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Revista Subjetividades
Print version ISSN 2359-0769On-line version ISSN 2359-0777
Rev. Subj. vol.16 no.1 Fortaleza Apr. 2016
https://doi.org/10.5020/23590777.16.1.23-36
DOCÊNCIA E PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADES
Entre travessias: a saúde dos docentes na expansão/interiorização do IFMA
Between crossings: the health of teachers in the expansion / internalization of IFMA
Entre travesías: la salud de los docentes en la expansión / interiorización del IFMA
Entre les passages: la santé des enseignants à l'expansion / intériorisation de l'IFMA
Valéria Maria Lima CardosoI; Carla Vaz dos Santos RibeiroII
IPsicóloga, Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Maranhão
IIProfessora adjunta da Graduação e do Mestrado em Psicologia da Universidade Federal do Maranhão Universidade Federal do Maranhão
RESUMO
Este artigo refere-se aos impactos na saúde dos docentes do processo de migração decorrente da expansão /interiorização do IFMA. Adotou-se o materialismo histórico dialético como método e, como referencial teórico, a Sociologia do Trabalho e a Psicodinâmica do Trabalho. Entrevistou-se 5 (cinco) professores e 2 (dois) diretores por meio de roteiros de entrevista semiestruturada. Concluiu-se que os professores se utilizam de diferentes estratégias para o enfrentamento das adversidades no contexto laboral, que envolve o distanciamento familiar e as condições de infraestrutura deficitárias da cidade onde está localizado o campus.
Palavras-chaves: migração humana; trabalho docente; saúde; ensino profissionalizante.
ABSTRACT
This article refers to the health impacts of the migration process carried out by teachers as a result of the expansion / internalization of IFMA. The dialectical historical materialism was adopted as method and as theoretical reference the Sociology of Work and the Psychodynamics of Work. Five (5) teachers and two (2) directors were interviewed through semi-structured interview scripts. It is concluded that teachers use different strategies to cope with adversities in the work context that involve family distancing and the deficit infrastructure conditions of the city where the campus is located.
Keywords: Human migration; Teaching work; health; vocational education.
RESUMEN
Este trabajo se refiere a los impactos en la salud del proceso de migración realizado por los profesores debido a la expansión/interiorización del IFMA. Se adoptó el materialismo histórico dialéctico como método y como referencial teórico la Sociología del Trabajo y la Psico-dinámica del trabajo. Fueron entrevistados 5 (cinco) profesores y 2 (dos) directores por medio de guión de entrevista semi- estructurada. Se concluyó que los profesores utilizan diferentes estrategias para el enfrentamiento de las adversidades en el contexto laboral que envuelven el alejamiento familiar y las condiciones de infraestructura deficiente de la ciudad donde se ubica el campus.
Palabras claves: migración humana; trabajo docente; salud; enseñanza profesional.
RÉSUMÉ
Cet article se réfère aux effets sur la santé du processus de migration effectué par les enseignants en raison de l'expansion / intériorisation de l'IFMA. Il a été adoptée le matérialisme historique dialectique comme méthodologie et comme cadre théorique une sociologie du travail et de la psychodynamique du travail. Nous avons interrogé cinq (5) enseignants et deux (2) directeurs au moyen des scripts entretiens semi-structurés. Il en résulte que les enseignants utilisent différentes stratégies pour faire face à l'adversité dans le contexte de l'emploi, concernant l'éloignement de la famille et des conditions d'infrastructures déficitaires de la ville où se trouve le campus.
Mots-clés: migration humaine; travail d'enseignement; santé; formation professionelle.
Nesse artigo, elegeu-se como objeto de estudo a categoria docente da Educação Profissional Tecnológica, que vivencia a expansão / interiorização dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão (IFMA). Dessa forma, o tema central desse trabalho consistiu em analisar os efeitos da migração na saúde dos docentes, bem como as estratégias de mediação utilizadas por esses profissionais para manterem-se saudáveis, em um contexto laboral bastante adverso.
A expansão dos IFETs decorre de um longo debate em que a Educação Profissional passa por uma reordenação política em virtude das transformações do mundo do trabalho. Denominados durante muito tempo como Centros Federais de Educação Tecnológica (CEFETs) e Escolas Agrotécnicas Federais, estes passaram a ser, a partir de 2008, Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, constituindo, assim, um universo educacional diversificado e diferente da educação básica, com formação mais rápida visando maior absorção pelo mercado de trabalho.
Sendo assim, a Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica passou a ser estruturada pelos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia; pelos CEFET -RJ e CEFET-MG; pela Universidade Federal Tecnológica do Paraná e Escolas técnicas vinculadas às Universidades Federais (Lei n. 11. 892, 2008).
O Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão (IFMA) foi criado mediante a integração do CEFET-MA e das Agrotécnicas das cidades de São Luís, de São Raimundo das Mangabeiras e Codó. Portanto, transformaram-se em IFMA os seguintes campi: Campus Monte Castelo (São Luís), Campus Maracanã (São Luís), Campus São Raimundo das Mangabeiras e Campus Codó.
A transição do Cefet-MA para IFMA foi acompanhada por uma institucionalização muito complexa, que exigiu a elaboração de normas, regimentos e reestruturação da organização do trabalho. Quando esse processo ocorre nos campi do interior, as dificuldades socioeconômicas do estado do Maranhão, com índices de desigualdades sociais entre os mais altos do Brasil, devem ser consideradas, pois tal cenário constitui uma variável muito importante, que interfere na otimização do trabalho, dadas as precarizações regionais.
Compreende-se que o professor, enquanto categoria de trabalho, sofre os efeitos dessa transição não somente no fazer profissional, mas também na saúde e subjetividade, uma vez que ele se encontra inserido nesse contexto de mudanças.
