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Print version ISSN 2359-0769On-line version ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.21 no.2 Fortaleza May/Aug. 2021

https://doi.org/10.5020/23590777.rs.v21i2.e8293 

ESTUDOS TEÓRICOS

 

A Noção de Futuro na Filosofia de Deleuze e o Pensamento Decolonial: Algumas Aproximações

 

The Notion of the Future in Deleuze's Philosophy and Decolonial Thought: Some Approaches

 

La Noción de Futuro en la Filosofía de Deleuze y el Pensamiento Decolonial: Algunas Aproximaciones

 

La Notion d'Avenir chez la Philosophie et la Pensée Décoloniale de Deleuze : Quelques Approches

 

 

Alana Soares AlbuquerqueI; Tania Mara Galli Fonseca (in memoriam)II

IPsicóloga graduada pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Mestre e doutora em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
IIDoutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), ex-professora titular do Instituto de Psicologia da UFRGS e do PPG em Psicologia Social e Institucional

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho tem como objetivo analisar como a noção de futuro que Deleuze esboça em sua filosofia do tempo pode ser relacionada ao pensamento decolonial, especialmente quando este se refere à possibilidade de imaginar outros futuros, ainda não capturados pelas promessas das utopias modernas ou pelos cenários pós-apocalípticos das distopias tecnológicas. Como herança do pensamento científico e moderno, o futuro vem sendo sequestrado pelas mais diversas técnicas de predição e antecipação. Já no território ficcional, os futuros imaginários das narrativas clássicas de ficção científica também foram colonizados, pois têm sido predominantes nesse tipo de ficção certas noções que estão intimamente ligadas a um ponto de vista eurocêntrico, como a noção de civilização, de "sociedades desenvolvidas", ou até mesmo de humanidade. Por essa razão, destacamos a necessidade de dissociar o futuro de perspectivas finalistas que o fixam em certo tempo por vir. Para isso, recorremos aos conceitos de "terceira síntese do tempo" e de "geofilosofia", elaborados por Deleuze (o segundo em parceria com Guattari), em uma tentativa de libertar a categoria do futuro das perspectivas lineares e cronológicas do tempo, ressaltando, por outro lado, sua abertura e multiplicidade. A partir de uma aproximação entre essa abordagem do futuro e os estudos decoloniais, apostamos, por fim, em uma perspectiva especulativa que inclua a incerteza, para assim dar à luz outras versões do futuro, não aqueles já prováveis, mas futuros ainda não pensados, outros mundos que estão, neste exato momento, também reivindicando por um chamado à existência.

Palavras-chave: filosofia; tempo; história; futuro; pensamento decolonial.


ABSTRACT

This work aims to analyze how the notion of the future that Deleuze outlines in his philosophy of time can be related to decolonial thinking, especially when it refers to the possibility of imagining other futures not yet captured by the promises of modern utopias or by post-apocalyptic scenarios of technological dystopias. As a legacy of scientific and modern thought, the future has been hijacked by the most diverse techniques of prediction and anticipation. In the fictional territory, the imaginary futures of classic science fiction narratives were also colonized, as certain notions that are closely linked to a Eurocentric point of view have been predominant in this type of fiction, such as the notion of civilization, of "developed societies" or even humanity. For this reason, we emphasize the need to dissociate the future from finalist perspectives that fix it at a certain time to come. For this, we resorted to the concepts of "third synthesis of time" and "geophilosophy" elaborated by Deleuze (the second in partnership with Guattari), in an attempt to free the category of the future from the linear and chronological perspectives of time, emphasizing, on the other hand, its opening and multiplicity. From an approximation between this future approach and decolonial studies, we finally bet on a speculative perspective that includes uncertainty, to give birth to other versions of the future, not those already probable, but futures not yet thought of, other worlds that are, right now, also claiming for a call to existence.

Keywords: philosophy; time; story; future; decolonial thinking.


RESUMEN

Este trabajo tiene el objetivo de analizar cómo la noción de futuro que Deleuze bosqueja en su filosofía del tiempo puede ser relacionada al pensamiento Decolonial, especialmente cuando este se refiere a la posibilidad de imaginar otros futuros, aún no capturados por las promesas de las utopías modernas o por los escenarios post-apocalípticos de las distopías tecnológicas. Como herencia del pensamiento científico y moderno, el futuro viene siendo secuestrado por las más distintas técnicas de predicción. Ya en el territorio ficcional, los futuros imaginarios de las narrativas clásicas de ficción científica también fueron colonizados, porque tienen predominancia en este tipo de ficción ciertas nociones que están íntimamente ligadas a un punto de vista eurocéntrico, como la noción de civilización, de "sociedades desarrolladas", o hasta mismo de humanidad. Por esta razón, enfocamos la necesidad de disociar el futuro de perspectivas finalistas que le fijan en cierto tiempo por venir. Para eso, recurrimos a los conceptos de "tercera síntesis del tiempo" y de "geofilosofia", elaborados por Deleuze (el segundo en asociación con Guattari), en un intento de libertar la categoría del futuro de las perspectivas lineares y cronológicas del tiempo, resaltando, por otro lado, su apertura y multiplicidad. A partir de un acercamiento entre este enfoque del futuro y los estudios decoloniales, apostamos, por fin, en una perspectiva especulativa que incluya la incertidumbre, para así aclarar otras versiones del futuro, no aquellos ya probables, pero futuros aún no pensados, otros mundos que están, en este exacto momento, también reivindicando por un llamado a la existencia.

Palabras clave: filosofía; tiempo; historia; futuro; pensamiento decolonial.


RÉSUMÉ

Ce travail vise à analyser comment la notion de futur que Deleuze esquisse dans sa philosophie du temps peut se rapporter à la pensée décoloniale, notamment lorsqu'elle renvoie à la possibilité d'imaginer d'autres futurs, non encore saisis par les promesses des utopies modernes ou par des scénarios post-apocalyptics des dystopies technologiques. Héritage de la pensée scientifique et moderne, le futur est souvent pris par les techniques les plus diverses de prédiction et d'anticipation. Chez la fiction, les futurs imaginaires des récits de science-fiction classiques ont également été colonisés, car certaines notions étroitement liées à un point de vue eurocentrique ont été prédominantes dans ce type de fiction, comme la notion de civilisation, de « sociétés développées ", ou même de l'humanité. Pour cette raison, nous insistons sur la nécessité de dissocier le futur des perspectives finalistes qui le fixent à un certain moment à venir. Pour cela, nous avons eu recours aux concepts de « troisième synthèse du temps » et de « géophilosophie », élaborés par Deleuze (le second en partenariat avec Guattari), pour tenter de libérer la catégorie du futur des perspectives linéaires et chronologiques du temps, en soulignant, d'autre part, son ouverture et sa multiplicité. A partir d'un rapprochement entre cette approche du futur et les études décoloniales, nous parions enfin sur une perspective spéculative qui inclut l'incertitude, afin de faire naître d'autres versions du futur, non pas celles déjà probables, mais des futurs pas encore pensés, d'autres mondes qui, en ce moment, revendiquent aussi un appel à l'existence.

