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Analytica: Revista de Psicanálise
On-line version ISSN 2316-5197
Analytica vol.7 no.13 São João del Rei Jul./Dec. 2018
ARTIGOS
Pulsão de morte e agressividade no campo de Freud-Lacan
Death drive and aggressiveness in the field of Freud-Lacan
Pulsion de mort et agressivité chez Freud-Lacan
Pulsión de muerte y agresividad en el campo de Freud-Lacan
Guilherme SecotteI; Gustavo Henrique DionisioII
IGraduado em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (Unesp), Campus de Assis. Realizou Iniciação Científica com auxílio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Pesquisador no campo da Psicanálise com ênfase no estudo da agressividade e cultura. Atualmente trabalha como psicólogo clínico
IIGraduado em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Mestre e Doutor em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP), com estágios na Pitié-Salpetrière (Hospitaux Universitaires, Paris-França) e na École de Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS, Paris-França). Pós-Doutor em Estética pela Faculdade de Filosofia e Ciência Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Professor-assistente doutor do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade Estadual Paulista (FCL-Unesp Assis), em nível de Graduação e Pós-Graduação (mestrado e doutorado). Vice-supervisor do Centro de Pesquisa e Psicologia Aplicada Betti Katzenstein da mesma universidade. É também membro da Anpepp (GT Psicanálise, subjetividade e cultura contemporânea) e do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos (Ebep-SP), assim como colabora com outras instituições psicanalíticas. Atua principalmente nos seguintes temas: Estética e Processos de Subjetivação, Teoria, História e Crítica de Arte, Atendimento Psicoterápico, Clínica Ampliada
RESUMO
Este artigo tem como objetivo expor e discutir a teoria da pulsão de morte elaborada por Freud e a noção de agressividade em Lacan, realizando uma espécie de síntese geral sobre esse eixo teórico da Psicanálise do campo de Freud-Lacan. Assim, discorremos primeiramente o modo no qual podemos compreender a teoria das pulsões e em seguida abordamos propriamente a teoria das pulsões na Psicanálise. Após isso, adentramos na problemática da pulsão de morte freudiana e, no fim deste texto, discutimos seus desdobramentos com a concepção de agressividade em Lacan.
Palavras-chave: Psicanálise. Pulsão de morte. Agressividade. Freud-Lacan.
ABSTRACT
This article aims to expose and discuss the theory of the death drive elaborated by Freud and the notion of aggressiveness in Lacan, doing a sort of general synthesis about this theoretical axis of psychoanalysis of the field of Freud-Lacan. Thus, we first discuss the way in which we can understand the theory of drives, and then we properly approach the theory of drives in psychoanalysis. After that, we enter into the problematic of the freudian death drive and, at the end of this text, we discuss its unfolding with Lacan's conception of aggressiveness.
Keywords: Psychoanalysis. Death drive. Aggressiveness. Freud-Lacan.
RÉSUMÉ
Cet article vise à discuter la théorie de pulsion de mort chez Freud et la notion de l'agressivité chez Lacan, en faisant une sorte de synthèse sur cet axe théorique dans le domaine de Freud-Lacan. Ainsi, nous discutons d'abord comment pouvons-nous comprendre la théorie génerale des pulsions dans la psychanalyseetc, après cela, nous entrons dans la problématique de la pulsion de mort freudienne pour, à la fin de notre texte, discuter ses développements avec la conception de l'agressivité chez Lacan.
Mots-clés: Psychanalyse. Pulsion de mort. Agressivité. Freud-Lacan.
RESUMEN
El artículo tiene el objetivo de exponer y discutir la teoría de la pulsión de muerte que fue elaborada por Freud y la concepción de agresividad en Lacan, realizando una especie de síntesis general sobre ese eje teórico de la psicoanálisis del campo de Freud-Lacan. Así, empezamos hablando sobre el modo en el cual podremos comprender la teoría de las pulsiones y seguido abordamos la teoría de las pulsiones en la psicoanálisis. Después de eso, nos adentramos en la problemática de la pulsión de muerte freudiana, y al final de ese texto, discutimos sobres sus desdoblamientos con la concepción de agresividad en Lacan.
Palabras clave: Psicoanálisis. Pulsión de muerte. Agresividad. Freud-Lacan.
A pulsão como mito?
As pulsões têm importância fundamental na teoria psicanalítica. Presente na metapsicologia freudiana, esse conceito, assim como outros, sofreu transformações ao longo do desenvolvimento da Psicanálise e é particularmente objeto de críticas e debates no campo psicanalítico. Por ser um objeto complexo, nos atentaremos primeiramente em pensar como podemos compreender as pulsões - sublinhando a pulsão de morte como ideia central deste artigo.
Em Novas conferências introdutórias sobre Psicanálise, Freud (1933/1976, p. 66) afirma que "A teoria das pulsões é, por assim dizer, a nossa mitologia. As pulsões são seres míticos, grandiosos na sua indeterminação". Em Além do princípio do prazer (i920/2006a), texto inaugurador do conceito de pulsão de morte, Freud flerta com o leitor enunciando que sua nova teoria está inacabada, é volátil e duvida das próprias proposições realizadas no fim dessa obra.
Pode-se perguntar se, e até onde, eu próprio me acho convencido da verdade das hipóteses que foram formuladas nestas páginas. Minha resposta seria que eu próprio não me acho convencido e que não procuro persuadir outras pessoas a nelas acreditar, ou, mais precisamente, que não sei até onde nelas acredito. [...] É certamente possível que nos lancemos por uma linha de pensamento e que a sigamos aonde quer que ela leve, por simples curiosidade científica, ou, se o leitor preferir, como um advocatus diaboli, que não se acha, por essa razão, vendido ao demônio. (Freud, i920/2006a, p. 69)
Podemos expandir nossa compreensão em relação à teoria pulsional de maneira análoga ao que acontece com o mito de Édipo. Na análise realizada do campo de Freud-Lacan, compreende-se que o mito torna-se um modelo do que vem a ser um discurso (Dunker, Paulon, Milán-Ramos, 2016, p. 86), isto é, o relato mítico do Édipo serve como suporte para a construção da teoria do complexo de Édipo. "O mito é o que dá uma formulação discursiva a algo que não pode ser transmitido na definição da verdade, porque a definição da verdade só pode apoiar-se sobre si mesma, e é na medida em que a fala progride que ela a constitui" (Lacan, 1953/2008, p. 13).
Freud utiliza-se da obra Édipo Rei de Sófocles para teorizar sobre o complexo de Édipo. Essa leitura é uma versão do mito, ou seja, o mito é antecedente e maior (composto por vários mitemas) do que a versão de Sófocles. Com isso queremos salientar que o modelo de pensamento freudiano para desenvolver o complexo de Édipo é similar ao da construção mítica da pulsão de morte em Além do princípio do prazer (1920/2006a).
Nesse texto, observamos que Freud (1920/2006a, p. 64) utiliza-se de um discurso com argumentação biológica para tentar teorizar a questão, fazendo uso de um certo inatismo para referenciar o conceito. Esse método foi e ainda é alvo de críticas.
