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Print version ISSN 2359-0769On-line version ISSN 2359-0777
Rev. Subj. vol.19 no.3 Fortaleza Sept./Dec. 2019
https://doi.org/10.5020/23590777.rs.v19i3.e7370
ESTUDOS TEÓRICOS
A elaboração conceitual da teoria freudiana do desencadeamento e estabilização
The conceptual elaboration of freud's theory of triggering and stabilization
La elaboración conceptual de la teoría freudiana del desencadenamiento y estabilización
L'élaboration conceptuelle de la théorie de freud sur le déclenchement et la stabilisation
Cláudia Henschel de LimaI; Ana Flavia Pedrosa LopesII
IProfessora Associada I. Departamento de Psicologia. Universidade Federal Fluminense. Campus de Volta Redonda. Docente Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia - Universidade Federal do Rio de Janeiro
IIDoutoranda. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal Fluminense. Campus Niteroi
RESUMO
O ponto de partida do artigo é mostrar a relevância e a atualidade da teoria freudiana da psicose. Nesse sentido, o objetivo é retomar a literatura visando a delimitar uma hipótese inaugural sobre o desencadeamento e a estabilização, em que a perturbação do funcionamento pulsional já se constituía como fator importante na etiologia psíquica de seu desencadeamento e o delírio, como um trabalho psíquico de reparação, de estabilização. Para isso, o artigo expõe um levantamento das referências freudianas a fim de mostrar o desenvolvimento epistemológico de uma pesquisa etiológica cuja especificidade reside em: 1. Considerar a etiologia da psicose à luz da invasão pulsional; 2. Isolar, por meio do conceito de rejeição, um processo psíquico específico de defesa contra a pulsão cujo resultado é a perda da realidade; 3. Definir a função do delírio como reparador, restituidor da realidade.
Palavras-chave: psicose; desencadeamento; estabilização; delírio; psicanálise; psicopatologia.
ABSTRACT
The starting point of the paper is to show the relevance and timeliness of Freud's theory of psychosis. In this sense, the objective is to retake the literature aiming to delimit an inaugural hypothesis about the triggering and the stabilization, in which the disturbance of the drive functioning was already constituted as an important factor in the psychic etiology of its triggering and the delirium, as a psychic work repair, stabilization. To this end, the article exposes a survey of Freudian references to show the epistemological development of the etiological research whose specificity lies in 1: Considering the etiology of psychosis in light of the drive invasion; 2: Isolate, through the concept of rejection, a specific psychic process of defense against the drive which results in the loss of reality; and 3: Define the function of delirium as restorative, a restorer of reality.
Keywords: psychosis; triggering; stabilization; delirium; psychoanalysis; psychopathology.
RESUMEN
El punto de salida de este trabajo es enseñar la relevancia y la actualidad de la teoría freudiana de la psicosis. En este sentido, el objetivo es retomar la literatura para delimitar una hipótesis inaugural sobre el desencadenamiento y la estabilización, en que la perturbación del funcionamiento pulsional ya se constituía como factor importante en la etiología psíquica de su desencadenamiento y el delirio, como un trabajo psíquico de reparación, de estabilización. Para eso, el trabajo expone una búsqueda de las referencias freudianas con el fin de enseñar el desenvolvimiento epistemológico de una investigación etiológica cuya especificidad reside en: 1. Considerar la etiología de la psicosis a la luz de la invasión pulsional; 2. Aislar, por medio del concepto de rechazo, un proceso químico específico de defensa contra la pulsión cuyo resultado es la perdida de la realidad; 3. Definir la función del delirio como reparador, restituidor de la realidad.
Palabras clave: psicosis; desencadenamiento; estabilización; delirio; psicoanálisis; psicopatología.
RÉSUMÉ
Le point de départ de cet article est de montrer la pertinence et l'actualité de la théorie de Freud sur la psychose. En ce sens, l'objectif est de reprendre la littérature pour délimiter une hypothèse inaugurale sur le déclenchement et la stabilisation. Dans l'hypothèse, le dérangement du fonctionnement de la pulsion était déjà constitué comme un facteur important dans l'étiologie psychique de son déclenchement. Du délire, à son tour, comme un travail psychique de réparation et de stabilisation. Pour cela, l'article expose des références freudiennes afin de montrer le développement épistémologique d'une recherche étiologique dont la spécificité réside dans: 1. Considérer l'étiologie de la psychose à la lumière de désintrication pulsionnelle; 2 Isoler, à travers le concept de rejet, un processus psychique spécifique de défense contre la pulsion dont le résultat et la perte de la réalité; 3 Définir la fonction du délire en tant que réparateur, restaurateur de la réalité.
Mots-clés: psychose ; déclenchement ; stabilisation ; délire ; psychanalyse ; psychopathologie.
O ano de 1952 foi especialmente importante na história da psicofarmacologia. A síntese da clorpromazina e seu emprego, por Jean Delay, no tratamento dos estados de agitação maníaca e da psicose aguda dos pacientes de Sainte-Anne, produzira como resultado uma enfermaria silenciosa. No entanto, o emprego da clorpromazina não fora rapidamente assimilado pela psiquiatria da época - principalmente a norte-americana. O modelo psicodinâmico ainda exercia sua influência.
Dois anos depois, em 1954, estudos envolvendo os efeitos da clorpromazina começaram a ser publicados nos Estados Unidos e no Brasil, evidenciando a ocorrência de uma mudança na pesquisa psicopatológica sobre a psicose, que se consolidará na década de 1970 com a publicação da terceira edição do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM-III).