Mots-clés : philosophie ; temps ; histoire ; futur ; pensée décoloniale.


 

 

Modernidade e Invenção do Futuro

Quando pensamos sobre o futuro, imaginamos que este será significativamente diferente do presente. Há mais de um século o imaginário da ficção científica vem nos acostumando com futuros que são nada mais do que uma espécie de extrapolação das tendências tecnocientíficas atuais. Ou imaginamos que o futuro nos trará, por um lado, uma espécie de salvação pela tecnologia - a automação total do trabalho humano, as técnicas de prolongamento da extensão da vida, a criação de robôs humanoides que viverão entre nós, dentre outras façanhas do mundo tecnológico - ou, por outro lado, imaginamos que esse mesmo futuro tecnológico trará consequências indesejadas que colocarão em risco o destino da própria humanidade. Se no primeiro caso predomina o imaginário utópico, no segundo nos deparamos com sua versão distorcida: a distopia. Porém, em ambos os cenários, tudo o que temos é o futuro como extrapolação do presente. A esse ponto, portanto, podemos nos perguntar: o que nos leva a imaginar que o futuro nos trará necessariamente o progresso tecnológico, seja esse salvacionista ou apocalíptico?

Para o historiador Reinhardt Koselleck (2006), a ideia de futuro que temos hoje nasce com a modernidade, estando intimamente relacionada com a invenção do próprio conceito de História (com H maiúsculo), o que só foi possível a partir do final do século XVIII, como resultado das longas reflexões teóricas do Iluminismo. Até a Idade Média, falar em história significava necessariamente a história de alguma coisa. Sempre existiram histórias, no plural, mas não a ideia de uma história universal; porém, a partir do século XVIII, tal conceito passa a ser considerado como condição da experiência e da expectativa possíveis, abrindo um espaço de ação em que os homens se veem forçados a prever a história, planejá-la, produzi-la... A expressão abre novos horizontes de planificação social e política, que apontam necessariamente para um futuro por vir. Com relação a essa necessidade de planejamento da história, serão a ciência e suas técnicas que assumirão tal função de prever e de programar o futuro, entrando em cena a ideia de prognóstico. Enquanto as antigas profecias ultrapassavam o horizonte da experiência calculável, o prognóstico está associado a uma situação política, e essa associação se dá de forma tão íntima, que fazer um prognóstico já significa, de alguma maneira, alterar uma situação. Assim, é o próprio tempo que passa a derivar do prognóstico, de uma forma continuada e previsível (Koselleck (2006).

Outro fator que também colaborou para a elaboração de projeções que apontavam para um futuro longínquo foi o surgimento de novas concepções sobre o passado, que se formaram ao longo dos séculos XVIII e XIX. Foi Kant (citado por Koselleck, 2014) que, no auge do movimento Iluminista, realizou uma espécie de temporalização da história natural, submetendo a Terra e todos os seres biológicos a uma perspectiva histórica, inaugurando assim um horizonte de tempo distinto daquele criado pelas perspectivas teológicas. O filósofo, ao recorrer a condições visíveis e terrestres para deduzir uma metáfora temporal aplicável ao processo de formação da natureza, acabou por temporalizar o ato da criação, até então singular na teologia. O que antes se baseava em mitos de criação e cosmogonias, passa agora a adquirir estruturas históricas.

Além dessa nova concepção filosófica do tempo, ao longo do século XIX, uma série de descobertas científicas também transformou nossa noção de história e de passado. Em 1830, o geólogo Charles Lyell, com sua obra Princípios de Geologia, rejeitou pela primeira vez a noção inspirada na Bíblia de que a Terra tinha menos de 6000 anos, abalando significativamente o senso de "tempo histórico" ao introduzir a ideia de "tempo profundo". Alguns anos depois de Lyell, em 1859, Charles Darwin publicou A Origem das Espécies, confirmando a vertiginosa escala em que o tempo agora se colocava. Nesse mesmo século, a arqueologia, uma área que estava nascendo como ciência, começou a expor toda uma história enterrada: cofres foram abertos, civilizações passadas apareceram, petrificadas ou mumificadas, mas como se estivessem vivas. Além disso, os museus se proliferavam por toda Europa, fazendo emergir novas camadas de tempo que agora podiam ser vistas (Gleick, 2016).

Essas novas visões sobre o passado colocaram a história em outra dimensão de tempo, que a estendia quase que indefinidamente em direção a um longo passado e a um longo futuro. Com isso podemos perceber, portanto, que o futuro não é um conceito óbvio, mas uma construção e uma projeção cultural. Até a Idade Média, por exemplo, que vivia uma cultura predominantemente teológica, a perfeição era situada no passado, voltada a tempos imemoriais, em que Deus criou o universo e a humanidade. A existência histórica tomava a forma da Queda, da visão teológica sobre a expulsão do homem do paraíso, e seu consequente abandono e esquecimento da unidade e perfeição originais. A partir dessa perspectiva, o único horizonte possível que se colocava como futuro era aquele que marcava o fim dos tempos, a visão escatológica do Juízo Final ou do Apocalipse. Diferentemente dessa visão, a crença no futuro como progresso e desenvolvimento tem suas raízes no capitalismo moderno e na expansão da economia e do conhecimento científico. A ideia de que o futuro será necessariamente melhor do que o presente não é, como podemos ver, uma ideia natural, mas o efeito imaginário da peculiaridade do modelo de produção burguesa, baseada na acumulação ilimitada de capital, o que resulta no constante aprimoramento da esfera dos bens de consumo (Berardi, 2011).

