rua, com técnicas e táticas similares a práticas de deslocamentosde animais, de corpos vivos, e não de vidas.

Esta observação parte de um olhar para a relação entre a prescrição de conduta estabelecida para os setores da prefeitura durante o período da pandemia e a prática que órgãos municipais operacionalizam na remoção dos usurários do ATENDE 2. Quanto à prescrição,observa-se que foi publicado o Decreto no. 59.283 em 16 de março de 2020, que estabelece Situação de Emergência para o município de São Paulo, impondo regras de conduta para os diversos órgãos em atuação na cidade. Em seus artigos, constam as práticas a serem implementadas pelos órgãos municipais, nas pessoas de seus gestores e servidores. Para o setor do transporte da Secretaria Municipal, ficou decretado, no artigo 14, que "deverá tomar as medidas necessárias para: [...] II - adequação da frota de ônibus em relação à demanda; [...] VI - disponibilização de álcool em gel aos usuários e trabalhadores, nas áreas dos terminais e entrada e saída dos veículos". Aqui fica prescrito o modo de tratamento a ser dado aos usuários de transporte público por parte da prefeitura.

Na prática efetivada pela prefeitura no deslocamento de usuários do ATENDE 2 para o SIAT 2, por parte do setor de transporte, percebeu-se uma completa inobservância das medidas de segurança e proteção contra o contágio por coronavírus. Conforme registra a matéria publicada pelo G1, com fotos e narração dos fatos ocorridos no transporte dos usuários, "a transferência dos acolhidos foi feita na manhã desta quarta-feira(8) em um ônibus lotado, e eles não usavam máscaras" (Paulo, 2020). Nota-se aqui que o tratamento dado pela prefeitura aos usuários da rede ATENDE 2 vai pela contramão das regras estabelecidas em seu decreto, que previa um transporte adequado à demanda e a utilização de higienizadores e materiais de proteção, como álcool em gel e máscaras.

A maneira como a prefeitura de São Paulo deflagra essa operação é possível dentro de uma lógica necropolítica: mais do que abandonar esses corpos e os circunscrever em ações disciplinares, como as de higiene pessoal, atua de forma a fazer morrer, expondo corpos ao risco de morte. A exposição à morte justifica-se pelos enquadramentos performados por um racismo de Estado e uma razão de mercado. São corpos que transitam no centro da cidade, uma região de grande interesse do setor imobiliário. No encontro do racismo com o mercado, esses corpos, mais do que abandonados, são matáveis. A disciplina e a responsabilização individual darão lugar a um procedimento de extermínio. A razão de mercado dá visibilidade ao abandono das vidas, que se circunscreviam em um espaço privado, de invisibilidade, mas territorializado. O Programa de Redenção, que investia em corpos individuais, na junção do caritativo com o laico, tornou-se antieconômico, pois fixava esses corpos, estabelecia o território de circulação e regulação. A remoção de usuários de drogas e moradores de rua do local segue um programa de "limpeza social" do lugar, atendendo a um projeto antigo, que foi mais visibilizado no ano de 2017, quando o então prefeito João Dória procurou, com métodos de enfrentamento, expulsar a população que vivia na região da Cracolândia, onde está situado o ATENDE 2. Este projeto fundamenta-se na reorganização urbanística, que visa a atender famílias que possam fazer financiamentos para moradia no local (Redação CartaCapital, 2017).

Retomando a proposição de Foucault de que, nos Estados Modernos, se operacionalizam mecanismos regulamentadores e disciplinares com vistas à normalização da população, essa biopolítica opera conjuntamente com uma necropolítica, pois se pode constatar que a forma de atuação da prefeitura de São Paulo junto aos usuários do ATENDE 2 registra e inscreve nesta população as marcas do extermínio de vivos, não tomados como vidas passíveis de luto. Aqueles corpos recebem um tratamento não prescrito para a prefeitura e cidadãos da cidade. Assim, um deslocamento organizado pela prefeitura sem os meios de higienização e proteção que ela prescreve em seu decreto para os órgãos públicos e seus usuários reflete o deslocamento de corpos do campo de cuidado e proteção para fora dele. Inscreve-se, nestes corpos, a exclusão do corpo social.

A pandemia de COVID-19 no Brasil, a partir de como o Estado, em suas instituições com medidas regulamentadoras e disciplinares, em uma modalidade necropolítica, atua junto à população, permite a identificação de elementos que engendram a relação entre a esfera pública e a população usuária de drogas e moradora de rua. A pobreza, resultante da ausência de renda para consumo de meios básicos de subsistência, é um dos fatores mais presentes nas motivações que conduzem o tipo de operação desencadeada pela prefeitura.Sem renda e racializada, sem meios de acesso aos recursos básicos para a vida, essa população é tratada à margem do previsto para a sociedade. E, quando se exige que o Estado providencie uma alternativa aos corpos que não acompanham o fluxo trabalho-renda-consumo, o tratamento oferecido não se estrutura dentro das prescrições que ele prevê aos cidadãos que acompanham tal fluxo. As táticas e estratégias seguem um arranjo não mediado pelas leis e decretos próprios para a população, mas para corpos abandonados e privatizados em seu próprio abandono.

