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Print version ISSN 2359-0769On-line version ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.21 no.2 Fortaleza May/Aug. 2021

https://doi.org/10.5020/23590777.rs.v21i2.e8868 

RELATOS DE PESQUISA

 

Conversando e Desenhando com Mães de Crianças Autistas: Investigação Psicanalítica

 

Talking and Drawing with Autistic Children Mothers: Psychoanalytic Investigation

 

Charlando y Dibujando con Madres de Niños Autistas: Investigación Psicoanalítica

 

Dialoguer et Dessiner avec des Mères d'Enfants Autistes: Recherche Psychanalytique

 

 

Jéssyca Borges GuimarãesI; Miriam TachibanaII

IGraduada em Psicologia pela Universidade Federal de Uberlândia (MG). Atualmente é Psicóloga Clínica na abordagem psicanalítica e realiza residência multiprofissional na atenção ao paciente em estado crítico no Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia (MG)
IIDocente da Universidade Federal de Uberlândia (MG). Pós-doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo (SP) com estágio pós-doutoral na Université de Paris X - Nanterre, França. Doutora em Psicologia pela PUC-Campinas (SP) e pela Université Charles de Gaulle Lille 3, França

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Esta pesquisa tem como objetivo investigar a experiência emocional de mães de crianças que foram diagnosticadas com autismo. Para tanto, foram realizadas entrevistas individuais com sete mulheres, que tinham um filho autista. As entrevistas foram mediadas pelo Procedimento de Desenhos-Estórias com Tema, segundo o tema "uma mãe que possui um filho diferente dos outros". Após cada entrevista, a pesquisadora que a realizou redigiu uma narrativa transferencial sobre o respectivo encontro. O material foi analisado segundo o método psicanalítico, tal como prevê a "Teoria dos Campos". Foram identificados três campos, intitulados "Quem é o culpado?", "Quem vai cuidar da criança?" e "Quem vai cuidar de mim?", por meio dos quais foi observado que as participantes experienciavam mal-estar por se sentirem ora culpabilizadas pelo quadro de autismo da criança, ora desamparadas pelos pais das crianças e pelos profissionais da saúde nos cuidados do filho autista. Os dados apontam a importância da atenção psicológica ao grupo de mães de crianças com diagnóstico de autismo, pois estas se sentem ocupando um lugar exclusivo no "cuidar do outro", sem, em contrapartida, contar com uma postura de cuidado para com elas.

Palavras-chave: maternidade; autismo; relações mãe-criança.


ABSTRACT

This research aims to investigate the emotional experience of mothers of children who have been diagnosed with autism. To this end, individual interviews were conducted with seven women who had an autistic child. The interviews were mediated by the Themed Drawing-Story Procedure according to the theme of a mother who has a child different from others. After each interview, the researcher who conducted it wrote a transference narrative about the respective meeting. The material was analyzed according to the psychoanalytic method, as foreseen in the Theory of the Fields. Three fields were identified, entitled "Who is to blame?", "Who will take care of the child?" and "Who will take care of me?", through which it was observed that the participants experienced discomfort for feeling sometimes blamed for the child's autism, sometimes helpless by the children's fathers and by the health professionals in the care of autistic children. The data point to the importance of psychological care for the group of mothers of children diagnosed with autism, as they feel that they occupy an exclusive place in "caring for the other", without, on the other hand, having a caring attitude towards them.

Keywords: motherhood; autism; mother-child relationships.


RESUMEN

Este trabajo tiene el objetivo de investigar la experiencia emocional de madres y niños que fueron diagnosticados con autismo. Para tanto, fueron realizadas entrevistas individuales con siete mujeres, que tenían un hijo autista. Las entrevistas fueron mediadas por el Procedimiento de Dibujos-Historias con Tema, según el tema "Una madre que tiene un hijo diferente de los otros". Después de cada entrevista, la investigadora que la realizó redactó una narrativa transferencial sobre el respectivo encuentro. El material fue analizado según el método psicoanalítico, tal como dispone la "Teoría de los Campos". Fueron identificados tres campos, intitulados "¿Quién es culpable?", "¿Quién cuidará al niño?" y "¿Quién me cuidará?", por medio de los cuales fue observado que las participantes experimentaban malestar por sentimientos ora de culpa por el cuadro de autismo del niño, ora desamparadas por los padres de los niños y por los profesionales de la salud en los cuidados del hijo autista. Los datos indican la importancia de la atención psicológica al grupo de madres de niños con diagnóstico de autismo, pues estas se sienten ocupando un sitio exclusivo en el "cuidar del otro", sin, en cambio, contar con una postura de cuidado para con ellas.

Palabras clave: maternidad; autismo; relaciones madre-niño.


RÉSUMÉ

Cette recherche vise à étudier l'expérience émotionnelle des mères d'enfants qui ont reçu un diagnostic d'autisme. Pour cela, des entretiens individuels ont été menés avec sept femmes, qui ont un enfant autiste. Les entretiens ont été menés par la procédé de dessins-histoires, selon le thème «une mère qui a un enfant différent des autres». Après chaque entretien, le chercheur a écrit un récit transférentiel de la rencontre. Le matériel a été analysé selon la méthode psychanalytique, telle que prédite par la «théorie des champs». Trois camps ont été identifiés, intitulés « Qui est à blâmer ? », « Qui s'occupera de l'enfant ? » et « Qui s'occupera de moi ? », à travers lequel il a été observé que les participants éprouvaient un malaise parce qu'elles se sentaient parfois blâmées pour l'autisme de l'enfant, parfois abandonnées par les pères de ses enfants et par les professionnels de la santé pendant la prise en charge de l'enfant autiste. Les données soulignent l'importance de la prise en charge psychologique pour le groupe des mères d'enfants diagnostiqués autistes, car elles se sentent en train d'occuper une place exclusive dans le « soin de l'autre », sans, au contraire, voir une posture de soins envers elles.

 Mots-clés : maternité ; autisme ; relations mère-enfant.


