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Analytica: Revista de Psicanálise

On-line version ISSN 2316-5197

Analytica vol.3 no.5 São João del Rei Dec. 2014

 

ARTIGOS

 

Manifestações de junho: entre a estética e a política

 

June manifestations: between Esthetics and Politics

 

Mouvements populaires de Juin

 

Las manifestaciones de junio: entre estética y política

 

 

Luiz Paulo Rouanet*

Universidade Federal de São João del-Rei - UFSJ - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Procura-se compreender o movimento conhecido como "manifestações de junho", no Brasil (2013), a partir de dois referenciais teóricos principais: Elias Canetti e Sigmund Freud. Procura-se mostrar que não se trata unicamente de um fenômeno político, mas também estético. Analisa-se o fenômeno de massa a partir de uma dupla perspectiva: sociológica e psicológica.

Palavras-chave: Psicologia de Massas; Política; Estética; Brasil.


ABSTRACT

This paper tries to understand the movement called "June manifestations" in Brazil (2013), based in two main theoretical sources: Elias Canetti and Sigmund Freud. It demonstrates that it not only a political phenomenon, but also an esthetical one. It analyses the mass phenomenon on a double point of view: sociological and psychological.

Keywords: Mass Psychology; Politics; Esthetics; Brazil.


RÉSUMÉ

L'article examine le mouvement populaire connu comme «Manifestations de Juin», qui a tenu place au Brésil em 2013. L'article prend comme point de sustentation théorique surtout deux autheurs: Elias Canetti et Sigmund Freud. Il s'agît d'un double phenomène: politique et esthétique. Dans cette perspective, l'article aborde le sujet d'un point de vue sociologique et psychologique.

Mots-clé: Psichologie de masses; Politique; Esthétique; Brésil.


RESUMEN

Se trata de comprender el movimiento conocido como "manifestaciones de junio" en Brasil (2013), a partir de dos principales marcos teóricos: Elias Canetti y Sigmund Freud. Se verá que esto no es sólo un fenómeno político, sino también estético. Se analiza el fenómeno de masas desde una doble perspectiva: sociológica y psicológica.

Palabras claves: Psicología de masas; política; Estética; Brasil.


 

 

"Um fenômeno tão enigmático quanto universal é o da massa que repentinamente se forma onde, antes, nada havia. Umas poucas pessoas se juntam - cinco, dez ou doze, no máximo. Nada foi anunciado, nada é aguardado. [...] As pessoas afluem, provindas de todos os lados, e é como se as ruas tivessem uma única direção." (Canetti, 1995, p. 14)

 

Introdução

Somente quem estava no País no mês de junho de 2013 tem dimensão do que foram os protestos, que tiveram início em São Paulo e no Rio de Janeiro, tendo como motivo o aumento da passagem de ônibus, e que se espalharam por todo o Brasil, das maiores às menores cidades. Literalmente, milhões de pessoas foram às ruas, às vezes em um mesmo dia.

A partir de atos de depredação, em protesto em São Paulo, o governo do Estado ordenou a repressão, que se fez de forma extremamente violenta. Batalhões de policias da tropa de choque foram às ruas e empregaram força contra quem se encontrasse no caminho, participantes ou não, homens e mulheres, indiscriminadamente, e até jornalistas que cobriam o evento - pelo menos uma repórter perdeu a vista em função das balas de borracha.

Diante dessa repressão brutal, pessoas que antes criticavam os manifestantes, ou se mantinham à parte, aderiram aos protestos e o movimento rapidamente se espalhou por outras capitais: Belo Horizonte, Brasília, Porto Alegre etc. Em São Paulo, ameaçou-se invadir a Prefeitura; em Brasília, o Congresso Nacional; no Rio, a Assembleia Estadual, entre outros locais.

No momento em que escrevo (outubro de 2013) ainda ecoam protestos aqui e ali, mas sem a força que o movimento atingiu no mês de junho. O movimento se esgotou? Alcançou seus objetivos? O que restou dele?

Alguns dos objetivos foram alcançados: o congelamento ou diminuição do preço dos transportes, o início de uma discussão sobre a gratuidade dos transportes públicos, a revogação de algumas medidas que eram impopulares, as famosas "PEC" - Projeto de Emenda Constitucional -, como aquela que revogava das Procuradorias poderes de investigação policial, a chamada PEC dos homossexuais, que foi provisoriamente retirada de pauta, entre outras medidas. Outras, como a saída de certos políticos - Renan Calheiros, Presidente do Senado; Henrique Alves, Presidente da Câmara Federal - não tiveram êxito. E o movimento perdeu sua força.