O modelo biológico vigora no lugar da psicanálise e, com isso, tanto a descoberta freudiana do processo de rejeição na base da constituição da psicose como a teoria da estabilização por meio do delírio entram em declínio e desaparecem da referência psicopatológica. Da descoberta da clorpromazina à publicação do DSM-٥, em ٢٠١٣, pouquíssima coisa mudou. A expansão das edições do DSM acabou produzindo: o divórcio com o referencial teórico da psicanálise que embasava a pesquisa etiológica em psicopatologia, a ascensão do a-teorismo e a ordenação do tratamento em torno da clínica do transtorno e da prescrição de psicofármacos.
Reconhecendo o quadro de mutação conceitual na psiquiatria, o presente artigo propõe retomar a elaboração da teoria do desencadeamento e da estabilização da psicose em Freud, em que a busca dos fatores psíquicos desencadeantes é a bússola que orienta a elucidação da etiologia dos diferentes fenômenos clínicos e fundamenta a direção de tratamento. O artigo conduzirá o levantamento das referências freudianas com o objetivo de mostrar o desenvolvimento epistemológico de uma pesquisa etiológica cuja especificidade reside em:
1.Considerar a etiologia da psicose à luz da invasão pulsional.
2.Isolar, por meio do conceito de rejeição, um processo psíquico específico de defesa contra a pulsão, cujo resultado é a perda da realidade.
3.Definir a função do delírio como reparador, restituidor da realidade.
Esses três pontos são os pilares de uma teoria da psicose que situa a psicanálise, desde a correspondência trocada com Wilhelm Fliess, para além de um saber situado à sombra da psiquiatria. A retomada, no presente artigo, da leitura feita de Freud (1911/1982f) do livro do Presidente Daniel Paul Schreber cumpre exatamente a função de mostrar como o entendimento de que há método na loucura, de que a loucura não é uma derrocada do pensamento, corrobora a superação da herança da psiquiatria. De fato, a leitura de Schreber dera a Freud (1911/1982f) o material clínico necessário para elaborar a hipótese etiológica de uma defesa específica contra a invasão pulsional, elucidando a experiência psicótica de desabamento do mundo na esquizofrenia, de irrupção de fenômenos hipocondríacos extremamente dolorosos, e a sua reconstrução por meio de um delírio paranoico sistematizado de transformação em mulher.
O desenvolvimento desse programa de pesquisa por Lacan no marco do escrito De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose (1957-1958/1998) evidencia para o leitor que a formulação de Freud sobre o desencadeamento e estabilização se preservara como leit motiv na pesquisa lacaniana da psicose e de seus fenômenos clínicos. Desde o reconhecimento da ocorrência de uma desordem na junção mais íntima do sentimento de vida no sujeito (Lacan, 1957-1958/1998) até o isolamento da invasão de gozo e das formas de solução para tal invasão (Lacan, 1975-1976/2007), Lacan reforçará a atualidade da contribuição freudiana relendo-a à luz das categorias conceituais do estádio do espelho, da foraclusão do nome-do-pai e do real, e de uma concepção sobre a estabilização conforme tais categorias (a identificação imaginária, a metáfora delirante e a suplência).
A elaboração dessas categorias conceituais acompanhou, no ensino de Lacan, a complexidade da clínica da psicose, interrogando a própria validade do conceito de foraclusão do nome-do-pai como explicativo de todos os casos de psicose. Isto se verificou no debate conceitual, entre as décadas de 1970 e 1990, a respeito de quadros clínicos de psicose com ausência de desencadeamento ou que não trazem índices claros do funcionamento da foraclusão do nome-do-pai. Lacan (1975-1976/2007) dedicou um seminário inteiro ao escritor James Joyce para mostrar como seu estilo de escrita obedecia à formação de um ego de suplência, e não, necessariamente, a um déficit do funcionamento do significante do nome-do-pai.
Na mesma época, a elaboração da categoria de psicose branca, por Donnet e Green (1973), por exemplo, tomou uma direção conceitual distinta, definindo uma potencialidade psicótica que poderia, ou não, desencadear como psicose clínica. Ainda no campo psicanalítico, os estudos de Miller (2010) e Aflalò (2011), em uma direção distinta da hipótese de uma potencialidade psicótica, retomam o caso freudiano do homem dos lobos para interrogar a validade do conceito de foraclusão do nome-do-pai. Ambos os autores problematizaram sua ocorrência na etiologia da psicose, já que o paciente de Freud apresentava uma série de fenômenos hipocondríacos em torno do funcionamento fálico, e levantaram a hipótese de foraclusão da castração para esclarecer a etiologia de certas formas clínicas de psicose em que fenômenos corporais são hegemônicos e persistem mesmo sem desencadeamento manifesto.
As referências aqui mencionadas são anteriores ao avanço teórico por ocasião da Convenção de Antibes, em que Miller (2012a, 2012b) ressaltara a importância de se observar a ocorrência de uma desordem provocada na junção mais íntima do sentimento de vida no sujeito como fator etiológico em fenômenos clínicos que não evidenciavam uma psicose em desencadeamento. Posteriormente, a literatura psicanalítica definiu como psicose ordinária uma série de fenômenos clínicos que indicam desligamentos progressivos com relação à linguagem, sem evidência de desencadeamento, cujos eixos centrais são:
1.A irrupção de uma experiência apocalíptica de encontro com o gozo enigmático, vivido pelo sujeito como uma experiência esvaziada de significação, exatamente segundo o "paradigma" do mundo estava oculto por um véu, já verificado no caso de Sergei Pankejeff (Racki, 2018).
2.A externalidade subjetiva, evidenciando uma relação em que o significante vigora como intrusivo e enigmático, produzindo o sujeito-nulo conforme se verifica em alguns casos de anorexia (Cosenza, 2018).