O campus Alcântara, local onde se realizou a pesquisa, pertence à segunda fase da expansão, foi originado do extinto Núcleo Avançado, inaugurado em 2008, com dependência administrativa do CEFET-MA, em São Luís. Tornou-se campus em 2010, por meio da resolução 19/2010, com os seguintes cursos: curso de Eletrônica nas modalidades subsequente e integrado, curso Meio-Ambiente na modalidade integrado - Proeja, e o curso de tecnólogo Gestão em Turismo.
O processo de implantação do campus Alcântara foi realizado em estruturas improvisadas, a partir de um prédio onde funcionava o Núcleo Avançado, com duas salas de aula e uma sala denominada de departamento pedagógico, onde funcionavam, também, os demais departamentos.
Em seguida, foi alugado outro prédio para funcionarem as atividades administrativas e outros departamentos. Ressalta-se também um acordo feito com a prefeitura da cidade que doou, por 20 anos, um casarão histórico para funcionar o Núcleo Profissionalizante de Turismo, uma espécie de hotel-escola. Acontece que a quantidade de alunos aumentava a cada ano, mas sem estrutura de sala de aula, pois nesse Núcleo passaram a funcionar salas de aulas e demais departamentos, apesar da resistência dos professores do eixo de turismo. Assim, o campus era composto por três prédios separados.
Para compreendermos o contexto de trabalho dos professores do campus Alcântara, é necessário também descrevermos as condições socioeconômicas da região que, de um lado, justificam a sua existência naquele espaço como possibilidade do desenvolvimento regional e também humano, mas que também constitui um fator que dificulta o trabalho do professor, que lida com alunos carentes e com defasagem escolar. Alcântara possui o índice de desenvolvimento humano (IDH) de 0,573 médio PNUD/2013, portanto, muito baixo. A renda per capita dos alunos também é muito baixa. O município conta com uma população de 22 mil habitantes, sendo apenas 6 mil na sede do município.
Ressalta-se que a distância de Alcântara para a capital é 18,62 km, relativamente pequena, o acesso pode ser feito via marítima, atravessando a Baía de São Marcos, por embarcações como barcos e catamarãs, com a duração da viagem de uma hora e quarenta minutos, ou utilizando os Ferry Boats, com a duração de duas horas e meia de viagem. O que transforma essa proximidade em um percurso prolongado e desgastante é o estado precário das embarcações, que não possuem horários fixos devido à tábua da maré, e a profundidade e força motriz da Baía de São Marcos, a segunda mais profunda do mundo.
Quando esse trajeto é realizado via Ferry Boat, a viagem até Alcântara possui duas etapas. A primeira se dá da Ponta da Espera, local de saída do Ferry Boat em São Luís, até o Cujupe, local onde atraca, com estimativa de viagem em uma hora e meia. A segunda, do Cujupe até Alcântara, é feita pelo uso do transporte alternativo van, cujo trajeto é realizado em uma hora. Ressalta-se, também, que do percurso Cujupe-Alcântara há só duas vans funcionando nos seguintes horários: 6h, 7h30, 19h. O valor gasto totaliza R$18 reais para chegar até a cidade.
A cidade, enquanto seu aspecto histórico e cultural, é marcada por uma história de escravização, com territórios de reconhecimento quilombola, e abriga o Centro de Lançamento de Alcântara, que precisou, para efeito de sua instalação remanejar de maneira compulsória os remanescentes quilombolas, acarretando assim impactos sociais e ambientais. Os efeitos dessa violação aparecem na resistência que parte da população apresenta em relação a participar das atividades que o IFMA realiza.
Para pesquisar sobre a saúde do docente a partir de um contexto que envolve dimensões objetivas e subjetivas, em que o individual e social mostram-se claramente envolvidos num nó indissociável, torna-se fundamental a escolha de um método que possa avançar para além de como o fenômeno se apresenta e que considere as contradições inerentes da realidade. Foi adotado, dessa maneira, o materialismo histórico dialético como método, uma vez que identificamos a totalidade, a contradição e a historicidade como elementos essenciais para que possamos conhecer o fenômeno e tratar a realidade como passível de transformações. Entende-se o fenômeno como aquilo que se manifesta com mais frequência e de imediato. Dito isto, é necessário compreendê-lo para que se tenha a consciência que existe algo susceptível de ser definido como estrutura da coisa, essência da coisa, e que existe uma oculta verdade das coisas, bem diferente do fenômeno que se apresenta imediatamente (Kosik, 1976).
Entretanto, para apontar elementos da subjetividade que se inscrevem no trabalho, optou-se por teóricos como Christopher Dejours, principal expoente da Psicodinâmica do Trabalho, por referir-se a prazer-sofrimento com base no confronto psíquico do trabalhador com a organização do trabalho. Ao desenvolver seus constructos teóricos, o autor relaciona a saúde com a subjetividade, ultrapassando uma abordagem biológica e reducionista. Assim, falar de saúde é discorrer sobre a subjetividade a partir da dialética prazer-sofrimento nos contextos organizacionais.
Para alcançar, portanto, o objetivo proposto pela pesquisa, optou-se por uma amostra intencional, uma vez que desejávamos pessoas com as vivências específicas descritas a seguir. Sendo assim, no universo de 37 professores foram entrevistados, 5 (cinco) professores e 2 (dois) diretores foram escolhidos a partir dos seguintes requisitos:
● Professores que, a partir das observações de umas das autoras e da convivência de trabalho diário com eles, apresentavam vivências diferenciadas no contexto de trabalho, tais como nível alto ou baixo de satisfação no trabalho, maior ou menor compromisso com a instituição.
● Professores que estão em exercício no IFMA/Alcântara há pelo menos dois anos, incluindo os professores que faziam parte do núcleo avançado antes da institucionalização do campus, ocorrida em 2010.
● Gestores com a ocupação do nível hierárquico mais alto. A escolha por esses gestores deve-se ao intuito de aprofundamento da investigação e por estarem na ponta do processo de estruturação do contexto do ensino para que o trabalho docente possa acontecer. Estava previsto entrevistar os três diretores: diretor geral, diretor de ensino e diretor de planejamento. Mas esse último apresentou muita resistência em relação à entrevista.