Observar a maneira como a prefeitura de São Paulo atua sobre os corpos dos usuários de drogas e moradores de rua que transitam na região da Cracolândia possibilita a discussão sobre como as táticas e estratégias operacionalizadas pelas instituições públicas exercem o papel de reforço das práticas de invisibilidade e destruição de corpos desta população por meio da necropolítica. Opta-se, mediante as transações efetivadas pela prefeitura nesta população, por legitimar um discurso de limpeza do centro da cidade, por consequência,atribuindo a estes corpos certos modos de subjetivação que justificam o seu próprio extermínio, ou seja, a privatização dos corpos se dá no espaço da política pública que os enquadra como vidas matáveis. A população de usuários de drogas e moradores de rua parece receber o mesmo tratamento que a COVID-19 recebe. Esta população não é aquela que merece um tratamento de cuidado; na verdade, a partir da articulação entre vidas privadas e equipamentos públicos, estes corpos são outra modalidade de "vírus", contra os quais a sociedade precisa se higienizar e se proteger. A ação efetivada pela prefeitura no período da pandemia marcou uma linha divisória entre quem é sociedade e quem se constitui como ameaça, quem são os corpos a serem protegidos e quem são os corpos a serem combatidos. Tal prática incita a um deslocamento de corpos de usuários de drogas e moradores de rua do interior do corpo social para fora de seu campo de cuidado e atenção.

Por fim, cabe pensar em que medida os equipamentos públicos, com suas regulações e disciplinas, e com o fim de atender populações em risco social, não acabam por inscrever nestes corpos modos de subjetivação que os excluem ainda mais de seu conjunto, legitimando e atestando de modo oficial a sua não presença no corpo social - este, composto de sujeitos dignos dos direitos de proteção e segurança próprios dos que vivem em um Estado democrático de direito.

 

Considerações finais

Perante o exposto, é possível conceber, então, que o devir negro no mundo e a condição de precariedade das vidas não passíveis de luto são efeitos do bio-necropoder, como explica Fátima Lima (2018), isto é, o arranjo entre as noções de biopoder/biopolítica e necropoder/necropolítica. A articulação entre essas noções permite-nos visualizar quais os elementos que estão em jogo e de que modo são conduzidas as vidas na atualidade, ao operarmos de modo situado em contexto brasileiro, articulando os efeitos da colonialidade e do racismo no governo e na produção de vidas matáveis.

No momento em que o isolamento social se torna uma das principais medidas para conter a disseminação da pandemia de COVID-19, a violência contra as mulheres potencializa-se, dado que decorre, na maioria das vezes, de relações interpessoais íntimas, na convivência em espaços privados. Cabe salientar que, apesar de estarmos tratando de mulheres como uma categoria ampla, pois todas podem vir a passar por situações de violência, há certos marcadores sociais (raça, classe e orientação sexual, e suas interconexões) que expõem determinadas mulheres a maiores situações de violência e vulnerabilidade. Ademais, a violência manifesta-se de forma heterogênea; por isso a necessidade de sabermos identificá-la, na tentativa de tornar essas vidas passíveis de luto/luta.

Vale, ainda, consideraras mulheres em situação de violência dentro de uma lógica racista e hierarquizante, própria das articulações do biopoder e do necropoder em sociedades como a nossa,que pode encontrar suas similitudes na condição de existências de corpos de usuários de drogas nas praças dos grandes centros urbanos. No ímpeto de ações higienizadoras e normalizadoras do corpo populacional, características de um Racismo de Estado organizado pela colonialidade, observa-se, nas práticas da prefeitura de São Paulo,a mecânica institucional disciplinar da biopolítica, conjuntamente com o extermínio da necropolítica, em combate a corpos que não se adéquam às regulamentações ordenadas na lógica trabalho-renda-consumo estabelecidas histórica e socialmente.

Usuários de drogas e moradores de rua nos centros urbanos aparecem como corpos a serem combatidos, à semelhança do vírus de COVID-19, não somente em tempos de pandemia, mas no cotidiano da vida, quando buscam no trajeto diário não apenas as drogas, objeto de suas dependências, mas alimentos, meios para higiene pessoal, espaços de pernoite, medicamentos para suas dores - alguns destes recursos disponibilizados pelo ATENDE-2, órgão fechado pela prefeitura de São Paulo. Trata-se de uma estrutura político-institucional que inviabiliza tais meios, que já marca aqueles corpos como vidas precárias não passíveis de luto, não passíveis de cuidado, registrando-os como corpos a serem eliminados de uma proposta de vida social.

 

Referências

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Submissão: 15/09/2020
1° avaliação: 27/11/2020
Aceite: 15/12/2020
Financiamento: Agradecemos pelo financiamento para a realização da pesquisa: o Conselho Nacional de Desenvolvimento científico e tecnológico - CNPq; a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES; e a Fundação de Apoio ao Desenvolvimento do Ensino, Ciência e Tecnologia - FUNDECT.

 

 

Giovanna Liz Oliveira Mantovani possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal da Grande Dourados. É mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Católica Dom Bosco.
E-mail: gi_mantovani7@hotmail.com
ORCID: http://orcid.org/0000-0001-6072-1692
Vanilson Oliveira da Silva é psicólogo e doutorando do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Católica Dom Bosco.
E-mail: vanilsonoliveira73@gmail.com
ORCID: http://orcid.org/0000-0003-1532-0771
Anita Guazzelli Bernardes é doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. É também professora e pesquisadora do Programa de Mestrado e Doutorado em Psicologia da Universidade Católica Dom Bosco.
E-mail: anitabernardes1909@gmail.com
ORCID: http://orcid.org/0000-0003-4742-6036

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