3.A presença de pensamentos impostos com aparência de pensamentos compulsivos e hegemonia de fenômenos de corpo caracterizados pela vivência de abandono do corpo ou, ainda, por sintomas corporais que podem ser confundidos com sintomas de natureza distinta.
Ao retornar à elaboração da teoria freudiana sobre a psicose, o artigo visa a resgatar a concepção de desencadeamento e de delírio sustentando sua relevância como fundamento válido, ainda hoje, para a pesquisa sobre os fenômenos clínicos da psicose na contemporaneidade.
A Construção da Teoria Freudiana sobre a Psicose
Partimos da pergunta feita por Jean-Pierre Coudray, e mencionada por Maleval em La Forclusión del Nombre del Padre - El Concepto y su Clínica (2002). Ao final de um tratamento que conduzira um sujeito psicótico à parafrenização, Coudray perguntara se poderiam existir esquizofrênicos que preservassem sua saúde. Essa pergunta ganha coerência à luz da perspectiva freudiana de que a etiologia da psicose se explica pela ocorrência de uma defesa contra a invasão pulsional. É essa hipótese que permite elucidar a experiência psicótica de desabamento do mundo, de perda da realidade e sua reconstrução possível por meio de um delírio paranoico sistematizado, e que permite entender por que, para Freud (1911/1982f), há método na psicose.
O trabalho conceitual de Freud de entendimento da etiologia psíquica da psicose se apresenta desde as cartas trocadas com Fliess, evidenciando, assim, que sua pesquisa em torno da etiologia do sofrimento psíquico se estende para além da neurose, ainda que esteja submetida à teoria do recalcamento. De fato, já no marco das cartas, Freud conduz uma pesquisa sobre a psicose orientada pela busca da especificidade do processo psíquico de constituição de seus sintomas.
Apesar de sua elaboração diagnóstica se dever à tradição kraepeliniana, por preservar as classes da paranoia, esquizofrenia, mania e melancolia, Freud se divorcia da psiquiatria de sua época por pensar a etiologia desses quadros clínicos a partir da referência à causa pulsional, já depreendida de sua clínica da neurose histérica, conforme é possível verificar na observação presente em Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa (1896/1982e, p. 183): "a etiologia da paranóia deve ser buscada nas mesmas experiências sexuais da primeira infância, nas quais já fora descoberta a etiologia da histeria e neurose obsessiva".
A consideração de Freud condensa elementos importantes a respeito de sua teorização sobre a psicose no quadro teórico de época, sustentado na distinção entre as neuroses atuais (neurastenia e neurose de angústia) e neuropsicoses de defesa (histeria, neurose obsessiva, paranoia, confusão alucinatória e psicoses histéricas). Nesse sentido, é notável o estatuto misto da denominação de neuropsicose de defesa, uma vez que abarca tanto as neuroses como as psicoses, no entanto é possível reconhecer, desde o início, o trabalho conceitual de isolamento do processo de defesa na psicose. Isto se verifica pelo uso do termo verwirft, empregado em um texto anterior a 1896 e intitulado As neuropsicoses de defesa (1894/1982a). De fato, nesse texto, Freud (1894/1982a) localiza uma forma de defesa muito mais forte do que a que vigora nas neuroses, consistindo na rejeição (verwit) enérgica, por parte do eu, da representação psíquica e do afeto, ligada a ela resultando no desconhecimento quanto à ocorrência da representação (é como se ela nunca tivesse ocorrido) e na irrupção da confusão alucinatória.
No Rascunho G - Melancolia, de 7 de janeiro de 1895, Freud (1895/1982b) dedica-se a detalhar, a partir da especificação do processo de defesa na psicose, formulado em As neuropsicoses de defesa (1894/1982a), a etiologia da melancolia, elaborando uma hipótese essencial para o reconhecimento clínico de seu desencadeamento: na melancolia ocorre a retração pulsional e o melancólico experiencia essa retração como perda da libido. Assim, referindo-se ao exemplo clínico da anorexia, Freud (1895/1982b, p. 150) sustenta que esta é uma melancolia: "a paciente afirma que não se alimenta simplesmente porque não tem nenhum apetite; não há qualquer outro motivo. Perda do apetite - em termos sexuais, perda da libido".
No Rascunho H - Paranoia, de 24 de janeiro de 1895, Freud (1895/1982c) estende a especificação do processo de defesa na psicose para a paranoia. Ele, então, mantém os achados de 1894 em relação ao funcionamento da defesa na neurose e na psicose, mas interroga a possibilidade de haver um modo de funcionamento da defesa análogo para a paranoia e a obsessão. E apesar de reconhecer, para ambas as neuropsicoses de defesa, a ocorrência da rejeição de uma representação incompatível com o eu, Freud (1895/1982c) isola o processo psíquico que especifica a paranoia: a rejeição da representação incompatível com o eu e sua projeção para o mundo exterior. Esse processo explicará a etiologia das ideias paranoides de uma mulher assolada por ideias paranoides de que seus vizinhos faziam alusões às suas relações com um inquilino em sua casa: houvera uma cena sexual com esse homem, que ela rejeitara, atribuindo a uma censura proveniente do campo da realidade e que passa a ouvir como se viesse de fora.
Essa lógica específica da defesa na paranoia se repetirá no raciocínio desenvolvido por Freud (1896/1982d) no Rascunho K, em que isolará a desconfiança endereçada ao próximo como o sintoma primário da paranoia e tributário do destino assumido pela pulsão a partir da defesa.
Em Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa, Freud (1896/1982e) segue a pesquisa já desenvolvida nos Rascunho G, H e K acerca da especificidade do funcionamento da defesa e reforça que o sintoma, na psicose, é determinado pelo destino assumido pela pulsão. Retomando o funcionamento psíquico na paranoia, o autor isola três tempos constitutivos, assim esquematizados:
Tempo 1. Representação incompatível com o eu.