Se a projeção de um futuro no horizonte da história é uma herança do pensamento moderno e científico, ao longo do tempo essa ideia de futuro como aprimoramento do presente passa a se confundir com o próprio conceito de progresso, a tradução ideológica da realidade do crescimento econômico (Berardi, 2011). Como define Koselleck (2006), no conceito de progresso compreende-se um tempo histórico que continuamente se supera. Durante o período que o historiador aponta como crucial para o desenvolvimento das noções de história e de futuro (entre os séculos XVII e XIX), a ideia de progresso também começa a se relacionar intimamente com a noção de desenvolvimento tecnológico. Na modernidade, a técnica - que para os gregos, na Antiguidade, era uma forma de relação consciente com o mundo e consigo mesmo -, é reinterpretada como um conjunto de saberes que possui a condição de ciência, pois visa a construir os meios necessários para produzir efeitos previamente calculados, à revelia das diferenças de talento e inclinação dos seres humanos. Reinterpretando o conceito de técnica dos gregos em termos matemáticos e logicistas, os modernos realizam uma fusão entre téchne e logos, criando a expressão tecnologia. Aos poucos, a noção de tecnologia começa a se confundir com a noção de máquina, ganhando a apreensão à qual até hoje nos remetemos quando pensamos em tecnologias, ou seja, como sinônimo de qualquer aparato maquínico. De forma de saber, a tecnologia passa a ser a designação de uma estrutura material dotada de funcionalidade operatória, confundindo-se cada vez mais com os maquinismos em que a ciência se materializa (Rüdiger, 2016).

Se o nascimento das ciências modernas e todo seu aparato tecnológico já havia causado um grande impacto no pensamento a partir do século XVII, é apenas no final do século XVIII que as tecnologias irão se infiltrar de vez em todas as esferas da vida, a partir de um acontecimento que irá transformar significativamente nossa relação com as máquinas: a Revolução Industrial. Ciência e técnica entrelaçam-se cada vez mais em prol do progresso, e as próprias formas de organização social passam a ser reguladas por alguma tecnologia orientada cientificamente. Começa a haver cada vez mais uma "cientifização" das atividades sociais, como no gerenciamento das relações humanas e da vida pessoal com vistas ao rendimento econômico (Rüdiger, 2016).

Com o advento da Revolução Industrial, uma série de máquinas e tecnologias científicas irá infiltrar-se cada vez mais não só no mundo do trabalho, mas em diferentes esferas do cotidiano, aumentando a impressão de controle sobre a vida que as tecnologias exercem. Ao longo do século XIX e início do XX irão multiplicar-se, por um lado, aqueles que acreditam no progresso tecnológico, os entusiastas da técnica, e por outro, os que veem no desenvolvimento tecnológico a degradação e alienação do homem, que, quando não é completamente substituído pelas máquinas, vira apenas mais uma engrenagem entre outras, como no trabalho mecanizado das linhas de montagem. Entre os inúmeros domínios sobre os quais as máquinas impõem seu ritmo mecânico, estão o tempo e as formas de sentir e compreender sua passagem.

 

História Progressiva e Tempo Acelerado: Do Primitivo ao Moderno

A introdução de novas tecnologias em uma sociedade causa profundas transformações em sua orientação espaço-temporal, pois "linguagem e técnica contribuem para produzir e modular o tempo" (Lévy, 1993, p. 76). O processo de industrialização e a inserção das máquinas no cotidiano europeu são experimentados ao nível das consciências como vertigem e aceleração, principalmente a partir do sentimento de encolhimento do mundo trazido pelo desenvolvimento da malha ferroviária, das máquinas movidas a motor e das telecomunicações, que diminuíam cada vez mais as distâncias espaciais entre um ponto e outro (Sodré, 1973). É importante lembrar, entretanto, que expectativas de uma aceleração, no sentido de uma abreviação do tempo, já existiam desde o Apocalipse judaico-cristão, mas acelerações reais, capazes de transformar a realidade, só tomaram forma em um mundo tecnicamente reconfigurado (Koselleck, 2014).

Para Koselleck (2014), o sentimento de aceleração do tempo nada mais é do que uma variante específica da ideia de progresso. O desenvolvimento acelerado das máquinas e do contexto industrial fez surgir nos europeus a sensação de "estar à frente do seu tempo". O que a Revolução Industrial fez foi exacerbar um sentimento de superioridade frente aos outros continentes, que já havia nascido nos europeus/modernos há alguns séculos atrás, a partir de um movimento que não apenas coincidiu com a transição para a modernidade, mas que foi um dos pilares para o desenvolvimento de noções-chave que sustentaram esse período: a expansão colonial. A partir da colonização de outros continentes, nasce a experiência anacrônica de histórias diferentes, mas cronologicamente simultâneas. Com o "descobrimento" do globo terrestre, apareceram graus distintos de civilização. Olhando para a América selvagem a partir da Europa civilizada, os europeus imaginavam estar olhando também para trás. As comparações entre sociedades mais ou menos desenvolvidas passaram a ordenar a história do mundo, interpretada como um progresso para objetivos cada vez mais avançados. A suposição de que povos, estados ou continentes estariam adiantados uns em relação aos outros colaborou, portanto, para o postulado da aceleração (Koselleck, 2006).

As sociedades começaram, dessa maneira, a ser medidas e classificadas de acordo com a sua similaridade ou dissimilaridade com o modelo europeu de desenvolvimento. A história passou a situar as sociedades em uma linha do tempo imaginária que ia da natureza à cultura, do primitivo ao civilizado, do tradicional ao moderno, seguindo um destino progressivo em direção a algum ponto de chegada. Era como se o mundo inteiro estivesse vivendo em diferentes temporalidades, com a Europa no presente e o resto das sociedades no passado. Enquanto o presente era descrito como moderno e civilizado, o passado era visto como tradicional e bárbaro. O que a expansão colonial fez, em resumo, foi transformar a geografia em cronologia, pois foi como se a proximidade com povos "menos desenvolvidos" tivesse de ser compensada com um deslocamento temporal que condenou as outras sociedades a um estágio primitivo de desenvolvimento, fora do alcance epistemológico moderno, pois na Europa iluminista as categorias de humanidade e de sociedade não se estendiam aos povos não ocidentais. A Europa se via, enfim, como o espelho do futuro de todas as outras sociedades e culturas, como a forma mais avançada da história de toda a espécie (Mignolo, 2011; Quijano, 2007).

Com a expansão colonial, relações de dominação política, social e cultural foram estabelecidas pelos europeus sobre os continentes conquistados. Essas construções socioculturais, produtos da dominação colonial eurocentrada, foram tidas como categorias científicas e objetivas, com significância histórica. Não foram só os territórios geográficos, portanto, que foram colonizados, mas a relação entre a cultura europeia e as outras culturas também passou a ser a de dominação. Tal relação consistiu em uma colonização da imaginação dos povos dominados, agindo no interior de seu imaginário e fazendo parte deste. A repressão recaiu, sobretudo, sobre os modos de conhecer, de produzir perspectivas, símbolos e modos de significação, sendo seguida pela imposição dos padrões de expressão dos colonizadores, suas crenças e suas imagens. A europeização cultural foi transformada em uma aspiração, pois significava uma maneira de participar e atingir os mesmos benefícios materiais e o mesmo poder que os europeus (leia-se conquistar a natureza), com vistas ao desenvolvimento. A cultura europeia se tornou um modelo a ser seguido, e o imaginário das culturas colonizadas não podia mais se reproduzir fora dessas relações. Na América Latina, principalmente, a repressão cultural, junto ao genocídio dos povos nativos, transformou as culturas locais em iletradas, subculturas rústicas condenadas à oralidade, isto é, privadas de seus próprios padrões de expressão intelectual, plástica ou visual. As culturas não europeias foram, enfim, relegadas à categoria do exótico e vistas como "objeto", em oposição ao "sujeito" moderno e racional (Quijano, 2007).

