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Analytica: Revista de Psicanálise
On-line version ISSN 2316-5197
Analytica vol.7 no.13 São João del Rei Jul./Dec. 2018
ARTIGOS
"A perfeição pertence às coisas que se narram, não às que se vivem": elaboração e sublimação em Primo Levi
"Perfection belongs to the things that are narrated, not to those that are lived": Elaboration and Sublimation in Primo Levi
"La perfection appartient aux choses qui se narrent, pas à celles qui se vivent": Perlaboration et Sublimation chez Primo Levi
"La perfección pertenece a las cosas que se narran, no a las que se viven": Elaboración y sublimación en Primo Levi
Maria Nadeje Pereira BarbosaI; Daniel KupermannII
IPós-doutorado em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da USP, Doutorado em Psicologia e Mestrado em Teoria Psicanalítica pela Universidad Complutense de Madrid (Espanha). Psicanalista, psicóloga
IIProfessor Doutor do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da USP. Coordenador do Laboratório de Pesquisa e Intervenções em Psicanálise (PsiA). Psicanalista
RESUMO
O presente artigo tem como objetivo analisar o trabalho elaborador e os processos sublimatórios na vida e na obra testemunhal de Primo Levi. Parte-se da ideia segundo a qual a atividade de escrita de Primo Levi deve ser inserida com sua dimensão histórico-vivencial, na qual o respeito e a dignidade em relação ao outro foram um dos elementos que possibilitaram a elaboração do traumatismo, o cumprimento do destino pulsional da sublimação e uma intensificação do trabalho de pensamento. Partindo de uma abordagem transdisciplinar entre Psicanálise e teor testemunhal, busca-se demonstrar que a própria atividade ficcional na obra de Primo Levi consiste também num testemunho sobre as atrocidades vivenciadas em Auschwitz. O teor testemunhal de Primo Levi assume o lugar de elemento terceiro, no qual será o componente de reconhecimento e de compartilhamento da vivência concentracionária nos diversos momentos temporais do pós-guerra que balizará o reajuste de sua economia pulsional. Para concluir, busca-se redimensionar a vivência específica de Primo Levi e suas categorias subjacentes a fenômenos catastróficos de nosso tempo e que nos convocam em direção a uma clínica do cuidado no sentido de possibilitar que a linguagem atue sobre o discurso catastrófico, sem borrar sua dimensão factual.
Palavras-chave: Sublimação. Elaboração. Primo Levi. Shoah. Testemunho.
ABSTRACT
This paper aims to analyze the elaborative work and the sublimatory processes in the life and testimonial work of Primo Levi. We start from the idea according to which the writing activity of Primo Levi must be inserted into its historical-experiential dimension, in which respect and dignity in relation to others was one of the elements that enabled the elaboration of traumatism, the fulfillment of sublimation's drive destiny, and an intensification of the work of thought. Starting from a transdisciplinary approach between psychoanalysis and testimonial content, we seek to show that the latter takes the place of a third element, in which the recognition and sharing components of the concentrationary experience in the several temporal moments of the post-war will demarcate the readjustment of its drive economy. To conclude, we seek to resize Primo Levi's specific experience and his categories subjacent to catastrophic phenomena of our time that convoke us in the direction of a clinic of care, in the sense of making it possible for language to act on catastrophic discourse without erasing its factual dimension.
Keywords: Sublimation. Elaboration. Primo Levi. Shoah. Testimony.
RÉSUMÉ
Le présent travail a comme objectif analyser le travail perlaborateur et les procès sublimatoires dans la vie et dans l'œuvre de témoignage de Primo Levi. Nous partons de l'idée selon laquelle l'activité d'écriture de Primo Levi doit être insérée auprès de sa dimension historique-expérientielle, dans laquelle le respect et la dignité relatifs à l'autre furent l'un des éléments qui ont permis la perlaboration du traumatisme, la réalisation du destin pulsionnel de la sublimation et une intensification du travail de pensée. Partant d'un abordage transdisciplinaire entre psychanalyse et contenu de témoignage, nous cherchons à démontrer que ce dernier assume la place de troisième élément, dans lequel ce sera le composant de reconnaissance et de partage de l'expérience concentrationnaire dans les divers moments temporels d'après-guerre qui démarquera le réajustement de son économie pulsionnelle. Pour conclure, nous cherchons à redimensionner l'expérience spécifique de Primo Levi et ses catégories subjacentes à des phénomènes catastrophiques de notre temps qui nous convoquent vers une clinique du soin, dans le sens de permettre que le langage agisse sur le discours catastrophique sans effacer sa dimension factuelle.
Mots-clés: Sublimation. Perlaboration. Primo Levi. Shoah. Témoignage.
RESUMEN
El presente trabajo tiene como objetivo analizar el trabajo elaborador y los procesos sublimatorios en la vida y en la obra testimonial de Primo Levi. Se parte de la idea según la cual la actividad de escrita de Primo Levi debe ser insertada frente a su dimensión histórico-vivencial, en la que el respecto y la dignidad en relación al otro fueron uno de los elementos que han posibilitado la elaboración del traumatismo, el cumplimiento del destino pulsional de la sublimación y una intensificación del trabajo de pensamiento. Teniendo como punto de partida un abordaje trasdisciplinar entre psicoanálisis y teor testimonial, se busca demonstrar que a propia actividad de ficción en la obra de Primo Levi consiste también en un testimonio sobre las atrocidades vivenciadas en Auschwitz. El teor testimonial de Primo Levi asume el lugar de elemento tercero, en el cual será el componente de reconocimiento y de compartimento de la vivencia concentracionaria en los diferentes momentos temporales del postguerra que producirá el reajuste de su economía pulsional. Para concluir, se busca redimensionar la vivencia específica de Primo Levi y sus categorías subyacentes hacia fenómenos catastróficos de nuestro tiempo y que nos convocan hacia una clínica del cuidado en el sentido de que el lenguaje actúe sobre el discurso catastrófico, sin difuminar su dimensión factual.
Palabras clave: Sublimación. Elaboración. Shoah. Psicoanálisis. Testimonio.
Introdução
O testemunho de Primo Levi sobre Auschwitz é uma tentativa incessante de restaurar a memória pelo relato, em que o inefável de sua vivência (Erlebnis) não aparece exclusivamente como transcendente ao homem, mas irremediavelmente a ele imanente. O "Mal radical" (Das radikal Bõse) que um grupo de seres humanos infringe sobre outro grupo de seres humanos se manifesta nas práticas desumanizantes, mas, também, se perpetua perversamente na própria banalização do mal. Contudo, pensar que todo o testemunho é único e insubstituível é se deixar absorver pela literalidade da situação traumática, paralisando toda tentativa de redimensionalização coletiva do vivido em situações de desumanização, e que termina por retroalimentar, por décadas a fio, um nocivo "não querer saber" acerca das atrocidades do passado e do presente.