Tempo 2. Rejeição da representação psíquica incompatível e projeção sobre a realidade externa.
Tempo 3. Formação do sintoma primário - desconfiança endereçada ao próximo.
O que chama a atenção nessa ordenação do funcionamento psíquico na paranoia, é que tais tempos constitutivos têm, como característica central, o efeito a posteriori produzido por um acontecimento externo, evidenciando a forma como Freud articula o funcionamento pulsional da infância a um acontecimento desencadeante posterior.
Entre o ano de 1896 e o ano de 1924, se localizam três referências fundamentais para a teorização sobre a psicose em Freud: Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia (dementia paranoides) (1911/1982f); Sobre o Narcisismo: Uma Introdução (1914/1982g) e O Inconsciente (1915/1982h). Elas compõem o solo em que Freud, em 1924, consolidará sua teoria sobre a psicose.
A leitura de Memória de um Doente dos Nervos (1903/1984) deu à Freud o material clínico necessário para verificar a hipótese da ocorrência da invasão pulsional na etiologia da psicose, como o trabalho psíquico de reparação, de tentativa de cura, através do delírio de transformação em mulher: "A formação delirante, que presumimos ser o produto patológico, é, na realidade, uma tentativa de restabelecimento, um processo de reconstrução" (Freud, 1911/1982f, p. 94-95). Essa formulação foi avaliada pelo próprio autor como algo nunca concebido nesses termos antes dele e, em específico, antes da elaboração do conceito de pulsão e da possibilidade de se interrogar à luz desse conceito acerca da etiologia do desencadeamento da psicose (Freud, 1911/1982f). De fato, em Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia (dementia paranoides), Freud (1911/1982f) partirá da singularidade do quadro clínico de Daniel Paul Schreber para, ancorado no marco teórico da primeira teoria das pulsões, sustentar a hipótese de um quadro misto de psicose - definido por ele como dementia paranoides - e pesquisar sua etiologia psíquica.
A hipótese de Freud (1911/1982f) é, então, elaborada para elucidar a etiologia da experiência de desabamento do mundo na esquizofrenia. Trata-se da rejeição de uma ideia intolerável para o Eu e sua projeção para a realidade. Mais precisamente, trata-se da rejeição da manifestação da libido homossexual e da defesa projetiva contra a libido, de modo que "(…) aquilo que foi internamente abolido retorna desde fora" (Freud, 1911/1982f, p. 95). Freud localiza no Professor Paul Flechsig - médico responsável por seu tratamento no Hospital psiquiátrico da Universidade de Leipzig, quando foi internado pela primeira vez em 1884 - e em Deus os objetos de investimento da libido homossexual. Para Freud (1911/1982f), então, tratava-se de entender a própria manifestação da libido homossexual, na psicose de Schreber, à luz do enigma de um Deus condensador de satisfação pulsional e de sua posição subjetiva de objeto dessa satisfação.
O detalhamento dessa hipótese será desdobrado em dois tempos, e esclarece o modo como se deu o desencadeamento da psicose em Schreber. Em um primeiro tempo, ele tendia à renúncia do prazer e apresentava uma descrença em Deus. Em um segundo tempo, que coincide com o desencadeamento, Schreber entrega-se à volúpia sexual obtida de sua relação particular com Deus: se apresentava como "mulher de Deus". Freud (1911/1982f) sustenta, ainda, que a ideia de se transformar em mulher é compensada pelo delírio de grandeza de ser a mulher de Deus. Assim, apoiando-se nos achados pertinentes à primeira teoria das pulsões, Freud (1911/1982f) elabora uma hipótese sobre o processo psíquico em jogo no desencadeamento da dementia paranoides:
1.A retração da pulsão, anteriormente investida em outras pessoas;
2.Sua fixação no eu;
3.A eclosão do delírio de perseguição;
4.A ocorrência do delírio de grandeza associado ao delírio de perseguição.
E formula, ainda, um processo psíquico adicional em relação ao recalcamento das pulsões, denominado de rejeição (Verwerfung), que explica a passagem da fixação da pulsão no eu para a eclosão do delírio de perseguição segundo a definição de que o que fora internamente rejeitado pode retornar como se fosse de fora, bem como a relação com o delírio de grandeza.
Em Sobre o Narcisismo: Uma Introdução, Freud (1914/1982g) recoloca a pergunta referente ao destino da pulsão na esquizofrenia e a caracteriza da seguinte forma:
Tempo 1: Não se distingue do funcionamento da neurose visto que está preservado o investimento pulsional nos objetos de forma relativamente estável;
Tempo 2: Retração do investimento pulsional em relação aos objetos na direção do eu, sem substituição pela fantasia;
Tempo 3: Retorno à lógica do autoerotismo com irrupção de fenômenos hipocondríacos - desencadeamento dos sintomas psicóticos;
O trabalho de restituição do investimento pulsional nos objetos por meio da formação do delírio é secundário e pode se caracterizar como delírio de grandeza (megalomania) e delírio de perseguição, constituindo tentativas de conduzir a pulsão de volta para o investimento nos objetos, conforme Freud (1911/1982f) já havia identificado em Schreber.
No que se refere ao texto O Inconsciente, Freud (1915/1982h) volta a ressaltar o destino específico assumido pela pulsão no processo de recalcamento na esquizofrenia e estabelece uma distinção com relação à histeria. No Apêndice C do texto, Freud (1915/1982h) distingue o campo representacional no inconsciente e no sistema pré-consciente-consciente, situando a representação-de-coisa no inconsciente e a representação-de-palavra e a representação-de-coisa no sistema pré-consciente-consciente.