A partir da criação das categorias de primitivo, de atraso e de subdesenvolvimento, observamos, portanto, não apenas uma colonização geográfica e cultural, como também uma colonização do próprio tempo e, por que não, da própria categoria de futuro, espelhada agora no desenvolvimento tecnológico pautado pelo padrão europeu. O futuro se vê, portanto, cada vez mais capturado pelas projeções de uma história progressiva e teleológica, que se dirige para um determinado fim. Se herdamos dos modernos tal noção de futuro como desenvolvimento tecnológico, como sinônimo de progresso ou como exacerbação do próprio capitalismo, podemos, hoje, perguntar-nos: que outros futuros foram suprimidos por essa visão hegemônica e totalizante, que pressupõe uma espécie de "história universal", para usar um termo que Deleuze e Guattari (2010) retomam de Kant? O que nos resta imaginar do futuro? São essas e outras questões que desejamos ainda explorar.

 

O Futuro em Crise: Há um Mundo por Vir?

O sentimento de ruptura com o passado e de culto ao futuro que predominou durante os séculos XVIII e XIX chegará ao ápice no chamado fin de siècle - expressão usada para se referir ao clima intelectual e cultural que pairava sobre a Europa durante a virada do século XIX para o XX. É importante lembrar que um século antes, o ano 1800 havia passado sem nenhuma comemoração especial, porém o ano 1900 é aguardado com grande entusiasmo, pois traz consigo justamente esse sentimento de ruptura e de inauguração de um novo tempo. Não há registro de um centenário, por exemplo, antes de 1876, e a expressão virada do século não existia até a chegada do século XX, que inaugura uma nova forma de consciência sobre o tempo e sobre as datas (Gleick, 2016; Koselleck, 2014).

É a partir desse forte entusiasmo que se desenvolve em torno das máquinas, principalmente as de velocidade, como os carros movidos a motor, que o sentimento de um tempo que passa acelerado, que rompe definitivamente com o passado, irá se materializar em um texto que teve significativo impacto no início do século XX: o Manifesto Futurista, publicado pelo escritor italiano Filippo Marinetti (1909). O poeta, em seu agressivo manifesto, faz uma ode não só às máquinas de velocidade, mas também à guerra, ao militarismo e ao patriotismo. O manifesto prega radicalmente uma ruptura definitiva com o passado e a tradição, ao mesmo tempo que afirma um culto ao futuro tecnológico. Autores como Gleick (2016) e Roberts (2006) acreditam que Marinetti tenha feito uma apropriação fascista do futurismo, o que até então não era um aspecto presente na literatura de ficção científica que nascia no final do século XIX, como nas obras de H. G. Wells e de Júlio Verne. Confirmando essa hipótese, Marinetti declara, alguns anos depois de seu manifesto, seu apoio a Mussolini e ao fascismo, movimento que estava em ascensão na Itália no início do século XX.

O fin de siècle europeu é marcado, enfim, por uma forte polarização entre, por um lado, um otimismo positivista, característico dos futuristas que abraçavam fervorosamente as convenções burguesas que as máquinas traziam com elas, e, por outro, um pessimismo degenerativo, característico das visões distópicas sobre o futuro que também estavam proliferando (Roberts, 2006). Se foi o imaginário utópico sobre as tecnologias que predominou até o século XIX, a partir do século XX irão proliferar os cenários devastadores das distopias. Para Koselleck (2014), a utopia futurista se inseria diretamente nos objetivos iluministas, estando em consonância com a ideia de progresso. Se as utopias exaltavam os valores modernos (o humanismo, o processo civilizatório, a racionalidade científica etc.), projetando para o futuro um ideal de sociedade, as distopias irão colocar em crise esses mesmos valores. Em meio à ascensão dos regimes totalitários na Europa, a primeira metade do século XX será marcada por uma trilogia conhecida como fundadora da literatura distópica: Nós (1924), do escritor russo Ievguêni Zamiátin (obra que, censurada na época em que foi escrita, só foi publicada na Rússia nos anos 80), Admirável mundo novo (1932) do britânico Aldous Huxley e, por último, 1984 (1949), escrita pelo também britânico George Orwell, logo após a Segunda Guerra Mundial.

A proliferação das distopias marca, para o filósofo e ativista Franco Berardi (2011), uma espécie de dissolução da crença no futuro, que predominou até os séculos anteriores. Para o autor, a partir da segunda metade do século XX, certo esgotamento passa a pairar sobre o horizonte das práticas políticas, esgotamento que não tinha lugar no imaginário moderno progressista. É nesse período que os efeitos da expansão capitalista começam a ser sentidos na biosfera, e movimentos antiglobalização começam a se espalhar por todo o mundo, marcando uma nova virada de século que agora se aproximava, envolta na névoa de medo e paranoia que a expectativa do "bug do milênio" trazia consigo.

Além disso, vivemos, hoje, no Antropoceno, nome que se dá à era geológica que sucede o Holoceno, período que durou mais de 11 mil anos. Não há um consenso sobre quando exatamente o Antropoceno tenha começado; na verdade, não há nem mesmo um consenso sobre a ideia de que realmente estaríamos em uma nova era geológica. Seu início pode estar relacionado, de forma mais geral, com o advento da Revolução Industrial, ou, de forma mais específica, à década de 1950, quando o teor de dióxido de carbono liberado na atmosfera terrestre atinge níveis consideráveis, causando transformações irreversíveis no meio-ambiente, como o efeito estufa. O Antropoceno marca, enfim, o momento em que o ser humano reconhece-se como força geológica, como agente de transformações irreversíveis, ao mesmo tempo que a Terra, respondendo a tal intervenção, emerge como um organismo vivo e dotado de complexidade, fenômeno que autores como Isabelle Stengers (2015) irão chamar de "intrusão de Gaia".