 

 

Desde que Leo Kanner, na década de 40, apresentou pela primeira vez o que seria o "autismo infantil" para se referir a um quadro psicopatológico infantil marcado por acentuado retraimento social, interesses restritos, comportamentos repetitivos e dificuldades na comunicação, inúmeros profissionais da área de saúde mental vêm produzindo uma vasta literatura científica sobre essa condição psicológica tão enigmática (Gonçalves, Silva, Menezes, & Tonial, 2017; Oliveira, 2019). Assim, nas últimas versões dos manuais psiquiátricos, por exemplo, vemos que o autismo foi paulatinamente migrando do campo das psicoses para ser concebido como um transtorno do desenvolvimento, que poderia ser organizado em diferentes espectros, dependendo da gravidade das perturbações. Seria possível afirmarmos, entretanto, que, mesmo com tantos esforços, o autismo ainda segue como um enigma a ser decifrado, uma vez que os diferentes especialistas apresentam concepções distintas, por vezes, radicalmente opostas.

Notamos, por exemplo, posicionamentos divergentes, por parte dos especialistas, mediante o aumento significativo de casos de autismo infantil, bem como a estimativa de que 1% da população mundial seja afetada por essa psicopatologia (Martin, 2019). De um lado, há aqueles que se questionam se o aumento de casos não decorre de uma epidemia hiperdiagnóstica, sustentada por uma sociedade que tende a patologizar qualquer alteração de comportamento, rotulando-a dentro de uma estrutura psicopatológica (Bernardino, 2016; Moraes & Perrone, 2017). De outro lado, há os estudiosos que, mesmo ponderando que a detecção precoce pode recair numa psicopatologização precoce, avaliam como um avanço os profissionais terem condições de detectar o risco psíquico já nos primeiros meses de vida dos bebês, uma vez que viabiliza intervenções clínicas em termos de estimulação precoce, antes que a situação se agrave (Homercher, Peres, Arruda, & Smeha, 2020; Jerusalinsky, 2018).

Mas, talvez a maior polarização ao redor do autismo esteja associada às questões etiológicas, havendo, de um lado, autores que se centram nos fatores de vulnerabilidade genética e, de outro, aqueles que defendem que o autismo seria uma condição psíquica pautada em falhas ambientais. Se nos apoiarmos exclusivamente na literatura científica psicanalítica, notaremos que, de maneira geral, a comunidade psicanalítica vem se posicionando no segundo grupo. Todavia, em sua revisão da literatura sobre a relação da Psicanálise com o autismo, Gonçalves et al. (2017) destacam que, apesar de os psicanalistas terem compreendido o autismo como fruto de um mau relacionamento entre a criança e a sua mãe, à luz das teorizações de Margareth Mahler e Frances Tustin, nas décadas de 60 e 70, por exemplo, atualmente, a comunidade psicanalítica tem sido mais cautelosa, ao discorrer sobre a maternagem e o autismo, tentando superar uma lógica culpabilizante que predominava no passado. Como destacam Ferreira, Costa, e Couto (2018), quando, na França, os pais de crianças autistas foram às ruas com bandeiras contendo os dizeres "Declaramos guerra à Psicanálise", os psicanalistas se deram conta de que, por mais que não acreditassem na mera biologização do autismo, seria necessário discorrer sobre possíveis falhas ambientais, nos primórdios da infância, sem que as mães se sentissem culpabilizadas pelo quadro autístico.

Embora a comunidade psicanalítica esteja mais atenta em relação ao mal-estar que as mães podem sentir frente àquilo que é escrito acerca de sua relação com os filhos autistas, nota-se que os artigos científicos psicanalíticos, publicados na última década, têm se voltado mais à criança autista (Gonçalves et al., 2017). Quando há estudos dedicados às mães, conforme destaca Zavaglia (2020), em sua revisão da literatura, as genitoras são em geral abordadas enquanto coadjuvantes nos processos de prevenção e de tratamento do autismo. De fato, em nosso levantamento bibliográfico, ao buscarmos pesquisas psicanalíticas recentes sobre mães de autistas, deparamo-nos com estudos versando sobre a importância do saber materno na detecção precoce, bem como sobre a influência da reação materna, ao saber do diagnóstico, no desenvolvimento ulterior infantil (Jerusalinsky, 2018; Nunes & Ortega, 2016). Há também, no mesmo viés, estudos de caso em que as mães foram tidas como as principais informantes ou como aquelas que participavam ativamente do tratamento infantil para desenvolverem uma melhor maternagem em relação à criança autista (Castillo, 2020; Martin, 2019; Martinez, 2015).

Conquanto todos esses estudos sejam valiosos, consideramos preocupante a escassez de estudos psicanalíticos em que mães de crianças autistas são escutadas em relação ao seu sofrimento emocional. Sabemos, desde Freud (1996), que os pais olham para os seus filhos como sendo uma extensão de si mesmos, sempre esperando narcisicamente que seus filhos correspondam a uma criança "perfeita". Embora nenhuma criança jamais corresponda ao que foi idealizado na gestação, cabe-nos indagar como é experienciada essa distância abismal - entre o ideal e o real - nos casos em que a mãe se vê diante de uma criança que "recusa" o seu contato (Oliveira, 2019). Se pensarmos que, apesar de ter um filho que não olha e não sorri para ela, a mulher que tem um filho autista é exigida a dedicar-se maximamente aos seus cuidados, logo somos levados à dúvida sobre como é a experiência emocional da mulher.

Assim, alinhadas à obra do psicanalista inglês Donald Winnicott, entendemos que cada caso de autismo nos convoca a pensar não apenas na criança com problemas de desenvolvimento, mas também em suas figuras parentais, que são atravessados por sentimentos de decepção e de culpabilização (Winnicott, 1966/1996). Mediante o exposto, o objetivo deste trabalho foi o de investigar psicanaliticamente a experiência emocional de mães de crianças autistas.

 

Método

Após a aprovação do projeto no Comitê de Ética de pesquisa envolvendo seres humanos (CAAE: 79993117.3.0000.5152), iniciamos a busca de possíveis participantes que atendessem unicamente ao critério de serem mães de uma criança com diagnóstico de autismo. Para tanto, foi adotado o método de amostragem em bola de neve, que pressupõe que os membros da população a serem estudados conhecem outras pessoas que se encontram na mesma situação, podendo indicá-las para o estudo. Assim, o processo de indicação que constitui o método bola de neve se inicia com uma participante denominada de "semente", a partir da qual se tem acesso a outros membros do grupo a ser investigado (Vinuto, 2016).

