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Revista Subjetividades

Print version ISSN 2359-0769On-line version ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.20 no.1 Fortaleza Jan./Apr. 2020

https://doi.org/10.5020/23590777.rs.v20i1.e9739 

ESTUDOS TEÓRICOS

 

A normatização do corpo feminino e os modos de subjetivação na contemporaneidade

 

The Normalization of the Female Body and the Modes of Subjectivation in Contemporary Times

 

La Normatización del Cuerpo Femenino y los Modos de Subjetivo en la Contemporaneidad

 

La Standardisation du Corps Féminin et les Modes de Subjectivation dans la Contemporanéité

 

 

Thaís Pinto FontineleI; Márcio José de Araujo CostaII

IBacharel em Psicologia, Orientadora Profissional pelo Instituto do Ser, Mestranda em Psicologia pela Universidade Federal do Maranhão
IIProfessor no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Doutor em Psicologia Social (UERJ). Pós-Doutorado em Psicologia Clínica (PUC-SP). Bacharel e Especialista em Filosofia. Psicólogo e Psicanalista

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo visa discutir e problematizar os modos de subjetivação em relação ao corpo feminino em meio às discussões de gênero e suas relações com a sociedade de consumo contemporânea. Para tanto, realizou-se um estudo teórico, a partir dos conceitos de biopoder e sociedade de controle propostos por Foucault e Deleuze, para identificar as formas de agenciamento dos corpos na contemporaneidade e os padrões de beleza normatizadores. Compreendendo o corpo ideal a partir do entendimento dos jogos de poder que perpassam as relações sociais, buscou-se refletir sobre as práticas discursivas que possibilitam a construção do gênero e engendram modos de subjetivação possíveis no tecido social, a partir da discussão das teorias de gênero formuladas por Judith Butler.

Palavras-chave: gênero; corpo; subjetividade; normatização; poder.


ABSTRACT

This article aims to discuss and problematize the modes of subjectivation concerning the female body in gender discussions and their relations with contemporary consumer society. Therefore, a theoretical study was carried out, based on the concepts of biopower and control society proposed by Foucault and Deleuze, to identify the forms of agency of bodies in contemporary times and the normative beauty standards. Understanding the ideal body from the understanding of the power games that permeate social relationships, we sought to reflect on the discursive practices that enable the construction of gender and engender possible modes of subjectivation in the social tissue, from the discussion of gender theories formulated by Judith Butler.

Keywords: gender; body; subjectivity; normatization; power.


RESUMEN

Este trabajo tiene como objetivo discutir y problematizar los modos de subjetivación en relación al cuerpo femenino en medio a las discusiones de gênero y sus relaciones con la sociedad de consumo contemporánea. Para eso, fue realizado un estudio teórico, a partir de los conceptos de biopoder y sociedad de control propuestos por Foucault y Deleuze, para identificar las formas de "agenciamiento" de los cuerpos en la contemporaneidad y los estándares de belleza regulatorios. Comprendiendo el cuerpo ideal a partir del entendimiento de los juegos de poder que sobrepasan las relaciones sociales, se buscó reflexionar sobre las prácticas discursivas que posibilitan la construcción del gênero y engendran posibles modos de subjetivación en la trama social, a partir de la discusión de las teorías de género formuladas por Judith Butler.

Palavras clave: género; cuerpo; subjetividad; normativa; poder.


RÉSUMÉ

Cet article vise à discuter les modes de subjectivation du corps féminin au milieu des discussions de genre et de leurs relations avec la société de consommation contemporaine. À cette fin, une étude théorique a été menée, basée sur les concepts de biopouvoir et de société de contrôle proposés par Foucault et Deleuze, pour identifier les formes d'action des corps aujourd'hui et les normes de beauté. Lorsque on voit le corps idéal à partir de la compréhension des jeux de pouvoir qui imprègnent les relations sociales, on a cherché à réfléchir sur les pratiques discursives qui permettent la construction du genre et engendrent des modes de subjectivation possibles dans le tissu social. La discussion a été basée sur des théories du genre formulées par Judith Butler.

Mots-clés: genre; corps; subjectivation; normalisation; puissance.


 

 

O presente artigo pretende discutir as possíveis relações entre a normatização corporal na contemporaneidade, os jogos de poder e as discussões de gênero. Tomando-se o corpo feminino como objeto de discussão neste trabalho, objetivamos problematizar a construção e o seguimento de padrões de beleza que se apresentam como ideais na sociedade de consumo contemporânea. Essa discussão visa propor algumas reflexões sobre as repercussões nos modos de subjetivação a partir dos padrões estéticos massivamente apresentados e validados através do discurso social contemporâneo.

Dessa forma, a proposta central deste artigo é problematizar a forma como o corpo feminino é concebido na contemporaneidade, que, permeada pelos valores capitalistas da sociedade de consumo, o toma como um objeto, regido pela força dos signos promovidos pela cultura. Os valores da sociedade de consumo contemporânea influenciam sobremaneira os processos de subjetivação atuais e, dessa forma, o culto ao corpo passa a representar um paradigma desse tipo de sociedade, apresentando-se como uma nova forma de dominação social. De acordo com Costa (2005), a designação "cultura do corpo" em alusão à cultura contemporânea significa dizer que o corpo se tornou um referente privilegiado para a construção das identidades pessoais nesse contexto.

Tomando-se Foucault como embasamento epistemológico para a realização das discussões propostas, pretendemos discutir o momento histórico, social e político da sociedade contemporânea e sua consequente influência nos processos de subjetivação. Portanto, o presente trabalho busca empreender uma investigação histórica sobre o modo de se relacionar com o corpo na contemporaneidade analisando os processos de subjetivação contemporâneos das mulheres em relação ao padrão estético propagado pelos discursos validados pela rede de poder e saber que vigoram nesse contexto.