Com os impactos do Antropoceno, um novo horizonte (ou a falta dele) se coloca diante de nós. Proliferam, hoje, os discursos sobre o fim do mundo, que ultrapassam o campo da ficção em direção ao campo das ciências. Considerando o impacto que esses discursos têm hoje, a filósofa Deborah Danowski e o antropólogo Viveiros de Castro (2014), em seu recente livro Há mundo por vir?, realizam uma incursão pelas visões científicas, imaginárias, culturais e mitológicas sobre o tema do fim do mundo. Os autores apontam que nunca antes na história tal hipótese esteve tanto em alta, pois foi apenas recentemente, desde os anos 90, que se formou definitivamente um consenso científico sobre as transformações climáticas que estavam em curso no planeta. Pela primeira vez, o que antes era uma hipótese ficcional ou metafísica, a do fim do mundo, é tomada seriamente por ciências empíricas como a climatologia, a geofísica e a ecologia. Os discursos atuais sobre o fim do mundo são vistos e desdobrados pelos autores como uma "mitofísica", uma espécie de nova mitologia adequada ao nosso presente (Danowski & Viveiros de Castro, 2014).

Vivemos em um tempo que se revela como um presente sem porvir, no qual a temporalidade da crise ecológica entra em ressonância catastrófica com a temporalidade da crise econômica. Um presente passivo, portador de um karma geofísico que está fora do nosso alcance anular, e no qual aquela aceleração do tempo vista usualmente como uma condição existencial e psicocultural de uma época acaba por extravasar da história social para a história biogeofísica. Diante de tal "crise de futuro" que se coloca em nosso horizonte, os autores identificam um embate intelectual entre duas posturas distintas que têm se destacado frente à crise: por um lado, os aceleracionistas, que desejam acelerar a máquina capitalista, potencializar a destruição criativa que a move até que ela termine por se autodestruir e nos recrie um mundo novo; por outro, os partidários de uma ecologia política da desaceleração (como Stengers e sua ideia de slow science), aos quais os autores do livro se identificam, afirmando que não há sentido em "compor com o capitalismo", como proposto pelos aceleracionistas, mas apenas lutar contra ele (Danowski & Viveiros de Castro, 2014).

Se vivemos hoje em meio a tal "crise de futuro" que se coloca diante de nós, se presenciamos, como aponta Berardi (2011), a falência do pensamento utópico diante da crise dos ideais progressistas e capitalistas inaugurados com a modernidade, crise essa que se coaduna hoje com a crise ambiental, questionamo-nos que outra perspectiva de tempo e história poderia nos salvar desse horizonte apocalíptico. Perguntamos, com Danowski e Viveiros de Castro: haveria outro mundo (ou mundos) por vir? Para desdobrar essas outras versões possíveis do tempo, da história e do futuro, voltamo-nos, portanto, à filosofia.

 

Libertando o Tempo das Amarras da Cronologia: Rumo a uma Terceira Síntese

Se herdamos da modernidade e do Iluminismo uma visão de história que se dirige para um determinado fim, uma visão teleológica e determinista, marcada por um tempo que passa, igualmente, de forma linear e cronológica, que outras concepções sobre o tempo poderiam combater tal visão que captura o futuro em formas já dadas? Como libertar o futuro de tais perspectivas? Para pensar em outras versões possíveis do tempo, recorremos à filosofia de Gilles Deleuze. Em sua obra Diferença e repetição, o autor esboça sua filosofia do tempo, a partir da sua teoria das três sínteses. Para Deleuze (2006), o tempo não se constitui pela simples sucessão dos instantes, mas por sínteses que incidem sobre essa sucessão. O autor irá nos falar, então, de três sínteses que são constitutivas do tempo.

A primeira síntese é a do presente vivo, que constitui a fundação do tempo (uma espécie de "solo" ocupado pelo presente que passa). Tal síntese consiste em contemplação e contração, em "eus-larvares", ainda não completamente formados. São as sínteses orgânicas e perceptivas, que se dão ao nível mais básico de uma sensibilidade vital primária. É essa síntese que garante a expectativa de que "isto" continue, de que o ser permaneça em sua existência. Tais sínteses passivas, primárias, que, pela repetição de elementos, formam o hábito, desdobram-se em sínteses ativas da memória. Constitui-se, dessa maneira, a segunda síntese do tempo, relativa ao passado puro. O passado aqui não é entendido como uma das dimensões do tempo, mas como síntese de todo o tempo. Se a primeira síntese constituía uma fundação do tempo, um solo, a segunda síntese constitui o seu fundamento. O passado entendido como síntese do tempo coexiste consigo mesmo em níveis diversos de contração e descontração, sendo o presente o nível mais contraído desses círculos de passado (Deleuze, 2006).

Se a primeira síntese do tempo é preenchida pelo presente que passa, e a segunda pelo passado que se conserva, resta à dimensão do futuro preencher uma terceira síntese. Mas como o futuro, que ainda não aconteceu, poderia preencher uma dimensão constitutiva do tempo? Deleuze recorre então ao pensamento kantiano para pensar em uma forma vazia do tempo, um tempo que não é preenchido pelo movimento do mundo. Para definir a natureza de tal síntese, o autor invoca a famosa frase de Shakespeare que diz: "O tempo está fora dos eixos"!

O tempo fora dos eixos significa (...) o tempo enlouquecido, saído da curvatura que Deus lhe dava, liberado de sua figura circular demasiado simples, libertado dos acontecimentos que compunham seu conteúdo, subvertendo sua relação com o movimento, descobrindo-se, em suma, como forma vazia e pura. (Deleuze, 2006, p. 136)

Para compreendermos por que Deleuze fala em um tempo liberto de sua figura circular, devemos voltar brevemente à história do conceito filosófico de tempo. Na história da filosofia, o tempo sempre foi predominantemente pensado em relação direta com movimento, ao qual se identificava. Houve, em Platão, uma espécie de domesticação do tempo, como se o tempo se subordinasse ao seu conteúdo, pois é o movimento do mundo (como o movimento dos astros no céu) que o torna circular. É somente a partir de Kant que o tempo poderá ser pensado como independente do movimento, ganhando a forma da linha reta1, emancipando-se da noção de eternidade que lhe servia de modelo. O tempo kantiano não está mais subsumido à causalidade. Tudo muda no tempo, mas o próprio tempo não muda. Kant liberta, dessa maneira, o tempo de sua submissão ao esquema sensório-motor, de sua dependência do movimento racional e observável. O que está presente na obra de Deleuze é justamente essa temática da emancipação do tempo, pois o autor pensa um tempo da diferença, um tempo que difere de si mesmo. O tempo passa a ser concebido, então, não mais como ordem e sucessão, mas como variação infinita (Pelbart, 2010).