Contudo, o mito como relato mítico é considerado no campo de Freud-Lacan como um conteúdo manifesto, imaginário, no qual é preciso conceber seu caráter latente ou simbólico. Essa consideração permite refletirmos que tal formulação biológica que teoriza a pulsão de morte foi o modo como Freud elabora, dado os recursos que tinha, uma primeira hipótese para a construção desse conceito, como ele mesmo declara (Freud, 1920/2006a). De forma semelhante, Garcia-Roza (2008, pp. 80-81) afirma que
Trata-se de uma convenção, nos diz ele, ou de uma ficção, uma ficção teórica, como são os conceitos fundamentais de qualquer ciência. Sua característica principal não é descrever a realidade, mas explicá-la (melhor seria dizer "constituí-la"); não são retirados da realidade a partir da observação, mas criados com a finalidade de constituir uma nova inteligibilidade. Dizer que não são retirados da realidade não significa dizer que nada tenham a ver com ela, mas que não correspondem a algo imediatamente visível e identificável, um "dado". Mais do que corresponder a "dados", os conceitos fundamentais da ciência correspondem a interrogações, portanto a algo que não é dado, nem mesmo "dável", a experiência.
Dessa maneira, apesar de Freud construir um mito para elaborar o conceito da pulsão de morte, sua elaboração possibilitou diversos desenvolvimentos teóricos e clínicos. De maneira análoga, se a Psicanálise foi desmitificando o complexo de Édipo a partir de seus avanços, Lacan será um agente fundamental para desmitificar a pulsão de morte na teoria psicanalítica, como veremos mais adiante.
A teoria pulsional
Apresentemos alguns pontos fundamentais que contribuam na construção do conceito de pulsão (trieb) na Psicanálise do campo de Freud-Lacan. Isso se faz necessário, pois é preciso sublinhar que, apesar da diferenciação teórica entre pulsões de vida e de morte na segunda tópica pulsional, assim como entre pulsões sexuais e pulsões de autoconservação na primeira tópica, as dessemelhanças presentes se referem a especificidades do modo das expressões pulsionais. Sendo assim, apesar de a teoria psicanalítica apresentar as pulsões de modo dualístico (contrapondo vida e morte), as duas modalidades pulsionais não deixam de ser fundamentadas no seu caráter central: o de pulsões. Assim, mesmo com peculiaridades, nos atentaremos em expor aquilo que é comum às duas modalidades pulsionais.
Em Os instintos e suas vicissitudes (1915/1969)1, texto anterior à introdução do conceito de pulsão de morte, Freud estrutura a composição e funcionamento das pulsões. Ele elabora quatro fundamentos que estão presentes em todas as expressões pulsionais e que são dialéticos entre si: pressão (drang), finalidade (zieí), objeto (objekt) e fonte (quelle).
Freud define como fonte da pulsão um processo somático que ocorre num órgão ou parte do corpo e causa estimulação ou excitação interna, exigindo trabalho ao aparato psíquico. A fonte da pulsão é aquilo que produz energia somática (triebreiz) e se transforma em energia psíquica quando alcança representação (Garcia-Roza, 2008, p. 260). Assim, a fonte da pulsão está para além do aparato psíquico, ou seja, para além do consciente ou inconsciente, pois ainda não está no campo da representação. A pulsão pode ser considerada como um estímulo para o psíquico (em oposição a ser um estímulo psíquico), que estando exterior ao aparato não é regida pelos princípios que regulam seu funcionamento (Garcia-Roza, 2008, p. 89). Nas palavras de Garcia-Roza (2008, p. 252),
Nessa relação entre o aparato psíquico e a fonte somática de estimulação é a pulsão que funciona como elemento de articulação. Este pode ser um dos sentidos da afirmação freudiana de que a pulsão é um conceito fronteiriço entre o anímico e o somático. Por um lado ela aponta para o corpo, entendido como fonte de estimulação constante e como medida de exigência de trabalho imposta ao anímico; por outro lado, aponta para o psíquico, enquanto sede das representações.
Importante destacarmos que a fonte das pulsões (triebreiz) está para a lógica da dispersão, da energia livre, do puro estímulo e para além do princípio do prazer. É por meio do aparato psíquico - como representante da linguagem, da ordem, e regido pelo princípio do prazer e de realidade - que a pulsão pode atingir sua finalidade. Entretanto, não significa dizer que as pulsões e o aparato psíquico constituem-se separadamente, pois é somente na relação entre um e outro que eles podem exercer função. Assim, não é possível conjecturar as pulsões sem representação e nem representação sem as pulsões. Isso é uma outra maneira de justificar a afirmação de que a pulsão encontra-se na fronteira entre o psíquico e o somático, em razão de propriamente a pulsão ser o elemento de articulação entre o estímulo interno (fonte somática) e da representação, que possibilita a pulsão exprimir-se no aparelho psíquico (Garcia-Roza, 2008).
Ademais, quando a teoria psicanalítica relata sobre as pulsões orais, anais, escópicas ou outras, está se referindo à diversidade das fontes pulsionais, não designando diferenças qualitativas entre as pulsões ou adicionando modalidades de funcionamento pulsional (Garcia-Roza, 2008, p. 99).
Por pressão da pulsão "compreendemos seu fator motor, a quantidade de força ou a medida da exigência de trabalho que ela representa. A característica de exercer pressão é comum a todos os instintos; é, de fato, sua própria essência." (Freud, 1915/1969, p. 142). Em outras palavras, a parada pulsional significaria a completa ausência de desejo, isto é, a morte do sujeito.
Como veremos com mais profundidade em outro momento, "a diferença de quantidade entre o prazer da satisfação que é exigida e a que é realmente conseguida, é que fornece o fator impulsionador que não permite qualquer parada em nenhuma das posições alcançadas" (Freud, 1920/2006a, pp. 52-53). Dessa forma, a diferença entre a satisfação exigida e a conseguida faz com que a pulsão não pare de pulsar, pois, rigorosamente, a plena satisfação, ou seja, a satisfação exigida, também significaria a morte do sujeito. Assim, é necessário que sobre um "resto" de satisfação não alcançada. Esse "resto" terá função de propulsão, uma força que exigirá novamente a satisfação completa (a satisfação não conseguida) que anos depois Lacan nomeará de objeto a, objeto causa do desejo.
Além disso, "mesmo quando a satisfação é passiva (ser visto, ser espancado), a pulsão é ativa, na medida que exerce uma 'pressão'" (Laplanche & Pontalis, 1967/2001, p. 354), ou seja, a própria natureza das pulsões não permite que existam pulsões passivas.
A finalidade das pulsões é sempre a satisfação, que só pode ser obtida eliminando-se o estado de estimulação na fonte da pulsão (Freud, 1915/1969). Como dito anteriormente, uma fração de satisfação não pode ser satisfeita e, em razão disto, faz com que o estado de estimulação na fonte da pulsão não possa ser eliminado completamente. Dessa maneira, podemos inferir que toda satisfação é parcial, ou melhor, toda satisfação que não acarreta na morte do sujeito é parcial. Como a satisfação plena é uma ficção, a finalidade pulsional retorna em circuito, fazendo com que sempre haja uma demanda de satisfação. Esse é um dos aspectos que permite à Psicanálise afirmar que o ser humano é marcado pela insatisfação, similar à alegação de que o desejo é inferido como falta. Essas proposições referem-se à não realização da satisfação plena das pulsões, fazendo com que o sujeito não pare de desejar.
Finalmente, o objeto de uma pulsão é a coisa em relação à qual ou por meio da qual a pulsão é capaz de atingir sua finalidade (Freud, 1920/2006a). "É o mais variável na pulsão; não está ligado originalmente a ela, mas articula-se a ela apenas pela sua peculiar aptidão para possibilitar a satisfação" (Garcia-Roza, 2008, p. 92). O objeto pode estar presente na realidade compartilhada, assim como ser um objeto fantasístico, imaginário ou simbólico e ser até mesmo o próprio eu. O objeto também pode ser deslocado no seu processo de representação, modificando-se ao longo do percurso para que atinja a finalidade pulsional. O que definirá as escolhas de objetos por parte do sujeito será resultado de sua própria singularidade. O objeto pode ser alvo de mais de uma pulsão, como veremos com mais profundidade quando falarmos em fusão e desfusão das pulsões. Compreender o desejo como falta é considerar que o objeto da pulsão está perdido, o objeto mítico, das Ding (a Coisa freudiana), que embora nunca a tivéssemos, deva ser reencontrada, pois somente ela é capaz oferecer a satisfação completa. "As pulsões são nossos mitos, disse Freud. Não se deve entender isso como uma remissão ao irreal. É o real que elas mitificam, comumente, mitos: aqui, aquilo que produz o desejo, reproduzindo nele a relação do sujeito com o objeto perdido" (Lacan, 1964/1998a, p. 867).