 

A Sociedade de Consumo e a Disciplinarização do Corpo

A contemporaneidade é definida de diversas maneiras por estudiosos das áreas da Sociologia e da Antropologia. A fim de se alcançar o objetivo proposto, discutiremos algumas características desse contexto histórico-social que mais têm influência na constituição da subjetividade em relação ao corpo. Consideraremos os conceitos de "sociedade do espetáculo", designado por Debord (1997) para descrever o modo de funcionamento da sociedade contemporânea constituída através de imagens, em que a realidade passa a ser tecida por elas. Tal concepção implica dizer que a sociedade contemporânea, permeada pela mídia, tem como característica a valorização do "outro espetacularizado" - celebridades, publicidade, entre outros, que parece possuir valor maior do que seus referentes concretos (Debord, 1997). Como asseverado pelo autor, em uma sociedade do espetáculo não basta somente "ser", mas faz-se necessário também "parecer". Dessa maneira, os indivíduos nesse contexto são levados a compreender o mundo a partir das lentes do espetáculo, mas são principalmente incentivados a ser parte dele; reiterando os seus valores e estilos de vida.

Esse momento histórico é definido também por Lipovetsky (2007), que cunhou o termo "hipermodernidade" para designar um tipo de sociedade em que os valores da modernidade não apenas se mantêm, mas são enfatizados, elevados a um grau superlativo. Trata-se de um tipo de sociedade liberal que se caracteriza pela fluidez, com ênfase no movimento e na mudança. A partir dessa proposição, também se pode pensar a sociedade contemporânea como uma nova forma de organização do sistema capitalista, em que o consumo se exibe sob o signo do excesso. Nesse contexto, há a profusão de mercadorias e a ascensão de um "hiperindividualismo", que emerge como uma das principais marcas da subjetividade do homem inserido nesse cenário, como regulador de si mesmo. Nasce uma cultura hedonista que incita à satisfação imediata das necessidades e à urgência dos prazeres, com o culto ao presente. Ainda de acordo com o autor, podemos pensar que a atual fase do desenvolvimento capitalista da sociedade indica que vivemos uma era que precede "um capitalismo de sedução focalizado nos prazeres dos consumidores por meio das imagens e dos sonhos, das formas e dos relatos" (Lipovetsky, 2015, p. 42).

A sociedade contemporânea é predominantemente marcada pelos valores da sociedade de consumo, portanto, a concepção do corpo passa também a se constituir em torno do individualismo. A partir do século XVIII, o capitalismo viveu um momento de fortalecimento e expansão como forma de organização econômica da sociedade. Aliado à consolidação de um modo de subjetivação individual e perpassado por relações de poder, o corpo tornou-se um alvo de atenção e de investimento a fim de responder às demandas da sociedade de consumo que se estruturava.

Os aspectos cruciais que diferem o consumo contemporâneo da forma de se consumir nas sociedades tradicionais incluem o lugar central que a emoção e o desejo ocupam nesse processo e a ideologia associada ao individualismo. Nesse sentido, Campbell (2006) indica que o desejo é o cerne do fenômeno do consumismo nas sociedades contemporâneas, sendo a demanda do consumidor o gerador central que impulsiona e sustenta esse tipo organização social. A sociedade contemporânea pode ser caracterizada como uma sociedade de consumo justamente pelo fato do consumo ter preenchido uma função que se coloca para além da garantia da satisfação de necessidades materiais e de reprodução social. Featherstone (1995) argumenta que a proeminência de uma "cultura do consumo" ocorre quando o consumo não deriva inequivocamente da produção, mas sim da experiência do ato de consumir, que se associa às satisfações emocionais e estéticas a partir da oferta de bens simbólicos.

De acordo com Bauman (2008), os mais diversos empreendimentos comerciais que emergiram no século XX, baseados em um momento do capitalismo no qual o consumo passara a ser o foco central da valorização do capital, possibilitaram o desenvolvimento de uma sociedade orientada a consumir indiscriminadamente, podendo ser denominada de "sociedade do consumo". Na fase atual de desenvolvimento do sistema capitalista predominam objetos de consumo em sua forma sígnica, como nos aponta Baudrillard (1976), que somente adquirem significado "na diferença com os outros objetos, de acordo com um código de significados hierarquizados" (p. 35). Dessa forma, os objetos de consumo são sempre definidos de acordo com as relações que promovem, as quais lhe fornecem um estatuto próprio.

Nesse contexto, o corpo passa a ser entendido como um "corpo mercadoria", um "corpo-aparência" e um "corpo-consumidor", que tem uma função social muito bem definida. Retomando Debord (1997), "[...] o espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens" (p. 14). Dessa forma, diferentemente de outros momentos históricos, em que o consumo se voltava aos adornos que serviam de ostentação da beleza, atualmente os sujeitos investem na própria imagem, ou seja, consomem a fim de que a representação de sua aparência se aproxime ao máximo das imagens que são veiculadas pela mídia e publicidade. Assim, compreende-se o corpo como um veículo que possibilita aos indivíduos fazerem parte de uma rede de influência que os mantém sempre às vistas na mídia. Como apontado por Costa (2005), é nesse sentido que surge a obsessão pela ideia do corpo-espetacular.

A tese defendida é que, dessa forma, há um processo de subjetivação que se constitui em um autocentramento, que se volta, paradoxalmente, para a exterioridade, em que a dimensão estética, dada pelo olhar do outro, ganha destaque. O corpo enquanto um espetáculo contemporâneo carrega consigo muito mais do que as marcas do biológico, mas também signos de imagens idealizadas, como saúde, beleza, sucesso, entre outros. Nesse contexto, o corpo representa um marco central na identificação dos sujeitos. Para se alcançar a imagem ideal do corpo, apresentada e validada pelos discursos sociais, tem-se um conjunto de dispositivos e mecanismos que operam em torno da construção dessa representação. São práticas e discursos que associam a beleza e a saúde em torno de uma norma, que visa a promover ao indivíduo mais que simplesmente a aquisição de uma capacidade orgânica, mas a adesão a um modo de ser no mundo.