Pelbart (2010) entende que na obra de Deleuze, que justamente desconstrói a imagem linear do tempo e a substitui por um emaranhado de tempo, ou um tempo desconjuntado (out of joint), podemos conceber o futuro como essa pura diferença, como aquilo que move o pensamento em direção ao "fora", plano no qual habitam as forças que fazem com que estejamos constantemente "tornando-nos" nós mesmos, em perpétuo devir, sempre inacabados. Se não há uma flecha do tempo com um sentido único, o futuro não pode mais ser considerado como uma dimensão a posteriori do tempo, à qual deveríamos "chegar", como se "alcançássemos" o futuro, mas deve ser entendido como uma dimensão prenhe de multiplicidades, que não está localizada em um longínquo, mas sim que está constantemente brotando do presente.

Concebendo a terceira síntese do tempo como a própria dimensão do futuro, Deleuze (2006) relaciona esse conceito à ideia de eterno retorno em Nietzsche. Em sua interpretação dessa hipótese, o autor entende o eterno retorno não como o retorno do mesmo (que corresponderia à imagem circular do tempo), mas como repetição da diferença, pois o eterno retorno afirma o múltiplo, o diferente, o acaso. Para Deleuze, o que retorna é sempre o novo, pois quando o tempo como forma pura e vazia desfaz o círculo ao qual estava submetido pelo movimento, ele o faz em proveito de um círculo mais complexo e mais tortuoso, um círculo eternamente excêntrico, o círculo descentrado da diferença. Nas palavras do autor, cabe ao tempo "desfazer seu círculo físico ou natural, bem centrado demais, e formar uma linha reta, mas que, levada pelo seu próprio comprimento, torna a formar um círculo eternamente descentrado" (Deleuze, 2006, p. 169).

Quando Deleuze (2006) relaciona a terceira síntese do tempo ao eterno retorno e, em outro momento de sua obra, também à pulsão de morte (a morte de tudo o que é uno, a morte do mesmo e do semelhante), o autor afirma que é a partir dessa síntese que o futuro pode romper com todo o passado, não dependendo mais desse para lhe dar sustentação. Porém, diante de tal afirmação, podemos nos questionar, com Lapoujade (2013): como conceber um sentido de futuro irredutível a qualquer passado? De onde o futuro tira sua suposta novidade, se é o passado que dá fundamento ao tempo? Tentando interpretar esse paradoxo deixado por Deleuze, o do futuro como pura novidade, desvencilhado do passado, o autor afirma que não se trata exatamente de romper com todo o passado, mas de compreender que o passado nunca se apresenta como o mesmo. O passado entendido como virtualidade constitui-se como reserva ou potência, como um conjunto de potencialidades indeterminadas. O virtual revela uma forma de memória ativa, informada pela vida, pois são as exigências do presente que nos fazem atualizar essa ou aquela virtualidade (Lapoujade, 2013).

Para Elizabeth Grosz (2004), reconceitualizar o tempo pode nos ajudar a transformar a forma como entendemos questões políticas. Também compreendendo o passado não como algo já dado, mas como reservatório de potencialidades, a autora afirma que o presente se prepara para o futuro reativando esse mesmo passado. Toda atualização deixa uma parte virtual não atualizada que, mesmo não se realizando completamente, age no presente, induzindo linhas de divergências. É esse potencial não atualizado do passado em sua virtualidade que dá condições para políticas radicais que têm como objetivo a transformação do presente. Os recursos para ultrapassar formas de dominação, coerção ou opressão, ou seja, para produzir novas relações sociais e políticas e novos valores culturais, vêm, portanto, da produção excessiva do passado, de sua reserva de potencialidades. São esses deslocamentos entre o passado e o presente que abrem uma espécie de brecha, uma rachadura no tempo que passa a dar lugar a futuros ainda não previstos (Grosz, 2004).

O passado, muito maior do que o presente, é a fonte infinita de possibilidades de resistência aos valores impostos, configurando-se, assim, não somente como a condição de todo presente, mas também como a condição de todo futuro possível, pois o passado sempre pode ser revivido, reescrito, tornando-se relevante novamente. Reativar ou reescrever o passado é, enfim, uma forma de lançar à existência outros futuros possíveis. Tomando o passado em toda sua virtualidade não atualizada, podemos compreender que todas as lutas daqueles que foram oprimidos (as mulheres sob o patriarcado; os negros sob a escravidão e o racismo; as minorias em geral sob o colonialismo e o capitalismo) não estão perdidas ou apagadas pelas mesmas estruturas de dominação que ajudaram a defini-las, mas estão preservadas em algum lugar no passado, configurando-se como efeitos e traços que podem ser reanimados em diferentes contextos no presente (Grosz, 2004).

Para reinventarmos o futuro é preciso, enfim, resistirmos ao passado, mas resistir ao passado não significa negá-lo, e sim revitalizar esse mesmo passado, dando-lhe o poder de escapar de sua classificação como parte da história progressiva que leva até nós (Stengers citado por Danowski & Viveiros de Castro, 2014). A partir dessa breve tentativa de reconceitualização do tempo e da dimensão do futuro a partir da filosofia de Deleuze, e da relação que estabelecemos, a partir de Grosz (2004), entre essa forma de libertação do tempo e questões políticas que se referem à tentativa de reinvenção de futuros que resistem a um passado de opressão a minorias, ou a uma visão de história única e homogeneizante, voltamo-nos, por fim, ao pensamento decolonial e sua possível relação com uma filosofia da história.

 

Libertando a História da Finalidade Teleológica: Em Busca de Futuros Decoloniais

As promessas de futuro que herdamos da modernidade e dos ideais de progresso nos colocam diante de uma forma do futuro que, apresentando-se como extrapolação do presente, ou, muitas vezes, do próprio capitalismo, representa apenas mais do mesmo. As invenções tecnológicas almejam por um futuro reconhecível pelos termos presentes, um futuro que promete nada mais do que o aperfeiçoamento dos recursos atuais. Tais invenções projetam aquilo que ainda podemos reconhecer como útil, como um futuro ao qual já estamos habituados, pois esse nada mais é do que um avanço daquilo que já temos atualmente. O futuro tecnológico é governado pela utilidade, o que sempre pressupõe os desejos e as necessidades atuais. Porém o espaço e o tempo necessários para a invenção do novo só podem surgir a partir de um deslocamento e de uma dissociação do presente, e não de nossa habituação e desejo de aperfeiçoamento do mesmo, projetado em um ideal de futuro (Grosz, 2004).

Se a modernidade e o colonialismo deixaram marcas profundas em nossas formas de pensar e imaginar, incluindo aí as projeções de futuro (o modelo de desenvolvimento europeu como o espelho no qual as outras sociedades deveriam ver seu futuro projetado), ressaltamos a necessidade de um movimento de decolonização2 dessas mesmas formas de pensar e imaginar. Se o colonialismo teve seu fim há séculos atrás, resta hoje a colonialidade, aquele resto do acontecimento "expansão colonial" ainda não atualizado e que persiste, insiste no presente revestido sob outras formas de opressão, como a de dominação cultural. Para o sociólogo peruano Aníbal Quijano (2007), decolonizar significa libertar a produção de conhecimento, reflexão e comunicação das armadilhas do complexo racionalidade/modernidade. Tal projeto corresponde à rejeição da ideia de um sujeito macrohistórico capaz de sua própria racionalidade e de uma teleologia histórica, da qual indivíduos e grupos específicos seriam apenas o veículo.