A narrativa atemporal do testemunho a Primo Levi coabita, com o mesmo estatuto de direito, com a cronologia e pode, no decorrer das décadas, ser ressignificada, rompendo com a ilusão de linearidade de uma cultura que busca se retroalimentar por meio de cosmovisões (Freud, I933[i932]/i985b; Klemperer, 1975). Assim, a escolha dos escritos de Primo Levi afirma o valor do testemunho como leitmotiv de uma reinvenção peculiar de si mesmo a partir de uma experiência catastrófica, e dos limites intransponíveis encontrados. As diversas fontes de experiência de Primo Levi foram se justapondo e se combinando ao serem ressignificadas pela atividade de escrita. O resultado é uma obra testemunhal, na qual se mesclam diversas dimensões do relato: autobiografia, prosa, poesia. Um caleidoscópio de possibilidades semânticas em contínuo desenvolvimento, e sempre em sincronia com a literatura de testemunho, típica do nosso tempo (Felman, 2000).
Consideramos que com os possíveis desdobramentos que assumiu o labor de Primo Levi como sobrevivente de Auschwitz e como escritor de ficção e poeta, poderemos vislumbrar as diversas vicissitudes que perpassaram essa tarefa testemunhal, na qual o relato da realidade dos fatos ocorridos nos campos de extermínio mantém seu estatuto de direito, sem que esse proceder impeça a abertura de fissuras que sublinham o desenrolar fantasmático, por intermédio de seus contos de ficção e poesias. Fissuras em direção ao fantasiar plasmados nos contos, nas quais o próprio Levi se autorrecriminou. Mas, com o passar dos anos, seus contos de ciência-ficção foram se configurando para ele como de fundamento ético, com questões relacionadas com a própria condição humana, e, com isso, puderam se converter em fonte de satisfação. Segundo suas palavras, a confecção de um conto era "uma recuperação do tempo" (Levi, 1998, p. 88). Essas vicissitudes somente se redimensionalizam a partir de uma leitura a posteriori, podendo ser plasmadas no seguinte oximoro:1Vida como motivo de morte.
O recurso ao testemunho de Primo Levi como algo que pode nos ensinar acerca da elaboração de vivências traumáticas e de sua articulação com outros processos psíquicos, entre os quais a sublimação, não foi aleatório. Surge da necessidade de, por um lado, analisar os paradoxos sincrónicos e diacrônicos que suscitam a escrita na vida e na obra de Primo Levi, nos quais parece possível entrever a posta em questão de uma dinâmica pulsional singular no enfrentamento do traumático. Por outro, decorre da necessidade de esboçar a plasticidade dessa mesma escrita, que se converte, no decorrer das décadas de sua vida como exdeportado, não somente como um espaço de criação, mas de recriação de sua vivência nos campos de extermínio. Espaço privilegiado, na medida em que a potência de sua escrita pode transmitir, mesmo de forma parcial (como o é todo testemunho), a verdade do testemunho (Semprun, 1996, p. 25).
O destino do traumatismo apontou a um devir repleto de potencialidades elaboradoras e sublimatórias a partir de recursos simbolizatórios prévios. Mas, também marcou uma lacuna: o ato suicida de Levi revela que algo da cena traumática não somente permaneceu em sua memória, mas também foi se reatualizando nos tempos de pós-guerra (Seligmann-Silva, 2008).
Mesmo assim, a atividade de escrita em Primo Levi vai muito além de seu marco tradicional, ou seja, no aqui e agora da produção escrita, diante da folha de papel em branco e na solidão que supõe o ato de escrever. Nesse sentido, pretendemos sustentar a hipótese segundo a qual a atividade de escrita de Primo Levi deve ser inserida na dimensão histórico-vivencial, na qual o respeito e a dignidade em relação ao outro parece ser o componente fundamental: foram esses um dos elementos que possibilitou a elaboração do traumatismo, o cumprimento do destino pulsional da sublimação e uma intensificação do trabalho de pensamento. Sendo assim, sua atitude suicida não ofusca um percurso como intelectual e escritor marcado por grandes conquistas.
Método
Utilizar como recurso o testemunho de Primo Levi sobre sua experiência concentracionária, demanda abordarmos a questão metodológica. Butler (2017, p. 194), em detrimento do que dizem os revisionistas da Shoah,2 assinala que é possível que "os meios de preservação e transmissão dos eventos sejam aqueles que a linguagem atua sobre o referente". Isso posto, a autora sugere o alcance do conceito psicanalítico de "elaboração" (Ducharbeiten) no sentido de permitir que a linguagem atue sobre os eventos do passado, mas não sem realizar duas advertências. Primeira: para resguardar o referente, "deve-se agir sobre ele" (p. 194), ou seja, influenciá-lo e transformá-lo. Segunda: para que a realidade dos fatos do passado seja comunicada, a "linguagem deve agir sobre os fatos" (p. 194) para permitir sua apreensão como realidade.
Nessa mesma ordem de considerações, Seligmann-Silva (2000) resgata a reflexão de Dominique Le Capra, que defende uma historiografia iluminista, mas assentada na Psicanálise (que une o trabalho da memória - para ele é mais "emocional" - ao da história, "que é mais crítico"), e que teria como objetivo a Ducharbeiten, a elaboração. Essa colaboração mútua pode encorajar a Psicanálise a penetrar de maneira consequente no estudo de determinados fenômenos da cultura. Na mesma linha, o estudo acerca de catástrofes coletivas e dos testemunhos derivados dessas experiências pode ser útil e proveitoso ao psicanalista no desenvolvimento de uma modalidade de escuta ancorada no caso de sérios traumatismos e que convocam uma ética do cuidado, na qual o analista se insere não somente como outro da dupla, mas também como sujeito histórico, ou seja, que afeta e é afetado pela cultura da qual pertence.
A partir dessas considerações, entramos na discussão acerca de "escrita sobre si", plasmada sob a forma de testemunho, autobiografia e diário. Não existe um acordo entre os autores sobre essas três modalidades narrativas. Para o propósito que ora nos interessa, resgatamos a reflexão de Seligmann-Silva (2010) quando introduz o conceito de "teor testemunhal". Para Seligmann-Silva (2010), o teor testemunhal está presente em toda e qualquer produção cultural (incluindo o diário, a autobiografia e o próprio testemunho), e parece ser um termo mais apropriado do que falar em gênero de "literatura de testemunho" (p. 20). Desse modo, o processo de ficcionalização, inerente a toda narrativa, encontra pontos de desenvolvimento tanto nas lembranças da catástrofe, que aparecem de forma vívida e intensa, como na atividade fantasmática, que pode se desprender do exercício contínuo da elaboração do vivido, se convertendo em conquistas sublimatórias.