A localização da representação-coisa no inconsciente indica que o investimento objetal obedece à lógica do inconsciente. E é a partir dessa referência conceitual que Freud (1915/1982h) elucidará a especificidade do processo de defesa nas psicoses e, em especial, na forma clínica da esquizofrenia: nela ocorre a retração do investimento pulsional das representações-de-coisa e o avanço sobre as representações-de-palavra. Ressalta-se, aqui, a ênfase no efeito clínico dessa retração no campo da expressão verbal, que passa por uma desorganização até o ponto de se tornar totalmente incompreensível. Tomando como referência um caso de Victor Tausk, Freud (1915/1982h) identifica em sua lógica a mesma estrutura de funcionamento dos fenômenos hipocondríacos resultantes da retração da pulsão para o autoerotismo: "Assim a manifestação oral esquizofrênica exibe uma característica hipocondríaca: tornou-se 'fala do órgão"' (Freud, 1915/1982h, p. 226).
As hipóteses da rejeição da representação psíquica e da retração da pulsão, formuladas por Freud no quadro da primeira teoria das pulsões, não são abandonadas, no entanto serão pensadas à luz da teoria da pulsão de morte a partir de 1920. As referências cruciais para o entendimento do avanço de uma teorização sobre os processos psíquicos específicos da psicose são os textos Neurose e Psicose (Freud, 1924/1982i) e A Perda da Realidade na Neurose e na Psicose (Freud, 1924/1982j). Como, então, essas duas referências se articulam rumo a uma teorização definitiva do conceito de rejeição (Verwerfung)?
Em ambas as referências, Freud (1924/1982i, 1924/1982j) sustenta que a neurose e a psicose traduzem o fracasso do eu em conciliar o imperativo pulsional (pulsão de morte) e as exigências da civilização. A partir desse fracasso comum, o autor definirá, em Neurose e Psicose (Freud, 1924/1982i), a especificidade dos processos psíquicos na neurose e na psicose: na neurose, o conflito entre o imperativo pulsional (pulsão de morte) e as exigências da civilização se apresenta na forma de um impasse entre o id e o eu; na psicose, o conflito se apresenta na forma de um impasse entre o eu e o mundo exterior. Ambos os processos psíquicos produzem, em um segundo tempo, a perda da realidade, e a diferença reside na solução: na neurose, a solução para a perda da realidade reside no investimento na fantasia; na psicose, reside no delírio. Este é definido como resultante do processo de substituição da realidade rejeitada, cumprindo a função de remendo para a perda da realidade. Do conjunto de referências acima se extrai, então, os eixos conceituais que sustentam a teoria freudiana sobre a psicose. São eles:
O processo psíquico constitutivo da psicose: "(…) aquilo que foi internamente abolido retorna desde fora" (Freud, 1911/1982f, p. 95);
A relevância da determinação das condições de desencadeamento;
A hipótese de ocorrência da perda da realidade como resultado na constituição da psicose e a função reparadora do delírio (Freud, 1911/1982f);
A irrupção da lógica dos fenômenos hipocondríacos na expressão verbal, evidenciando sua sujeição à invasão pulsional (Freud, 1915/1982h);
O reconhecimento da hegemonia do funcionamento pulsional na etiologia da perda da realidade, evidenciada na neurose e na psicose, e a especificidade da função do delírio na psicose em relação à formação da fantasia na neurose (Freud, 1924/1982j).
São esses eixos que conferirão, a posteriori, a clareza sobre a etiologia do desencadeamento em Schreber - elucidando a experiência psicótica de desabamento da realidade na esquizofrenia, de irrupção de fenômenos hipocondríacos extremamente dolorosos - e sobre o estatuto reparador de seu delírio de transformação em mulher.
O Estatuto Estabilizador do Delírio
A leitura do caso Schreber representa, na obra freudiana, o estudo mais importante para a época, acerca da psicose à luz da concepção do desencadeamento e da estabilização. Graças à hipótese do desencadeamento associada ao processo psíquico de rejeição, a definição de delírio é inovadora, consistindo na descoberta de sua função estabilizadora, em íntima correlação com o trabalho psíquico de restauração do investimento pulsional nos objetos, de reengajamento do sujeito com o mundo.
Ao afirmar que o delírio tem uma função reparadora, Freud (1911/1982f) mostrou que, de modo análogo à fantasia na neurose, existe uma lógica no fundamento do delírio. E coube à Freud se apoiar nos dados de Schreber para interrogar a lógica que articula o delírio de grandeza e o delírio de perseguição. Retomando a elaboração do processo psíquico em jogo no desencadeamento da dementia paranoides, já abordado no presente artigo, tem-se:
1. A retração da pulsão, anteriormente investida em outras pessoas;
2. Sua fixação no eu;
3. A eclosão do delírio de perseguição;
4. A ocorrência do delírio de grandeza associado ao delírio de perseguição.
Segundo a hipótese freudiana, o delírio de grandeza irrompeu em Schreber de acordo com a seguinte lógica, orientada para um objetivo: solucionar o problema aberto pelo pensamento imposto, "afinal de contas, deveria ser bom ser mulher e submeter-se ao ato da cópula" (Freud, 1911/1982f, p. 61).