Trata-se, portanto, de um processo de disciplinarização do corpo. Sobre esse aspecto, Foucault nos explica que o poder disciplinar se exerce na forma de técnicas e mecanismos que possibilitam o controle do corpo por meio das sujeições dos indivíduos a uma norma social (Foucault, 2001). Esse tipo de disciplina é concebido por Foucault (2006) enquanto um dos braços do biopoder. Neste, "[...] um dos pólos, o primeiro a ser formado, ao que parece, centrou-se no corpo como máquina: no seu adestramento, na ampliação de suas aptidões [...]" (p. 151). O biopoder é um conceito foucaultiano que se refere a uma técnica específica de exercício do poder do Estado moderno, o qual opera por individualização e totalização, objetivando gerir o corpo dos indivíduos através de práticas disciplinares e o corpo da população por meio da regulação e da gestão biológica da espécie humana. Em relação à discussão proposta, é fundamental discutirmos as disciplinas, que têm como princípio a máxima, oriunda do biopoder, de "fazer viver ou deixar morrer", porque visam a investir sobre a vida e têm como função a disciplinarização e regularização acerca dela. A disciplina "fabrica" os indivíduos. Desse modo, Foucault (1997) assegura que "ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício" (p. 195).

No entanto, sabe-se que na sociedade contemporânea não há uma instituição específica que incide exclusivamente sobre o processo de disciplinarização. Existe uma articulação entre a rede poder-saber que organiza diversos segmentos da sociedade, diferentes instituições que interferem na maneira de se conceber e se relacionar com o corpo. Foucault (2003) esclarece que a rede de poder-saber se refere a uma trama de procedimentos históricos que, em conjunto, produzem verdades que não podem ser compreendidas se dissociadas das relações de poder que transpassam o contexto de sua formação.

Com as intensas mudanças sociais, econômicas e políticas ocorridas nas últimas décadas do século XX e nos primeiros anos do século XXI, tais como os avanços tecnológicos, midiáticos e científicos, novos modos de subjetivação foram produzidos na contemporaneidade, os quais se compõem em um movimento de adesão, sustentação ou resistência a tais mudanças. O indivíduo ainda é um alvo da ação do poder e do controle, mas ele já não é mais tão facilmente localizável dentro dos limites de um espaço institucional fechado e, por isso, pode-se dizer que a maneira como os dispositivos operam sofreu transformações. Esse entendimento propõe uma nova concepção, visto que, apesar de os dispositivos disciplinares ainda se fazerem presentes, formas mais sofisticadas de controle social passaram a vigorar. Por isso, Deleuze (1992) propõe o termo "sociedade de controle" para designar esse tipo de arranjo social. Para ele, nesse tipo de sociedade o controle não se opera mais através do confinamento, mas por meio do controle contínuo e pela comunicação instantânea. O controle da vida em uma sociedade de controle prescindiria da construção de um corpo individual, por meio de técnicas disciplinares, mas através de um controle a céu aberto, no qual o modelo da empresa difunde-se em todas as instituições e o indivíduo busca motivar-se para alcançar as metas erigidas pela sociedade. Na sociedade de controle contemporânea, as máquinas informáticas tornam-se as ferramentas básicas de controle da vida, gerando dados e informações acerca dos sujeitos e, por meio dessas informações, produzem-se normas flutuantes, segundo as oscilações do mercado, aos quais os sujeitos buscam adequar-se (Deleuze, 1992).

Consideramos relevante ressaltar que, apesar de toda a rede de poder, seja disciplinar, seja de controle, incidir sobre a construção da subjetividade dos indivíduos dentro de cada contexto, ela não é suficiente para esquadrinhá-la totalmente, visto que de acordo com Foucault, em toda relação de poder há a possibilidade de erguerem-se as resistências. Segundo o autor: "toda relação de poder implica, então, pelo menos de modo virtual, uma estratégia de luta" (Foucault, 2014, p.248). As relações de poder que se estabelecem e perpassam toda a sociedade envolvem tanto a rede de poder-saber como as resistências, as quais só podem ser entendidas nas estratégias de luta travadas contra a insubmissão dos efeitos do poder. As resistências só podem ser reconhecidas pelos efeitos que provocam na organização social, visto que elas ocasionam rupturas na aparente continuidade que os regimes de poder tentam imprimir na sociedade.

Sobre o funcionamento desse tipo de poder que se articula com os saberes para indicar aos indivíduos o caminho de uma identidade possível, diz-se que é de caráter produtivo, e não tanto repressivo (Foucault, 1988). O poder produz e incita, antes de reprimir ou interditar. Portanto, ele opera no campo da possibilidade de conduzir as condutas dos indivíduos ou dos grupos. Na sociedade de controle, as instituições que visam à disciplinarização não possuem um limite exclusivamente delimitado, elas se entrecruzam. Convive-se, atualmente, com diferentes formas de controle social e que mudam todo o tempo, nem sempre sendo possível detectar as formas de poder que incidem sobre os indivíduos nesse contexto, visto que nesses atravessamentos coexistem diferentes forças que agem nos circuitos de controle.

Mas, como a organização disciplinar não deixou de existir e continua incidindo sobre os corpos para mantê-los "dóceis", citamos a mídia como um exemplo claro de um dos dispositivos de controle da contemporaneidade, que atravessa a forma de se relacionar com o corpo. É através da mídia que os principais valores capitalistas, como a incitação ao consumo, são difundidos. Dessa forma, entendemos que a mídia influencia sobremaneira a composição dos modos de subjetivação, valorizando determinados modos de ser e desvalorizando outros. Contemporaneamente, as formas de controle que têm sido utilizadas para capturar os indivíduos não visam apenas a se apossar do corpo, mas buscam, também, capturar as subjetividades e os desejos dos sujeitos. Portanto, diz-se que atualmente há uma coexistência dos dispositivos disciplinares e de controle que fabricam modos de subjetivação particulares ao presente momento histórico.

 

Mídia e Publicidade como Agenciamentos do Corpo na Contemporaneidade

O termo mídia, sinônimo de "meios de comunicação social", refere-se aos veículos responsáveis pela comunicação em geral, bem como pela difusão de informações que atingem a grande massa, abrigando, assim, os grandes meios com reconhecida influência sobre as pessoas, como rádio, revistas, televisão, jornais, redes sociais, entre outros. Ela engloba, também, o campo da publicidade, a produção de filmes, novelas e minisséries. Dessa forma, o termo está vinculado aos processos de produção, circulação e recepção de mensagens.