Assim, convém, sublinhar um importante adendo. Investigar as potencialidades elaboradoras e sublimatórias de Primo Levi a partir de seu testemunho consistirá em estabelecer pontos de articulação e desenvolvimento entre seu testemunho e os elementos singulares que se desprendem deste e que podem nos instruir acerca do trabalho elaborador e do processo sublimatório neles em jogo. Potencialidades que sempre devem ser analisadas em relação com a vivência traumática de Levi em Auschwitz. Posicionamento que demanda uma perspectiva transdisciplinar, entre Psicanálise e teor testemunhal, apostando num exercício contínuo de permitir que o testemunho de Primo Levi fale por si mesmo, sem realizar traduções. Ao permitir que a obra testemunhal de Primo Levi fale por si mesma, nos depararemos com a irrupção de elementos de grande relevância, mas que até então haviam passado despercebido, e que podem servir de mola propulsora para o entendimento das subjetividades submetidas à situações de desumanização.
O testemunho e seus desdobramentos
Consideramos que as lembranças do traumatismo vivido não se plasmam exclusivamente na atividade testemunhai propriamente dita de Primo Levi, mas estão também presentes em sua prosa e em sua poesia. Assim, as lembranças do traumatismo e as fantasias derivadas das lembranças revelam a busca incessante de Levi em articular realidade psíquica e realidade material. Nesse sentido, a própria produção ficcional de Levi pode ser considerada um testemunho. Ainda mais: em sua produção ficcional não somente aparecem temáticas relacionadas com o teor testemunhal, mas parece ser um lugar privilegiado para fazer trabalhar os elementos que pertencem à dimensão do indizível que supôs sua vivência nos campos de extermínio. Como o próprio Levi (2002, p. 173) intenciona, o "relato do sobrevivente é um gênero literário".
Como mencionamos, a necessidade de testemunhar de Primo Levi, como uma tarefa que o escritor italiano e judeu se autoincumbiu ao longo de sua vida como exdeportado, não se refere exclusivamente a suas vivências diretas como deportado, mas também como escritor de ficção e poeta. No fim do ano de 1981, Levi publica sua terceira coleção de contos intitulada Lilith (2005), confeccionada com relatos sobre Auschwitz e contos de ficção científica.
Determinadas temáticas que buscam dar conta dessa problemática são revisitadas sob uma nova roupagem num de seus contos intitulado "A besta no templo". Eis aqui seu conteúdo: Numa viagem de turismo, o narrador e mais um grupo de turistas aceitam o convite para visitar o Templo dos Treze Mártires, local onde se encontrava o pátio da Besta. Lá, notaram um "fenômeno irritante", difícil tanto de ser descritos em palavras como para explicar entre si o que viam. Em definitiva, "um desafio a nossa razão: uma coisa que não tinha direito de existir, e no entanto existia" (Levi, 2005, p. 416). A descrição do narrador Levi para esse fenômeno é a seguinte: "os intervalos se tornavam colunas e as colunas se tornavam intervalos, e através desses intervalos se percebia o opaco da laguna" (p. 416). Nesse cenário habitava uma besta, que não tinha como sair. Fora do templo, algumas pessoas a estavam esperando: "Quando ela sair, será morta e devorada e então o mundo ficará curado: mas a besta não sairá nunca" (p. 417).
Pois bem, o potencial elaborador de Levi dá mostras de que ao redor do "núcleo traumático" (Janin, 1996) não se aderem exclusivamente lembranças diretamente vinculadas ao traumatismo, mas que essas lembranças apresentam a plasticidade de se transformarem em fantasias, que, por sua vez, também vão se agregando ao redor do núcleo traumático num movimento perpétuo de ir e vir: de lembranças a fantasias, de fantasias a lembranças, do testemunho para a ficção, da ficção para o testemunho, e tudo isso já é pensamento, já é obra. Com isso, o próprio fantasiar presente nesse conto de ficção pode ser entendido como uma elaboração, devido ao fato de que nesses casos de violência extrema sofrida nos campos de extermínio as fantasias podem estar, inclusive, ausentes e, com isso, obstruindo o devir da realidade psíquica.
É possível vislumbrar deslizamentos semânticos entre o "fenômeno irritante", de seu conto de ficção, difícil de ser descrito em palavras, e a questão da insuficiência da linguagem. Ambos dão mostras de uma tradução imagética, da qual está em jogo uma temporalidade subjacente à escrita, que oscila de modo alternante entre a evocação do passado e sua reavaliação desde a perspectiva da vida atual de seu autor (Nachin, 1998), e aponta para diversas possibilidades criadoras.
Na mesma linha, um fenômeno que é um "desafio à razão: uma coisa que não tinha direito de existir, e, no entanto, existia", no qual "os intervalos se tornavam lacunas e as lacunas se tornavam intervalos", reflete centelhas relativas ao testemunho de Primo Levi sobre a "zona cinzenta", ou seja, um microcosmo imbricado e estratificado presente em Auschwitz, na qual os prisioneiros-funcionários se atacavam entre si e colaboravam com os soldados. Em definitiva, uma "constelação" real, segundo as palavras de Levi, que aponta à decomposição do humano, e que, apesar das possíveis reversibilidades e deslocamentos entre os elementos do par dicotômico, vítimas e verdugos, deve ser sempre entendida desde a perspectiva sustentada por Levi, ou seja, "sem borrar as fronteiras entre vítima e verdugo" (Mate, 2011, citado por Padilla, 2014, p. 324).
Nesse conto, aparece outro componente: através das colunas e dos intervalos, "se percebia o opaco da laguna". A partir do que analisamos do referido conto e seus desdobramentos, poderíamos entender o opaco da laguna como as cosmovisões que retroalimentam falsas ideologias às expensas do sujeito, terminado por engendrar o sub-humano, como os prisioneiros do Sonderkommando3(Venezia, 2007) e os Muselmànner,4a "testemunha integral" do Lager5. Como adverte Levi em 1986, "conservar rígida e inteligentemente o próprio sentido político frente às falsas ideologias" (1998, p. 192).6
Contudo, o conto também deixa entrever um limite da elaboração: a besta nunca sairá do templo e, portanto, o mundo nunca será curado. Com efeito, os processos elaboradores sempre deixarão um remanente que não se submete a nenhum tipo de tradução. No caso de Primo Levi, esse resto estará ineludívelmente ligado ao núcleo traumático, per se inacessíveis, o qual serão reativados num determinado momento de sua vida, intensificando os sentimentos de culpa e vergonha e produzindo um efeito devastador.