A sublimação, por sua vez, é uma modalidade possível de satisfação em que o objeto de desejo, mesmo se utilizando da libido, não é sexual. Essa inibição como alvo da libido (como objetos não sexuais) não impossibilita a satisfação parcial das pulsões, por mérito da plasticidade dos objetos pulsionais. Isso não altera o caráter sexual da sublimação, visto que, em nenhum momento, a libido deixa de ser sexual. A sublimação será bem-sucedida, na medida em que é intermediada por um eu narcísico. Ele é alvo de investimento libidinal que, num segundo momento, encaminha essa libido para um objeto não sexual valorizado socialmente, isto é, um objeto estimado pelo ideal do eu (Garcia-Roza, 2008).
Com essas hipóteses, a Psicanálise pôde avançar sobre as teorias pulsionais. A libido, como representante da pulsão de vida, não deixa de estar em conjunto com a pulsão de morte. Sob esse raciocínio, a sublimação não utiliza somente a libido para atingir seus objetivos. Em diversas expressões culturais, é notável a presença da agressividade como componente fundamental para a sua realização. Citamos, a título de exemplo, que admitem maior facilidade de identificação, as modalidades esportivas de combate, as atividades físicas radicais, algumas expressões artísticas e obras cinematográficas. Levando em consideração esses pressupostos, temos que admitir que os objetos de potência sublimatória podem apresentar a pulsão de morte em conjunto com a libido, como fator fundamental para que esse processo se concretize.
Seguiremos nossa exposição tentando explicar a maneira pela qual as pulsões adentram o aparato psíquico, ou melhor, como elas ganham representação. Alertamos que as traduções para o português de alguns termos específicos são objeto de discussão na Psicanálise. Tendo em vista suas possíveis diferenças interpretativas, optamos, para não nos confundirmos (assim como fazem outros autores), utilizar o conceito original em alemão. Partilhamos da apresentação proposta por Garcia-Roza (2008), dividindo os representantes psíquicos da pulsão (vorstellungsrepràsentanz) em dois componentes: os afetos (affekt) e as ideias ou representações (vorstellung).
O afeto (affekt) é o componente da pulsão que atribui a parte intensiva, apresentando-se como da ordem do sinal, ordem das sensações, da pura descarga de intensidades, de forma que poderíamos caracterizá-lo como a parte quantitativa das pulsões. O componente ideativo (vorstellung) é a parte pulsional da significação, complexo de imagens, da ordem dos significantes (como propõe Lacan), que apresenta investimento de intensidades que, seguindo a mesma lógica que propomos para os afetos, seria o elemento qualitativo das pulsões.
Os afetos não precisam estar necessariamente colados aos componentes ideativos para se expressarem, pois além de um afeto poder se deslocar de uma representação (vorstellung) para outra, quando esta é suprimida por um mecanismo defensivo (como o recalcamento), o afeto não é suprimido (Garcia-Roza, 2008, p. 120). Ademais, os afetos podem transformar-se no seu contrário, como o amor em ódio, por exemplo. Nesse raciocínio, podemos dizer que a angustia seria o afeto que ainda não ganhou significação, mas que não deixa de se expressar.
Os sintomas estruturam-se de maneira similar. Apesar de ganharem representação pulsional (Vorstellungsrepràsentanz) por um caminho que pode causar sofrimento ou ser experienciado na forma de gozo, não necessariamente são expressos por um significante (vorstellung), fazendo justamente com que o aparelho psíquico trabalhe para encontrar significação, mesmo que não consciente.
Mas, afinal, o que o aparelho psíquico tenta representar? Segundo essa teoria, a aparelhagem psíquica tenta representar das Ding, a Coisa freudiana. Apesar de das Ding não estar no campo das representações, não deixa de influenciar o aparato psíquico. Ela é justamente aquilo que não pode ser representado em sua totalidade, há algo que sempre falta. Conforme propõe Garcia-Roza (2008, pp. 153-154),
Esse algo não é uma coisa, nem tampouco a própria Coisa disfarçada, travestida de objeto, mas um vazio que não pode ser preenchido adequadamente por objeto algum. É o que Lacan denomina "objeto a". Este não é o das Ding, mas o índice ou testemunha de das Ding como objeto perdido.
Em termos lacanianos, o objeto a, conforme dito anteriormente, seria aquilo que surge a partir da diferença entre a satisfação conseguida e a satisfação exigida, objeto causa do desejo, que opera como motor da produção infinita de novos significantes. O objeto a é o que sinaliza (vorstellung) das Ding, mas que não é das Ding. Apresenta-se como objeto da pulsão, sem qualquer característica ou especificidade que o qualifique. Objeto que, assim como das Ding, é inatingível, mas manifesta-se no campo da linguagem, "mascarado, recoberto com o brilho fálico que lhe dão a fantasia e o desejo" (Guillot, 2014, p. 13).
Das Ding aproxima-se do conceito de real em Lacan, campo que também está para além da linguagem (registros simbólico e imaginário) e que tenta insistentemente ganhar representação. Das Ding seria então esse objeto absoluto, presente no suposto todo, que somente por meio da linguagem podemos descrever. Se é por meio da linguagem que podemos subjetivar de alguma forma o real ou nos apropriar de uma fração de das Ding, explica-se porque toda satisfação (pulsional) é parcial.
Se relembrarmos que o aparelho psíquico tende a procurar a satisfação completa, eliminando toda estimulação na fonte da pulsão, isso só seria possível no encontro com das Ding. Entretanto, inevitavelmente, encontramo-nos com die Sache, a representação-coisa e que posteriormente pode se transformar em Wortvorstellungen, as representações-palavra (Garcia-Roza, 2008).
Em resumo, se a finalidade da pulsão é a completa satisfação, e a completa satisfação só se realiza no encontro com das Ding, de fato, a finalidade das pulsões é o encontro com das Ding. Entretanto, esse caminho traçado pela pulsão opera por meio das representações-coisa, que são da ordem da linguagem, que torna impossível o encontro com das Ding.
O que se evidencia nessa busca do objeto perdido é o impossível da satisfação, a dimensão do real. O real se insinua pelo próprio fato de que os objetos propiciam apenas satisfações parciais. Frente ao impossível da satisfação da pulsão, o aparato psíquico responde com o possível do prazer obtido com os objetos. (Garcia-Roza, 2008, p. 91)
Em seguida iremos expor como Freud constrói o conceito de pulsão de morte em Além do princípio do prazer (1920/2006a) e como a Psicanálise conseguiu avançar nessa questão para que mais adiante possamos ver as contribuições que a Psicanálise lacaniana oferece para esse objeto de estudo.