Podemos dizer que a mídia atua como um poderoso veículo de influência sobre a subjetividade, porque tem o poder de criar hábitos, verdades, padrões de comportamento e de beleza. Como exemplo, podemos citar a influência que os anúncios comerciais exercem sobre o consumo de produtos, que é massivo sobre os indivíduos. Nesse sentido, coadunamos a ideia de Guareschi (2004) de que hoje a mídia não apenas diz o que existe e, consequentemente, o que não existe, como também atribui uma conotação valorativa sobre a realidade existente. A mídia determina os assuntos que são colocados em discussão na sociedade, determinando, em certa medida, o que deve e pode ser falado. Os indivíduos, mesmo tendo a possibilidade de questionar e discordar do que está sendo referenciado, não têm poder para agir sobre o fato de que é a mídia que decide quais são os assuntos e as pautas que não devem ser discutidas pela população de determinada sociedade (Guareschi, 2004). Assim, podemos dizer que a mídia é uma das ferramentas mais importantes no sentido de produzir subjetividades, porque é através de suas lentes que os indivíduos desenvolvem esquemas de interpretação e valoração acerca da realidade.

As propagandas determinam a utilização de produtos e os ideais de vida, capturando e alienando os sujeitos em sua rede de persuasão. Isto ocorre porque a mídia e a publicidade funcionam como mediadoras entre o que existe na sociedade e as pessoas. O que ela comunica, contudo, não contempla a realidade em sua totalidade, apenas a representa (Traquina, 2012). O mesmo autor assevera ainda que as notícias veiculadas pelos meios de comunicação moldam a realidade, visto que elas são selecionadas dentro de um agenciamento do que pode e deve ser noticiado, assim como também há um enquadramento de interpretação para cada fato comunicado. Isto quer dizer que as informações e as imagens disseminadas pelas instâncias midiáticas guardam relação direta com estratégias próprias que vigoram no conjunto de agentes sociais mobilizados para essa ação.

De acordo com Thompson (1995), vivemos uma época que pode ser definida como a era da sociedade midiada e cultura midiada, posto que, atualmente, todas as instâncias sociais como a economia, a educação, a religião e a política mantêm uma relação intrínseca com a mídia, ideia corroborada por Hjarvard (2014). A importância atribuída aos meios de comunicação na contemporaneidade é indiscutível, porque eles se envolvem ativamente na construção do mundo social ao levar informações e imagens para indivíduos situados nos mais variados contextos. Os acontecimentos compartilhados pela mídia atravessam os ambientes sociais imediatos dos sujeitos, o que favorece que formas de ação coletiva sejam estimuladas e intensificadas, orientando, assim, o fluxo dos acontecimentos.

Guareschi (2004) afirma que: "a comunicação hoje constrói a realidade" (p. 83), explicando que a realidade se refere àquilo que existe e tem valor legítimo no cotidiano. Portanto, ressalta-se que o papel da mídia na contemporaneidade é o de instituir o que é real, e colocar em voga os assuntos que devem ser discutidos pela população. Considerando os estudos foucaultianos, entendemos que o discurso da mídia resulta em uma formação de um saber particular que acaba por se estender ao corpo social, que o toma como um discurso válido e o aceita. Tal saber acaba por reger, controlar e definir os modos de subjetivação na contemporaneidade, através de uma relação com a rede de poder-saber que vigora em nossa sociedade. De acordo com Foucault (2010): "O poder produz saber, não há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder" (p. 30).

Dessa forma, não há como se considerar que há relação de poder sem uma relação correlata de saber e que, reciprocamente, todo saber constitui novas relações de poder. É por meio dos efeitos dessa relação que o sujeito é fabricado e constrói a sua identidade. Para Foucault (1995), as ações do poder se aplicam:

[...] À vida cotidiana imediata que categoriza o indivíduo, marca-o com sua própria individualidade, liga-o à sua própria identidade, impõe-lhe uma lei de verdade, que devemos reconhecer e que os outros têm de reconhecer nele. É uma forma de poder que faz dos indivíduos sujeitos. (p. 235)

A identidade passa a ser concebida como uma categoria de reconhecimento e inserção social no momento em que a rede de poder-saber liga o indivíduo a ela. No entanto, ao mesmo tempo, a identidade passa a ser entendida também como um dispositivo de controle à medida que o indivíduo pode ser localizado a partir dela em diferentes dimensões, pois tal identificação facilita a visibilidade social, possibilitando que o sujeito seja capturado pela lei, pela norma e pela moral.

Na contemporaneidade, a busca por uma identidade reconhecida pelo sujeito e pelos demais se centra, por vezes, no investimento no próprio corpo como um lócus de afirmação pessoal. O culto ao corpo como uma dimensão possível na composição dessa unidade torna-se um alvo de investimento pela rede de poder-saber, visto que, a partir desse lugar, é possível construir um discurso de verdade sobre o sujeito.

 

A Concepção do "Feminino" em Pauta

Para propor uma discussão acerca do agenciamento dos corpos femininos a partir da mídia, enquanto uma rede de poder-saber, consideramos que é necessário explicitar o entendimento de construção de gênero do qual estamos partindo. No presente artigo, partimos do entendimento de gênero enquanto um produto de diversas tecnologias sexuais que se engendram a partir dos efeitos de poder advindos da linguagem, da política e do imaginário. De acordo com Lauretis (1994), o gênero é uma produção que se dá como efeito dessas tecnologias, dos discursos sociais e das práticas discursivas que interpelam os sujeitos. Assim, para a autora o gênero é o produto e o processamento da representação do mesmo aliado à autorrepresentação subjetiva.

Outro entendimento importante sobre a concepção de gênero que auxiliará na compreensão dos efeitos da interpelação da mídia sobre a subjetividade feminina se faz presente nos estudos de Judith Butler. O desenvolvimento da obra de Butler tem uma forte influência dos estudos de Foucault, visto que as análises históricas das construções do sexo e da sexualidade feitas por esse autor forneceram subsídios para que Butler desenvolvesse um quadro teórico para as suas próprias formulações acerca de gênero, sexo e sexualidade. Os dois autores concordam epistemologicamente, no sentido de considerarem a formação do sujeito enquanto um processo que só pode ser compreendido se for analisado em contextos históricos e discursivos específicos. Dessa forma, a influência de Foucault na obra de Butler pode ser percebida ao compreendermos que a autora considera o gênero como uma construção e uma formulação do sujeito que é engendrada pela linguagem, tal como Foucault propunha, embora ele não tenha tratado diretamente sobre a questão do gênero, subsumindo-a com a discussão do dispositivo da sexualidade.