Assim, o conto termina por transmitir o que não foi possível dizer na tarefa testemunhal do fato catastrófico (Kupermann & Barbosa, 2016). Na continuação, analisaremos essas três problemáticas que surgiram a partir da análise do conto "A besta no templo", a saber, a questão da insuficiência da linguagem, o conceito de zona cinzenta e a temática da vergonha e da culpa, vertendo-as ao universo testemunhal proposto pelo pensamento de Primo Levi.
Discussão
A necessidade visceral de Primo Levi de testemunhar e transmitir sua experiência vivida nos campos de extermínio encontrou na palavra um refúgio. Mas, ao longo de sua vida como ex-deportado, Levi (1998) termina por reconhecer que se trata de um "instrumento insuficiente". E explica: "Nossa linguagem é humana, nasceu para descrever coisas às dimensões humanas. Se desfaz, é inadequada (o são todas as linguagens, e o serão sempre) quando se trata de contar o quê ocorre" (p. 166).
Em Se isto é um homem? (1958), ao relatar o processo de desumanização que supunha a vida em Auschwitz, Levi (1958) reconhece que "a nossa língua carece de palavras para exprimir esta ofensa", e traduz o vivido: "chegávamos ao fundo". Apesar desse cenário de destruição, "teremos de encontrar dentro de nós a força para fazer com que ... algo de nós tal como éramos ainda sobreviva" (p. 25).
Apesar da crença na insuficiência da linguagem para descrever o horror sofrido, Levi menciona a necessidade de "força" para a sobrevivência; força que se manifestou tanto nos campos da morte como nos tempos do pós-guerra. Como assinala Cremieux (2000), o que contribui para a necessidade de sobrevivência é a possibilidade de estabelecer enlaces entre as ações passadas e as ações presentes, ressignificando o passado sob a luz do presente, no qual o vínculo com o outro é fundamental. A atividade de escrita foi uma grande aliada para sua sobrevivência, na medida em que permitiu a redimensionalização do traumatismo vivido. Na mesma linha, essa força também encontrou na escrita seu ponto de escoamento: o embate psíquico como resultado do traumatismo foi filtrado para uma escritura clara e concisa e livre de impurezas, como Levi próprio intencionava.
A descrença no recurso da linguagem como forma de testemunho está também presente na última obra publicada durante a vida do intelectual turinês, Os Afogados e os sobreviventes, de 1987. Levi (2004, p. 73) confessa que sua tarefa testemunhal nada mais é que uma "narração de coisas vistas de perto, não experimentadas pessoalmente" e que somente os que pereceram, os muçulmanos, são as autênticas testemunhas. E continua: "A demolição levada ao cabo, a obra consumada, ninguém a narrou, assim como ninguém jamais voltou para contar a sua morte". Apesar disso, justifica sua necessidade de testemunhar "por um impulso forte e duradouro".
Em suas entrevistas, Levi (1998) se define como um centauro: é precisamente esse fluxo pulsional indomável que persiste nele, permitindo se lançar num labor incansável de testemunha, com o objetivo de que as atrocidades vividas não mais se repitam no futuro. Pode-se considerar que esse empreendimento, na qualidade de intelectual e escritor, numa tarefa que tem como visada o devir é, efetivamente, uma sublimação.
Em Os Afogados e os Sobreviventes, Primo Levi (2004) dedica um capítulo sobre sua reflexão acerca de uma "constelação", que destaca o estado de hibridismo da condição de prisioneiro-funcionário, e que ele conceitualizou como "zona cinzenta". "É uma zona cinzenta, com contornos mal definidos, que ao mesmo tempo que separa e une os campos dos senhores e dos escravos. Possui uma estrutura interna incrivelmente complicada e abriga em si o suficiente para confundir a necessidade de julgar" (2004, p. 36)
O próprio Levi (2004, p. 41) reconhece que já se discutiu muito acerca dessa troca de papéis entre opressor e vítima. Com efeito, até os dias de hoje muitas reflexões foram realizadas sobre esse "mimetismo" (Levi, 2004, p. 36) entre vítima e verdugo, tendo como pano de fundo a ideia introduzida por Levi de "zona cinzenta". Contudo, ocorre que nem todas essas teorizações foram bem-sucedidas no sentido de captar a essência do interjogo do par dicotômico, vítima e verdugo, sob a óptica de Primo Levi.
Recentemente, Padilla (2014) defendeu sua tese de doutorado na Universitat de Barcelona dedicada exclusivamente ao estudo da zona cinzenta, de Primo Levi. Padilla considera a compreensão do intelectual judeu e italiano sobre a zona cinzenta como um conceito jovem e com o mesmo valor heurístico que a reflexão de Hanna Arendt (2013) sobre a "banalidade do mal", marcando diferença entre ambos. Esse autor considera a zona cinzenta como um conceito que carrega um forte conteúdo vivencial, uma forma para combater o esquecimento, e que tem o olhar voltado para "ideologias que tendem a diminuir o alcance da destruição operada pelo nazismo" (2014, p. 7). Tais teorizações, inclusive as mais bem-intencionadas, como as de Cavani, de Agamben, assim como de alguns teóricos do trauma (Caruth e Felman), terminam por borrar a essência da reflexão proposta por Levi sobre a zona cinzenta: a partir das mais variadas reversibilidades e deslocamentos do par dicotômico, vítima e opressor, terminam, no caso específico da Shoah, ora considerando que todos somos ao mesmo tempo vítimas e carrascos, ora produzindo o deslocamento e até o desparecimento da figura da testemunha; posicionamentos absolutamente contrários à reflexão proposta por Levi, que lutou durante toda sua vida como exdeportado contra o negacionismo e o revisionismo, apontando para um novo entendimento do humano depois de Auschwitz. Como bem testemunha Levi (2004, p. 41),
Não entendo muito do inconsciente ou do profundo, mas sei que poucos entendem disso e que esses poucos são mais cautelosos: não sei, e me interessa pouco saber, se em meu profundo se aninha um assassino, mas sei que fui vítima inocente, e assassino não; sei que os assassinos existiram, não só na Alemanha, e ainda existem, inativos ou em serviço, e que confundi-los com suas vítimas é uma doença moral ou uma afetação estética ou um sinal sinistro de cumplicidade; sobretudo, é um precioso serviço prestado (intencionalmente ou não) aos negadores da verdade.