As duas primeiras participantes foram indicadas por uma psicóloga conhecida das pesquisadoras, que trabalha numa instituição especializada situada no interior de Minas Gerais. A partir do contato com essas participantes "sementes", foi possível encontrar outras cinco participantes. Ao final, contamos com sete mulheres, cujas idades variaram entre 32 e 46 anos. Coincidentemente, os filhos dessas participantes, que haviam sido diagnosticados com autismo, eram do sexo masculino e o seu diagnóstico era de autismo leve. As crianças, cujas idades variaram entre quatro e 10 anos, eram, em sua maioria, filhas únicas e fruto de um casal parental que ainda se encontrava casado. Assim, três das sete participantes tinham dois filhos e três das sete participantes estavam divorciadas dos pais de seus filhos.

As participantes foram entrevistadas uma única vez, individualmente, no primeiro semestre de 2018, numa sala da clínica-escola do Instituto de Psicologia da universidade em que essa pesquisa foi desenvolvida, ou em suas próprias casas, conforme preferissem. Todas as entrevistas foram guiadas segundo o método psicanalítico, de modo que a associação livre das participantes foi maximamente valorizada, sem que suas falas fossem guiadas pela adoção de um roteiro de perguntas. Contudo, como as entrevistas tinham um objetivo científico bem delineado, fazia-se necessário que a entrevistadora tivesse uma participação mais ativa - se comparada à participação num enquadre que tivesse apenas objetivos clínicos -, para que o material alvo de investigação emergisse (Silva & Macedo, 2016).

Avellar (2009) pondera que Donald Winnicott é um autor que auxilia a pensar em como ser um psicanalista, respeitando a regra da associação livre, mas, ao mesmo tempo, participando com relativa liberdade do "jogo". Isso fica bastante simbolizado em seu Jogo do Rabisco (Winnicott, 1968/1994), que consistia num brincar, através do qual ele e o seu paciente faziam, aleatoriamente, rabiscos, numa folha de papel, que poderiam vir ou não a formar um desenho. Winnicott (1970/1984) acreditava que essa estratégia lúdica favorecia seus pacientes a entrarem em contato com aspectos angustiantes, mas de modo relativamente relaxado, vale dizer, mais protegido.

Foi justamente inspirado no paradigma do Jogo do Rabisco de Winnicott que um grupo de pesquisadores do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e da Pontifícia Universidade Católica de Campinas vem, há mais de duas décadas, realizando pesquisas psicanalíticas nas quais as entrevistas são apoiadas em algum recurso mediador-dialógico, aos moldes do Jogo do Rabisco, visando conduzir o participante a associar livremente, frente ao tema de investigação, de modo lúdico. Conforme explicita a líder desse grupo de pesquisa:

Durante a interação, o pesquisador brinca, fazendo uma proposta projetiva que é sempre uma pergunta feita de modo cifrado. Desenhe, conte uma estória, faça uma dobradura, dramatize, seja o que for, é uma pergunta indireta [...]. Assim, o pesquisador brinca ao perguntar, substituindo a questão conceitual por uma espécie de enigma imaginário, ao qual o sujeito só pode responder brincando. O sujeito brinca de "fazer de conta" que só está atendendo à demanda manifesta quando sabe estar fazendo mais do que isso. (Aiello-Vaisberg, 1995, p. 121)

Embora existissem variadas possibilidades de recurso mediador-dialógico, no presente trabalho foi adotado o Procedimento de Desenhos-Estórias com Tema (Aiello-Vaisberg, 1999), por meio da qual é requerido que o participante elabore um desenho, segundo o tema de interesse da pesquisa. A partir desse material, o participante inventa uma estória, atribui um título à produção gráfica e, em seguida, narra livremente sobre a sua própria experiência relativa ao tema. No presente estudo, requisitamos que as mães realizassem um desenho segundo o tema "uma mãe que possui um filho diferente dos outros", temática essa que foi escolhida, em detrimento do tema "uma mãe com um filho autista", dado o receio de que com o termo "autista", tão carregado de estigma e de exclusão (López, 2015), as participantes viessem a assumir uma postura defensiva. Assim, optamos por uma temática mais ampla.

Todas as entrevistas foram gravadas. Deste modo, ao final de cada encontro, a entrevistadora escutava a gravação, mas, ao invés de se limitar à mera transcrição da gravação, produzia um texto em que narrava não apenas o ocorrido no encontro, mas também as suas impressões contratransferenciais, tão valiosas numa investigação psicanalítica. Essa forma especial de redação foi intitulada de narrativa transferencial (Aiello-Vaisberg, Machado, Ayouch, Caron, & Beaune, 2009) e tem sido usada amplamente em pesquisas psicanalíticas sobre maternidade, também desenvolvidas ao redor do Procedimento de Desenhos-Estórias com Tema (Marcoccia, 2017; Tachibana, Ambrosio, Beaune, & Aiello-Vaisberg, 2014; Zavaglia, 2020).

Em seguida, em reuniões científicas, o material, composto pelos sete desenhos-estórias das participantes e as sete narrativas transferenciais redigidas pela entrevistadora, foi analisado psicanaliticamente, privilegiando-se, sobretudo, a atenção flutuante. O passo seguinte foi o de organizar o material segundo a Teoria dos Campos, que foi desenvolvida pelo psicanalista brasileiro Fábio Herrmann (2007). De acordo com o autor, o psiquismo seria atravessado por diferentes campos ao mesmo tempo, sendo que cada um deles acabaria interferindo na forma do indivíduo de representar a realidade, seguindo uma ordem de funcionamento muito própria (Herrmann, 2007). Para ilustrar, poderíamos pensar na seguinte situação: uma pessoa que é atravessada pelo campo da paranoia tenderá a ver, segundo a regra lógico-emocional sustentada por esse campo, os dados da realidade de acordo com a lógica da paranoia. Deste modo, caso alguém a decepcione, a sua tendência será a de interpretar que se trata de um ataque hostil daquele indivíduo para com ela. Isso porque o campo seria como um ponto fixo que faria com que o sujeito não vislumbrasse outras possibilidades, outros movimentos, limitando-se a um mesmo velho repertório (Sanches & Cardoso, 2006).