As massas não permanecem reunidas para sempre. Como diz Canetti:

[...] tão subitamente quanto nasce a massa também se desintegra. Nessa sua forma espontânea, ela é uma construção delicada. Seu caráter aberto, que lhe possibilita o crescimento, representa-lhe também um perigo. A massa traz sempre vivo em si um pressentimento de desintegração que a ameaça e da qual busca escapar através do rápido crescimento. Enquanto pode, ela absorve tudo; uma vez, porém, que tudo absorve, tem ela também de, necessariamente, desintegrar-se (1995, p. 15).

Neste texto, procurarei analisar o fenômeno a partir de um ponto de vista teórico, e não jornalístico, ou factual. Para tanto, recorrerei a algumas fontes obrigatórias, com a consciência de que a bibliografia sobre os fenômenos de massa é extensíssima, e não poderia cobri-la aqui. Trata-se, portanto, de um ensaio, no mais puro sentido do termo.

I

Enfatizou-se bastante o caráter de "novidade" das manifestações de junho no Brasil. Afirmou-se que nossas categorias estariam "velhas" e não dariam conta dos fenômenos observados. Que há aspectos de novidade nesse movimento, isso é inegável. Seu caráter aparentemente apartidário, a ausência de lideranças ostensivas, pautas pontuais e não meramente "contra tudo o que está aí" são algumas das características que podem ser consideradas novas, e isso apenas em termos relativos. Há quem compare o movimento com maio de 1968. Não posso julgá-lo, uma vez que não os presenciei, pelo menos não em forma consciente.

Por outro lado, não é verdade que o movimento seja "novo", tanto no que se refere à contemporaneidade quanto no que diz respeito aos referenciais teóricos com os quais pode ser pensado. No que se refere ao presente, as manifestações de junho podem incluir-se, grosso modo, no movimento que teve início, provavelmente, com a chamada "Primavera Árabe", primeiramente na Tunísia, depois se espalhando pela Líbia (embora na forma de uma guerra civil) e no Egito; depois Espanha, com os "indignados", e nos EUA, com o "Occupy Wall Street". Creio que se trata, sim, de movimento similar, embora com motivações específicas em cada país. A característica principal que eles parecem ter em comum é a grande adesão de jovens, mas não só, e seu caráter aparentemente apartidário.

No que concerne aos referenciais teóricos, não creio que seja possível pensar qualquer coisa que seja sem lançar mão da reflexão de autores anteriores, do passado distante ou recente. O que não significa que os fenômenos sejam absolutamente os mesmos, e que não seja preciso, de quando em vez, criar ou modificar conceitos já existentes. Comecemos, então, pela análise de Freud. Tomemos seu Psicologia das massas e análise do eu (Freud, 2011).

Nesse texto, Freud parte da análise de Le Bon, conhecido autor racista, autor de Psicologia de massas. Deixando claro que não partilha das teses racistas de Le Bon,1 aproveita muitas das observações desse autor, como a de que a maior parte de nossos atos é de origem inconsciente, e não consciente, a ideia de que a "massa é impulsiva, volúvel e excitável. É guiada quase exclusivamente pelo inconsciente" (Freud, 2011, p. 12). Porém, a massa não contém aspectos somente negativos. Diz Freud: "Também Le Bon estava disposto a admitir que a moralidade da massa, em algumas circunstâncias, pode ser mais elevada que a dos indivíduos que a compõem, e que apenas as coletividades são capazes do mais alto desinteresse e devoção" (p. 12).

Outra fonte de que se serve Freud é o trabalho de McDougall, The Groupmind. A principal característica da mente coletiva parece ser, na visão desse último autor, a afetividade das massas. Nas palavras de Freud (2011):

Pode-se dizer, segundo McDougall, que dificilmente os afetos dos homens se elevam, em outras condições, à altura que atingem numa massa, e é mesmo uma sensação prazerosa, para seus membros, entregar-se tão abertamente às suas paixões e fundir-se na massa, perdendo o sentimento da delimitação individual (p. 21-22).