Foram excluídos professores afastados por licença para pós-graduação, por questões de saúde ou exercício provisório em outro campus. Na efetivação do processo, foi necessário construir dois roteiros de entrevista semiestruturada para cada tipo de amostra: um para professores e outro para os diretores.
Os professores escolhidos apresentavam o seguinte perfil (Tabela 1):
A escolha desse instrumento, roteiro de entrevista semiestruturada, possibilita maior liberdade de elaboração de outras questões que podem ocorrer no momento da coleta de dados. Esse instrumento viabiliza, também, por meio da mediação da palavra, o sentido compartilhado do trabalho, o invisível, o latente na interação do sujeito com a realidade (Mendes, 1996).
No primeiro momento da pesquisa, foi realizada uma revisão de literatura acerca das categorias teóricas escolhidas: saúde, trabalho, prazer-sofrimento, docente, e Educação Profissional e Tecnológica. Além das pesquisas em fontes documentais, dispositivos legais e outros marcos regulatórios da Política de Educação Profissional.
Os seguintes procedimentos foram adotados ao longo do estudo:
● O contato com o campo de coleta de informações a fim de solicitar autorização institucional para a realização da pesquisa;
● O encaminhamento do projeto para a apreciação do Comitê de Ética;
● Aquisição da lista de docentes do campus Alcântara no Núcleo de Gestão de Pessoas do campus;
● A coleta de informações.
Ressalta-se que todas as entrevistas foram gravadas mediante autorização e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido dos sujeitos pesquisados, identificando-os de acordo com o cargo em exercício acompanhado de um número, por exemplo: Professor G, Gestor 2.
As questões abordadas no roteiro de entrevista para docentes faziam referência as motivações para a escolha do concurso no IFMA, se sabiam se era para o interior do Maranhão. Investigamos a percepção dos docentes acerca da expansão dessa instituição.
Averiguamos também a rotina de trabalho, as relações com os colegas, as dificuldades no trabalho e como lidam com essas dificuldades. As situações de prazer também foram investigadas, assim como se a dinâmica de trabalho interfere no seu funcionamento físico, psíquico e social, e se ocorreram interferências na sua saúde. Outros aspectos do cotidiano, também afetados pelo trabalho no interior do Estado, foram relatados pelos docentes.
Investigamos ainda o olhar dos professores acerca da atuação em diferentes níveis de ensino, bem como se existe forma de prevenção em relação ao adoecimento e quais as perspectivas deles para o futuro.
Por sua vez, os gestores foram questionados acerca de sua percepção do campus Alcântara na expansão do IFMA e sobre os maiores desafios que encontraram na atuação enquanto gestores do referido campus. Investigamos também os aspectos gratificantes na administração e qual a percepção que eles têm sobre o trabalho docente no campus Alcântara; abordando a implicação do trabalho para a vida do docente, as dificuldades que os professores encontram no exercício profissional, os fatores que interferem na saúde do professor, se já presenciaram situações em que o contexto laboral repercutiu na saúde do docente e quais sugestões dariam para a melhoria das condições de trabalho no campus.
Para a análise dos dados empíricos obtidos nas entrevistas, foi utilizada a análise do discurso, a partir de Fairclough (2008), que permite analisar os discursos considerando sua relação dialética com a estrutura social e as relações de dominação.
Acredita-se que essa pesquisa pode contribuir para reflexões acerca da categoria docente dessa modalidade diante das transformações do mundo do trabalho e suas implicações para a saúde dos professores que realizam semanalmente uma migração pendular em busca de sua manutenção e de um lugar no mundo do trabalho.
A Relação Trabalho E Subjetividade Na Contemporaneidade
O trabalho tornou-se um atributo central na vida humana a partir do advento do capitalismo e "tem se transformado sobremaneira na contemporaneidade a par e passo ao processo de globalização e de reestruturação produtiva". (Tolfo, 2015, p. 615)
A partir de um lugar valorizado, a atividade laboral na sociedade contemporânea assume um significado que perpassa as necessidades, os valores e a subjetividade daquele que trabalha. Constitui-se uma atividade que ocupa parte importante do espaço e do tempo, nos quais se desenvolve a vida das pessoas. Lancman (2008, p.42) argumenta que trabalhar é mais do que vender sua força em troca de uma remuneração, é uma "oportunidade central de crescimento e desenvolvimento do adulto".
Também corroboram essa perspectiva Navarro e Padilha (2007, p.14) ao enfatizarem a importância da atividade laboral para a subjetividade dos indivíduos. Defendem que o trabalho: "[...] não é apenas meio de satisfação das necessidades básicas, é também fonte de identificação e de auto-estima, de desenvolvimento das potencialidades humanas, de alcançar sentimento de participação nos objetivos da sociedade".
Contata-se, dessa forma, que o trabalho comparece como elemento central, configurando-se como fonte de pesquisa essencial para a compreensão da constituição do ser social. Jamais pode ser considerado como neutro ou pouco significativo. Considera-se o trabalho como uma categoria-chave que "[...] ou joga a favor da saúde ou, pelo contrário, contribui para sua desestabilização e empurra o sujeito para a descompensação" (Dejours, 2008a, p. 164).
Partindo deste entendimento que revela o caráter central e ao mesmo tempo ambíguo da categoria trabalho, pode-se afirmar que o trabalho "[...] ainda parece ser uma importante fonte de saúde psíquica [...] ao mesmo tempo em que se registram cada vez mais pesquisas que evidenciam o trabalho como causa de doenças físicas, mentais e de mortes" (Navarro & Padilha, 2007, p. 15).
Assim, trabalhadores com vínculos formais ou informais e desempregados não estão isentos do sofrimento psíquico relacionado ao trabalho, pois este é um elemento constituinte da subjetividade, ou seja, "trabalho e profissão (ainda) são senhas de identidades" (Navarro & Padilha, 2007, p. 14).