Herrmann usava a Teoria dos Campos, a priori, para pensar na prática clínica, posto que ele compreendia que cada analista, seguindo o jargão da escola psicanalítica com a qual se identificava mais, tinha o objetivo de identificar os campos habitados pelos seus pacientes e, mais do que isso, fazer a operação de ruptura desse campo. Apesar de Herrmann ter visualizado a Teoria dos Campos pensando em aplicá-la na clínica, é possível fazermos uso dessa teorização tão profícua em pesquisas psicanalíticas. A diferença seria a de que, nas pesquisas, ao invés de buscarmos romper com os campos mais patológicos habitados pelos participantes, como teríamos com eles um momento muito pontual, marcado por objetivos, sobretudo científicos, nos limitaríamos a apenas identificar os campos que os atravessam. Assim, com o intuito de investigarmos a experiência emocional de mulheres que têm filhos com diagnóstico de autismo, buscamos identificar os campos subjacentes à experiência emocional das participantes.

Vê-se, desse modo, que o método psicanalítico foi amplamente adotado em todas as etapas dessa investigação, seja na adoção da associação livre na realização das entrevistas, seja na valorização da contratransferência do pesquisador na escrita dos encontros - somando - se a isso também sua aplicação na análise do material, fundada na atenção flutuante.

 

Resultados e Discussão

A partir da análise psicanalítica do material, foram identificados três campos, intitulados "Quem é o culpado?", "Quem vai cuidar da criança?" e "Quem vai cuidar de mim?". O campo "Quem é o culpado?" é definido pela regra lógico-emocional de que ser mãe de uma criança com diagnóstico de autismo equivale a se sentir culpabilizada pelo quadro do filho. Algumas das participantes expressaram explicitamente a preocupação de que talvez teriam, de alguma maneira, prejudicado o desenvolvimento emocional da criança. Para representar isso, selecionamos o trecho de uma das narrativas transferenciais elaboradas a partir de uma das entrevistas, conforme segue:

Na entrevista, Maria1 me conta que teve algumas complicações, durante a gestação, correndo o risco de perder o bebê. Por causa disso, precisou tomar remédios e ficar de repouso do terceiro ao nono mês de gravidez. Ela diz: "Quando desconfiei de que ele tinha autismo, logo me culpei, por causa dos medicamentos. Eu li uma pesquisa que falava que a falta de vitamina D durante a gravidez poderia provocar autismo. Aí eu pensei que eu ficava somente dentro de casa, deitada e com as pernas para cima e não ia para fora, não tomava sol... Então pensei que a culpa foi minha". Logo após Maria me falar sobre essa possibilidade, me contou, entretanto, que procurara ajuda de seu médico, que a tranquilizara, dizendo que essa relação de causa e efeito é especulativa e que na gestação ela realmente precisou ficar de repouso. Tive a impressão de que a participante fazia uso da fala de seu médico, enquanto fala de autoridade, para se livrar da fantasia de culpa, que ainda assim persistia, tanto que ela estava espontaneamente me contando sobre sua suspeita de que teria de alguma maneira provocado o autismo do filho. (Maria, entrevista, 28, fevereiro, 2018)

A despeito de termos selecionado o material relativo a Maria, ela não foi a única das participantes que expressou o sentimento de culpabilização. Outras participantes expressaram o mesmo, sendo que algumas delas pareciam entender que a culpa pelo desenvolvimento autístico do filho seria do pai dele. Essa questão fica clara no trecho da narrativa relativa a uma das entrevistas, a seguir:

Julia é divorciada e mãe de dois filhos, sendo o mais novo diagnosticado com autismo. Ao me contar sobre como se deu a descoberta do diagnóstico do filho, começou a discorrer sobre sua fantasia de que o pai de seu filho também teria autismo, porém não diagnosticado. Diz: "Ele é uma pessoa que tem questões autísticas... Ele mesmo já identificou em si mesmo essas características. Todas as pessoas percebiam esse comportamento dele, chegando a ser antisocial, extremamente inteligente..., só que todo mundo dizia que ele era apenas estranho, por ser adulto e porque nas décadas de 70 e 80 ainda não existia esse olhar sobre o autismo." A participante acrescentou que, até receber o diagnóstico de autismo do filho deles, não tinha se atentado às características do ex-marido, desta maneira. (Julia, entrevista, 16, janeiro, 2018)

Conquanto Julia não tenha discorrido declaradamente que acreditava que seu filho seria autista em função do seu pai, podemos pensar que ela comunica uma preocupação em encontrar quem seria o "culpado" pelo quadro do filho e parece associá-lo ao seu ex-marido, seguindo uma lógica "Tal pai, tal filho", como é expressado popularmente.

Vale destacar que apenas uma das entrevistadas pareceu não manifestar a preocupação em identificar se a culpa pelo autismo da criança seria dela ou do pai. Apresentamos o trecho relativo à narrativa dessa entrevista:

Ao ser convidada a fazer o desenho-estória com tema, Joana demonstrou certo incômodo, alertando que não era boa em desenhar. Após eu insistir que ela não precisava se preocupar com a estética do desenho, ela começou a fazer um desenho em que aparecem mãe e criança, uma ao lado da outra, sorrindo. Ao terminar a sua produção gráfica, Joana disse que havia representado uma mãe normal, que não tem diferença das outras mães. Pedi, então, para que ela nomeasse o desenho. Ela apresentou dificuldades novamente, não entendendo o que devia fazer e perguntou se tinha que dar nomes às pessoas do desenho ou se esse nome devia ser uma palavra. Após entender o pedido, ela escreveu na folha "Benção de Deus", afirmando que é o que o seu filho representa para ela. (Joana, entrevista, 07, março, 2018)

Num primeiro momento, podemos pensar que, quando Joana discorre sobre se sentir como todas as demais mães e não apresentar preocupação em identificar a causa do autismo do filho, ela estaria expressando que, de fato, experiencia o autismo do filho tranquilamente, sem inquietações quanto à etiologia. Num segundo momento, contudo, podemos nos indagar se, ao discorrer sobre seu filho como uma bênção divina, a participante não estava comunicando mal-estar emocional, apresentando a fantasia de que o autismo da criança decorreria de causalidade divina, do tipo "Deus quis assim". Nessa perspectiva, é como se a participante responsabilizasse uma figura divina superior, ao invés de si mesma ou do pai de seu filho, como notamos em relação às outras participantes.