3. Desenvolvimento da pulsão de morte na Psicanálise
No início de Além do princípio do prazer (1920/2006a), Freud esboça rapidamente como se dá o prazer e o desprazer no aparelho psíquico, colocando o princípio de prazer em evidência. Segundo ele, o prazer corresponderia à diminuição das excitações, e o desprazer ao aumento da quantidade de excitações. Essa afirmação também decorre do princípio de constância, no qual o aparelho mental, além de deixar o nível de excitações o mais baixo possível, tende a deixá-los estáveis. O princípio de realidade (que Freud associa às pulsões de autoconservação) exige o adiamento das satisfações pulsionais, mesmo que seja necessário admitir certa quantidade de desprazer nesse processo. Mesmo assim, o princípio de realidade acaba, por fim, operando de acordo com o princípio de prazer. Entretanto, Freud colocará em dúvida esses princípios, abrindo espaço para se pensar (visto os fenômenos que observava) o que poderia estar para além do princípio do prazer. Segundo Freud (1920/2006a, p. 19),
Deve-se, contudo, apontar que, estritamente falando, é incorreto falar na dominancia do princípio de prazer sobre o curso dos processos mentais. Se tal dominancia existisse, a imensa maioria de nossos processos mentais teria de ser acompanhada pelo prazer ou conduzir a ele, ao passo que a experiência geral contradiz completamente uma conclusão desse tipo. O máximo que se pode dizer, portanto, é que existe na mente uma forte tendência no sentido do princípio de prazer, embora essa tendência seja contrariada por certas outras forças ou circunstâncias, de maneira que o resultado final talvez nem sempre se mostre em harmonia com a tendência no sentido do prazer.
Ao longo do texto Freud discorre sobre alguns fenômenos clínicos: as neuroses traumáticas, os masoquismos e sadismos, alguns sonhos e brincadeiras infantis (Fort-da), que colocam em dúvida o princípio de prazer, fazendo daquilo que anteriormente era uma lei (fenômeno universal da aparelhagem psíquica), um conceito que permite relativização, tornando, como ele mesmo relata, um conceito que opera como uma tendência.
Para Freud (1920/2006a), o que está em jogo nesses fenômenos descritos é a compulsão à repetição. Ela é o conceito-chave que permite a elaboração da pulsão de morte, descrevendo-a como sendo mais primitiva do que o princípio do prazer. A compulsão à repetição demonstra a natureza mais íntima e conservadora das pulsões: fazer os organismos voltarem ao estado inorgânico ou inanimado a partir da completa satisfação pulsional, o encontro com das Ding.
Se procurar restaurar um estado anterior de coisas constitui característica tão universal dos instintos, não precisaremos surpreender-nos com que tantos processos se realizem na vida mental independentemente do princípio de prazer. Essa característica seria partilhada por todos os instintos componentes e, em seu caso, visariam a retornar mais uma vez a uma fase específica do curso do desenvolvimento. (Freud, 1920/2006a, p. 73)
A pulsão de morte se relaciona com a compulsão à repetição pois, como modalidade pulsional presente no mito elaborado por Freud, a pulsão de morte levaria os sujeitos ao estado anterior da vida, fazendo com que os organismos repitam primitivamente aquilo que era da ordem natural: retornar ao estado inorgânico. De certo, a compulsão à repetição é um conceito essencial para a construção argumentativa e de elaboração do conceito de pulsão de morte em Freud, mas que não se fará necessária (da maneira que se apresenta no discurso freudiano) com a psicanálise desenvolvida com Lacan, situando a compulsão à repetição na ordem do inconsciente, da linguagem e não como um fenômeno biológico.
Dessa maneira, Freud vai consolidando um novo dualismo pulsional, dividindo as pulsões naquelas que procuram conduzir o que é vivo à morte e nas pulsões de vida, que estão perpetuamente tentando e conseguindo uma renovação na vida (Freud, 1920/2006a, p. 57). Acentuamos que "renovação na vida" justifica-se na ideia de que a função das pulsões de vida seria, segundo Freud, "garantir que o organismo seguirá seu próprio caminho para a morte, e afastar todos os modos possíveis de retornar à existência inorgânica que não sejam os imanentes ao próprio organismo", e adiciona, "é o fato de que o organismo deseja morrer apenas do seu próprio modo" (Freud, i920/2006a, p. 50). Em decorrência disso, Freud associará o princípio de Nirvana às pulsões de morte, visto que seu objetivo é levar a zero os estímulos, isto é, a morte.
Mas, afinal, o que está "para além do princípio do prazer"? De que modo analisaremos a pulsão de morte? Utilizaremos a construção argumentativa de Garcia-Roza (2008, p. 159) como eixo central para essa exposição.
Com efeito, ele próprio [Freud] afirmara que a pulsão de morte é invisível e silenciosa, poderíamos dizer invisível e indizível. Ora, o que está fora ou para além da visibilidade e da dizibilidade, está para além da representação (visível) e da palavra (dizível), portanto, o que está para além da Objektvorstellung e da Wortvorstellung, da representação-objeto e da representação-palavra, fora do aparato psíquico e de suas determinações. Em conseqüência, a pulsão de morte é o que está "para além do princípio de prazer", para além do próprio aparato psíquico.
A autonomia da pulsão de morte entendida como pulsão de destruição (ou potência de destruição) é perfeitamente consistente com a idéia de que a pulsão, por se situar além da representação, além da ordem, além do princípio de prazer, é pura dispersão, pura potência dispersa. Sob este aspecto, faz jus à afirmação de ser a pulsão por excelência. [...] Se caracterizamos o sexual como aquilo que está sob o égide do princípio de prazer, ele é algo que se encontra referido ao aparato anímico e, portanto, inerente ao espaço da representação. "Além do princípio de prazer" designaria, em decorrência, o que estaria além do sexual.
De fato, o que estaria para além do sexual, para além da representação ou para além do princípio do prazer é a própria pulsão. Sublinhamos: não é pulsão de morte, são as pulsões como simplesmente pulsões (sem modalização).
Fora do aparelho psíquico, as pulsões são pura dispersão, potência dispersa, sem ordem alguma. Somente quando elas encontram representação na aparelhagem psíquica, que opera com tendência ao princípio do prazer, é que as pulsões podem encontrar satisfação (Garcia-Roza, 2008). É por meio da estrutura da representação (vorstellungsreprásentanz), na ordem da linguagem, por meio de significantes, que as pulsões materializam os objetos que permitem satisfação.
A libido, por exemplo, caracteriza-se sexualmente apenas após as pulsões ganharem caráter representativo, quando inscrevem-se nos registro imaginário ou simbólico. "A pulsão não tem objeto próprio (ou objeto natural), seu objeto será oferecido pela fantasia, o que implica a submissão da pulsão à articulação significante, e é aí que vai ser possível a caracterização sexual" (Garcia-Roza, 2008, p. 160). Nesse sentido, enquanto fora da representação exterior ao sexual, fazendo presença somente no real, "a pulsão é vazia de forma, de sentido; não é nem sexual, nem agressiva, nem de sociabilidade, mas pulsão pura e simplesmente" (Garcia-Roza, 2008, p. 160).
A partir da análise freudiana dos fenômenos relacionados à compulsão à repetição, a teoria das pulsões ganha uma nova modalidade de expressão, resultando nas pulsões de vida e morte. "Assim, as pulsões, em si mesmas, seriam todas 'qualitativamente da mesma índole', como diz o próprio Freud; a diferença entre elas seria dada pelos seus modos de presentificação no aparato anímico" (Garcia-Roza, 2008, p. 160).