Outra tese de McDougall, que Freud parece compartilhar, é a de uma "inibição coletiva da inteligência na massa" (Freud, 2011, p. 23). Isso ocorreria porque

[...] as inteligências menores abaixam ao seu nível as maiores. Estas são inibidas em sua atividade, porque o aumento da afetividade cria condições desfavoráveis para o correto trabalho mental, e além disso porque os indivíduos são intimidados pela massa e o seu trabalho de pensamento não é livre, e porque em todo indivíduo é depreciada a consciência de responsabilidade pelo que faz (Freud, 2011, pp. 23-24).

Não se trata de depreciar as massas, ou de considerar apenas seus aspectos negativos, mas de observar algumas características gerais delas. Estamos, por enquanto, recolhendo elementos para poder refletir a respeito do recente fenômeno de massas a que chamamos de "manifestações de junho", no Brasil.

Prosseguindo na análise do texto de Freud, ele analisará a psicologia das massas introduzindo elementos da psicanálise, como os conceitos de libido e identificação. Agora, Freud (2011) faz suas as observações dos autores anteriores, na seguinte síntese:

Partimos do fato fundamental de que o indivíduo no interior de uma massa experimenta, por influência dela, uma mudança frequentemente profunda de sua atividade anímica. Sua afetividade é extraordinariamente intensificada, sua capacidade intelectual claramente diminuída, ambos os processos apontando, não há dúvida, para um nivelamento com os outros indivíduos da massa; resultado que só pode ser atingido pela supressão das inibições instintivas próprias de cada indivíduo e pela renúncia às peculiares configurações de suas tendências (pp. 26-27).

Enquanto os autores anteriores - notadamente Le Bon e McDougall - falavam de "sugestão" e "sugestionabilidade" - no mesmo sentido da técnica empregada na hipnose -, Freud empregará "libido", e assim a define: "Assim denominamos a energia, tomada como grandeza quantitativa - embora atualmente não mensurável -, desses instintos relacionados com tudo aquilo que pode ser abrangido pela palavra 'amor'" (Freud, 2011, pp. 30-31). Ele relata a grande resistência enfrentada pela psicanálise justamente por utilizar essa noção, com a acusação que frequentemente lhe foi feita de "pansexualismo". Pode-se, então, substituir o termo libido por "amor", "Eros", como se queira. E sua hipótese é formulada nos seguintes termos: "[...] experimentaremos a hipótese de que as relações de amor (ou, expresso de modo mais neutro, os laços de sentimento) constituem também a essência da alma coletiva" (p. 33).

Freud concebe dois tipos principais de massa: com líder, e sem líder. Embora dê algumas sugestões relativas ao segundo tipo, trata mais do primeiro tipo, das massas com líder. Entre estas, dois exemplos se destacam: a Igreja e o Exército (Freud, 2011, p. 33 e ss.).

O tipo de massa que nos compete ainda analisar parece ser do segundo tipo, ou seja, massas sem líder. Então, vejamos as sugestões de Freud a esse respeito. Nesse sentido, na seção VI, "Outras tarefas e direções de trabalho" (Freud, 2011, p. 43 e ss.), ele formula algumas hipóteses de trabalho, como estas:

O que deveria nos ocupar, acima de tudo, é a diferença entre massas que têm um líder e massas sem líder. Verificar se as massas com líder são as mais primordiais e mais completas; se nas outras ele não pode ser substituído por uma ideia, uma abstração, estado para o qual as massas religiosas, com seu chefe intangível, constituem já uma transição; se uma tendência comum, um desejo partilhável por grande número de pessoas, não pode fornecer tal substituto. Essa abstração poderia, por sua vez, encarnar-se mais ou menos perfeitamente na pessoa de um líder secundário, digamos, e da relação entre ideia e líder resultariam interessantes variedades. O líder ou a ideia condutora poderia tornar-se negativo, por assim dizer; o ódio a uma pessoa ou instituição determinada poderia ter efeito unificador e provocar ligações afetivas semelhantes à dependência positiva. Caberia perguntar também se o líder é realmente indispensável para a essência da massa, e outras coisas mais (pp. 43-44).

Creio que já extraímos desse texto de Freud, até agora, bastante material para refletirmos sobre o tipo de formação social que nos cumpre analisar, e por isso deixaremos de lado, por ora, o inventor da psicanálise e perseguiremos outras fontes.

II

Uma segunda fonte, já citada no início deste texto, é o livro de Elias Canetti (1995), Massa e poder. Interessa-me, aqui, a caracterização dos tipos de massa, por um lado, e dos tipos de malta, em segundo lugar, bem como a distinção entre ambos, massa e malta.