Na atualidade, vivenciam-se mudanças na economia em decorrência da reestruturação produtiva que vem acarretando impactos na subjetividade dos trabalhadores. Hoje, o mundo do trabalho possui uma configuração bem distinta daquela existente no início no século XX com o fordismo.
Consiste no momento de novos processos e mercados de trabalho, de produtos e padrões de consumo, pelo surgimento de setores de serviços financeiros e, sobretudo, pela geração de taxas de inovação comercial, tecnológica e organizacional, bem como pela expansão dos setores industriais por regiões diversas em busca de novos espaços de produtividade.
As novas formas de organização têm como fonte inspiradora o modelo japonês denominado de toyotismo, idealizado por Taiichi Ohno, uma vez que a Toyota foi a primeira a implementar os princípios dessa forma de gestão. Assim, o toyotismo caracteriza-se por uma produção com base na demanda, por trabalho em equipe e pela exigência da polivalência, estruturando, dessa maneira, o processo produtivo flexível.
É um período de mudanças, não somente políticas e econômicas, mas também com grandes repercussões na subjetividade e nos ideais da classe trabalhadora. Para Antunes (2009), a reorganização do capitalismo busca gestar não apenas a esfera produtiva, mas também outros âmbitos da sociedade através do culto a um subjetivismo e a um ideário fragmentador que faz apologia ao individualismo, opondo-se às formas de solidariedade e de atuação coletiva e social.
Nesse contexto, o trabalhador tende ao autocontrole emocional, à autopunição, quando não alcança a meta pretendida e a qualidade total exigida, levando a extremidades como suicídios ou outras doenças mentais quando fracassa no trabalho. O indivíduo, portanto, vive no eterno movimento de busca de adequação ao perfil imposto pela nova configuração do mundo trabalho como uma maneira de assegurar-se nele, pois o não lugar no mercado proporciona sofrimento, dessa forma:
[...] o medo do desemprego do trabalhador assalariado consente maior nível de exploração de sua força de trabalho e renúncia a direitos sociais e trabalhistas [...], o medo dissolve o sujeito e a subjetividade humana. É o estofo do fetichismo agudo que permeia as relações estranhadas da civilização do capital. (Alves, 2005, p.95)
A crescente perda de garantias dos direitos somada a permanente ameaça de desemprego impulsionam os trabalhadores a buscarem o serviço público como forma de estabilidade financeira.
Observa-se, porém, nos serviços públicos, o enxugamento do quadro de servidores e aplicação dos modelos gerenciais das empresas pautados na lógica mercantil. Dessa forma, os princípios administrativos da gestão privada, como competência, qualidade total, dentre outros, expandiram-se na administração pública e são percebidos como progresso, em contraste com a figura do Estado, vista como arcaica, burocrática e ineficiente (Navarro & Chiavegato Filho, 2013).
Todavia, a performance do gerencialismo em instituições privadas é distinta do setor público, pois, nas instituições privadas, há maior liberdade para definições de metas e para gerenciar o quadro de pessoal. Já o gestor público detém um baixo poder de decisão e uma autonomia limitada, uma vez que ações estão condicionadas aos ditames do governo. Soma-se, também, a constante pressão política, restrições orçamentárias, condições inadequadas de trabalho, escassez de recursos materiais e humanos, estrutura burocrática, ascensão profissional e salarial insuficientes, além da imagem negativa do servidor público como o malandro, avesso ao trabalho (Ribeiro & Mancebo, 2013).
Mesmo diante do quadro do funcionalismo público caracterizado por um misto da lógica gerencialista e da lógica secular e histórica da administração pública burocrática, como também permeado por condições de trabalho adversas, a busca desenfreada pelas carreiras públicas torna-se uma prática comum pelos indivíduos devido à estabilidade econômica.
É assim que a maioria dos professores entrevistados afirmou que a busca por segurança financeira foi a principal motivação para trabalhar em um campus do IFMA no interior. "Fiz o concurso pela estabilidade financeira. Eu fiz para capital São Luís, como não fui aprovada na primeira colocação, me propuseram Alcântara, então eu aceitei, foi a única possibilidade" (Professora A).
Os professores, desse modo, adentram as instituições localizadas no interior do Estado muitas vezes sem conhecer o local anteriormente e, sobretudo, sem pensar nos impactos desse deslocamento para sua vida, trabalho, subjetividade e saúde.
Entre Indas E Vindas: Trabalho E Saúde Docente Na Expansão / Interiorização Do IFMA
Para a psicodinâmica do trabalho, o labor pode contribuir tanto para a saúde como para o adoecimento. Assim sendo, analisa-se, a partir da dinâmica prazer-sofrimento, as mobilizações e defesas dos trabalhadores para lutar contra o sofrimento inerente as situações de trabalho. Não existe nenhum recurso tecnológico ou organização do trabalho que possibilitem exclusivamente saúde e prazer. A saúde no trabalho não está relacionada à ausência de sofrimento, e sim "ao uso bem-sucedido dos recursos para enfrentá-lo e transformá-lo. [...] um dos destinos do sofrimento pode ser o adoecimento [...] por outro lado, o sofrimento também pode ser transformado em experiência de prazer e também fortalecer a saúde" (Lima, Mendes, & Costa, 2015, p.138).
Dejours não nega a existência de paixão e prazer no trabalho, mas compreende que tais experiências são permeadas pela dimensão do sofrimento. Portanto "a saúde, o prazer, a realização de si mesmo, construção da identidade são ganhos com relação ao sofrimento, componente básico da relação de trabalho" (Dejours, 2008b, p. 158). Assim, ele nomeia de normalidade sofrente a vivência alcançada entre o sofrimento e as mobilizações individuais ou coletivas contra as situações adversas do trabalho (Dejours, 2007).
O sofrimento é um estado de luta do sujeito contra as forças (ligadas à organização) que empurram em direção à doença mental, pois a organização do trabalho possui normas e prescrições que não convergem com o desejo dos indivíduos. Assim, "trabalhar consiste em deparar, inevitavelmente, com a experiência do sofrimento" (Moraes, 2013, p. 415).