Vale relembrar que o objetivo de toda pulsão é o encontro com das Ding, instante mítico em que não há resto, não há mais desejo, que toda pulsão se extingue e já sabemos que isso significa a morte do sujeito. Assim, as pulsões, como modalidade de vida ou morte, levam ao mesmo fim, ao estado inorgânico, diria Freud, que nesse sentido específico não se apresentam como opostas. Dito de maneira rigorosa, são dois caminhos que levam para o mesmo fim. Por conta desse aspecto, a pulsão de morte faz jus à caracterização de ser "a pulsão por excelência" (Garcia-Roza, 2008, p. 159). De fato, ela é a modalidade que cumpre o objetivo pulsional, aquela que marca a compulsão à repetição, enquanto as pulsões de vida, como dito, "estão perpetuamente tentando e conseguindo uma renovação na vida" (Freud, 1920/2006a, p. 57), adiando a morte.
Essa ideia só se tornou possível por conta da construção teórica da pulsão de morte, superando a noção de que ela seria a única responsável pelos fenômenos mortificantes. De fato, o princípio do prazer só se faz presente no aparato psíquico, fora dele, no campo das pulsões, este "além" é "disjuntivo, destrutivo, desfaz as formas constituídas, podendo dar lugar a novas formas" (Garcia-Roza, 2008).
Dessa maneira, concluímos que todas as pulsões estão para além do princípio do prazer. As pulsões de vida e de morte tornam-se modalidades pulsionais somente quando adentram o aparato psíquico, quando ganham representação, diferenciando-se nos modos de expressão.
Sob esse prisma e analisando com rigor, o dualismo pulsional elaborado por Freud se refere às modalidades somente quando elas ganham representação. Fora do aparato, as pulsões não apresentam esse tipo de dualidade. Dito de outro modo, "toda pulsão é uma ultrapassagem repetitiva do princípio do prazer para tentar atingir - em vão - um gozo perdido para sempre, ao preço, por vezes, de deixar sua vida" (Guillot, 2014, p. 12).
As modalidades pulsionais de vida e de morte, por ainda não estarem representadas por um componente ideativo (vorstellung), não são conflituosas em seus objetivos. Se as pulsões não ganharam representação, não há motivo para haver conflito no isso (Freud, 1923/2006b), instância psíquica que apresenta conteúdos necessariamente inconscientes.
Em O problema econômico do masoquismo (Freud, 1924/2006c), Freud fará contribuições importantes para os fenômenos da agressividade investigando o sadismo e o masoquismo. Freud discute, fundamentado na hipótese da origem da pulsão de morte, que o masoquismo é anterior ao sadismo na gênese dos sujeitos. Por conta da pulsão de morte ser inata e tender ao retorno ao estado inorgânico, ela se volta primeiramente ao próprio organismo, o que faz Freud construir o conceito de masoquismo original ou primário. Entretanto, para evitar a morte do sujeito, ou seja, para que a pulsão de morte não se volte inteiramente contra o próprio eu, a pulsão de morte, em conjunto com a libido, se exterioriza nos objetos, isto é, o sadismo. O que pode acontecer é que aquilo que for exteriorizado, projetado, pode ser introjetado e retornar ao eu, o que Freud nomeia de masoquismo secundário (Freud, 1924/2006c, p. 182).
Podemos afirmar que o masoquismo primário, conforme propõe Quinet (2006/2009), é o elemento da pulsão de morte que não se vincula com as pulsões de vida e retorna ao próprio sujeito. O masoquismo originário
É um Real que resiste aos poderes da palavra, um Real silencioso que se opõe a Eros, lugar onde pulula a vida e o falatório do universo simbólico. É esse Real que se encontra na repetição, na reação terapêutica negativa, que faz do masoquismo, e não do sadismo, a tendência primária do sujeito, o gozo do sofrimento que é desvelado pelo melancólico. (Quinet, 2006/2009, p. 217)
Referente às expressões da pulsão de morte no âmbito social, Freud, em 1913, elabora seu texto Totem e tabu fazendo clara referência ao complexo de Édipo. Por meio dessa obra, podemos fazer uma leitura mítica da agressividade, considerando-a como ato fundante da cultura. "O parricídio é escolhido como a ação responsável pelo advento da sociedade e de suas leis reguladoras: a lei de proibição do incesto, do 'não matarás', os fundamentos das religiões monoteístas e das instituições sociais" (Nakasu, 2006, p. 189). Como Lacan bem analisa,
Freud, com efeito, mostra-nos que a necessidade de uma participação que neutralize o conflito, inscrito, após o assassinato, na situação de rivalidade entre os irmãos, é o fundamento da identificação com o Totem paterno. Assim, a identificação edipiana é aquela através da qual o sujeito transcende a agressividade constitutiva da primeira individuação subjetiva. Insistimos em outra ocasião no passo que ela constitui na instauração dessa distância pela qual, com sentimentos da ordem do respeito, realiza-se toda uma assunção afetiva do próximo. (Lacan, 1948/1998^ p. 120)
Retornando a tese do sadismo e masoquismo, foi a partir dela que Freud constrói a teoria sobre a fusão e desfusão das pulsões. A fusão das pulsões corresponde aos fenômenos em que as pulsões de vida e morte estão intrincadas, agindo em conjunto sobre o mesmo objeto, conforme ocorre no sadismo e masoquismo. A desfusão seria a tendência dessas duas modalidades pulsionais agirem de maneira singular, tentando atingir sua finalidade de maneira independente. Mais especificamente, esse termo apresenta-se na teoria como fato da agressividade tentar quebrar os laços com a sexualidade, aspirando manifestar-se isoladamente (Laplanche & Pontalis, 1967/2001, p. 205). Entretanto, conforme se observa, as pulsões de vida e morte aparecem sempre fusionadas, em proporções variadas, de modo que jamais encontraremos expressões dessas modalidades pulsionais de maneira pura (Freud, 1924/2006c). Assim, reconhecemos que o sadismo e o masoquismo não podem ser caracterizados como somente expressões da pulsão de morte. Como Freud discorre ao longo de suas obras, o masoquismo e o sadismo apresentam-se associados à libido, isto é, às pulsões de vida, mesmo que minimamente.
Essas deduções contradizem afirmações de que as pulsões de morte são mortificantes, que agem somente nos fenômenos que levam à morte estritamente dita ou que atuam exclusivamente para a morte dos sujeitos. De fato, as pulsões, por estarem fusionadas e serem mediadas pelo trabalho do eu, permitem que a vida se perpetue em cada sujeito de maneira singular, não tendendo somente aos fenômenos relacionados à compulsão à repetição.
Perpassando essas colocações, o trabalho das pulsões de vida e de morte caracterizam-se também em dois modos fundamentais: o conjuntivo e o disjuntivo. "Se a pulsão se faz presente no aparato anímico promovendo e mantendo as uniões, conjunções, ela é dita 'de vida'; se ela se presentifica no aparato anímico disjuntivamente, 'fazendo furo', então ela é dita 'de morte'" (Garcia-Roza, 2008, p. 160). A libido consiste em um fator de ligação, de fusão, de criar uniões estáveis. A agressividade, representante da pulsão de morte, tende ao desinvestimento, a fragmentar ou desfazer as relações (Laplanche & Pontalis, 1967/2001, p. 207). Esses aspectos das modalidades pulsionais não apresentam, a princípio, caráter valorativo ou moralista. Com isso, salientamos que nem toda ligação é positiva. As relações entre as pulsões e os objetos pulsionais são complexas o suficiente para não conseguirmos afirmar que toda ligação tende ao prazer ou é "boa" para os sujeitos. A respeito disso, Zaltzman (1993), assim como Oliveira, Winograd e Fortes (2016) e outros autores, discutem ao longo de suas obras como a pulsão de morte, em sua qualidade disjuntiva, pode ser benéfica à subjetividade. Seu caráter disjuntivo torna-se elemento fundamental para desfazer relações com objetos, movimento elementar no processo de subjetivação.