Daniel Paul Schreber (1842-1911) nascera em Leipzig, em 25 de julho de 1842, do casamento de Daniel Gottlieb Moritz Schreber (médico ortopedista e pedagogo) e Pauline Schreber. A doutrina educacional de seu pai era rígida e moralista, e pode ser inferida a partir da própria consideração que seu pai tinha a respeito da educação infantil (Schreber, 1903/1984). Essa rigidez moral tinha como objetivo obter um controle completo sobre todos os aspectos da vida: dos hábitos alimentares até a vida espiritual. Seguindo essa doutrina rígida, Daniel Gottlieb Moritz Schreber desenvolvera, então, vários aparelhos em ferro e couro para a ortopedia da postura ereta na criança. Há relatos de que esses aparelhos eram similares a instrumentos de tortura: o ferro e o couro, empregados para sua confecção, eram dispostos de tal forma que forçavam o corpo para obtenção da postura correta. Esses mesmos métodos eram aplicados sobre seus filhos, reforçando, assim, o caráter rígido e exagerado dos procedimentos pedagógicos de Daniel Gottlieb Moritz Schreber.
Schreber iniciou os estudos em Direito em 1860 e alçou a condição de advogado bemconceituado, casando-se com Sabine Beher em 1878. Após o casamento, foi nomeado diretor administrativo do Tribunal Provincial de Chemnitz e, no ano de 1884, aos 42 anos, candidatou-se às eleições legislativas em Chemnitz pelo Partido Liberal Nacional, sendo derrotado pelo socialista Bruno Geiser.
A abordagem dessa conjuntura da vida de Schreber obedece à referência de Miller (2012b) sobre a ocorrência de uma desordem que atinge a junção mais íntima do sentimento de vida no sujeito e à pesquisa de Jean-Claude Maleval (1998, 2002) acerca da escala evolutiva do delírio. Maleval (1998, 2002) localiza os dois extremos da lógica do delírio: um impasse colocado para o sujeito e o trabalho de elaboração de uma solução. Incluímos, nessa escala do delírio do magistrado, o acontecimento de 1884, porque, nessa época, o problema já se anunciava e se colocou sob a forma da pergunta que deu título à um artigo de jornal sobre ele.
Essa consideração se coaduna, ainda, com o entendimento d a literatura psicanalítica atual, mencionada na introdução do presente artigo, acerca da ocorrência de fenômenos clínicos que evidenciam uma psicose sem desencadeamento explícito (Cosenza, 2018; Racki, 2018). Miller (2012b) chega a levantar a hipótese de que, antes de 1893, quando ocorre o desencadeamento de Schreber, o magistrado seria um psicótico ordinário e estabilizado por meio de uma identificação compensatória à função de advogado e juiz. Por essa razão, retomaremos os padecimentos de 1884, cujo impacto subjetivo evidencia o abalo dessa identificação. De fato, na época da derrota nas eleições legislativas, um jornal da Saxônia publicara o artigo intitulado Quem conhece esse tal Dr. Schreber? Em oito de dezembro desse mesmo ano, Schreber foi internado no Hospital Psiquiátrico da Universidade de Leipzig, onde permanecera até 01 de junho de 1885. Sobre a internação em 1884 o próprio Schreber dera o testemunho de ter sido um período muito cansativo, caracterizado pelo seguinte quadro clínico:
1. Hipocondria aguda e severa: imaginara ter perdido de 15 a 20 quilos, quando, na verdade, engordara dois quilos; demandara, seis vezes, para ser fotografado;
2. Certeza de que o enganam intencionalmente quanto ao seu peso corporal;
3. Hipersensibilidade auditiva;
4. Humor irritável e lábil;
5. Sentimento de debilidade e incapacidade de caminhar;
6. Duas tentativas de suicídio.
Retomando a ocasião da publicação da matéria no jornal da Saxônia, é possível localizar a ocorrência de uma experiência subjetiva central que faz com que o título da matéria do jornal (Quem conhece esse tal Dr. Schreber?) se converta em enigma, intrusivo e impossível de responder - ao modo de uma desordem na junção mais íntima de seu sentimento de vida, de uma externalidade subjetiva em relação ao seu próprio ser, experienciada como perplexidade, e imediatamente anterior ao surgimento dos primeiros fenômenos corporais de natureza hipocondríaca.
Duas referências ajudam a esclarecer o estatuto enigmático do título da matéria de jornal na experiência psicótica. A primeira remonta à consideração posterior à análise do caso Schreber, presente em O Inconsciente (Freud, 1915/1982h), e a segunda é a referência à pesquisa de Maleval (1998, 2002).
Com relação à Freud (1915/1982h), a ocorrência de uma transformação na linguagem pela retração do investimento pulsional nas representações-de-coisa e o avanço sobre as representações-de-palavra, na esquizofrenia, elucida o valor de enigma assumido pela pergunta Quem conhece esse tal Dr. Schreber? E passa por uma desorganização até o ponto de se tornar totalmente incompreensível, funcionando como que à deriva, e produzindo, no sujeito, inquietude e perplexidade até a eclosão dos fenômenos hipocondríacos, o que ocorreu meses depois.
O argumento de Maleval (1998, 2002) segue a mesma direção do achado de Freud a respeito da linguagem na psicose. O autor recorre à Meyerson e Quercy que, no início do século XX, haviam descrito a experiência subjetiva do mal inefável, que era imanente, nesses casos, à ocorrência de palavras que rompiam com a cadeia mais ampla da qual fazem parte e que passavam a funcionar à deriva, como enigmas dolorosos. Maleval (1998, 2002) articula o mal inefável ao período hipocondríaco vivido por certos sujeitos, situando, para esses casos, o sentimento de vazio, de ausência de fundamento para o ser. A hipocondria aguda e severa de Schreber (com demanda de ser fotografado e certeza de perda de peso), até a progressão para o sentimento de debilidade e incapacidade de caminhar e as duas tentativas de suicídio, evidencia esse vazio de fundamento do ser. Nesse quadro, a pergunta do jornal se transforma em um problema endereçado ao ser de Schreber, com características de intrusividade e enigma.