A partir da ideia de decolonialidade do pensamento e das formas de saber, os futuros possíveis não podem mais ser concebidos de uma perspectiva universal, ancorados em um imaginário hegemônico ordenado pelo tempo linear e por um destino final. Possíveis futuros decoloniais devem ser imaginados como diversidade, o que implica em outras filosofias do tempo, ancoradas em outros ritmos do universo (Mignolo, 2011). Decolonizar o futuro, e também o tempo, significa, enfim, romper com uma história universal, aquela forma da história que ordenou as sociedades indo da tradição à modernidade, da natureza à cultura, do primitivo ao civilizado etc. Para realizarmos tal empreendimento, é preciso devolver às minorias, que foram oprimidas por essa forma hegemônica da história, suas próprias formas de imaginar o futuro, devolvendo, dessa forma, também ao futuro sua própria multiplicidade.

Se em Diferença e repetição Deleuze (2006) tentou libertar o tempo da cronologia sucessiva que lhe foi imposta, em O que é a filosofia?, junto a Guattari, o filósofo também tentará libertar a própria história de uma forma igualmente sucessiva e teleológica que a historiografia clássica lhe impôs3. Deleuze e Guattari (2010) usam o exemplo da própria filosofia para pensar em uma forma de história feita não de uma continuidade necessária que se desenrola, mas sim de rupturas, de contingências, de acontecimentos. Para os autores, se a filosofia como a conhecemos se desenvolveu na Grécia Antiga e foi retomada, séculos depois, na modernidade, em um outro contexto, não foi devido a uma história contínua e linear, mas sim porque encontrou, em ambos os casos, um meio e as condições propícias para se desenvolver como forma de saber, passando por contínuas desterritorializações e reterritorializações. Inspirados pela filosofia nietzschiana, os autores afirmam que a filosofia não nasce em função de uma origem, mas sim em função de um meio. A filosofia é, portanto, sempre uma "geofilosofia", e a história, sempre uma "geo-história" (Deleuze & Guattari, 2010).

Para os autores, a história é o conjunto de condições que tornam possível a experimentação de algo que escapa a ela própria: o devir, ou a irrupção do novo. Para Deleuze e Guattari (2010), o devir nasce na história e nela recai, mas esse não lhe pertence, pois não tem início nem fim. Agir contra o tempo, ou contra a história, é agir a favor dos devires, ou de um tempo por vir, porém esse porvir não está situado em um momento futuro na história, mas sim no "infinito agora". Pensando nesse tempo por vir, os autores afirmam que é com a utopia que a filosofia se torna política, pois é ela que faz a junção da filosofia com a sua época. Porém os autores fazem questão de diferenciar dois tipos de utopia: de um lado, as "utopias autoritárias de transcendência", ou seja, as clássicas utopias modernas que se situavam em um futuro longínquo, fora do nosso alcance; de outro, as "utopias revolucionárias imanentes". São apenas essas últimas que são capazes de colocar a revolução como um plano de imanência, como movimento infinito. É a partir das utopias imanentes que a revolução se converte em uma desterritorialização, o que por sua vez faz apelo ao que os autores chamam de um "novo povo" e uma "nova terra" (Deleuze & Guattari, 2010).

Completamente diferente do que os autores concebem como devir, posto que os devires são sempre menores, e não majoritários, o movimento de "europeização" do mundo não pode constituir um devir, mas somente a história do capitalismo que impede o devir dos povos sujeitados por esse mesmo complexo capitalismo/colonialismo. Para os autores, seria tarefa dos filósofos - e, poderíamos acrescentar, dos artistas - não criar, mas invocar esse novo povo e essa nova terra com todas as suas forças. Nesse momento, voltamo-nos, portanto, ao campo da ficção científica - gênero literário que é, por excelência, responsável pela imaginação dos futuros por vir - em busca de futuros decoloniais, futuros ainda não capturados pelo horizonte de expectativas colocado pelo pensamento moderno e eurocentrista. Reconhecemos que a ficção científica, esse gênero muito especial de ficção, não apenas nos apresenta a possibilidades futurísticas, utópicas ou distópicas, mas também age diretamente na realidade atual ao instalar futuridades no presente, elementos de futuro que, agindo como uma espécie de isca ou de atrator, reprogramam esse mesmo presente, guiando-nos em direção a um certo horizonte de expectativas possíveis que agora se coloca diante de nós. Tais expectativas de futuro, por sua vez, nos subjetivam na medida em que moldam nosso imaginário de um tempo por vir.

Para o escritor Kodwo Eshun (2003), diferentes tipos de informações sobre o futuro circulam hoje como mercadorias, como futuros virtuais que geram capital. Há sempre uma oscilação entre a predição e o controle sendo engendrada na circulação dessas informações, sejam formalizações matemáticas, sejam simulações de computador, sejam projeções econômicas, sejam relatórios sobre o clima, sejam ficções científicas. Em todos esses tipos de predição, as descrições sobre o futuro têm a capacidade de nos guiar na direção desses mesmos futuros que elas imaginam. Dentro do âmbito da ficção científica, poderíamos citar como exemplo as ficções sobre o poder das redes de computador de produzir realidades simuladas (como no filme Matrix, de 1999), que, ao mesmo tempo que imaginam certa realidade por vir, contribuem para a explosão desse tipo de tecnologia que elas mesmas mencionam. Pensando nessa função da ficção científica de instalar futuridades ou atratores no presente, Eshun (2003) nos apresenta a um subgênero desse tipo de ficção conhecido como afrofuturismo, um tipo de estética presente hoje na música, na literatura e nas artes em geral, que combina elementos tipicamente futuristas (tecnológicos) com elementos da cultura africana, tidos em um primeiro momento como "arcaicos" ou "ancestrais".