Nessa perspectiva, identifica-se vivências concomitantes de prazer e sofrimento no cotidiano laboral dos professores do campus de Alcântara. Para a maioria dos docentes, a jornada de trabalho se inicia com a travessia da baía de São Marcos para chegar até a cidade por meio de ferry boats ou de catamarãs, barcos que não possuem horários fixos e obedecem a tábua da maré. Os dissabores experimentados no deslocamento para o trabalho ficam evidentes nas falas que seguem:
[...]geralmente saio seis horas da manhã, pego um ônibus na integração da COHAMA, aí, em seguida, eu vou para o cais, na beira-mar, pego o barco, e aí chego a cidade de Alcântara em torno de oito horas, oito e meia[...] É sofrido, pelo transporte, é complicado chegar a cidade, já que o acesso mais fácil (entre aspas), é pelo barco, né, o acesso marítimo. E, ás vezes, é complicado, porque tem ...é... esse acesso segue o ritmo da maré, a tábua da maré, então muitas vezes você precisa chegar às nove horas da manhã [...]. (Professora A)
[...]desde domingo eu já fico tonto (risos) só em pensar na travessia do barco - que eu tenho labirintite, né, então, eu desde criança, eu não posso nem andar em roda gigante, nem em parque de diversões, nem em nada de brinquedo que roda. E aí, por sorte ou por destino, eu vou trabalhar num local que eu tenho que pegar um barco que balança mais do que a... Eu chego lá verde, roxo, toda vez eu tenho que levar um time de adaptação [...]. (Professor E)
Mas também, para outros, a travessia não comparece como sofrimento, e sim é fonte de prazer, uma vez que trabalhar no interior é a possibilidade de se distanciar dos problemas urbanos da capital, São Luís.
[...] eu acho muito boa essa viagem. Para mim é como se eu fosse assim... Eu... todo mundo se estressa, eu me desestresso. Toda vez que eu venho de catamarã, que eu venho na capota, eu acho muito legal, então, para mim, é sair daquela correria de São Luís ali pra Alcântara, para mim é muito legal, porque não tem trânsito, não tem poluição, não tem engarrafamento. (Professor E)
Um dos entrevistados ressalta a necessidade de um preparo corporal, físico, para o seu trabalho, uma vez que esses professores não são de Alcântara, moram em São Luís, tendo que levar desde a alimentação, roupas, livros, computador já que passam alguns dias na cidade.
[...] você precisa ter resistência corporal pra enfrentar a travessia, né, porque você leva bagagem e você precisa ter uma resistência física bem forte pra sustentar o peso dos livros, o peso das roupas, o peso da alimentação. Isso influencia bastante. (Professora A)
Alguns professores fazem uso de medicação para poder suportar a viagem e não enjoar. A fala de um dos gestores descreve que alguns docentes desenvolveram labirintite, além de dependência à medicação para enjôos. Assim diz:
[...]Dá para a gente perceber que alguns desenvolvem algumas doenças físicas por essa travessia, pois, afinal de contas, é um dos canais mais profundos que existem. E outra coisa que eu tenho percebido é o uso do Dramin. Alguns servidores fazem uso constante do Dramin. Toda coisa que sente pensa que o Dramin vai resolver. Acho que tem alguma questão que precisa ser melhor avaliada, melhor estudada. Isso começa a ser usado como desculpa. Não sei se a ver com sensação que é boa [...] Algumas pessoas já falaram que desenvolveram labirintite no trabalho [...]. (Gestor 2)
Existe, portanto, um grande desgaste para realizar a travessia. Não se trata tão somente de uma dimensão física, corporal, mas também exige que o indivíduo lance de estratégias de mediação para superar os dissabores desse deslocamento. Sabe-se que a utilização de tais estratégias se diferencia entre as pessoas e que estas são constituídas a partir da história de vida de cada um. É por isso que se percebem vivências e enfrentamentos diferenciados em relação ao mesmo contexto de trabalho. A respeito disso, Gernet afirma que:
[...] o confronto com a realidade de trabalho mobiliza o conjunto de personalidade do indivíduo e está na origem de "conflitos" que emergem a favor do encontro entre o indivíduo, portador de uma história singular, e as características de sua situação de trabalho [...]. (Gernet, 2010, p. 61)
A travessia, as ausências de laboratório e de materiais que são necessários às aulas práticas dos professores, são enumerados como principais fontes de sofrimento, porém, esses professores utilizam-se de outros recursos para otimizarem seu fazer profissional e também para transformação desse sofrimento.
Durante esse estado de luta, há uma possibilidade de adaptação ou ajustamento, mas também possibilidade de criação, momento em que o sofrimento se torna criativo e o trabalho se transforma em mediador para a saúde através do aumento da resistência do sujeito ao risco de desestabilização psíquica e somática.
Gernet (2010) diz que o sofrimento no trabalho poder estar na origem dos esforços dispensados pelo indivíduo com o objetivo de ultrapassar os obstáculos. Enquanto esses docentes conseguirem se mobilizarem diante desse sofrimento, que não é patogênico em si, eles conseguem gerar situações de prazer. Isto pode ocorrer a partir de duas condições: quando esses esforços são reconhecidos pelo outro e quando a organização do trabalho não impede a utilização da criatividade.
É principalmente no momento de sala de aula, do fazer docente propriamente dito, que eles vivenciam o prazer no trabalho.
É gratificante observar que ainda existem alunos interessados em aprender, e, que os resultados são positivos ao longo do ano, e que se observa na face desses alunos a alegria de poder superar uma etapa, de passar por um teste, que não é oferecido pelo Instituto, mas por outra instituição, e eles alegam que o resultado positivo seja também parte dos conhecimentos absorvidos na instituição, pelos professores. É gratificante quando eles vêm e te agradecem pelo esforço, pelas atividades aplicadas e pelas dicas dadas em sala de aula. (Entrevistada A)
Os professores que trabalham no IFMA/Alcântara residem em São de Luís e, devido à proximidade com a capital, organizam as suas vidas entre as duas cidades, portanto, vivem entre travessias. Assim, concentram a sua carga horária de trabalho e estabelecem suas rotinas em apenas alguns dias, dessa forma, não passam a semana inteira na cidade. Alugam imóveis que, para uns, são moradias improvisadas, para outros, são casas, enquanto terceiros se hospedam em pousadas. Percebemos, dessa maneira, o vínculo que cada um estabelece com a cidade e com o seu trabalho.