Para começar, ocorre, na formação das massas, uma inversão do "temor do contato". Se o indivíduo tem, via de regra, temor do contato, isso se inverte no fenômeno da massa. Se esse temor do contato constitui ou não sintoma de neurose, deixo para os psicanalistas examinarem. Nesse sentido, não seria essa uma característica do homem "civilizado". Como quer que seja, Canetti aponta para esse temor e como isso é invertido na massa.2 Segundo ele, "Somente na massa é possível ao homem libertar-se do temor do contato", e ainda, "Essa inversão do temor do contato é característica da massa" (Canetti, 1995, p. 14, grifos do autor).

Uma primeira distinção se dá entre massas abertas e fechadas. A primeira característica da massa é que ela quer crescer: "A ânsia de crescer constitui a primeira e suprema qualidade da massa. [...]. A massa natural é a massa aberta: fronteira alguma impõe-se ao seu crescimento". (Canetti, 1995, p. 15, grifos do autor). Já a massa fechada renuncia ao crescimento, em nome de uma maior durabilidade. Ela é uma massa "paciente". Enquanto a massa aberta é móvel, a "massa fechada se fixa" (idem, ibidem).

A massa tende à descarga. Isso reforça o paralelismo, já apontado por Freud, entre os instintos do indivíduo e da massa, e seu caráter libidinal. Como diz Canetti (1995), "O mais importante acontecimento a desenrolar-se no interior da massa é a descarga" (p. 16, grifo do autor).

Outra passagem que é crucial para nossa análise é a que trata da destruição provocada pela massa. Conforme o autor, embora se desaprove tal ânsia de destruição, ela é encontrada em todos os países e culturas. A seguinte passagem nos faz lembrar cenas a que assistimos, ou das quais participamos, no mês de junho, no Brasil:

A destruição de tipo mais comum [...] nada mais é do que um ataque a todas as fronteiras. Vidraças e portas são parte dos edifícios; elas constituem a porção mais frágil de sua separação do exterior. Uma vez arrombadas portas e vidraças, o edifício perde sua individualidade. Qualquer um pode, então, a seu bel-prazer, entrar; nada, ninguém lá dentro se encontra protegido. Nesses edifícios - pensa-se - encontram-se geralmente enfiados aqueles que buscam excluir-se da massa: os inimigos dela. Destruiu-se, pois, aquilo que os aparta. Nada mais há entre eles e a massa. Podem, pois, sair e juntar-se a ela. Ou pode-se ir buscá-los (Canetti, 1995, p. 18).

Entre outras, vêm-nos à cabeça cenas da tentativa de invasão da Prefeitura de São Paulo, com os policiais acuados dentro do Prédio, a mesma coisa na Assembleia do Estado do Rio de Janeiro - com a diferença de que, nesta, os manifestantes conseguiram entrar -, a depredação ao Itamarati, para ficar apenas em algumas cenas. "Aos olhos da massa nua, tudo parece uma Bastilha" (Canetti, 1995, p. 19).

Vale a pena, ainda evocar algumas das qualidades da massa:

1) "A massa quer crescer sempre";
2) "No interior da massa reina a igualdade";
3) "A massa ama a densidade" e
4) "A massa necessita de uma direção" (Canetti, 1995, p. 28).

Por último, gostaria de chamar a atenção para as diferenças entre "massa" e "malta". Sua diferença mais evidente é o tamanho: as maltas são pequenas, em oposição às massas. Na verdade, a massa deriva da malta. Como diz Canetti (1995):

Os cristais de massa e a própria massa, no sentido moderno da palavra, derivam ambos de uma unidade mais antiga, unidade esta na qual ainda coincidiam. Essa unidade mais antiga é a malta. Nas hordas de número reduzido, vagando em pequenos bandos de dez ou vinte homens, a malta é a forma que assume a excitação coletiva, visível em toda parte (p. 93, grifo do autor).

O que são cristais de massa? Isso é bastante instrutivo, e nos auxiliará em nossa análise:

Designo cristais de massa grupos pequenos e rígidos de homens, muito bem delimitados e de grande durabilidade, os quais servem para desencadear as massas. É importante que esses grupos sejam avistáveis em seu conjunto, isto é, que se possa abarca-los com os olhos em sua totalidade. Sua unidade importa muito mais do que seu tamanho. Sua atividade tem de ser conhecida: é necessário que se saiba por que razão estão ali. Qualquer dúvida relacionada a sua função privar-lhes-ia de todo sentido; o melhor é que permaneçam sempre iguais. Não se deve confundi-los. Um uniforme ou um local de atuação é-lhes bastante conveniente (Canetti, 1995, p. 72, grifo do autor).