O que observamos no movimento afrofuturista pode ser reconhecido como um tipo de apropriação subversiva das tecnologias que outrora foram negadas pelo projeto moderno a esses sujeitos, uma vez que os povos negros, entre outros povos não europeus, como os indígenas nas Américas, foram situados fora do alcance epistemológico e ontológico do projeto moderno, ou do que Quijano (2007) chamou de complexo racionalidade/modernidade. Para Eshun (2003), o grande projeto do afrofuturismo é reconhecer que o continente africano cada vez mais existe como objeto de projeção futurista. Para os artistas desse movimento, compreender e intervir na produção e distribuição dessa dimensão do futuro constitui-se como um ato "cronopolítico", ou seja, como uma política que age sobre o tempo, pois ao criar complicações temporais e episódios anacrônicos que abalam o tempo linear do progresso, esse tipo de futurismo ajusta a lógica temporal que condenou os sujeitos negros à pré-história. Falando em termos cronopolíticos, essas historicidades revisionistas podem ser entendidas como poderosos futuros que, uma vez instalados no presente como futuridade, competem com os futuros já projetados, infiltrando-se na produção de realidade em diferentes níveis. O afrofuturismo pode ser considerado, enfim, como um programa para recuperar as histórias de "contra-futuros" (counter-futures) criados em um século hostil à projeção da diáspora africana (Eshun, 2003).

Para além desses "contra-futuros" imaginados por movimentos minoritários dentro da ficção científica (e aqui poderíamos acrescentar também o movimento feminista), Danowski e Viveiros de Castro (2014) também realizam uma espécie de virada no pensamento futurista tradicionalmente moderno. Indo no contrafluxo da extrapolação típica presente na ficção científica ou no próprio projeto aceleracionista, que visa a uma extrapolação do próprio capitalismo, os autores propõem um movimento inverso de desaceleração das tendências tecnocientíficas e econômicas atuais, ou de retorno a formas de existência consideradas pelo senso comum como atrasadas ou primitivas. Diante da insustentabilidade dos atuais modos de existência capitalistas, que se veem diante do horizonte (ou da falta dele) colocado pela perspectiva do Antropoceno, os autores se filiam ao que chamam de um projeto de recivilização ou, melhor dizendo, de incivilização, que visa libertar a economia da alucinação do crescimento contínuo. Nas palavras dos autores:

Sentimos repugnância ao pensar na desaceleração, no regresso, no recuo, na limitação, na frenagem, no decrescimento, na descida - na suficiência. Qualquer coisa que lembre algum desses movimentos em busca de uma suficiência intensiva de mundo (antes que uma ultrapassagem épica de 'limites' em busca de um hiper-mundo) é prontamente acusada de localismo ingênuo, primitivismo, má consciência, sentimento de culpa (...). Para quase todas as formas assumidas pelo pensamento hoje dominante entre 'nós', apenas uma direção é pensável e desejável, a que leva do 'negativo' ao 'positivo': do menos ao mais, da posse de pouco à propriedade de muito, da 'técnica de subsistência' à 'tecnologia de ponta', do nômade paleolítico ao cidadão cosmopolita moderno, do índio selvagem ao trabalhador civilizado. (Danowski & Viveiros de Castro, 2014, p. 157)

É no espírito dessa crítica que os autores, também propondo uma espécie de "contra-futuro", afastam-se das tradicionais perspectivas futuristas para pensar que os povos indígenas, com suas populações comparativamente modestas, suas tecnologias relativamente simples, mas abertas a agenciamentos sincréticos de alta intensidade, não são, como poderíamos pensar em um primeiro momento, uma sobrevivência do passado, mas sim uma figuração do futuro, ou, melhor dizendo, uma chance possível de subsistência do futuro (Danowski & Viveiros de Castro, 2014). Assim como os afrofuturistas, os autores também tentam resgatar as perspectivas de futuro de povos minoritários, cujos modos de pensar e imaginar, ou, de forma mais geral, cujos modos de existência foram suprimidos pelo imaginário homogeneizante das projeções modernas ancoradas na perspectiva do desenvolvimento tecnológico.

Quando nos libertamos, enfim, das promessas das utopias modernas, podemos visualizar outras possibilidades a inventar. Tentando devolver ao futuro sua multiplicidade característica, preferimos abordar a questão dos futuros possíveis não por meio de antecipações ou predições, mas por meio da especulação, da forma como Debaise e Stengers (2017) colocam, resgatando o termo da filosofia de Whitehead. Para os autores, enquanto construções utópicas ou apelações messiânicas normalmente aumentam a generalidade da noção de possível, levando-nos a uma perda da sua efetividade, o pensamento especulativo, por outro lado, intensifica o sentido dos possíveis, insistindo em todos os "poderia ter sido" implícitos nas situações. Lidando com possíveis devires, esse tipo de pensamento clama por outro modo de fazer as coisas existirem. Se a promessa utópica trabalhou para efetuar um futuro que as técnicas preditivas poderiam antecipar, o pensamento especulativo, por outro lado, aceita a incerteza, comprometendo-se com o possível e resistindo ao provável (Debaise & Stengers, 2017).

Podemos concluir, a partir disso, que não há um determinado futuro nos esperando em um horizonte longínquo, nem outro mundo que seria possível (ou provável), mas muitos futuros (ou mundos) disputando o presente pela sua realização. Tudo o que temos de fazer é prestar atenção a esses possíveis, para assim podermos dar à luz outras versões do futuro, não aquelas já prováveis ou previstas pelas técnicas científicas de antecipação, mas futuros ainda impensados, outros mundos que estão, nesse exato momento, também reivindicando por um chamado à existência. É nosso dever ouvir esses chamados, não só para sermos capazes de imaginar outros futuros, mas também para sermos capazes de criá-los.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Alana Soares Albuquerque
E-mail: alana_albuquerque@hotmail.com

Tania Mara Galli Fonseca
E-mail: tgallifonseca@gmail.com

Recebido em: 16/08/2018
Revisado em: 29/12/2020
Aceito em: 06/02/2021
Publicado online: 15/09/2021

 

 

1 É importante ressaltar que quando Deleuze fala no tempo como linha reta, não quer dizer o tempo como linearidade cronológica. O autor retoma a expressão de Kant para referir-se a um tempo que se opõe à circularidade do movimento, pois essa supõe apenas sucessão e repetição. O tempo como linha reta significa aqui um tempo que se estende infinitamente, liberto da forma circular e repetitiva.
2 Preferimos falar em "decolonizar", e não em "descolonizar" (ainda não há um consenso sobre a grafia da palavra na língua portuguesa, portanto, os dois termos têm sido usados), pois não se trata de desfazer ou reverter o acontecimento da colonização, nem de uma tentativa ingênua de superação do colonialismo, mas sim de um lento processo, uma forma de atitude contínua e micropolítica de luta constante contra os modos majoritários de produção de conhecimento.
3 O que Deleuze e Guattari precisamente criticam, alinhando-se à filosofia da história de Nietzsche, é a visão hegeliana da história como um desdobramento progressivo de um espírito absoluto, ou a ideia de que a história caminha necessariamente para um determinado fim, que é a realização desse espírito absoluto no mundo.

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