Eu chego na cidade[...] e, em seguida, eu vou para o Instituto, e aí a jornada de trabalho só termina mais ou menos às vinte e duas horas. Aí eu saio da aula, durmo - eu tenho uma hospedagem na cidade que dividido com mais duas amigas - no dia seguinte recomeça a rotina. V ou para o Instituto e tenho a jornada das oito horas diárias. (Professor A)
A gente chega em Alcântara (tenho uma casa alugada aqui), vou pra casa botar as coisas, tomar café, tomar banho e deixar a bagagem, daí eu saio para o Instituto. Já teve semestre de eu chegar e deixar as coisas, e ir direto dar aula. [...] Eu fico normalmente dois dias aqui. Eu venho pra cá às duas horas da tarde [...] a rotina é essa, entre casa e Instituto, me dividindo entra sala e outras atividades ligadas a atividade docente, corrigindo trabalho, elaborando prova [...] É da hora que eu entro aqui até a hora que vou, às onze horas da noite [...]. (Professor C)
Ressalta-se que os docentes, de uma maneira geral, não investem no seu bem-estar, morando em casas que possuem a estrutura mínima, tal como retrata o gestor:
[...] por terem casa em São Luís, acabam não investido no seu conforto, na sua permanência aqui na cidade, fica residindo em estilo meio acampamento. Você só vai dormir algumas noites, mas a sua casa é lá. Eu acho que isso interfere na qualidade de vida. [...]. (Gestor 2)
Deve-se atentar, no entanto, que o deslocamento partindo de São Luís, utilizando as embarcações precárias, somado com o sofrimento da travessia até a chegada à cidade de Alcântara e as condições estruturais da cidade, constituem o contexto de trabalho desses docentes. Analisamos as falas dos gestores muito conscientes em relação às condições de trabalho e à estrutura da cidade e dos meios de transporte, porém, isso não passa por um reconhecimento de contexto do trabalho como todo. A fala do gestor abaixo diz da negação desse contexto.
[...]Na verdade, aqui, a gente não tem grande motivos para outros adoecimentos, a gente não tem questão de poluição ambiental, a gente não tem calor excessivo ou frio excessivo. O nosso ambiente interno hoje, apesar de a gente estar em condições improvisadas, são ambientes sadios. [...]. (Gestor 1)
Foi identificado na fala dos professores que o afastamento familiar constitui também fonte de sofrimento. Dejours (2008a) ressalta que a análise da relação subjetiva do trabalho se estende para o espaço fora do trabalho.
A separação clássica entre dentro-do-trabalho e fora-do-trabalho não tem sentido em sociologia do trabalho, assim como na psicodinâmica do trabalho. Separação estritamente espacial. [...] O funcionamento psíquico não é divisível. O homem que está engajado em estratégias defensivas para lutar contra o sofrimento no trabalho não abandona suas estratégias defensivas no vestuário [...]. (Dejours, 2008a, p. 103)
As falas que seguem expressam, portanto, os sentimentos gerados pelo distanciamento familiar, como ansiedade e angústia, e as formas como docentes convocam as famílias a enfrentarem e ajudarem no trabalho no campus Alcântara.
Rapaz, trabalhar no interior tem que ter toda uma logística... Quem vem trabalhar aqui sabe... A gente está trabalhando no interior, mas quem está cuidando dos meus afazeres em São Luís, enquanto eu estou aqui? Porque eu não trago a casa, eu não trago os filhos, eu não trago a minha mãe que tem 74 anos? Eu fico aqui com meu telefone 24h no ar, porque a qualquer momento eu posso receber uma ligação que ela não está bem e tudo [...]. (Professor E)
A grande maioria tem a família sediada na capital e filhos estudam também na capital. Quem é casado, o marido e o filho também na capital, cuidam dos filhos na capital. E eu acho que provoca principalmente isso: distanciamento da família (Gestor 2)
Claro! Eu fico muito ansioso, eu fico preocupado, é... eu deixo [companheiro] aqui sozinho, é... no centro, é uma casa muito grande, a gente mora só nós dois [...] Até por que você não tem como voltar, se tiver uma emergência, não tem como você voltar de Alcântara, então você tenta abstrair. [...]. (Professor D)
Outros docentes conseguem lidar de modo diferenciado diante do distanciamento familiar estabelecendo distintas perspectivas:
Olha, pra mim não, porque, no caso, eu sempre trabalhei já viajando desde que eu voltei do mestrado [...] Então, eu não tive dificuldade de me adaptar, e mesmo minha família entende que a gente tinha que correr atrás do "tutu", né, pra garantir o pão de cada dia. Então, a gente superou. (Professor B)
Nota-se um estabelecimento de rotinas bem diferenciadas do que acontece em São Luís com as famílias. Dessa forma, o trabalho no interior pode possibilitar outras vivências, outras rotinas que se estendem para além do trabalho, construindo distintas possibilidades de convivências importantes para fixar o docente no local de trabalho e gerar também prazer. É como se o sujeito conseguisse estabelecer duas rotinas bem diferentes: a vida em Alcântara e a vida em São Luís.
[...] São coisas que eu não tenho em São Luís, embora, às vezes, a gente encontre, mas lá a gente tem nossas famílias, nossa vida, e lá às vezes não permite esses momentos, né, de descontração e de diálogo, de bate-papo, de conversa fora mesmo, né, por causa da nossa vida, da nossa rotina lá. E aqui a gente consegue fazer isso, sentar e conversar, jogar conversa fora, sorrir, rir muito (risos). Então, isso me dá..., eu tenho muito prazer mesmo de vir pra cá. (Professor C)
Esse mesmo professor salienta a importância de se firmar vínculo com a comunidade como um dado importante para o seu trabalho e também para a sua saúde, uma vez que reconhece o desgaste do tempo de trabalho.