Apesar de termos encontrado, nesse campo, manifestações das participantes que ora culpabilizavam os pais, ora Deus, ora a si mesmas, podemos refletir que, mesmo quando elas estavam falando da suspeita em relação à culpa dos outros, estavam também falando projetivamente de seu próprio sentimento de culpa. É como se tentassem localizar a responsabilidade pela etiologia em outras pessoas como estratégia defensiva para não se sentirem elas mesmas culpabilizadas. Esse sentimento de culpa foi igualmente encontrado em outras pesquisas em que mães de crianças autistas foram escutadas (Constantinidis, Silva, & Ribeiro, 2018; Zavaglia, 2020). Aqui seria válido refletir se tanta fantasia de culpa seria mera autoacusação ou se não seria fruto do imaginário social de que qualquer sintoma infantil decorre de falhas no cuidado fornecido pelo ambiente familiar (Zavaglia, 2020), geralmente traduzido no cuidado feminino (Allen, 2016). Desde essa perspectiva, é possível pensarmos que, já que socialmente o suprimento das necessidades infantis é visto como um encargo fundamentalmente materno, a mulher é vista acriticamente como a responsável pela (in)sanidade mental do filho e, consequentemente, acaba introjetando essa culpabilização (Zavaglia, 2020).

Se esse olhar culpabilizador sobre as mães valeria para todo e qualquer quadro psicopatológico infantil, ele seria maximizado nos casos de crianças com diagnóstico de autismo, visto que as primeiras teorias etiológicas, defendidas por Kanner, fundavam-se na hipótese de que as mães de autistas seriam rígidas, perfeccionistas e emocionalmente frias, o que ficou conhecido como teoria da "mãe geladeira". Nesse primeiro momento, havia inclusive a compreensão de que uma estratégia de tratamento seria a de afastar a criança do convívio familiar (Lopes, 2017). Conquanto, num segundo momento, o próprio Kanner tenha revisto suas colocações, seguiu descrevendo o que seria esperado de uma boa mãe, o que, segundo Martinez (2015) equivaleu, ainda, a seguir numa postura de cobrança em relação a ela. Podemos pensar que, a despeito de a teoria da "mãe geladeira" ter sido derrubada há décadas, ainda persistiríamos numa cultura que culpabiliza a mãe que não corresponde ao ideal de maternidade. Essa culpabilização seria observada facilmente na mídia, que reproduz de modo estereotipado e sensacionalista a imagem de que a mãe da criança autista seria "inadequada" (Allen, 2016; Leandro & Lopes, 2018), mas que, igualmente, na própria comunidade científica, não deixa de estar ela também atravessada pelo imaginário social. Deste modo, encontramos, no discurso científico, inclusive nos textos psicológicos e psicanalíticos, textos que favorecem a criação da dicotomia "mãe boa" versus "mãe má" (Lopes, 2017), com os estudos de caso voltados às crianças autistas apresentando, ainda hoje, mesmo que de modo mais cauteloso do que ocorria outrora, as falhas maternas. Nos estudos de caso internacionais de Agelet (2016) e de Castillo (2020), por exemplo, não apenas as mães das crianças atendidas foram concebidas como emocionalmente distantes, como também as mães das mesmas (avós maternas das crianças autistas) foram tidas como invasivas, com toda a linhagem materna sendo responsabilizada.

Para finalizar a discussão deste campo, cabe destacar que notamos que as participantes expressaram um sentimento de culpa não apenas em termos de etiologia da doença, mas também por terem, ao longo das entrevistas, confessado seu mal-estar perante às dificuldades impostas pelo autismo de seus filhos. Algumas delas mostraram-se tão preocupadas, ao final da entrevista, por terem se queixado de seus filhos e por não corresponderem ao imaginário social de "padecerem no paraíso", conforme ditado popular, que enviaram, após a entrevista, mensagens no Whatsapp da entrevistadora para contar alguns aspectos positivos de sua situação. Vemos, desse modo, como as participantes do presente estudo encontravam-se atravessadas pelo campo da culpabilização, precisando inclusive contrabalancear o seu discurso negativo em relação à maternidade de crianças com diagnóstico de autismo.

O campo denominado "Quem vai cuidar da criança?" é definido pela regra lógico-emocional de que ser mãe de uma criança com diagnóstico de autismo equivale a experienciar dificuldades, ou até mesmo a impossibilidade, de compartilhar os cuidados da criança com os outros. Algumas das participantes relataram, mais especificamente, que o sentimento de não poder contar com o apoio dos outros se dava, em especial, em relação aos pais das crianças, fossem elas casadas com eles ou separadas deles. Para representar, mostraremos a seguir um trecho da narrativa de uma das entrevistas.