Com efeito, para Foucault (1988), a sexualidade é um dispositivo do biopoder moderno que, por meio das disciplinas que operam nas instituições sociais que moldam o corpo individual, assim como na norma médica de regulação biopolítica da espécie humana na sociedade, o sexo é uma instância central de controle dos corpos. Assim, é justamente no sexo, como comportamento e discurso, que se cruzam os eixos disciplinar (individual) e coletivo (biopolítico) do poder moderno sobre a vida (biopoder). Pela sexualidade, é toda a vida individual e coletiva, orgânica e da espécie que se vê controlada, disciplinada e regulamentada pela norma social. Desse modo, Foucault (1988) afirma que a sexualidade é a forma moderna e estatal de controle das subjetividades, herdeira da hermenêutica da "carne" da pastoral cristã. Desse modo, a ciência do sexo, que se desenvolve no Ocidente, busca gerir a vida, segundo normas científicas e políticas para melhor docilizar e utilizar indivíduos e populações. O sexo no Ocidente, nesse sentido, não seria aquilo que nos traria a libertação, mas, ao contrário, é a instância de nossa sujeição. É nesse sentido que Butler (2015a) segue Foucault em sua concepção de poder e produção dos corpos por meio do sexo, embora ela complexifique a discussão ao colocar que a produção e gestão do gênero é fundamental para o funcionamento do dispositivo da sexualidade.

Podemos apontar que a filósofa americana, influenciada por Foucault, rejeita a ideia de que o gênero é um construto definido necessariamente em conformidade com o sexo de matriz puramente biológica. Em Historie de la sexualité (1976), Foucault argumenta que o sexo e a sexualidade foram produzidos em um aparecimento discursivo no século XIX e que tal aparecimento permitiu uma formulação de enunciados que passaram a controlar o modo como os sujeitos são constituídos discursivamente em torno desses construtos. Butler (2015a), considerando os estudos de Foucault, propõe-se a realizar uma genealogia feminista, visando analisar como os discursos acerca da construção do gênero funcionam e a quais propósitos políticos eles correspondem.

Butler se propõe a questionar a categoria "sujeito feminino" enquanto uma entidade estável e fixa e, sendo assim, o gênero, nesse entendimento, é construído enquanto uma produção discursiva como efeito da linguagem (Butler, 2015a). Assim, a filósofa postula que os sujeitos são produzidos a partir de normas estabelecidas a priori pelos sistemas político, econômico, social e jurídico. Os sistemas definem os critérios aos quais as subjetividades devem se centrar, ao mesmo tempo em que ocultam as maneiras através das quais se constituem; o que faz com que as normas se naturalizem no engendramento social. Nesse entendimento, a materialização do gênero se dá através de uma prática constante de reiteração de normas regulatórias precedentes ao agente, como efeitos das relações de poder. Essa concepção deriva da teoria de poder pensada por Foucault, em que o poder atua de maneira produtiva, por meio do estabelecimento de normas que têm como objetivo se encarregar da vida. Essas normas que funcionam através de mecanismos próprios, contínuos e reguladores que submetem os indivíduos a um domínio de utilidade.

Nos estudos foucaultianos, a importância das normas se dá como consequência do biopoder. Segundo Foucault (1988):

um poder que tem a tarefa de se encarregar da vida terá necessidade de mecanismos contínuos, reguladores e corretivos. Já não se trata de pôr a morte em ação no campo da soberania, mas de distribuir os vivos em um domínio de valor e utilidade. Um poder dessa natureza tem de qualificar, medir, avaliar, hierarquizar, mais do que se manifestar em seu fausto mortífero (pp. 156-157).

As normas funcionam qualificando os corpos e operando distribuições no entorno social. Elas abrem o caminho para a fabricação de uma subjetividade que está de acordo com os valores definidos social e politicamente, regulando a forma como os indivíduos se colocam no mundo.

Indo um pouco além das construções de Foucault, Butler (2007) considera que o sexo não é simplesmente uma descrição estática de uma essência fixada a priori, mas deve ser entendido como efeitos constitutivos da subjetividade. Sendo assim, a autora postula que o gênero é performativo, porque se constitui através de práticas e normas reguladoras que agenciam marcadores sociais, como uma prática reiterativa, chamada por ela de "atos performativos" (que se inspira na teoria dos "atos de fala" de Austin), ou seja, de atos que produzem os efeitos que os nomeia. Assim, a filósofa afirma que o gênero é, ele próprio, uma norma que funciona como um ato performativo (Butler, 2015a). Assim, a categoria sexo opera enquanto uma norma que produz, marca, categoriza e diferencia os corpos que governa (Butler, 2015a). Ainda de acordo com a autora, "não há criação de si fora de um modo de subjetivação e, portanto, não há a criação de si fora das normas que orquestram as formas possíveis que o sujeito deve assumir" (Butler, 2015b, p. 29).

Com Butler, entendemos que a performatividade de gênero não se trata de um ato único ou isolado, mas consiste em um leque de atuações como um ritual de estilização das práticas processadas através de normas inteligíveis de gênero. As "normas de inteligibilidade" de gênero são estabelecidas socialmente através de leis culturais que acabam por regular a forma como a sexualidade se expressa. Nesse sentido, diferente do que o senso comum ou certos discursos conservadores apregoam, afirmando que o sexo é biológico, Butler pondera que o gênero é social e cultural, linguístico e político, um quadro de saber imanente a um exercício de poder, e que, em sua performatividade (produzindo aquilo que afirma), gera o sexo biológico. Portanto, o uso dos corpos e a inteligibilidade social que lhes dá um sentido é efeito da noção de gênero, que é o princípio das distinções sociais dos sexos e de sua utilização na rede de poder-saber. Reiterando essa ideia, Louro (2016) admite que no tecido social um complexo trabalho pedagógico é posto em ação, de maneira contínua e repetida, a fim de inscrever nos corpos o gênero e a sexualidade legítimos ao caráter biológico. No entanto, por serem um efeito das instituições, dos discursos e das práticas sociais, o gênero e a sexualidade podem, por vezes, escapar às matrizes normativas de sua produção, pois possuem um caráter histórico e são permeáveis às inconstâncias.