Ademais, seguimos destacamos que a pulsão de morte encontra um caráter dinâmico ao longo da teoria freudiana, implicando como uma das funções do supereu. O supereu vai se apresentar como o mediador da pulsão de morte, tanto como um supereu tirano e opressor, que se volta contra o próprio eu, bem como aquele supereu proibidor, ligado aos ideais herdeiros do complexo de Édipo, isto é, aquele relacionado com as formações culturais. Guillot (2014, p. 15) afirmará que existem duas faces na cultura:
Uma que tem uma função pacificadora - aquela que Freud acentuou com o pai do Édipo que une o desejo à lei. Aí, é a função pacificadora do ideal do eu. E outra que é aquela da pulsão de morte, que Freud descobre com o supereu. Um supereu que certamente toma a seu cargo os interditos enunciados pela cultura, mas que, mais secretamente, impulsiona a gozar. O interdito ele mesmo alimenta o gozo. De sorte que o que se chama de cultura pode também ter uma face deletéria. A cultura da avaliação é um exemplo disso.
Nessas concepções retratadas, é notório como o conceito de pulsão de morte ganha importância e, ao mesmo tempo, como ela perde um certo destaque quando harmoniza-se com outros conceitos da Psicanálise. Como vimos, estamos compreendendo a pulsão de morte como uma modalidade pulsional, forma essa que se faz presente somente no aparato psíquico. Além disso, constatamos também o caráter fusional das modalidades pulsionais, que são expressas sempre em conjunto: pulsões de vida e de morte. É nesse sentido que Lacan avançará sobre a teoria pulsional. Como afirma Guillot (2014, p. 12), Lacan abandona a "dicotomia freudiana entre pulsão de vida e pulsão de morte em proveito do conceito de 'gozo', nome lacaniano da pulsão de morte freudiana", elevando a fusão pulsional a um pressuposto que se faz presente em toda expressão subjetiva.
Vê-se, por aí, igualmente, que Lacan não abandonou nunca a pulsão de morte freudiana. Ao contrário, fez dela a pedra de sustentação do circuito pulsional. E quando fez do gozo o problema maior com o qual cada um, seja neurótico ou psicótico, tem que se confrontar, pode-se dizer que inscreve a questão da pulsão de morte no coração mesmo de sua teoria e de sua concepção do tratamento. Porque, a partir de então, a pulsão de morte deverá ser tomada na relação particular, sempre singular, que o sujeito mantém com o gozo, com o objeto a que causa seu desejo. (Guillot, 2014, p. 12)
Essa teorização de Lacan é outra maneira de dizer que toda pulsão é, em sua potência representacional, pulsão de morte. Retomando o que já afirmamos anteriormente, fica um pouco mais claro compreender que a satisfação pulsional não é sinônimo de prazer, pois mesmo que se considerarmos que toda satisfação é parcial, sua satisfação pode ser na forma de gozo, isto é, uma satisfação da pulsão de morte que não necessariamente é prazerosa. Assim podemos entender porque o princípio de prazer é uma tendência e não uma lei insuperável, visto que o gozo é uma satisfação pulsional que ultrapassa esse princípio, é o que também está "além", visto sob essa perspectiva. Apesar dessa transgressão, os sujeitos comumente não chegam até a morte, ou melhor, a morte não está no plano do desejo, mas é efeito deste, como um acidente, um imprevisto ou está na ordem de uma "necessidade", como observado nos desencadeamentos foraclusivos. Os sujeitos recuam rente a sombra do objeto real da pulsão, o objeto de gozo (objeto a). Entretanto, com algumas exceções, isso não ocorre como nas toxicomanias, por exemplo. Afinal, "o que caracteriza o prazer é seu caráter razoável, apaziguador, sem tensão" (Guillot, 2014, p. 13). O narcisismo é uma das faces a serem exploradas nesse sentido.
Narcisismo e agressividade
Como vimos, a explicação freudiana que fundamenta a pulsão de morte é insuficiente, mas ela indica para a Psicanálise um primeiro caminho para a exploração dos fenômenos que subjazem esse conceito.
Em uma análise geral da questão da pulsão de morte na teoria psicanalítica, vemos que ela está atrelada a diversos signos. Podemos citar, por exemplo, ela estar relacionada à violência, agressividade, ódio, destruição, morte, rivalidade, sadismo, masoquismo etc., fenômenos observáveis na clínica ou nas expressões culturais e que são objetos de estudo na Psicanálise. Mas o que há de mais essencial dentre esses signos e outros relacionados que fazem deles característica ou reflexo da pulsão de morte? Supõe-se que a agressividade é o elemento mestre ou mais genérico que subjaz os demais signos relacionados. Ela configura-se como aquilo que se faz necessário em qualquer fenômeno associado ao conceito, ou seja, à maneira na qual a pulsão de morte se relaciona com os objetos da pulsão. Assim, estamos admitindo que a agressividade torna-se aquilo que é passível de observação, o caráter clínico que, como sabemos, é a principal ferramenta metodológica da construção da teoria psicanalítica. Dessa forma, a agressividade é o elemento que está subordinado aos acontecimentos decorrentes do que a teoria, mais especificamente, a metapsicologia nomeia como pulsão de morte.
Vale observar que na teoria lacaniana a agressividade aparece como uma noção e não como um conceito. Uma noção é utilizada para a formulação ou reconhecimento de conceitos, como um estado preliminar ao da fixação e explicação de um conceito propriamente dito, de maneira que "define-se por sua recorrência prática, por seu uso ou emprego dentro de uma determinada conformação de linguagem" (Dunker, Paulon, Milán-Ramos, 2016, p. 68). Nesse sentido, o modo como a agressividade está estruturada na teoria psicanalítica possibilitou ultrapassarmos sua compreensão meramente como fenômeno, isto é, o uso do termo agressividade detém e pressupõe um conhecimento próprio da Psicanálise, diferindo de seu uso na linguagem comum.
Observada sob o prisma da Psicanálise, a noção de agressividade é bastante ampla. Conforme sintetiza Laplanche e Pontalis (1967/2001, 1967/2001, p. 14), a agressividade é uma
Tendência ou conjunto de tendências que se atualizam em comportamentos reais ou fantasísticos que visam prejudicar o outro, destruí-lo, constrangê-lo, humilhá-lo, etc. A agressão conhece outras modalidades além da ação motora violenta e destruidora; não existe comportamento, quer negativo (recusa de auxílio, por exemplo) quer positivo, simbólico (ironia, por exemplo) ou efetivamente concretização, que não possa funcionar como agressão.
Embora estejamos atrelando diversas palavras a um signo central - a agressividade -, as manifestações agressivas não têm a mesma significação. Como vimos, ela pode se expressar de diversas formas. Entretanto, conforme diferencia Lacan e outros autores retomam (Ferrari, 2006 & Guillot, 2014), podemos classificar a agressividade de duas maneiras. A primeira, as "intenções agressivas", fica presa às expressões da comunicação, passível de significação, decifráveis como um sintoma, referentes à clínica das neuroses. Já as "tendências agressivas" se desdobram nos atos agressivos, destruidores e assassinos, que estão para além da ordem da palavra, "algo objetivado, que não conta com uma interpretação" (Ferrari, 2006, p. 51), que Lacan associa à clínica das psicoses.
É importante diferenciarmos a agressividade da violência. Como bem define Costa (1986), podemos admitir que a violência é aquilo que visa à destruição do outro, que evidencia-se pela falta de consentimento do agente que sofre agressão. Essa colocação se faz necessária porque expressões agressivas tomam diferentes significados, dependendo da cultura, contexto e sujeitos de uma determinada época específica. Aquilo que é considerado violência para alguns, não é considerado violência para outros. Assim, destaca-se a agressividade como signo central porque ela apresenta-se como um elemento "neutro", que facilita o consenso sobre a qualificação em considerar um fenômeno como agressivo ou não.