 

Figura 1

 

Laura foi a participante que demorou maior tempo para desenhar, preocupando-se em fazer os traços perfeitos, nos mínimos detalhes:

Enquanto desenhava, a participante disse que estava representando uma cena de crise em público, frequente nas famílias de crianças autistas. Embora tenha feito questão de deixar claro que não necessariamente a criança desenhada representava o seu filho, Laura contou que passava por dificuldades com ele, que acabava machucando-a diversas vezes, deixando-a com roxos e arranhões pelo corpo, tal como no desenho. Acrescentou que o pai de seu filho é depressivo e que, por isso, ela praticamente faz tudo sozinha, pois ele não consegue ajudar. A participante fala, aliás, que ele era tão depressivo que se arrependia de ter insistido para que eles tivessem um filho. Nessa hora, a participante diz: "[...] acabei me sentindo culpada por fazer ele fazer uma coisa que ele na verdade não queria, que era dar a vida a outro sujeito. Não queria dar a dor da existência de outra pessoa". (Laura, entrevista, 12, janeiro, 2018)

Selecionamos esse material emblemático pois, a partir dele, a participante descortina não apenas seu mal-estar frente à passividade do pai de seu filho, mas também à passividade dos que estão ao seu redor, quando, através do desenho, ela representa pessoas, a uma certa distância, sem fazer nada, apenas observando uma mãe que precisa lidar com a crise da criança autista. São diversos os estudos que apontam que, de maneira geral, é a mulher quem acaba se responsabilizando quase que exclusivamente, sendo ela que identifica o problema, que busca o tratamento, que acompanha os filhos, que administra as prescrições médicas e que precisa enfrentar as crises públicas da criança em seu dia-a-dia (Botero, 2019; Castillo, 2020; Constantinidis et al., 2018; Ferreira et al., 2018; López, 2015; Zavaglia, 2020). Os pais, de maneira geral, seriam tão ausentes que inclusive haveria poucos estudos sobre o autismo e o papel do pai (Constantinidis et al., 2018).

Botero (2019), que entrevistou psicanaliticamente oito casais colombianos, que tinham um filho com diagnóstico de autismo, observou que, de maneira geral, eram as mulheres que tinham que rever seus projetos de vida, tendo que ter a capacidade de se sacrificar em prol dos cuidados do filho autista. Embora, segundo esse autor, talvez a maior responsabilização da mulher fosse uma estratégia inconsciente para que ela e o filho se mantivessem fusionados entre si - o pai sendo excluído dessa díade -, cabe questionarmos, outrossim, tal como debatido no campo anterior, se essa maior responsabilização materna também não estaria atrelada ao imaginário social que prevê a maternidade como a matriz das relações de cuidado. Nesse sentido, as mulheres não acreditariam que outras pessoas seriam capazes de cuidar da prole, entendendo que teriam que ser elas as principais cuidadoras, mesmo fatigadas (Zavaglia, 2020).

Mas, ainda dentro desse campo "Quem é que vai cuidar da criança?", identificamos que as participantes trouxeram a sensação de desamparo não apenas em relação ao pai da criança, mas também com respeito aos profissionais de saúde. Essa questão fica clara no trecho da narrativa relativa a uma das entrevistas, conforme segue:

Marcela, mãe de dois filhos, sendo o seu mais velho diagnosticado com autismo, me conta que mudou de cidade devido ao trabalho do marido e que, desde então, tem encontrado muitas dificuldades em conseguir um atendimento especializado para seu filho. Diz que, em sua antiga cidade, como tinha um laudo diagnóstico de seu filho, estava bem inserida na rede de lá. Ao mudar de cidade, entretanto, Marcela narra que o laudo diagnóstico de seu filho não foi aceito, o que fez com que ele não fosse inserido na rede especializada da atual cidade em que moram. Ela fala: "Quando vim para cá, ele ficou sem nada. Eu já fui na secretaria da saúde, estou tentando de todo lado conseguir terapia aqui para ele, acompanhamento..., mas eles alegam que o meu filho não é autista. Eu tive que passar no posto, passar com a pediatra..., para ela fazer uma avaliação, para daí ele ficar numa lista de espera para chamar". (Marcela, entrevista, 20, março, 2018)

Elegemos esse material relativo à entrevista com Marcela, porque, apesar de não ter sido a única, ela foi a participante que mais trouxe sentimento de desamparo em relação aos profissionais, chegando ao ponto de não aceitar a possibilidade da criança não ser autista pois, sem um laudo diagnóstico, seu filho não conseguiria se beneficiar da rede pública especializada. Na literatura sobre o tema, encontramos outras pesquisas que apontam igualmente para o sentimento, por parte das mães de crianças com diagnóstico de autismo, da falta de apoio dos profissionais e/ou instituições da área de saúde mental (Constantinidis et al., 2018; Nunes & Ortega, (2016). Trata-se de uma questão para além da mera oferta ou não oferta de ajuda dos profissionais, pois, de acordo com López (2015) - que realizou análise institucional de duas instituições dedicadas a crianças com diagnóstico de autismo -, mesmo inseridas nesses serviços, as mães se sentiam desacolhidas, sendo mais julgadas, por não terem o cuidado materno esperado pela equipe profissional, do que de fato ajudadas.

Segundo Cortezia (2015), que realizou uma investigação psicanalítica com crianças com diagnóstico de autismo e suas respectivas mães, era comum as mulheres se defenderem do sentimento de desamparo, seja por parte das crianças que com elas não se comunicavam, seja por parte dos demais membros da sociedade civil que não se responsabilizavam com elas pelos cuidados da criança, assumindo uma postura de hiper-reação. Assim, as participantes relacionavam-se com as crianças como se fossem mães animadoras, fazendo palhaçadas com as crianças e mostrando constantemente bom humor para com todos. Em nossa pesquisa, percebemos que, atravessadas por esse campo "Quem vai cuidar da criança?", sentindo não ter com quem contar nos cuidados relativos ao filho autista, as participantes também assumiram uma postura de hiper-reação. Mas, no nosso caso, ao invés de se mostrarem alegres e animadas, as mães aqui entrevistadas se mostraram como mães praticamente profissionais da área, que tanto buscaram estudar mais sobre o assunto que apresentavam um discurso que mais lembrava, contratransferencialmente, o de um especialista da área, em alguns momentos. E, além das falas mais intelectualizadas, recheadas de jargões, chamou-nos a atenção a postura bastante politizada das participantes, que muito discorriam sobre movimentos políticos, campanhas e ONG's que elas haviam ajudado a fundar.

Num primeiro momento, podemos pensar que essas manifestações por parte das participantes configurariam uma tentativa de fazer algo frente ao sentimento de impotência vivido por elas, num movimento resiliente. Desde essa perspectiva, a criação de ONG e a realização de campanhas de conscientização/inclusão social, sustentadas por nossas participantes, seriam uma forma de tentar atenuar o sofrimento de não terem com quem partilhar os cuidados demandados pelo filho autista. Afinal, se apenas uma minoria de autistas consegue alcançar independência pessoal quando adultos (Ferreira et al., 2018; López, 2015), como essas mulheres poderão se assegurar de que seus filhos terão pontos de apoio no futuro, quando elas não puderem mais estar com eles, se não for através dessas estratégias alternativas?