 

O Corpo Feminino como Objeto de Consumo

A forma de organização primordial das sociedades contemporâneas ocidentais é o capitalismo de consumo. Sendo assim, visto que a contemporaneidade é regulada por esse sistema, o corpo, que é um fato social, também está submetido às mesmas estratégias mercadológicas que interpelam a lógica da cultura do consumo. Entendemos que essa maneira de conceber o corpo se construiu intrinsecamente de acordo com a forma pela qual a sociedade de consumo contemporânea se estruturou. Por ser marcada pelos valores predominantemente capitalistas, a concepção do corpo passou também a se constituir em torno da ideia do indivíduo proprietário e consumista.

O corpo, compreendido a partir dessa lógica, passa a ser concebido como uma mercadoria, passível de investimentos que se apresentam na forma de atitudes e esforços com o intuito de modificá-lo. Essa ideia é corroborada por Goellner (2009), ao afirmar que na contemporaneidade a forma de se relacionar com o corpo ocorre sob o signo do "bodybusiness", caracterizado como um conjunto de intervenções e técnicas com o intuito de se alcançar uma representação de corpo ideal; um corpo que, sob o discurso da saúde e da qualidade de vida, possui um padrão estético minuciosamente estabelecido. O corpo visto como uma empresa, um negócio, não apenas uma propriedade, mas um bem que deve ser investido para que se possa extrair dele o máximo de lucro.

Ainda analisando o corpo sob essa mesma perspectiva, Le Breton (2003) discute que na contemporaneidade:

A relação do indivíduo com o seu corpo ocorre sob a égide do domínio de si. O homem contemporâneo é convidado a construir o corpo, conservar a forma, modelar sua aparência, ocultar o envelhecimento ou a fragilidade, manter sua "saúde potencial". O corpo é hoje um motivo de apresentação de si (p. 30).

Percebemos, portanto, como o corpo tornou-se um espetáculo na contemporaneidade, um lócus de investimento da economia de mercado e o principal objeto de consumo. A motivação principal para se tomar o corpo como objeto de consumo pode ser compreendida através da importância que as representações assumiram na sociedade do espetáculo. Retomando Debord (1997), entende-se que o "o espetáculo constitui o modelo presente da vida socialmente dominante" (p. 15).

Corroborando essa ideia, Costa (2005) assevera que se o corpo foi outrora um veículo de manifestação social de sentimentos, agora ele se tornou o próprio fim da busca individual, pois, contemporaneamente, o que se busca é o prazer físico e a boa aparência, mesmo que para alcançá-los seja necessário sujeitar-se a diversas coerções estéticas que invocam nos indivíduos o desejo de estar em conformidade com o padrão estabelecido, confrontando, assim, o ideal de individualização e singularização dos sujeitos sociais. A partir desse entendimento, reflete-se que o corpo contemporâneo faz parte de um contexto de alta visibilidade. Há uma superexposição de padrões corporais, característicos da sociedade de consumo que educa os indivíduos a consumirem produtos, serviços, ideias e representações de beleza, saúde e sucesso (Goellner, 2009).

Na contemporaneidade, a moda assume um valor importante no processo de seguimento e aceitação dos padrões de beleza socialmente impostos. De acordo com Sampaio e Ferreira (2009), a ideia de beleza se associa a determinadas qualidades estéticas veiculadas constantemente pela mídia e pelos anúncios publicitários. Portanto, atualmente, consideram-se belas aquelas que possuem os atributos físicos explicitados pelos meios de comunicação como as qualidades aceitáveis. As revistas exercem um papel fundamental no processo de consolidação da imagem como uma mercadoria, pois, como afirmam Maroun e Vieira (2008):

Na cultura do consumo, a conquista do corpo almejado é condicionada objetivamente, assim como qualquer outra mercadoria. É nesse momento que as formas se misturam, se fragmentam, tornam-se virtuais, tendem ao desaparecimento, gerando fantasmas mais que corpos. Não é mais apenas o corpo que interessa ao capitalismo, mas a imagem e a mercadoria desse corpo.

Aliada a outros tipos de mídia e publicidade, as revistas consolidaram e instituíram modelos e padrões estéticos que, no decorrer dos anos, se impuseram na sociedade. Ducília Helena Buitoni discute em seu livro Mulher de papel (1981) a forma como a imprensa feminina retrata as mulheres. De acordo com a autora, a partir do ano 1930, desenvolveu-se o perfil da mulher consumista e liberada, em consonância com a era do "novo", do "moderno". Essa noção de moderno na imprensa se deu na área da aparência, incitando a mulher a renovar-se a cada dia, desde as roupas utilizadas até mesmo o próprio corpo. A partir de então, as publicações, servindo ao consumo, disseminam a ideia da cirurgia plástica e do mito da juventude, colocando a concepção do "novo" como o objeto de consumo do momento.

Para dar conta desse mercado "moderno", a imprensa e a publicidade lançam mão de inúmeros recursos, e o principal deles é a alienação do sujeito aos objetos, ou seja, os objetos parecem "ganhar vida" ao mesmo tempo em que os sujeitos deixam de tê-la. Assim, diz-se que o sujeito só pode ganhar novamente qualidade e personalidade mediante a posse de um objeto. Sobre isso, Buitoni (1981) afirma:

A mulher, então, não pode ser bela, sensível, alegre, por si só. Ela conseguirá essas qualidades se tiver determinados objetos. Para ser, ela precisa ter. Esse deslocamento acaba por anular a possibilidade de crescimento pessoal. Até para se autoconhecer, a pessoa (principalmente a mulher, alvo preferido dessa inversão ideológica) precisa da mediação do objeto. Objeto que é às vezes a própria revista feminina: a mulher não vai se conhecer numa relação com o outro - a mulher só se conhece se ler os artigos psicológicos que lhe dizem como é o seu eu, como vencer seus conflitos interiores, como liberar-se sexualmente. (pp. 131-132).