[...] eu me envolvi com isso daqui. Eu gosto das pessoas, eu gosto do lugar, eu gosto do clima. Não sofro de vir pra cá nem um pouquinho. Pra mim, eu adoro chegar quarta-feira e pegar o barco e vir pra cá; claro que a gente cansa, a gente tem esse cansaço físico, o desgaste de vir pra lá, pra cá, de cá pra lá. Já á seis anos fazendo isso. Isso aí é normal, é natural da natureza humana mesmo. Mas eu gosto de tá aqui. Então, me incomoda, eu me entristeço de ver os professores vindo aqui, dando sua aulinha, pegando o barco de volta pra cá, sem saber o nome do aluno, sem se envolver, sem viver a história da comunidade, sem respirar isso daqui. (Professor D)
A gestão também reconhece que o "indo e vindo" semanalmente de professores constitui um problema, uma vez que dificulta o vínculo com o local de trabalho, mas reconhece as condições estruturais da cidade como um elemento problemático somado com transporte precário. Assim dizem:
Dificulta porque não tem nenhum docente que seja realmente de Alcântara, o docente, ele geralmente é de São Luís, a maior parte das vezes ele é de São Luís, ou, se não, ele tem a família lá, por uma série de motivos, porque o cônjuge trabalha lá, porque o filho estuda lá, coisas do tipo, ou mesmo porque quer estar em um lugar com mais infraestrutura, inclusive médica [...]. (Gestor 1)
Outro fator que dificulta o vínculo do docente e que aumenta o desejo pelas constantes remoções é ausência do incentivo financeiro, pois há custeio de duas vidas em duas cidades diferentes, além de identificarmos uma transitoriedade de grupos, o que também aponta para um enfraquecimento dos coletivos de trabalho.
O próprio profissional não tem um ganho mais, dele ir trabalhar no interior, né. Se ele tivesse um auxílio moradia, algum atrativo a mais que pudesse se fixar, né, dentro do quadro, se estabelecer dentro do município, que facilitaria, né. [...]. (Professor B)
No interior, você gasta pra caramba, isso acaba pesando no orçamento. Um cara desses vem pra Alcântara não gasta menos de R$ 100, 00. Eu e todo mundo, né? Porque tem hospedagem, tem alimentação, tem transporte, tudo é pago, sabe? O transporte mais caro do Brasil é Alcântara, porque dali pra cá é R$ 4,00 reais, não anda três minutos, enquanto que você vai de São Luís pra Ribamar é R$ 2,40, Então, aqui tudo é muito caro [...]. (Professor E)
O "indo e vindo" de professores semanalmente, justificado pela proximidade entre São Luís e a cidade em que trabalham, dificulta a criação de vínculo com a cidade, e, portanto, com o seu trabalho. Conhecer a cultura, a história da população, os seus costumes, poderiam auxiliar na minimização do seu sofrimento, além de enriquecer o seu fazer docente. Porém, a escolha de ir trabalhar longe da família, no interior, está atravessada por questões econômicas, não pela ordem de um desejo de trabalhar em outra cidade.
Então, a proximidade com a cidade de origem não proporciona o sentimento de pertencimento da nova cidade, da busca de um lugar, de uma identidade, como um espaço novo, nova cultura. Isso não existe na maioria dos professores. Eles não realizam a travessia, vivem entre travessias, vivem entre "lá e cá". "Tornam-se, assim, eternos viajantes de passagem por onde trabalham" (Assis, 2016, p.134).
Borges e Martins (2004) dizem que, no processo de migração, isto é, na passagem de uma cultura a outra, o migrante é tomado pela estranheza e pelo duplo, uma vez que já deixou um espaço de referência e ainda não estabeleceu novas raízes. Mas viver entre travessias é colocar São Luís como local de referência, sem estabelecer novas raízes com a cidade de Alcântara, cidade de trabalho. Portanto, qual a qualidade do laço social que o sujeito faz com o trabalho? Qual seu comprometimento com a educação e o alunado?
Embora os docentes não realizem uma migração no estilo de desmontar móveis e encaixotar objetos e levar consigo toda família, realizam um estilo de migração pendular, que afeta do mesmo modo a família, as atividades de lazer e sua própria vida social em apenas alguns dias que se deslocam para o interior. São mudanças profundas, percebidas nas dinâmicas estabelecidas com a família, com o seu trabalho e, sobretudo, na saúde e subjetividade em virtude da intensa dedicação ao trabalho. Desse modo, Duarte e Luzio (2008, p.10) afirmam que: "O trabalhador além de sofrer a desterritorialização concreta quando se submete a um processo migratório [...] sofre a desterritorialização simbólica, decorrente de sua intensa dedicação à Organização em detrimento da vivência familiar, social e de lazer".
Dessa maneira, todo o contexto de trabalho descrito pelos docentes e as repercussões na saúde demonstram como a dinâmica de prazer-sofrimento funciona no contexto da expansão/interiorização do IFMA. Vê-se, pois, que o enfrentamento do sofrimento é essencial para a transformação, para tanto, é necessário:
[...] fracassar para trabalhar e inventar novas formas de engajamento. Esse é o momento de emancipação do sujeito, apropria-se do sofrimento para ressignificá-lo, superá-lo e transformá-lo, sendo, desse modo, uma ação antecipada sobre as condições concretas da organização do trabalho. (Mendes, 2008, p. 14)
A saúde no trabalho está associada, então, às mobilizações subjetivas entre prazersofrimento que impulsionam o trabalhador a buscar gratificação, realização de si e reconhecimento pela utilidade e beleza de seu trabalho. Tanto o prazer quanto tentativa de evitar o sofrimento, através da criação para obtenção de prazer, são oriundos de um confronto bem-sucedido com os conflitos e contradições geradas em determinadas contextos de trabalho.