É possível localizar esse acontecimento, de 1884, no primeiro tempo da escala do delírio - denominado por Maleval (2002) de incubação ou deslocalização do gozo e perplexidade angustiada: a pergunta é tomada pela invasão pulsional, o sujeito se encontra à beira do vazio de significação, eclode a experiência de inquietude e perplexidade correlacionada à irrupção de fenômenos hipocondríacos. É a partir desse momento que o funcionamento subjetivo de Schreber se mobilizará na direção de produzir uma solução.
Consideremos o acontecimento de junho de 1893, localizado por Miller (2012b) como sendo a conjuntura propriamente dita do desencadeamento: a nomeação para o cargo de Senatsprasident da terceira vara da Suprema Corte de Apelação em Dresden e o afastamento de Ottlin Sabine Behr por quatro dias para tratamento de saúde. Cerca de quatro meses após a indicação, Schreber assume a função de Presidente do Senado. Nesse intervalo, entre a indicação e a posse, apresenta vários sonhos e pensamentos de que adoecera novamente, entrando em um estado alterado de excitação a ponto de não querer mais ver a esposa. Além disso, no contexto de sua ausência, Schreber tivera, em uma única noite, seis poluções e a imposição de um pensamento, que lhe ocorrera quando estava semiadormecido: pensava que "afinal de contas, deveria ser bom ser mulher e submeter-se ao ato da cópula" (Freud, 1911/1982f, p. 61). Analisando esse ponto do testemunho, Freud (1911/1982f) localiza aos efeitos da invasão da pulsão homossexual no marco de três aspectos da vida de Schreber:
1.A idade de Schreber: Ele tinha 50 anos e se encontrava em um momento crítico na vida sexual, similar ao climatério feminino;
2.A relação transferencial com o Dr. Flechsig: O sentimento de simpatia pelo médico surgira de um processo de transferência de sentimentos instalados em torno de alguém que, um dia, desempenhou um papel importante na vida emocional de Schreber, e em um contexto anterior ao desencadeamento da psicose. O Dr. Flechsig faz série com seu pai ou seu irmão;
3.Uma privação: Schreber afirma que seu casamento não lhe dera filhos.
Ele continua a padecer de angústia e insônia e, em 21 de novembro de 1893, é internado pela segunda vez no Hospital Psiquiátrico de Leipzig. Nessa internação, ocorre o agravamento do quadro de desencadeamento e uma mudança significativa em relação ao Dr. Flechsig (que conhecera em sua primeira internação).
O agravamento do quadro se evidenciou com a eclosão de ideias hipocondríacas de amolecimento do cérebro, de se considerar morto e de sofrer de hiperestesia, além de ideias de perseguição baseadas em alucinações visuais e auditivas, estupor alucinatório, vivências de influência corporal, nas quais seu corpo deveria ser transformado em corpo de mulher e ser copulado, delírios religiosos e sexuais que envolviam ser escolhido e enviado de Deus, e ser engravidado por Deus para gerar uma nova humanidade.
No que se refere ao quadro de vivências de influência corporal, Schreber dá, ainda, o testemunho de sofrer de dores em quase todas as partes de seu corpo, com danos irreversíveis (ficara sem estômago e intestino, seu esôfago fora dilacerado e as costelas, despedaçadas, engolira a própria laringe junto com a comida), indicando a radicalidade do processo psíquico de defesa no que se refere à retração do investimento pulsional no objeto e a decomposição das funções do eu, que acabam por conduzir Schreber à certeza da morte. Essa retração afeta diretamente seu funcionamento psíquico e é experienciada como o fim do mundo, conforme aponta Freud (1911/1982f, p. 92):
Schreber convenceu-se da iminência de uma grande catástrofe, do fim do mundo. Vozes disseram-lhe que o trabalho dos 14.000 anos passados viera agora a dar em nada, e que o período de vida concedido à Terra era de apenas 212 anos mais (…).
Essa experiência do fim do mundo está na base da profunda desestruturação subjetiva sofrida no desencadeamento da psicose e testemunhada por Schreber (1903/1984) na forma de considerações como catástrofe do mundo e um cadáver que carrega outro cadáver. A descrição dos acontecimentos de 1893 merece uma distinção especial. De um lado, verificamos como Freud (1911/1982f) esteve atento à amplificação da invasão pulsional em Schreber, com a irrupção de fenômenos hipocondríacos tão graves e dissociativos que levaram o magistrado a experienciar a iminência de sua própria morte; de outro, Freud (1911/1982f) localizara o início da construção de um delírio de perseguição em torno de Deus objetivando a feminização de Schreber.
No quadro dos acontecimentos de 1893, ele é vítima de enigmas diretamente referidos ao seu ser: Quem conhece esse tal Dr. Schreber? (1884) e a feminização (1893). O delírio de perseguição possibilita a elaboração de uma primeira solução para os enigmas. Ele é, então, objeto de um complô objetivando entregá-lo à um homem de tal forma que sua alma fosse entregue a ele e seu corpo transformado em corpo de mulher, para ser submetido a abusos sexuais até ser condenado e abandonado à putrefação. Nesse delírio, o Dr. Flechsig assume posição central. Em primeiro lugar, como o assassino da alma, sendo seu único inimigo; e, em segundo lugar, como responsável pela influência negativa exercida sobre Deus, que deixa de ser aliado de Schreber e passa a ser cúmplice do médico numa trama para assassinar sua alma e entregar seu corpo como objeto de abuso sexual.