Podemos dizer que, a partir do século XX, o impacto da mídia impressa, principalmente das revistas, passou a ser massivo na sociedade. Esse tipo de meio de comunicação adquiriu um poder de influência muito forte sobre os indivíduos, exercendo um papel fundamental na divulgação de informações científicas, notícias e representações sociais. Na década de 1980, surgiram revistas especializadas em estética, saúde, regimes alimentares e desenvolvimento corporal voltadas ao público feminino (Buitoni, 1981). Esses veículos de comunicação pregavam uma conformidade a um determinado padrão estético e, mesmo as publicações que não se detinham especialmente sobre essa temática, apontavam uma preocupação com a beleza, como sinalizado no seguinte excerto:

Há uma preocupação excessiva com a transformação do corpo e sua adaptação a um padrão corporal definido pela indústria cultural. A maior parte das matérias versa sobre dietas, alimentação e atividade física, procurando eventualmente relacionar estas propostas com saúde. No entanto o que nos parece importante, é o convite à leitora para que diminua suas medidas corporais. Embora não o faça de forma declarada, convida constantemente a leitora a adequar-se ao padrão corporal definido pela indústria e divulgado pela revista (Maldonado, 2006, p. 63).

Durante muitos anos, as publicações das revistas funcionaram como um dos principais dispositivos de controle do corpo na sociedade, prescrevendo noções de beleza e apontando medidas corporais que deveriam ser seguidas a fim de se alcançar o corpo propagado como perfeito. Na contemporaneidade, novas formas de agenciamento dos corpos se pulverizaram na sociedade com o advento e a adesão em massa às redes sociais. Essas redes atravessam o corpo por meio de práticas discursivas e não discursivas traçadas por enunciados e imagens, que o circundam e para o qual convergem saberes, poderes, agenciamentos, controle e policiamento.

O seguimento das normas corporais impostas pelo discurso social, validadas através da mídia e da publicidade, ocorre mediante a crença de que o trabalho no corpo é um projeto que não está referenciado somente à questão da saúde, mas, principalmente, à felicidade e à realização pessoal. Essa noção torna-se mais clara de acordo com a afirmação de Maria Rita Kehl (2004):

Acima de tudo, o corpo que você veste, preparado cuidadosamente à custa de muita ginástica e dieta, aperfeiçoado através de modernas intervenções cirúrgicas e bioquímicas, o corpo que resume praticamente tudo o que restou do seu ser, é a primeira condição que você seja feliz (p. 174).

A normalização do corpo feminino, incentivada pelos enunciados que circulam nas redes sociais, opera de forma muito similar às revistas especializadas em temas voltados ao púbico "feminino". Nesse sentido, avaliamos que esses tipos de mídia apresentam chamadas que funcionam como convocações, despertando a atenção para a utilização de uma linguagem que se baseia na função conativa, comum às publicações desde a era moderna e acentuada na contemporaneidade. Segundo Buitoni (1981) tais frases "não são sugestões; linguisticamente são ordens" (p.113). De acordo com a autora, o uso de sentenças imperativas transforma as frases em ordens que induzem o leitor à aceitação e não à contestação do que se prega nas publicações.

Podemos citar o Instagram como um novo exemplo de dispositivo disciplinar contemporâneo, que opera através da disseminação de verdades e normas corporais. O Instagram é uma rede social gratuita que funciona através do compartilhamento de fotos e vídeos on-line entre os seus usuários, possibilitando também que "curtam" e comentem as publicações de outrem. Trata-se de uma rede social com altas taxas de engajamento, como anunciado em 2018, em que se foi reportado que a marca de um bilhão de usuários ativos nessa rede social foi atingida. Desse total, o Brasil detinha 6,6% dos usuários conectados, ocupando o segundo lugar no ranking dos países que mais utilizam essa rede, ficando atrás somente dos Estados Unidos, onde cerca de 110 milhões de pessoas estão ativas (Agrela, 2019). O advento das redes sociais abriu espaço para novos arranjos de comunicação e sociabilidade, transformando os eixos em torno dos quais as subjetividades se constroem na contemporaneidade, sendo um dos principais a visibilidade, expandida através das telas do computador, da televisão, do celular, da câmera ou de qualquer outro tipo de mídia que seja (Sibilia, 2016).

A utilização da linguagem conativa ainda se faz presente nas publicações e publicidades nas redes sociais. A importância do emprego desse tipo de linguagem reside no fato de que as ideias propagadas, tanto pelas revistas na modernidade como no Instagram na contemporaneidade, aparentam ser simples e cotidianas. A linguagem coloquial empregada pela mídia faz com que opiniões sejam aceitas pelo público de forma tão natural que praticamente não há defesa contra elas. Essa naturalização se reflete na maneira como o receptor compreende a mensagem: ele não a questiona ou raciocina sobre ela, pois as coisas parecem que sempre foram assim. Assim, podemos dizer que o discurso da busca pela beleza do corpo é apresentado no universo das redes sociais na forma de dicas, orientações, regras e promessas, por parte de celebridades ou de pessoas com reconhecimento no mundo virtual (como blogueiras e digital influencers), que estimulam determinados estilos de vida, sempre voltados à regulação do corpo, através de enunciados que propagam a necessidade de empenho e esforço para se alcançar o corpo perfeito. O resultado disso, de acordo com Ribeiro e Mezzaroba (2019) é "a imposição visando ao aumento do consumo: na moda, na indústria de cosméticos, nas cirurgias plásticas, nos produtos suplementares para ampliar a massa muscular ou mesmo tornar os treinos físicos mais eficientes" (p. 169).

Na contemporaneidade, as normas operam de maneira indicativa, e não de forma dirigista ou autoritária. Elas são apresentadas como conselhos práticos, diretrizes de informação, publicidade e terapias "sob medida" (Lipovetsky, 2005), o que acontece devido à ampliação da rede de vigilância na sociedade, que envolve a efetiva participação dos indivíduos comuns, que estão por toda a parte, pois as redes sociais facilitaram a pulverização e disseminação de modelos ideais. Além disso, elas são capazes de atuar a todo o momento, correspondendo às estratégias que compõem os dispositivos de controle. Um dos principais fatores que torna o discurso midiático e publicitário tão atraente é, justamente, a utilização de uma linguagem apelativa, pois "o imperativo não pode ser contestado pela pergunta: é verdadeiro ou não?" (Jakobson, 1969, p. 125); logo, as sentenças imperativas não podem ser submetidas à prova da verdade. Segundo Rodrigues (2005), quando a mídia propõe um modelo ideal de corpo, ela acaba homogeneizando todos os corpos, ao sugerir, às vezes nas entrelinhas e outras vezes explicitamente, que todas as mulheres sigam o mesmo padrão estético, tornando-se, portanto, uniformes e iguais.