Nessa perspectiva, o prazer e a transformação do sofrimento são identificados como as dimensões fundamentais para a mobilização política e a conquista da saúde no trabalho. Assim, saúde não é um estado, mas um objetivo que se remaneja sem cessar. Não é alguma coisa que se tem ou não tem, mas que se tenta conquistar e que se defende, como a liberdade. (Dejours, 1993).
Portanto, "o lugar do trabalho na construção de saúde pode assim beneficiar-se do encontro das relações entre sofrimento e prazer para perceber as construções coletivas como transformações subjetivas que são o resultado do exercício do trabalho" (Gernet, 2010, p. 62).
Considerações Finais
Retomando o tema central do presente estudo, que aborda as repercussões do processo de migração na saúde de docentes lotados no campus de Alcântara do IFMA, podemos inferir que o cenário caracterizado pelo movimento de expansão/interiorização dos institutos federais sinaliza oportunidades de trabalho, de realização, mas, paradoxalmente, de modo concomitante, propicia vivências de angústia e sofrimento diante das condições precárias e adversas do contexto laboral. Ainda, como aspecto negativo, soma-se o caráter desagregador e desenraizante de precisar trabalhar em um campus do interior, já que, muitas vezes, o indivíduo não vê meios efetivos e seguros de incluir a sua família no processo migratório.
A necessidade de expansão do IFMA em direção ao interior do estado é algo inquestionável, sobretudo quando se trata de um estado como o Maranhão, com oportunidades de estudo e de trabalho tão limitadas. Contudo, comungamos com Ribeiro e Leda (2015, p. 253) quando alertam sobre a precariedade que acompanha esse processo de expansão/ interiorização da educação. A deficitária estrutura dos municípios em que os novos campi são inseridos, além de carências de diversas ordens, não favorecem a formação de laços duradouros dos docentes com a cidade, propiciando deslocamentos frequentes e a organização de suas vidas entre duas cidades. Nessa conjuntura, o docente "na cidade de origem, conserva casa e vínculos sólidos; na que trabalha, mantém moradias improvisadas e vínculos superficiais" (Ribeiro & Leda, 2015, p. 253).
Podemos pensar que, por mais difícil que seja a construção de vínculos no novo local de trabalho, é essencial a implementação desse processo. Permanecer como pêndulo, em lugar nenhum, é um desafio constante e tende a gerar sofrimento. No entanto, deve-se reconhecer que as condições precárias das cidades dos interiores maranhenses não favorecem a estadia dos docentes nesses lugares, bem como não existe uma contrapartida institucional que atenue as dificuldades impostas.
Pinheiro (2013) sinaliza que o professor é um sujeito social, envolto em um conjunto de relações - familiares, de trabalho e territoriais - que se (re) organizam a partir de sua condição profissional, imerso em um ambiente de trabalho que ressignifica sua vida pessoal. É necessário, portanto, que se reavalie não só as condições de trabalho oferecidas em cada campus, mas que seja feita uma análise macro do lugar que a educação ocupa hoje nos interesses do governo e de que forma os projetos propostos nesta área estão sendo desenvolvidos, se realmente têm colhido os frutos almejados em seu planejamento.
Defendemos a tese de que o "lugar" importa e que a migração tem significativa repercussão no cotidiano de quem a vivencia. O não estabelecimento de vínculo do docente com a cidade que trabalha - que, nesse caso, abrange não apenas o vínculo com o IFMA, mas também com a comunidade onde o Instituto está inserido - pode acarretar em muitas consequências, seja na sua subjetividade, seja na sua saúde.
Portanto, é necessário rompermos com a concepção naturalizante que, a partir de uma visão reducionista, tende a apontar o docente como o principal culpado pela sua não adaptação ao ambiente de trabalho. Nessa direção, este estudo pretende contribuir para dar voz aos docentes a respeito dos contextos laborais em que estão inseridos - frutos da reconfiguração da Política de Educação Profissional - para que possamos criticamente refletir sobre o quanto a saúde destes profissionais tem sido afetada e sobre as possibilidades de enfrentamento das adversidades do trabalho.
Além disso, entende-se que a migração, para além de um simples percurso de território, tem implicações significativas para os docentes, podendo ser considerada geradora de sofrimento e até adoecimento.
É necessário, portanto, que sejam revistas as prioridades do governo no que diz respeito à educação e, sobretudo, para que sejam repensadas as formas de interiorização dos institutos federais, considerando as reais condições dos municípios escolhidos, do modelo de instituição que será levado para o interior do estado, bem como as condições oferecidas para os docentes e demais sujeitos envolvidos nesse processo.
Ratificamos, assim, que a interiorização da educação é uma política importante para o desenvolvimento do estado, no entanto, configura-se como um desafio ao IFMA. É essencial investir em políticas que favoreçam a permanência dos alunos nos seus cursos, pois apenas o crescimento exponencial de vagas nos interiores dos estados não representa de fato a democratização do acesso à educação pública e a inclusão das camadas da população que estão distantes dos grandes centros urbanos.
Uma educação de qualidade, acima de tudo, demanda professores valorizados com dignas condições trabalho. Para tal, é urgente a criação de mecanismos efetivos de fixação de professores nos campi do interior, como também a implementação de projetos e ações que visem a saúde e qualidade de vida destes trabalhadores, antes que entre uma travessia e outra, o docente desista, adoeça ou, simplesmente, lance mão de alguma estratégia de defesa e repense se, de fato, vale a pena manter-se como um pêndulo, experimentando situações tão adversas.
Referências
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Endereço para correspondência:
Valéria Maria Lima Cardoso
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Carla Vaz dos Santos Ribeiro
End.: Universidade Federal do Maranhão- UFMA, Av. dos Portugueses, 1966. Bacanga
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Email: carlavazribeiro@uol.com.br
Recebido em: 22/03/2016
Revisado em: 26/04/2016
Aceito em: 30/04/2016