Com esses pressupostos, a Psicanálise gerou esforços para tentar explicar como a agressividade origina-se nos sujeitos. A primeira hipótese foi a construção freudiana da pulsão de morte em Além do princípio do prazer (1920/2006a), que expomos anteriormente. Outros autores, que aqui destacamos do campo de Freud-Lacan, realizaram importantes avanços sobre essa questão.
Os estudos do estádio do espelho e do narcisismo permitiram Lacan lançar hipóteses importantes e ainda não alcançadas pela Psicanálise sobre a constituição dos sujeitos. Lacan vai dissertar sobre a agressividade a partir da teoria da identificação, na qual a agressividade articulase com a linguagem, diferentemente da forma que Freud teorizou a pulsão de morte, isto é, inata aos sujeitos. A pulsão de morte em Freud e o entendimento sobre a agressividade em Lacan criou um certo distanciamento teórico entre os autores, mas eles não deixaram de pensar, de fato, sobre a mesma questão, atentando-se aos fenômenos já mencionados. Ainda com as particularidades que tornam as teorias divergentes, veremos mais adiante como elas não se excluem e na realidade se complementam teoricamente.
Tomaremos como texto central a Agressividade em Psicanálise (Lacan, 1948/1998b) para esse desenvolvimento, adicionando a participação de outras obras e autores que nos auxiliam a compreender a gênese da agressividade nos sujeitos.
Lacan relata que as intenções agressivas apresentam-se como imagens de castração, emasculação, mutilação, desmembramento, desagregação, eventração, devoração e explosão do corpo, exemplos que ele reúne e qualifica como imagos do corpo despedaçado. Elas evidenciam como há uma relação específica do homem com seu próprio corpo, observáveis, conforme a experiência psicanalítica demonstra, nos comportamentos infantis, nos sonhos, em diversos fenômenos culturais e, especialmente, nas esquizofrenias e paranoias (Lacan, 1948/1998b; Lacan, 1949/1998c).
A imago do corpo despedaçado é motivo de angústia. Ela é sentida como desagradável, fazendo com que o eu (que se ampara no registro do imaginário) se manifeste como efeito da própria angústia, criando um corpo unificado que pode saná-la. Aqui, o eu é responsável por fazer uma delimitação corporal que unifica o corpo, no qual justifica a afirmação freudiana que o eu "é, primeiro e antes de tudo, um eu corporal" (Freud, 1923/2006b, p. 40). Acrescentamos que a angústia é compreendida como uma pulsão que se representa por meio de um afeto (affekt), mas que não ganha representação (vorstellung), coincidindo com a ideia de que o eu cria significação por meio da construção de uma unidade corporal.
De modo específico, Lacan disserta como a agressividade torna-se um elemento fundante do processo de subjetivação correspondente ao tempo do narcisismo, diretamente relacionado com a gênese do eu. Esse período, que Lacan nomeia como estádio do espelho, é a circunstância na qual o infans se refere a seu semelhante numa situação vivida como indiferenciada (Lacan, 1948/1998b, p. 113), momento em que a criança ainda não consegue distinguir-se na relação que estabelece com o Outro. Em resumo, o eu decorrente do estádio do espelho se constitui como resultado de uma identidade alienante, uma identificação imaginária para com o Outro, seja seu semelhante (como outra criança ou seus pais), seja com o reconhecimento de sua própria imagem no espelho. Esse processo de identificar-se com uma imagem, isto é, o reconhecimento da própria imagem em diferenciação com a imagem do Outro, é a origem das demais identificações posteriores do sujeito. Se para Freud o eu é primeiramente corporal, Lacan consegue dar um passo adiante. Se só há eu porque há Outro, o eu é primeiramente Outro.
O que chamei de estádio do espelho tem o interesse de manifestar o dinamismo afetivo pelo qual o sujeito se identifica primordialmente com a Gestalt visual de seu próprio corpo: ela é, em relação à descoordenação ainda muito profunda de sua própria motricidade, uma unidade ideal, uma imago salutar; é valorizada por todo o desamparo original, ligado à discordância intra-orgânica e relacional do filhote do homem durante os primeiros seis meses de vida, nos quais ele traz os sinais, neurológicos e humorais, de uma prematuração natal fisiológica. (Lacan, 1948/1998b, pp.115-116, grifos do autor)
Como explica Birman (2006), essa imagem especular resultante do estádio do espelho, "possibilita um continente para o psiquismo e o corpo, ao mesmo tempo que se oporia à dispersão originária", que, como dissemos, é motivo de angústia, e também "matriz dos fantasmas de morte no psiquismo" (Birman, 2006, p. 372).
Por isso mesmo, qualquer ameaça à integridade da imagem especular do eu seria fonte de angústia, da ordem do horror e do terror, de sabor marcadamente arcaico. [...] Em conseqüência disso, a agressividade se produziria no psiquismo, como contrapartida que seria a essa ameaça, como forma primordial de defesa, contra o possível retorno da fragmentação corpórea. (Birman, 2006, p. 372)
Contudo, a gênese de uma imagem especular do eu diante da possível fragmentação corporal é frágil, justamente porque esse eu é exclusivamente imaginário. Para assegurar a unidade corpórea, é fundamental uma mediação: a representação do Outro no psiquismo. A representação, como campo da linguagem, pela sua complexidade e principalmente pela sua dimensão temporal, poderia melhor contrapor à fragmentação corpórea (Birman, 2006, p. 374), inscrevendo o eu no registro simbólico e não somente no imaginário. Como sabemos, a possibilidade de inscrição no simbólico ocorre pela travessia do Édipo, período posterior ao estágio do espelho na constituição subjetiva, momento no qual se poderia superar essa agressividade constitutiva do eu. Isso esclarece os fenômenos relativos ao corpo nos desencadeamentos foraclusivos, sobretudo nas esquizofrenias, pela impossibilidade de esses sujeitos estabelecerem um ideal do eu, um eu simbólico.
Com a entrada no campo do simbólico, o sujeito pode se representar por meio de significantes. Por meio destes, a agressividade (como expressão da pulsão de morte) pode ser representada sem necessariamente ser expressa na forma de violências.
Em suma, a agressividade humana está relacionada com a gênese do eu, e, como vimos, a formação do eu depende, em princípio, de uma imagem corporal. Sendo o corpo o elemento mais primitivo relacionado à agressividade, é possível perceber de maneira mais ou menos evidente como a agressividade está correlacionada com o corpo nos fenômenos subjetivos e sociais. Sem nos prolongarmos muito nesse assunto, citamos, a título de exemplo, como a agressividade se faz presente nas tatuagens, piercings, mutilações, artes, literaturas, "expressões estéticas", palavras proferidas pelos sujeitos nos atos violentos ("te quebro a cara", "te arrebento", etc.), brincadeiras infantis, em modalidades esportivas de combate e outros fenômenos. Fazendo relação com a teoria da pulsão de morte,
Não há caso de análise em que transpareça a atividade dominante de Thanatos, sem que se ouça falar de jejum, de anorexia, de bulimia, de façanhas físicas à procura dos limites de esgotamentos, de ascese, de excesso, de fascinação irrepreensível por todas as maneiras de se expor aos perigos diversos ao medir os limites da resistência física e da resistência mental através da provação física. (Zaltzman, 1993, p. 49, grifos nossos)
Com isso, queremos salientar que o corpo é o ator principal nas cenas em que a agressividade se faz presente.