Colocar palavras naquilo que seria ocupado pelo inefável para descrever o processo de desumanização ao qual fora submetido consistiu no cerne das potencialidades sublimatórias de Levi, o qual lhe permitiu plasmar uma série de princípios organizadores sobre sua vivência em Auchwitz, mesmo reconhecendo que toda ação humana encerra um "núcleo de incompreensão" (2002, p. 94).
Contudo, no contexto dos anos 1980, a intensidade do retorno do real traumático, efeito da experiência de Primo Levi no Lager, aparece como um excesso de carga que o intelectual turinês não logra tramitar totalmente, intensificando os sentimentos de culpa e vergonha. Vergonha "de estar vivo no lugar do outro"; culpa por ter sobrevivido à catástrofe, em detrimento aos que morreram, os "melhores", dado que pereceram "por causa de seu valor" (Levi, 2004, p. 71). Sentimentos que o envenenavam, tal e como se vislumbra na poesia "O Sobrevivente", escrita em 1984: "Desde então, numa hora incerta/ Aquela pena regressa/ ... /Atrás! Deixe-me sozinho pessoas submergidas, /Ninguém morreu no meu lugar. Ninguém./ ... /Regressem a vossa névoa. /Não é minha culpa se vivo e respiro /Se como, bebo, durmo e ando vestido" (Levi, 1997, p. 88).
Escrita e vida parecem, num determinado momento de sua vida como exdeportado, não mais em sincronia: o mundo que a Shoah representa aparecerá, como um mundo à parte, com leis próprias e irremediavelmente desgajado do mundo secular.
A escrita de Primo Levi: a necessidade de contar e o papel do outro
Na qualidade de deportado, Levi registrou de modo passivo a percepção de sua vida nos campos de concentração. O universo concentracionário e exterminacionista, como seu "antissemitismo virulento" (Goldhagen, 1996, p. 14; Traverso, 1997), que situava os judeus como inimigos em potencial, inserido num contexto determinado da sociedade alemã e encontrando em Hitler seu líder, buscou levar a cabo o nefasto projeto de "solução final" dos judeus. Vontade de matar os judeus ou de erradicar o conceito de ser humano (Arendt, 2013), que converteu a Shoah em memória paradigmática sobre uma violência cega, e afetando o entendimento da cultura ocidental acerca do que é o humano. Contudo, "é necessário narrar ante o emudecimento da língua" (Cohen, 2006, p. 69), pois foi esta que os nazistas buscaram silenciar, como uma forma de não deixarem marcas na realidade (Suarez, 2014). É necessário abrir o caminho para a pulsão e converter a escrita como afirmação de vida, de verdade e de justiça.
A necessidade visceral de "contar aos outros", de "tornar os outros conscientes" (Levi, 1958, p. 9) das atrocidades ocorridas em Auschwitz, assim como a tentativa de redimensionalização de sua vivência nos campos da morte para situações catastróficas do pós-guerra tendo como meta um devir menos tortuoso, converteu-se no objetivo de Primo Levi no decorrer de toda sua vida como ex-deportado. Testemunhar "era a meta pela qual valeria a pena viver. Não viver e contar: viver para contar" (Levi, 2002, p. 270).
As operações de elaboração em Primo Levi, ou seja, a passagem de uma moção pulsional em testemunho se delineiam como uma forma de canalizar o fluxo libidinal indomável, mas calculado quase que meticulosamente. Como ele mesmo reconhece: escrever "com furor e com método" (2002, p. 41) sua vivência concentracionária. O trabalho de elaboração é também um trabalho de síntese: "O caminho que vai da mente ao papel não passa pela mão, mas que dá largas voltas através de quem sabe quais órgãos" (Levi, 1998, p. 140). Levi convoca umas imagens interiores vívidas do traumatismo, logrando plasmá-las em diferentes registros, revelando a plasticidade do circuito da pulsão, possibilitando a elaboração do traumatismo.
Com efeito, a escrita propiciou a Levi, durante boa parte de sua vida como exdeportado, uma autêntica restauração daquilo que pertencia à dimensão do inefável, apesar do fato de que algo dessa mesma ordem insistia continuamente requerendo elaboração. Nesse sentido, a escrita foi o lugar por excelência de redimensionamento do traumático, ressignificando profundamente suas experiências no Lager, se perfilando como fonte de prazer e realização.
Mesmo tratando-se de experiências carentes de um suporte representacional que possibilite torná-las assimiláveis, Levi, mediante a atividade de escrita, parte do campo representacional que dispõe, como a dicotomia entre vencedores e vencidos, e introduz uma nova escala de valores, a "zona cinzenta". Sua elaboração vai além de pautar-se em representações conhecidas, nomeando uma nova escala de valores que nos oferece sendas para uma análise crítica sobre o estatuto do humano, seja o de vítima, seja o de verdugo, em situações de desumanização.
Uma psicanalista como Mijolla-Mellor (2009) assinala que sublimação e elaboração caminham juntas, já que em ambas se delineia um trabalho do ego: a sublimação como um destino e a elaboração como uma canalização de energia. Nesse sentido, a elaboração pode ser entendida como um subprocesso da sublimação. A partir de agora, buscaremos ensaiar as sendas que permitam vislumbrar o processo de escrita em Primo Levi em estreita conjunção com o fenômeno Auschwitz, e sua questão como sujeito.
Por um lado, seu interesse pela química não se limitou ao seu trabalho na fábrica, mas aponta a uma discursividade assentada num certo racionalismo científico, que se reflete numa escritura clara, precisa e simétrica. Por outro lado, seu gosto pela literatura também evoca o valor que assumia para ele o relato oral do Piemonte, sua região de origem, e a de seus antepassados, para nomear o indizível.
O testemunho sobre Auschwitz, que Levi considera sua "segunda universidade" (1998, p. 132), se configurou como a "matéria prima" (1998, p. 188) para se tornar escritor, muito embora confessa sofrer, às vezes, pelas coisas que escrevia devido à insuficiência do instrumento da linguagem (1998, p. 166).
Esse ofício de escrever apresentava como premissa básica a necessidade "entrar, captar, conquistar ... aos leitores" (1998, p. 125). Com efeito, o reconhecimento sobre a necessidade de satisfazer o leitor/espectador era para Levi ponto determinante. "Eu não escrevo para mim, ou se faço destruo o que escrevi. Não acredito que seja justo escrever para si mesmo, é desperdiçar o tempo" (1998, p. 161). Uma estima e sensibilidade em relação ao leitor, apesar do fato de que buscava de maneira veemente se desprender de quaisquer tipos de idealizações ao seu respeito (1998, p. 167). Tratar-se-ia de "decantar de canalizar... de conduzir o espectador a uma conclusão a um julgamento, sem lhe gritar nas orelhas" (2002, p. 59).