Ao eliminar as singularidades pessoais a favor da padronização estética, a mídia favorece que muitas mulheres se coloquem a serviço de uma busca pela melhor aparência, a fim de se apresentar melhor à sociedade. Sobre a imposição de modelos por parte da mídia, Santaella afirma (2004):

Nas mídias, aquilo que dá suporte às ilusões do eu são, sobretudo, as imagens do corpo, o corpo reificado, fetichizado, modelizado como ideal a ser atingido em consonância com o cumprimento da promessa de uma felicidade sem máculas. São, de fato, as representações nas mídias e publicidade que têm o mais profundo efeito sobre as experiências do corpo. São elas que nos levam a imaginar, a diagramar, a fantasiar determinadas existências corporais, na forma de sonhar e desejar que propõem. (p. 125)

O processo de "homogeneização" da aparência encontra suas raízes na lógica do consumo que move a sociedade atual. Eliminar as singularidades e as diferenças permite ao mercado fazer com que todos os consumidores desejem o mesmo, propagando um desejo uniformizante. Nesse sentido, compreende-se que no presente momento histórico acontece um processo de disciplinarização do corpo para se buscar o alcance de um modelo normalizado, segundo um padrão de normalidade ditado pela medicina, pela educação física, pela cultura fitness, pelo glamour, pela magreza etc. A sociedade contemporânea, em seu arranjo como capitalismo de consumo, representa uma ordenação social que estipula a norma que impulsiona os sujeitos a se construírem em torno dela. Em relação ao corpo, essas normas se apresentam na forma dos discursos que prezam corpos magros, jovens, sem marcas de desleixo.

Nesse sentido, se o culto ao corpo possui uma finalidade capitalística de trabalhá-lo para lucrar socialmente com ele, as formas de fazer do corpo um capital provêm da medicina e da medicalização, por meio do incremento de performances, tais como drogas, suplementos alimentares, cirurgias plásticas, técnicas de recondicionamento e de treinamento corporal, cerebral e linguístico. Nesse sentido, as ciências médicas vendem inúmeros produtos que incrementam esse mercado de corpos idealizados. O próprio ideal de corpo perfeito, vendido pelo mercado na contemporaneidade, se origina na ideia de norma e normalidade oriunda da medicina e da lógica social do biopoder. Nessa normalidade corporal, todos os sujeitos são julgados e medidos, seja nas revistas femininas, típicas da segunda metade do século XX, seja nas redes sociais digitais, típicas do início do século XXI. Se o instrumento de controle e disciplinamento do corpo se alterou (da mídia impressa para a mídia digital), a lógica normalizadora ainda permanece. Contudo podemos postular que, dada a ubiquidade, instantaneidade e o número de usuários, acessos e tempo de utilização, as redes sociais digitais promovem um incremento do processo de normalização social, particularmente sobre o corpo como um objeto de consumo.

A normalização do corpo engendrada pela mídia não ocorre apenas pela imposição de modelos ideais de beleza, mas, sim, pela afirmação contínua de que se pode ter o corpo desejável e perfeito, bastando somente que se queira tê-lo. Tal enunciado tem como consequência principal a atribuição da responsabilidade da aparência ao próprio indivíduo. Como afirma Novaes: "De dever social (se conseguir, melhor), a beleza tornou-se um dever moral (se realmente quiser, eu consigo). O fracasso não se deve mais a uma impossibilidade mais ampla, mas a uma incapacidade individual." (Novaes, 2006, p. 29).

Sendo assim, os conceitos de "beleza" e "saúde" constituem-se em torno de normas fundamentadas em um padrão específico, e percebemos que, atualmente, a norma principal de controle do corpo é de ordem estética. Nesse sentido, compreende-se que, na contemporaneidade, o ideal de saúde que se apresenta não significa apenas estar longe da doença, mas "ter um superávit" de energia, vitalidade e potência (Sant'Anna, 2000).

 

Considerações Finais

Considerando o gênero e a forma contemporânea de se relacionar com o corpo como efeitos de um dispositivo político articulado com a forma de organização capitalista da sociedade, objetivamos demonstrar que a forma de se pensar o corpo possui um viés político que serve às redes de poder como instrumento de produção de subjetividades assujeitadas às normas. Ao elucidarmos tais questões, pretendemos contribuir para a clarificação do entendimento que as mulheres têm sobre a forma como se relacionam com seus corpos, a fim de torná-las mais críticas à tirania do discurso estético corporal contemporâneo.

Consideramos necessário ressaltar que, por entendermos a subjetividade como uma produção social e histórica, não é possível dizer que todo processo de subjetivação pode ser reduzido simplesmente às formas de poder difundidas pelas redes institucionais que objetivam dar conta dessa produção. É preciso se considerar que essa produção pode ter outras implicações, como as práticas de resistência, que representam uma ação política de recusa ao individualismo proprietário e consumista já tão naturalizado no atual contexto e, assim, podem permitir circular no entorno social novas possibilidades de existir.

Sendo assim, por entendermos o sujeito enquanto relação e multiplicidade, acreditamos que, apesar dos regimes de normalização dos corpos, dos mecanismos e tecnologias de controle, é possível se fabricar alguma subversão em relação aos regimes disciplinares no entorno social, constituindo-se, assim, corpos que "escapam" (ao menos momentaneamente) às matrizes normativas estabelecidas.

 

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Endereço para correspondência:
Thaís Pinto Fontinele
E-mail: thaisfontinele@hotmail.com

Márcio José de Araujo Costa
E-mail: marciojacosta144@gmail.com

Recebido em: 19/07/2019
Revisado em: 02/10/2019
Aceito em: 07/11/2019
Publicado online: 12/03/2020

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