Retomando a ideia da possibilidade de singularização provida pelas pulsões de morte, façamos alguns apontamentos a partir dos avanços lacanianos. Se as pulsões de vida estão direcionadas para a unidade imaginária da unificação, como expressão da potência do Um, a pulsão de morte não se trataria somente da morte concreta do sujeito, "mas de desestabilização da coerência imaginária do eu que, em seu esforço em se manter idêntico, recusaria a diferença necessária para tornar-se outro" (Oliveira et al., 2016, p. 74). Dito de outra maneira, a pulsão de morte estaria a favor da possibilidade da inscrição de um ideal do eu no psiquismo, negando a força das pulsões de vida em conservar a unificação imaginária com o Outro, promovendo uma singularidade, uma possibilidade para "ser diferente", como já dissemos.
No estádio do espelho, é mais evidente o conceito de transitivismo, momento no qual o infans transita numa espécie de continuidade oscilante entre a própria imagem e a imagem do semelhante. É um instante em que o eu pode tomar-se como outro, um fenômeno de desconhecimento do eu que, como a teoria demonstra, refere-se ao processo da gênese do eu, no qual o eu imaginário se constitui por meio do outro.
Durante todo esse período, registram-se as reações emocionais e os testemunhos articulados de um transitivismo normal. A criança que bate diz que bateram nela, a que vê cair, chora. Do mesmo modo, é numa identificação com o outro que ela vive toda a gama das reações de imponência e ostentação, cuja ambivalência estrutural suas condutas revelam com evidência, escravo identificado com o déspota, ator com o espectador, seduzido com o sedutor. (Lacan, 1948/1998b, p. 116).
Como explica Guillot (2014, p. 7), a identificação de si, constituindo um eu imaginário e um corpo unificado, por meio da imagem do Outro não é sem consequências. Isso resulta em um duplo registro na relação do sujeito com seu semelhante: o erotismo e a agressividade.
Existe um componente erótico, porque o sujeito vê no outro uma imagem ideal, narcísica, de si mesmo, que ele investe libidinalmente como sua própria imagem. Existe um componente agressivo porque, se "eu é o outro", então esse outro pode tomar meu lugar. E é em termos de "você ou eu" que se desdobra então a relação. A única saída vem a ser a destruição do outro. (Guillot, 2014, p. 7).
O fato de o infans ter uma identificação alienante com a imagem do semelhante faz com que se inicie uma concorrência pelo objeto que o Outro deseja, uma luta pela posse do objeto, que Lacan nomeia de ciúme primordial. Isso permite fazermos referência ao aforismo lacaniano de que o desejo do homem é o desejo do Outro. Como afirma Lacan (1948/1998^ p. 116),
Essa forma [de identificação que constitui o eu] se cristalizará, com efeito, na tensão conflitiva interna ao sujeito, que determina o despertar de seu desejo pelo objeto do desejo do outro: aqui, o concurso primordial se precipita numa concorrência agressiva, e é dela que nasce a tríade do outro, do eu e do objeto.
5 Articulações finais entre a pulsão de morte e a agressividade em Freud e Lacan
Com a construção teórica da agressividade relacionada à gênese do eu, evidenciando o narcisismo, Lacan deixa em segundo plano o conceito de pulsão de morte na Psicanálise. Isso não significa que esse conceito perdeu importância, mas ele conserva e supera, num mesmo movimento, a teoria freudiana da pulsão de morte. Como vimos, o conceito de gozo permitiu reunir as duas pulsões em um certo monismo pulsional por meio da teoria das fusões, diferenciando-se da insistente ideia da dualidade pulsional freudiana. Esse desdobramento da teoria permitiu repensar alguns impasses e críticas que a Psicanálise freudiana sofria e ainda sofre, como a divergência presente na hipótese junguiana de energia psíquica.
Se a princípio desenvolveu-se a pulsão de morte para teorizar sobre a agressividade, agora em Lacan, ela aparece como consequência lógica da gênese do eu (Guillot, 2014, p. 14). Nesse sentido Lacan (1946/1998d, p. 188, grifos do autor), antecipando seus escritos sobre o estádio do espelho e a agressividade, afirmou:
[...] o que Freud procurou situar em sua metapsicologia com o nome de instinto de morte, ou ainda de masoquismo primordial, decorre, para nós, do fato de que a morte do homem, muito antes de se refletir, aliás de maneira sempre ambígua, no pensamento, é por ele experimentada na fase de miséria original que ele vive, desde o trauma do nascimento até o fim dos primeiros seis meses de prematuração fisiológica, e que depois irá repercutir no trauma do desmame.
Conservou-se o valor particular da teoria pulsional freudiana, no qual existe algo do sujeito que pertence a ele mesmo, ao mesmo tempo em que depende do outro para que haja esse reconhecimento. "Não há, com efeito, outra realidade senão esse toque da morte cuja marca ele recebe em seu nascimento, por trás do novo encanto que assume no homem a função imaginária" (Lacan, 1955/1998e, p. 348). Conforme Lacan (1955/1998e, p. 347), a noção de agressividade corresponde
à dilaceração do sujeito em relação a si mesmo, dilaceração cujo momento primordial ele conheceu ao ver a imagem do outro, captada na totalidade de sua Gestalt, antecipar-se ao sentimento de sua desarmonia motora, que ela estrutura retroativamente como imagens de despedaçamento.
Birman (20026, pp. 372-373) destaca pontos cruciais que evidenciam a continuidade da teoria de Freud e Lacan:
1. A oposição cortante enunciada por Lacan, entre corpo fragmentado e corpo totalizado/especularizado, é uma outra versão para a oposição freudiana entre pulsão de morte (fragmentação) e pulsão de vida (união). Contudo, se o discurso freudiano enfatiza os registros da pulsão e da representação, o de Lacan, em contrapartida, costura o registro da pulsão com o da imagem.
Se fizermos um paralelo com o que aponta Guillot (2014), a ênfase freudiana nos registros da pulsão e da representação é a maneira na qual a pulsão de morte aparece, respectivamente, como gozo e significante em Lacan. "Quando Lacan recorre ao simbólico, é a dimensão significante da pulsão de morte que se adianta" (Guillot, 2014, p. 14), isto é, estamos no campo da representação que, acrescentamos, também está no registro imaginário, mesmo que se apresente de outra maneira. Se não estamos no campo da representação, no campo da linguagem, os "registros da pulsão" se fazem no real, em outras palavras: "quando recorre ao registro do real para dar conta da libido freudiana, é o gozo que é considerado como indo no sentido da morte" (Guillot, 2014, p. 14). Após esse breve destaque, seguimos com Birman dizendo que:
2. Da mesma forma que no discurso inicial de Freud, no qual a instância do eu e a agressividade se articulam, no discurso teórico de Lacan, o eu luta também insistentemente pela afirmação da vida contra a ameaça de morte, pelo viés do domínio de si e do outro. Por esse caminho fundamental, a vida pela mediação do eu se impõe em face da morte e do despedaçamento psíquico. (Birman, 2006, p. 372-373)
Por fim, ressaltamos que este artigo é reflexo de um trabalho que tentou sintetizar os principais pontos que articulam a pulsão de morte em Freud e a agressividade em Lacan. Assim, esperamos que esta publicação possa ser utilizada como um ponto de partida que possibilite ampliar e aprofundar esse eixo de conhecimento e pesquisa do campo psicanalítico.
Referências
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1 Há toda uma polêmica acerca da tradução que a Editora Imago fez para o título do original em alemão: Triebe und triebschicksale. Utilizamos o termo "pulsão" quando essa tradução menciona a palavra "instinto" referindo-se ao original alemão trieb.