Sendo assim, esse trabalho elaborador do traumatismo vivido em Auschwitz, no qual o outro assume um papel determinante, teve como ponto de partida sua atividade de escrita. Os afetos decorrentes das repercussões de sua obra, a forma em que seu pensamento era recebido, sempre em estreita correlação com a própria repercussão da Shoah nos diversos momentos temporais do pós-guerra, foram determinantes para a sublimação do traumatismo vivido.
As ressonâncias subjetivas diante da repercussão de sua obra assumiram uma significação a posteriori, sempre em consonância com o círculo de leitores e admiradores que suas obras estavam tendo. Isso revela que a importância do leitor não somente era para Levi determinante, tal como ele mesmo reconhece, como também possibilitou que se completasse o circuito de suas sublimações, dado que esse compartilhamento afetivo se perfila como um processo estreitamente vinculado à sublimação, tal como adverte Kupermann (2010). Com efeito, o ego que logra religar os acontecimentos traumáticos, ressignificando e redimensionalizando o traumatismo vivido no devir do tempo é um ego que não foi seriamente perturbado em decorrência do traumatismo. Nesse sentido, a sublimação está relacionada ao investimento de um tempo futuro e ao trabalho para conseguir isso (Mijolla-Mellor, 2009) - e o trabalho de elaboração sobre as atrocidades vividas em Auschwitz culminou numa "apropriação subjetiva da experiência psíquica" (Roussillon, 2008, p. 860).
O compartilhamento afetivo, resultado da sublimação do traumatismo, se perfila tanto no reconhecimento de Levi sobre o respeito e a dignidade da figura do leitor/espectador como no reconhecimento que a cultura de seu tempo nutria sobre seu legado testemunhal. Nesse sentido, a sublimação, como um dos destinos possíveis da pulsão, envolveria a articulação entre o intrapsíquico e intersubjetivo; movimento das pulsões que mobiliza o ego, inclusive sua porção inconsciente, numa modalidade de intercâmbio com o outro na qual a visada seria a construção de um elemento terceiro (Ogden, 2005), no caso específico, o teor testemunhal.
Esse elemento terceiro, o teor testemunhal, se configurou como "terceiro vivo" (Gerson, 2009) durante décadas a fio, ou seja, como elemento fonte de trocas afetivas e de compartilhamento da experiência; foi propiciador de sublimações sem fim, na medida em que conduziu à refusão das pulsões, afetando em diferentes níveis o outro e o sujeito, no caso Levi, e oferecendo ao sobrevivente Levi recursos simbólicos para contínua transformação e expansão de si mesmo. Assim, se ofereciam condições para o estabelecimento de continuidade entre sua realidade psíquica e a realidade material, assim como a integração destas nos campos de sua experiência intersubjetiva.
Entretanto, outro elemento convém ser abordado. Esse trabalho elaborador efetuado por Levi, no qual a dimensão da cultura de seu tempo assume uma função determinante, também se deparou com uma modalidade de repetição caracterizada pelo retorno do real traumático e que serviu de obstáculo para a simbolização, impossibilitando a integração dessas experiências traumáticas pelo ego. Três ordens de considerações serão tecidas a esse respeito, relacionadas com o contexto dos anos de 1980.
Primeira: sabemos que a tarefa de testemunha, que Levi se autoincumbiu, lhe estava custando muito, ao fazer isso entre os jovens e entre seus próprios contemporâneos, que, em entrevistas com Levi, buscavam ressituar o fenômeno da Shoah, desde uma perspectiva alheia à vivência específica de Levi em Auschwitz, sem levar em consideração as modelações que a experiência no Lager foi tomando para Levi no decorrer das décadas.7
Segunda: o ponto culminante das teses negacionistas e revisionistas, em particular a de Faurisson, negando, com parcos recursos retóricos, estilísticos e científicos, o genocídio de seis milhões de judeus (Vidal-Naquet, 1987). Assassinato da memória, da qual Primo Levi reagiu de forma contundente.
Terceira: diante da política do Estado de Israel, em particular, após a invasão do Líbano em 1982, Primo Levi (2002, 1998), ao mesmo tempo em que procurava esquivar-se de entrevistas a esse respeito, quando o fazia era contundente a ponto de considerar a necessidade de que o centro gravitacional do judaísmo se deslocasse de Israel e voltasse "a nós, os judeus da Diáspora, que temos o dever de recordar aos nossos amigos israelitas a tradição judia da tolerância" (1998, p. 232). As repercussões desse tipo de posicionamento produziam muita polêmica, sobretudo entre os próprios amigos de Levi, também ex-deportados, a maioria contra o intelectual turinês, lhe causando um efeito devastador.
Anacronismos do leitor/espectador, assim como da cultura de seu tempo, que conduziram Levi ao questionamento de que não tinha sido capaz de transmitir sua vivência em Auschwitz. Na mesma linha, Levi se aposentou nos anos 1980, momento em que se sentiu "nascer pela segunda vez" (1998, p. 76) para dedicar-se à atividade de escrita; porém, a nova condição não lhe estava oferecendo o resultado esperado, pois passou a escrever menos e com menos intensidade. Ou seja, nesse período em que Levi entende que não estava conseguindo escrever como gostaria, reaparece a descrença no recurso da linguagem como forma de testemunho. Nesse sentido, todos esses elementos lhe demandaram um considerável reajuste em sua economia pulsional, assim como o remanejamento das instâncias ideais, retirando todos os benefícios das elaborações já alcançadas e produzindo um retraumatismo. Como ele menciona em A Tabela Periódica (1994, p. 125), "a perfeição pertence às coisas que se narram, não às que se vivem".
Levi logra elaborar parcialmente essa experiência inédita vivida nos campos, mas não sem culpa e vergonha. Culpa pelo entendimento de que teve "privilégios" como deportado. Vergonha por ser parte integrante dessa zona cinzenta, do inefável. Ao mesmo tempo em que consegue oferecer uma metáfora, a "zona cinzenta", que revela uma tradução imagética e mais distanciada dos fatos ocorridos no Lager, mostra, também, o teor testemunhal, a metonímia, no qual a atmosfera dos acontecimentos narrada é tão intensa que parece se desenvolver no tempo presente (Seligmann-Silva, 2010, p. 5). Green (1993, p. 219) adverte que o caráter destrutivo da vergonha é maior, não admitindo nenhum tipo de reparação: "a culpa se pode compartilhar, a vergonha não se compartilha". Com isso, a angústia termina por cortar a palavra, reativando um luto que aponta a uma ferida narcísica infringida pelo traumatismo que jamais foi superada, fazendo o corpo falar.