Vem-nos à cabeça os blackblocs, mas a identidade não parece ser completa. Voltaremos a tratar disso. Para terminar esta parte de "recolhimento de dados", é importante distinguir quatro tipos de malta: malta de caça, malta de guerra, malta de lamentação e malta de multiplicação. (Canetti, 1995, p. 95 e ss.). Não tenho tempo aqui para me deter em cada um desses tipos, e remeto o leitor ao livro Massa e poder. Passo agora à análise propriamente dita.

III

Intitulei este trabalho de "Manifestações de junho: entre a estética e a política". Agora explico o título. A meu ver, as manifestações a que assistimos, e das quais participamos em maior ou menor medida, possuem um duplo caráter: estético e político. Por quê?

Em primeiro lugar, parece-me um evento geracional. Embora haja participantes de todas as idades, parece predominar jovens na casa dos 20 anos. Trata-se de uma geração que "não tem paciência pra Televisão" e cuja alma "está armada". Ela rejeita a passividade de seus pais, que assistem a tudo pela TV, entre um programa de auditório e uma novela. É uma geração que deseja ir para as ruas, pois "já sabe namorar". Existe aí um evidente elemento sensual, bem como uma revolta latente. Nas duas músicas que analisei então, "Os tribalistas" (Marisa Monte, Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown) e "Minha alma" (O Rappa), prevalece essa rejeição do comportamento passivo, a não aceitação da violência e da repressão, seja ela de que natureza for, sexual ou policial - no fundo, ambos são a mesma coisa, pois o termo polícia vem de polidez, de costumes.

Uma característica notável das manifestações de junho é que elas não possuíam líderes aparentes, ostensivos. Embora o movimento tenha se iniciado por meio do Movimento do Passe Livre, esse é um movimento que não possui líderes autodeclaráveis. O mesmo ocorre em relação a seu "braço armado", os blackblocs. Então, temos aqui dois elementos que aparecem nos autores que estudamos acima: massas sem líder e maltas, ou cristais de massa. Vamos distingui-los, então.

As manifestações de junho acabaram se transformando em um grande fenômeno de massa: milhões de pessoas foram às ruas, em várias cidades do país sucessiva ou simultaneamente, às vezes, no mesmo dia. A adesão foi exponencial. Seu crescimento aumentou rapidamente a partir do momento em que os governantes decidiram empregar a repressão policial de forma mais brutal, especialmente em São Paulo. As massas querem crescer. Pessoas que antes criticavam o movimento, aderiram a ele.

Seus alvos: os governantes, a quem viam como responsáveis pela falta de infraestrutura associada aos altos preços praticados, especialmente no que concerne aos transportes públicos. Logo as reivindicações se ampliaram: saúde, educação, segurança etc. A esse respeito, circulou uma anedota muito apropriada: no metrô de São Paulo, abarrotado de pessoas, alguém espirra, e outro passageiro exclama: "Saúde", ao que outros completam: "Educação", "Segurança"...

Quando a polícia, sob orientação dos governantes, passou a atuar de maneira mais moderada, apenas para conter os excessos, a massa pareceu conter-se também. As vítimas, aliás, situaram-se, em sua maioria, do lado dos manifestantes. Os governantes, prudentemente, se esconderam, ou fugiram.

Em alguns dias, a Presidência da República se viu obrigada a dar uma resposta aos manifestantes, e anunciou, espalhafatosamente, um programa de reformas. Delas, algumas saíram do papel, outras, não, como a reforma política.

O outro aspecto foram os blackblocs. Segundo a análise de Canetti, que vimos acima, estes podem ser qualificados como "cristais de massa" e como malta. Talvez, o primeiro tipo de malta, a malta de caça. A diferença é que seus objetivos não parecem bem determinados: são os símbolos do capital e do poder, como bancos, agências de automóveis, Assembleias, prédios públicos em geral. Tampouco possuem líderes, e não possuem um local de atuação determinado, a não ser que a Internet seja considerada como esse local "virtual".