Num segundo momento, todavia, cabe-nos indagar se as falas tão profissionalizantes, intelectualizadas e politizadas, expressas por nossas participantes, não manifestariam, paralelamente, uma postura dissociativa por parte do coletivo investigado, que, nessa perspectiva, estaria menos ligado a um movimento resiliente e mais vinculado a uma conduta do tipo falso self2. Nesse sentido, Winnicott (1963/1983), que tanto se preocupou com a autenticidade e a espontaneidade do ser humano, acreditava que, mediante invasões ambientais, sentidas como intoleráveis, uma das possibilidades existenciais seria a do indivíduo distanciar-se de si mesmo, encobrindo o seu verdadeiro self com um falso self. Se, por um lado, esse movimento defensivo dissociativo protegeria o verdadeiro self do indivíduo, viabilizando que não entrasse em contato com o seu mal-estar emocional e fosse capaz de se apresentar socialmente adaptado e funcional, por outro lado, a experiência emocional guiada pelo falso self despertaria, no indivíduo, a sensação de inautenticidade. Assim, resta a dúvida: nossas participantes, que tanto pareciam profissionais da área, estavam nos comunicando, ao revés, que precisavam assumir essa postura racionalizada para com seus filhos, para se dissociarem do seu mal-estar perante à impossibilidade de compartilhar os cuidados deles com outras figuras?

O campo intitulado "Quem vai cuidar de mim?" é definido pela regra lógico-emocional de que ser mãe de uma criança com diagnóstico de autismo equivale a se sentir sempre no lugar de cuidadora, sem ter o olhar cuidadoso dos outros dirigidos a si mesma. Para representar esse campo, selecionamos um trecho da narrativa de uma das entrevistas:

A entrevista com Alice foi realizada em sua residência, a pedido dela. Enquanto desenhava, disse que queria representar uma criança agressiva, pois às vezes seu filho agia assim para com ela. Ao final, Alice apresentou-me o seguinte desenho de uma criança gritando "bosta", em direção a uma mãe chorosa:

 

Figura 2

 

Ao longo da entrevista, a participante contou-me que não podia trabalhar, pois ficava o

tempo todo em função do filho: precisava ir na escola todos os dias, a cada três horas, para medicá-lo; precisava ficar de olho nele, pois ele costumava defecar involuntariamente na calça... De fato, quando estávamos encerrando a entrevista, o filho da participante, que estava até então sozinho no quarto, apareceu no local em que estava sendo realizada a entrevista, dizendo que havia defecado na calça. Ele então abaixou o shorts e mostrou que já retirara a sua cueca suja, deixando-a no banheiro. Alice me olhou, nesse momento, como se me dissesse "Está vendo?". Confesso que, nesse momento, fiquei desconcertada, sem saber se de fato ia embora ou se devia permanecer e ajudar a participante naquele momento. (Alice, entrevista, 23, março, 2018)

Pode-se perceber que o cocô é muito presente no cotidiano desta mãe, não apenas porque seu filho precisa que ela o troque o tempo todo, mas também porque, em suas crises de agressividade, em que ele fica gritando palavrões, ele também grita "bosta" para ela, como aparece no desenho feito por ela. A partir daí, podemos pensar que a palavra "bosta", escrita inclusive bem no meio entre as figuras desenhadas da mãe e do filho, também expressava que a participante sentia que a sua vida era uma "bosta" ou, ainda, que aquela relação mãe-filho seria uma "bosta". Ainda, em termos transferenciais-contratransferenciais, é possível pensar que o desfecho dessa entrevista representa como essa participante demandava também um cuidado para consigo ao lidar com tantas demandas do filho autista, despertando um sentimento de mal-estar na entrevistadora por ir embora do local da entrevista sem ajudar a participante.

A partir desse material, notamos como as mães de crianças autistas parecem demandar um espaço de cuidado para que se sintam elas mesmas acolhidas. Na literatura especializada, entretanto, vê-se que a preocupação em ofertar tratamento tem sido sobretudo em benefício da criança autista, com os pais sendo incluídos nos atendimentos prestados à criança para que os profissionais façam intervenções mais de cunho pedagógico do que com objetivo de acolhimento (López, 2015; Oliveira, 2019). Não raro, sobram, às mães que acompanham as crianças nas instituições especializadas, palestras, confraternizações e dinâmicas de integração; sem a devida compreensão de que, assim como a criança autista apresenta necessidades especiais, elas, numa perspectiva inter-relacional, acabam também apresentando necessidades especiais (Cortezia, 2015). Desse modo, seria possível pensarmos que não apenas a criança autista não sorri para a sua mãe, mas também parece que os profissionais da rede de cuidado não têm sido capazes de olhar sensivelmente para a mãe da criança autista, dando-se conta de que, em função de sua situação peculiar, fez-se necessário que ela abdicasse de vários outros sonhos.

No trecho da narrativa referente à entrevista com Alice, vemos que ela atribui a impossibilidade de ter uma carreira profissional aos cuidados que precisa dedicar ao filho autista. Notamos, no coletivo investigado, que outros sonhos, para além do sonho profissional, também teriam sido furtados, por conta da necessidade de se voltar à criança autista. Entendemos que um deles tinha a ver com a impossibilidade de ter outro filho. A seguir, apresentamos o trecho da narrativa de uma das entrevistas:

Marcela é mãe de duas crianças, sendo um menino, que tem o diagnóstico de autismo, e uma menina, alguns anos mais nova do que ele. No decorrer da entrevista, enquanto Marcela ia me falando sobre o seu filho, comparava-o o tempo todo com a sua filha, que não apresenta comprometimentos em seu desenvolvimento. Em um determinado momento, ela me diz: "Graças a Deus, ela tá perfeitinha [...]. Ela é até muito madura para idade dela. Ela também foi planejada. Mas, assim, foi planejada porque, quando decidimos engravidar, meu filho ainda não tinha o diagnóstico. Hoje em dia eu penso que eu não teria feito isso, de ter outro filho, se eu já soubesse, naquela época, que o problema do meu filho era autismo. Porque, como o médico me falou, se tivesse vindo menino, teria a chance de vir de novo um autista, porque a chance é maior para menino do que menina". (Marcela, entrevista, 20, março, 2018)

Não obstante a participante Marcela ter levado adiante o seu sonho de ter uma segunda filha, como ela mesma aponta, só teve a segunda filha porque ainda não sabia que seu primogênito seria autista. Seguindo o mesmo raciocínio, podemos pensar que, talvez, nossas outras participantes não tiveram outros filhos, após terem tido o filho que foi diagnosticado com autismo, seja porque tiveram o receio de terem novamente um filho autista, seja porque o filho autista que já possuem lhes exige tanta responsabilidade que não haveria disponibilidade emocional para sustentar uma outra criança.