Afetado pelo escândalo fora de tempo, o qual reforça o componente inefável das emoções em estado bruto, Levi é ameaçado em sua integridade e impedido por um além do princípio de prazer de realizar o trabalho de elaboração. Partindo de Ferenczi, Bertrand (1990) assinala que, apesar da angústia (sempre pós-traumática) apresentar uma função traumatolítica, tornando o traumatismo suportável e permitindo sua tramitação consciente, ela não é uma forma de saída mais adequada. Será a elaboração a verdadeira via para converter o traumatismo em representação em longo prazo.
Assim, a sombra da cultura, com suas ideologias obscuras e massacrantes caíram sobre Levi, produzindo em retraumatismo. A redimensionalização de sua experiência nos campos de extermínio, advinda do trabalho elaborador e das conquistas sublimatórias decorrentes dele alcançado no decorrer da sua vida e de sua obra, cai por terra, impedindo toda possibilidade de continuidade. Constelação que se situa muito próxima ao que Mijolla-Mellor (2010) postula sobre a "artimanha da civilização": o resultado das sublimações individuais, que constitui o edifício sociocultural, recai sobre o sujeito como uma exigência oposta ao movimento da pulsão, impondo renúncias e frustrações.
O teor testemunhal passa a se configurar como a perda abrupta do terceiro vivo, precisamente quando a necessidade de compartilhamento afetivo é ignorada, reativando o traumático e a condenação de investir e viver identificado com o objeto perdido, o qual obtura a subjetividade na busca de continuidade psíquica em relação ao outro. Com efeito, a necessidade de amor tem prioridade sobre qualquer pulsão. Com a perda da função de mediação do terceiro vivo, a relação de Primo Levi com a perda assume outro matiz, e o teor testemunhal se converte num "terceiro morto" (Gerson, 2009): os movimentos inclusivos e expansivos do ego em relação ao outro são frustrados e se instaura a introversão da libido, traduzida pelo sentimento de Levi de não ter sido compreendido no dever de sua vida, assim como na crença de sua insuficiência de recursos em sua tarefa de transmitir o testemunho dos campos da morte, e que culmina com o ato suicida.
Não ocorreu somente a limitação das possibilidades sublimatórias de Levi, mas também sua reconfiguração, a ponto que podemos conjecturar uma "dessublimação" (Marcuse, 2015; Sitegler, 2006),8 ou seja uma "sublimação negativa" (Stiegler, 2006, p. 79) que desvia a pulsão, convertendo-a em mortífera. Com efeito, no interjogo pulsional entre Eros e Thânatos, a sublimação, sem o compartilhamento afetivo, tal e como ocorreu num determinado momento da vida de Primo Levi, traz em cena a pulsão de morte, como sua tendência intrínseca, que de certa maneira conduz a vida para uma dinâmica conservadora, sua decomposição, em que o superego se automatiza em relação ao ego e ao id, convertendo-se em tirânico e sabotador, numa "pura cultura da pulsão de morte" (Freud, 1923/1985a). No caso de Primo Levi, a dessublimação produziu a "clivagem do colapso tópico" (Janin, 1996), a reativação do luto, assim como a desfusão das pulsões, limitando o seu fluxo pulsional indomável em direção ao exterior; agressividade que se perfilava como condição necessária para a retomada do processo sublimatório (Mijolla-Mellor, 2010). O potencial mortífero do superego encontra seu ponto culminante no retorno da agressão sobre si próprio no ato suicida; sobredeterminado.
As considerações expostas antes sobre a forma em que contexto dos anos de 1980 incidiram na vida e na obra de Primo Levi nos permite também conjecturar a entrada em cena de formas de dessublimação da cultura de seu tempo, sobretudo com as práticas e teses negacionistas, colocando em cena uma traumatogênese do social (Kupermann, 2016) a partir da Shoah, que não foi cicatrizada até os dias de hoje.
Em sua última entrevista, concedida a Giovanni Tesio, no fim de janeiro de 1987, e publicada muito recentemente, Primo Levi (2016, p. 86) nos conta sobre seu amor às montanhas, que, segundo suas palavras, era a forma encontrada por ele, já na universidade, nos anos de 1940, de compensar sua inibição em seus relacionamentos interpessoais. Encontrando em Sandro Delamastro9 grande conhecedor das montanhas e da vida que tanto Levi almejava conhecer em tempos de leis raciais, uma fraternidade amizade de juventude, Levi menciona que essas "expedições imprudentes" eram a sua verdadeira transgressão.
Conclusão
A Shoah produziu a estagnação e o retrocesso da cultura em direção a formas atrozes de funcionamento, nas quais a linguagem escrita é insuficiente para descrevê-las. Tratou-se de coincidência e complementariedade entre instinto e pulsão, colocando em cena dimensões do humano que sequer conhecíamos, destruindo a filiação dos corpos, assim como a própria memória, sem levar em consideração o devir do sujeito histórico; constelação da qual é preciso marcar rupturas incessantemente. Contudo, a despeito de possíveis reversibilidades e deslocamentos entre vítimas e verdugos (Friedlander, 2009) realizadas no decorrer do pós-guerra com a finalidade de redimensionar e entender o humano depois de Auschwitz, o entendimento psicanalítico em relação à "identificação com o agressor" (Ferenczi, 1932[1933]/1981) supõe bordejar o circuito da pulsão sem que esse proceder ofusque a existência factual de vítimas e verdugos, tal e como Levi propôs com a sua vivência sobre a zona cinzenta. Dever da memória contra o esquecimento, e que não termine sendo mais uma manifestação de práticas negacionistas e revisionistas.
A partir dos desenvolvimentos propostos por Bidusa (2010), que utiliza o conceito de zona cinzenta em relação ao espectador, podemos deslocar a vertente da zona cinzenta do Lager, com as devidas delimitações e precauções mencionadas anteriormente, para a surdez da cultura, seja a do tempo de Levi, seja a atual.
De modo que a reflexão de Primo Levi sobre a zona cinzenta assume sua devida potência e alcance atual. Nela, o perdão não se refere exclusivamente a um processo de inversão moral de lógicas do par dicotômico vítima e verdugo no decorrer do tempo, de tal modo que o verdugo seja colocado no lugar da vítima e sofra as consequências dessa posição, tal e como postulou Jean Améry (2013), "moralizando a história" (Mattioda, 1998), mas apontando a manutenção da tópica do instinto. A partir de uma possível reversibilidade da zona cinzenta, poderíamos entender o perdão em Levi como se inserindo num processo de mudança de tópicas, de alcance moral, continuamente redimensionadas no devir do tempo, em que o imperativo fundamental seria o de não permitir que a memória seja manipulada pelos verdugos, seja os do tempo de Levi, seja os da atualidade, borrando as marcas da violência, seja negando-a, seja relativizando-a. Mas também encontrar na compreensão do outro a mola que propiciaria a humanização da condição de vítima, "moralizando a memória" (Mattioda, 2013). Esse pode ser um dos caminhos para a reintrodução da tópica da pulsão, mas mantendo a lógica do par dicotômico para situações que envolvem desumanização do sujeito em situações de violência.