Freud (1911/1982f) dera a esse momento a denominação de o ponto culminante do sistema delirante do paciente, por não se evidenciar o aprofundamento da invasão pulsional, mas a formação de um delírio paranoico sistematizado de transformação em mulher como solução para o enigma da feminização. Maleval (1998, 2002) o situa no segundo tempo da escala do delírio - denominado de significantização do gozo - e em que o enigma angustiante e intrusivo começa a ceder em relação à familiaridade dos perseguidores: Deus e Flechsig. Tal delírio, no entanto, ainda não se configura como solução, porque não reduz a angústia, a preserva desde a incubação. Somente em novembro de 1895 Schreber pôde começar o processo de reconciliação com a ideia de transformação, situando-a em harmonia com os mais elevados desígnios de Deus para gerar uma nova humanidade: "não era a liberdade sexual de um homem, mas os sentimentos sexuais de uma mulher. Ele assumiu uma atitude feminina para com Deus; sentiu que era esposa de Deus" (Freud, 1911/1982f, p. 49).
Maleval (1998, 2002) situa essa reconciliação no terceiro tempo da escala do delírio - denominado de consentimento regulado do gozo do Outro - em que se verifica como foi possível para Schreber fazer uso de todos os recursos para elaborar uma solução ao enigma aberto em 1884: Quem conhece esse tal Dr. Schreber?
Assim, os dois tempos constitutivos da psicose - retração do investimento pulsional e reconstrução delirante - compõem a originalidade e especificidade da hipótese etiológica da psicose: "(…) aquilo que foi internamente abolido retorna desde fora" (Freud, 1911/1982f, p. 95). É essa hipótese que retornará treze anos mais tarde, em 1924, e permitirá à Freud (1924/1982j) concluir, tanto para a neurose como para a psicose, que na pesquisa etiológica importa investigar, não só o estatuto da perda da realidade, como também sua reconstrução.
Em 1952, a síntese da clorpromazina e sua administração para o tratamento da psicose produzira como resultado, imediato, uma enfermaria silenciosa. Esse resultado, à luz do que o artigo expôs a respeito da concepção freudiana do delírio, levanta uma dúvida a respeito da direção medicamentosa de tratamento da psicose: o silêncio imposto pela clorpromazina não seria diretamente proporcional à ausência elaborativa do delírio?
Considerações Finais
A partir do reconhecimento do quadro de mutação conceitual na psiquiatria, no marco da síntese da clorpromazina, o artigo propôs retomar a elaboração da teoria da psicose em Freud, em que a busca dos fatores psíquicos desencadeantes é a bússola que orienta a elucidação da etiologia dos diferentes fenômenos clínicos e fundamenta a direção de tratamento. Para isso, o artigo expôs um levantamento crítico das referências freudianas com o objetivo de evidenciar o desenvolvimento de uma teoria sobre a psicose, inaugural em relação à psiquiatria, e cuja especificidade reside em:
1.Considerar a etiologia da psicose à luz da invasão pulsional;
2.Isolar, por meio do conceito de rejeição, um processo psíquico específico de defesa contra a pulsão cujo resultado é a perda da realidade;
3.Definir a função do delírio como reparador, restituidor da realidade.
Cada texto citado ao longo do artigo mostrou os problemas que a clínica da psicose apresentara a Freud, bem como os caminhos seguidos pelo autor na construção de uma teoria que elucidasse sua etiologia. Essa construção estava eticamente alinhada às próprias implicações da psicanálise no entendimento das aflições que habitam a experiência da loucura: pensamentos intrusivos, vozes de caráter acusativo e ameaçador, fenômenos hipocondríacos, declínio do sentimento de vida, redução do corpo ao estatuto de cadáver.
Ao retomar, ao longo do artigo, a elaboração da hipótese de Freud sobre a psicose, ao destacar sua leitura difícil das Memória de um Doente dos Nervos (1903/1984), o artigo objetivou resguardar a atualidade ética e epistemológica da teorização de Freud, localizando-a fundamentalmente do lado da invasão pulsional, do processo de rejeição (Verwerfung) como defesa à pulsão e do estatuto do delírio como tentativa de estabilização por meio do aparelhamento dessa invasão com os recursos da linguagem. Não é possível afirmar com segurança qual seria o destino de Schreber no marco da Clorpromazina, mas ,certamente, o silêncio químico por ela imposto não é o melhor aliado na construção de uma resposta ao enigma sobre o ser que se abre no marco do vazio de significação.
Por último, a defesa da relevância do pensamento de Freud, nos dias de hoje, faz eco ao esforço de Horton - personagem do Dr. Seuss - citado por Leader (2013). Na fábula do Dr. Seuss, Horton era um elefante com uma sensibilidade para identificar o iminente perigo que corriam os habitantes de um mundo microscópico, contido em um grão de poeira. Ele tinha a capacidade de escutar as aflições daqueles que vivem nesse mundo sem, no entanto, conseguir fazer com que seus colegas do mundo macroscópico ouvissem.
Freud, certamente, não é Horton. Mas nada como uma fábula infantil para denunciar a impostura de uma época completamente surda ao sofrimento psíquico. E, nesse sentido, a relevância da teoria freudiana do desencadeamento e estabilização, nos dias de hoje, consiste precisamente nisto: revelar que a escala do delírio é, ainda, o trabalho mais eficaz de construção de uma defesa contra a invasão pulsional em um mundo movido pela obsessão psicofarmacológica que ensurdece a clínica para as aflições daqueles que a buscam.
Referências
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Endereço para correspondência:
Claudia Henschel de Lima
E-mail: claudiahlima@yahoo.com.br
Ana Flavia Pedrosa Lopes
E-mail: anaflaviaplopes@outlook.com
Recebido em: 28/12/2017
Revisado em: 24/07/2019
Aceito em: 09/08/2019
Publicado online: 10/02/2020