De acordo com Granato e Aiello-Vaisberg (2002), seria possível refletir sobre essa experiência emocional marcada pela impossibilidade de fazer outra coisa além de cuidar do filho, à luz do conceito de "preocupação materna primária". Winnicott (1956/1993) desenvolveu tal conceito para se referir ao estado de sensibilidade ampliada, que gradualmente se desenvolve ao final da gestação e que perdura durante os primeiros meses de vida do bebê, permitindo que as mães se sintam mais identificadas às necessidades de seus filhos. Seria assim uma condição especial vivenciada pelas mães, fazendo com que elas se tornassem capazes de se adequar às necessidades de seus bebês, que, nesse primeiro momento, se encontrariam tão dependentes absolutamente dos cuidados do ambiente. Segundo Granato e Aiello-Vaisberg (2002), as mulheres que têm filhos que apresentam alguma deficiência ou transtorno, e que, por conta disso, demoram relativamente para conseguirem se tornar mais independentes dos cuidados maternos, acabam tendo que vivenciar uma espécie de "preocupação materna primária especial". Deste modo, é como se nossas participantes experienciassem a sensação de não poder afrouxar nos cuidados dispensados à criança, como seria normalmente esperado, para se voltarem para si mesmas novamente.

Em meio a essa dinâmica em que a mulher se sente desamparada pelos próprios familiares e pelos profissionais que compõem a rede de cuidado, não raro ela tem recorrido a duas estratégias para se sentir menos solitária. Uma delas, segundo Oliveira (2019), tem sido a de recorrer à escrita de livros e de blogs, estratégia essa que tem se popularizado cada vez mais. Seria uma forma de compartilharem suas lutas diárias, buscando por alguém que testemunhe a sua experiência emocional. Uma outra tem sido a de constituir alianças com outras mulheres, que também tenham filhos autistas, como forma de pelo menos cunhar algum sentimento de pertença. De fato, ao longo dessa pesquisa, foi possível notar que as participantes recorriam, cada uma a seu modo, a uma ou outra estratégia, chegando inclusive a convidar a entrevistadora para participar de piqueniques com grupos de mães de crianças autistas ou para escrever um livro sobre o assunto.

Tratam-se de estratégias valiosas, uma vez que descortinam um movimento resiliente por parte desse coletivo. Mas, ao mesmo tempo, configuram soluções em que a mulher, escrevendo sobre a maternagem da criança autista ou se vendo rodeada de outras mães de crianças autistas, fica ainda muito adstrita à identidade de mãe de criança autista, sem conseguir respirar outra atmosfera. Vemos, assim, como o pedido de socorro, que aparece no campo "Quem vai cuidar de mim?" revela que, ao final, a mulher cujo filho se encontra numa concha autística, encontra-se ela também confinada nessa concha autística (Cortezia, 2015).

 

Considerações Finais

A partir deste estudo, identificamos que, na experiência emocional de nossas participantes, eram vivenciadas inquietações relativas à culpabilização (campo "Quem é o culpado?"), à falta de apoio (campo "Quem vai cuidar da criança?") e à impossibilidade de uma existência que não fosse toda focalizada na maternagem desse filho autista (campo "Quem vai cuidar de mim?"). Podemos pensar que esses campos estariam intimamente ligados ao nosso imaginário social, segundo o qual perdura a compreensão de que seriam as mães as principais responsáveis pelos filhos. Seria justamente por causa dessa crença que tenderíamos socialmente a culpabilizar as mães pelo quadro de autismo de seus filhos, acreditando que seriam elas que deveriam se ocupar incansavelmente deles, em contrapartida. Dessa forma, é como se essa compreensão de que as genitoras estariam envolvidas na etiologia do autismo sustentasse a lógica de que a elas caberia a responsabilidade quase exclusiva pelo tratamento do filho autista, sem terem o direito de também serem tratadas e cuidadas.

Notamos assim que, quando se fala sobre autismo, a criança que possui esse diagnóstico tem sido alvo de intervenções multiprofissionais, figurando como alguém que escancaradamente demanda uma atenção especializada e prioritária. Se, por um lado, vemos como uma conquista o reconhecimento da importância de nos debruçarmos sobre a criança autista, que passa a ser tida como protagonista de uma série de intervenções, por outro lado, concluímos que as mães de crianças autistas acabam ocupando um lugar periférico não apenas para os próprios filhos, mas também para os profissionais da saúde que têm se ocupado desses casos.

 

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Endereço para correspondência:
Jéssyca Borges Guimarães
E-mail: jessycabg@hotmail.com

Miriam Tachibana
E-mail: mirita@ufu.br

Recebido em: 11/01/2019
Revisado em: 10/04/2021
Aceito em: 15/05/2021
Publicado online: 05/10/2021

 

 

1 Todos os nomes das participantes são fictícios, visando assegurar o anonimato. Além disso, como somente uma das pesquisadoras realizou as entrevistas e redigiu as narrativas transferenciais relativas a elas, nos trechos das narrativas transferenciais aqui apresentadas, será adotada a primeira pessoa do singular.
2 O self, na obra winnicottiana, é composto por todos os diferentes aspectos da personalidade que constituem o eu de cada pessoa. Assim, é possível compreender o self como um sentimento de ser subjetivo (Abram, 1996).

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