O ato suicida de Levi, sobredeterminado, também dá mostras de uma atitude reivindicativa e racionalista ao extremo no sentido de evitar ser submergido por uma cultura alienante, muito embora a forma escolhida, suicidar-se, seja testemunha do fracasso dessa atitude. Talvez, seja esse o entendimento de Chiantarretto (2001), quando postula que o ato suicida de Levi constitui uma vitória (e não falta) da subjetivação.
De todas as maneiras, o legado de Primo Levi é atual,10 permite ser redimensionado para situações catastróficas do presente, e oferece luz para entender o humano depois de Auschwitz. Luzes e sombras, vida e morte, dos quais a obra de Primo Levi contribuiu em oferecer entendimento, mas que ainda temos muito trabalho para metabolizar o que de enigmático se desprende dessas experiências catastróficas, assim como do tratamento às vítimas de situações desumanizantes em geral. Tarefa que requer uma ética do cuidado na qual a Psicanálise tem muito a aportar, mas, é preciso reconhecer, também tem muito a extrair.
Com esse percurso transdisciplinar entre Psicanálise e teor testemunhal foi possível ressituar o conceito de sublimação como conceito que serve de eixo articulador entre o intrassubjetivo e o intrapsíquico, podendo oferecer vias de passagem entre teorizações relacionais da Psicanálise e as teorizações vinculadas com os elementos que se depreendem da teoria das pulsões. Assim, a sublimação oferece a possibilidade de ponte entre as diversas teorizações da Psicanálise; questão necessária no campo psicanalítico. A concepção de "trauma social" (Kupermann, 2016), legado de Ferenczi, pode nos ajudar a superar as dificuldades de reflexão sobre o problema dos limites do representável com os limites do testemunho, sem correr o risco de borrar o fato catastrófico, assim como balizar o lugar específico do estatuto de vítima e o lugar específico do estatuto do verdugo, tal e como Levi propôs com a sua vivência-conceito "zona cinzenta", sem cair numa exploração política da memória. Finalmente, no contexto atual de nosso país, marcado pela finalização da Comissão Nacional da Verdade (2014) sobre sujeitos vítimas, diretas e indiretas, do período em que o Brasil vivenciou um regime de exceção (1964-1988), isso para não mencionar toda uma cultura de descaso em relação ao humano neste país, assim como os desaparecimentos forçados dos dias de hoje, convocam a necessidade de reconhecer que "não nos curaremos somente com palavras" (Katz, 2014, p. 166), mas sendo copartícipes de uma cultura que repense as lógicas preestabelecidas (com o entendimento das forças políticas existentes, que muitas vezes terminam por reforçar as práticas negacionistas), e permita o devir do sujeito histórico, que também é o sujeito do inconsciente, para uma tópica em que a dignidade e a esperança não sejam apenas palavras quase esquecidas para se refletir sobre a condição humana.
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1 Oximoro é uma figura de linguagem em que se combinam palavras de sentido oposto que parecem excluir-se mutuamente, mas que, no contexto, reforçam a expressão. Por agora, vale mencionar que o oximoro está muito presente nos testemunhos de sujeitos que foram vítimas de algum tipo de catástrofe política ou social.
2 Shoah é uma expressão hebraica que significa catástrofe ou devastação. É utilizada para expressar o processo de extermínio dos judeus, sob o comando de Hitler, durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Também, é utilizada a expressão "Auschwitz" como homóloga a de "Shoah". Tais expressões são utilizadas no lugar de "Holocausto", posto que este último termo remete à concepção de morte como sacrifício.
3 Sonderkommando se refere a determinados deportados judeus, que durante o período de deportação foram designados aleatoriamente para cuidar dos restos corporais e dos pertences dos judeus que morriam nas cameras de gás. Com o passar do tempo, e como outra forma de borrar a história, os nazistas os assassinavam também nas câmaras de gás.
4 Mulsumanos, expressão despectiva alemã, utilizada entre os deportados para designar aqueles entre eles que foram desistindo de viver devido à fome e ao esgotamento físico e moral.
5 Lager significa campos de concentração.
6 Thompson (2002) nos conta que Levi não mostrava nenhum tipo de acordo em relação ao componente indizível da vivência nos campos de extermínio. Seu recurso em Lilith, foi buscar mostrar que a temática da insuficiência da linguagem também se reflete com muito mais intensidade que em Auschwitz, seja no cotidiano, seja em outras áreas de saber.
7 Segundo nosso ponto de vista, a entrevista que Primo Levi concedeu a Ferdinando Camon, e que foram publicadas no livro Conversations avec Primo Levi (1991), refletem explicitamente essas considerações.
8 Partindo de uma leitura crítica de algumas obras de Marcuse (1975, 2015), Sitegler (2006) comenta que o que escapa a Marcuse é precisamente o artefato como operador de processualidade e de historização de algumas categorias e que engaja o desejo como processo de individuação. De qualquer maneira, essa argumentação pode servir ao pensamento psicanalítico no processo de verter determinadas ordens conceituais captadas na situação clínica para a dimensão transindividual.
9 Sandro Delamastro, a quem Levi dedica o capítulo intitulado "Ferro", em A Tabela Periódica (1994), narrando esse encontro. Sandro combatente morto no Comando Militar Piamontês em abril de 1944. Nas palavras de Levi, Sandro não "era um homem para ser objeto de narrativas ou de monumentos...estava todo nas ações e, uma vez terminada estas, nada resta dele; nada senão
10 Em comunicação epistolar com o Prof. Dr. Manoel Reyes Mate, filósofo espanhol e profundo estudioso do legado de Primo Levi, assim como da Shoah, confirmamos o mesmo pensamento que nutrimos há anos, a saber, que o legado de Primo Levi tem plena atualidade. Não se trata de realizar traduções literais de seu legado para as situações que envolvem catástrofes nos dias de hoje. Diz Reyes Mate: "Para mim, o dever da memória consiste em ... repensar - insisto nisso, repensar - nosso tempo sob a luz da barbárie de Auschwitz". Comunicação autorizada por Reyes Mate.