O que quero dizer é que as manifestações de junho possuem um duplo aspecto - estético e político. Estético na medida em que correspondem a um sentimento da massa, portanto, a uma afetividade, característica apontada por Freud como característica da psicologia de massas, sendo portanto ligados à Aisthesis, ou seja, aos sentidos, à sensibilidade. Por outro lado, constituem um fenômeno político, pois visam efetivamente a exigir, provocar e cobrar mudanças políticas, administrativas, e efetivamente mudaram a maneira de o governo lidar com as reivindicações. É como se a massa quisesse recuperar seu poder soberano, ou lembrar os governantes de que eles exercem mandato para o povo.

Outra questão é saber quais as consequências das manifestações de junho. No momento, elas parecem suspensas na maior parte das cidades, com eventuais ressurgimentos nas grandes cidades. Mas constituíram um recado para os governantes: nós estamos atentos e podemos voltar a qualquer momento! Nesse sentido, conseguiu alcançar um de seus objetivos. Quais serão realmente os resultados disso, só o tempo dirá, pois ainda estamos vivendo esse momento histórico.

Quanto aos blackblocs, que também constituem um fenômeno recente, embora não inéditos, também possuímos ainda poucos elementos para avaliar. Não me parece acertado compará-los simplesmente a grupos fascistas. Estes eram muito mais organizados, enquanto os blackblocs se intitulam anarquistas; visavam à tomada do poder, coisa que não parece estar na mira dos primeiros; e também não parecem se constituir em grupos intolerantes, embora apresentem grande grau de violência em suas ações. Ao tomarem a polícia como seus alvos preferenciais parecem esquecer, como também esquecem os policiais, de que do outro lado há pessoas, com famílias, com sentimentos, com pensamentos etc. É preciso enxergar as pessoas como indivíduos e não simplesmente como unidades, como maltas contrárias.

 

Conclusão

Não há muito a acrescentar. As análises de Freud e Canetti, das duas primeiras seções, são muito ricas e poderiam ser muito mais exploradas. Ficam como sugestões de leituras e aprofundamentos.

Um autor que primou pela ausência, dado o tema, foi Wilhelm Reich, e seu Psicologia de massa do fascismo (Reich, 1974). Não o utilizei pelos seguintes motivos. Trata-se de um escrito importante, mas até certo ponto, de ocasião: é um escrito corajoso, escrito logo após a tomada do poder por Hitler, na Alemanha, e analisando o fenômeno do nazismo do ponto de vista da psicologia de massas. Uma vez que não considero que o movimento atual tenha, em qualquer de suas vertentes, um componente fascista, não me parece apropriado utilizá-lo. Em segundo lugar, o caráter ideológico da obra, inteiramente calcado numa leitura do marxismo própria da época, confere a ela um caráter de obra conjuntural e, até certo ponto, obsoleto. É claro que não se pode simplesmente descartar a obra, que mereceria ser abordada num outro contexto, mas achei melhor não fazê-lo aqui.

Espero que essas observações, em caráter de ensaio, contribuam para uma melhor compreensão a respeito dos eventos presentes, e estimule outros a prosseguirem na investigação do tema.

 

Referências

Canetti, E. (1995). Massa e poder (S. Tellaroli, Trad.). São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

Canetti, E. (2004). Auto-de-fé. São Paulo: Cosacnaify.         [ Links ]

Freud, S. (2011). Psicologia das massas e análise do eu (P. C. L. de Souza, Trad.). São Paulo: Complanhia das Letras. (Obra original publicada em 1921).         [ Links ]

Reich, W. (1974). Psicologia de massas do fascismo (J. S. Dias, Trad. a partir da tradução francesa). Porto: Escorpião. (Obra original publicada em 1933).         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Luiz Paulo Rouanet
E-mail: luizrouanet@terra.com.br

Artigo recebido em: 2.12.2013/12.2.2013
Aprovado para publicação em: 9.9.2014/9.9.2014

 

 

* Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo - USP; Professor Adjunto na Universidade Federal de São João del-Rei - UFSJ. Endereço do Curriculum Lattes: http://lattes.cnpq.br/8899144884832219.
1 "Há uma certa diferença entre a visão de Le Bon e a nossa, em virtude de o seu conceito de inconsciente não coincidir inteiramente com aquele admitido na psicanálise. O inconsciente de Le Bon contém antes de tudo os traços mais profundos da alma da raça, que realmente está fora de consideração para a psicanálise individual. [...]." (Freud, 2011, p. 8, n. 2).
2 Esse temor do contato fica bem caracterizado no personagem principal do romance Auto-da-fé, de Canetti, mas que não analisaremos aqui.