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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho

Print version ISSN 1516-3717On-line version ISSN 1981-0490

Cad. psicol. soc. trab. vol.10 no.1 São Paulo June 2007

 

ARTIGOS

 

Atração passional, trabalho e educação em O novo mundo industrial e societário de Charles Fourier

 

Passionate attraction, work, and education in Charles Fourier's The new industrial and societary world

 

 

Suzana Guerra Albornoz

Departamento de Ciências Humanas da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Charles Fourier(1772-1837), filósofo e reformador social, o mais original dos socialistas utópicos franceses do século XIX, é conhecido por suas sugestões corajosas para a reforma radical da sociedade no sentido da felicidade individual e coletiva. Sua obra O novo mundo industrial e societário (1829) é considerada um resumo de suas doutrinas. A idéia do trabalho atraente se baseia na teoria da dinâmica das paixões e da atração apaixonada, expressão antropológica da lei geral da atração. De modo único, através de uma linguagem excêntrica, Fourier propõe a organização do trabalho em séries passionais, em consideração dos talentos individuais e das paixões, sugerindo a educação das crianças através do trabalho atraente e variado. Sua teoria das paixões como base natural da dinâmica econômica e social permanece ainda um desafio para as ciências humanas, a filosofia e as práticas sociais.

Palavras-chave: Charles Fourier, Teoria das paixões, Educação, Trabalho, Utopia.


ABSTRACT

Charles Fourier (1772-1837), philosopher and social reformer, the most original of the french utopian socialists of the XIXth century, is well known for his courageous suggestions for the radical reform of society in the sense of the individual and collective happiness. His work The new industrial and societary world (1829) is considered as a condensation of his doctrines. The idea of attracting work is based on the theory of dynamics of passions and passionate attraction, anthropological expression of the general law of attraction. In a very unique way, through an eccentric language, Fourier proposed the work organization in passional series regarding individual talents and passions, suggesting children education as a pleasant and varied productive activity. His theory of the passions as natural ground of the economical and social dynamics still remains a challenge to human sciences, philosophy and social practices.

Keywords: Charles Fourier, Theory of passions, Education, Work, Utopia.


 

 

Introdução

Este ensaio se insere numa série de estudos sobre a ligação moderna entre a utopia e as idéias sobre o trabalho, no contexto da pesquisa intitulada Trabalho e utopia na modernidade: de Thomas More a Paul Lafargue, onde buscou-se reconsiderar as idéias sobre trabalho e educação em alguns pensadores utópicos - ou que em algum sentido podem ser considerados utópicos - do século XVI ao XIX.

O objeto de atenção principal da pesquisa foram de início as idéias sobre o trabalho nas utopias literárias da modernidade que exerceram influência sobre a vida científica, cultural e política, marcando profundamente a história moderna, logo, também as práticas e a ciência da educação; aos poucos, a atenção foi-se voltando mais sobre a educação, pois esta é muito freqüentemente pensada pelos autores do pensamento utópico como em estreita relação com a formação para a atividade produtiva (Albornoz, 2003, 2005, 2006).

Por outro lado, em publicação anterior (Albornoz, 1985), já tive ocasião de apresentar, embora brevemente, a biografia e algumas idéias do pensador francês Charles Fourier (1772-1837), um dos mais famosos socialistas utópicos, que no século XIX foram considerados precursores do chamado socialismo científico, este ligado ao movimento operário revolucionário e ao marxismo. Com base em textos escolhidos e comentados por Félix Armand (1950) e recorrendo à apresentação de outros historiadores e biógrafos, naquele resumo afirmávamos o especial interesse, para a filosofia política em geral e para a filosofia da educação em particular, do estudo mais aprofundado daquele representante tão significativo e original do pensamento utópico francês.1

Na via de André Breton (Butor, 1973), que considerava Fourier um escritor genial, também o grande crítico literário e filósofo francês Roland Barthes (1971) dedicou um ensaio memorável ao utopista das séries passionais, destacando o aspecto criativo de sua linguagem, onde a farta criação de neologismos correspondia a novos conceitos. E não só novas palavras se mostram necessárias para acompanhar a criatividade do pensamento e da imaginação de Fourier; palavras já consagradas são por ele empregadas com inusitadas conotações, mesmo com outra significação. Esse é o caso, por exemplo, da palavra civilização, e de todos os vocábulos que lhe são relativos. “Civilização”, para Fourier, não possui o sentido abstrato e ideal de ordem desenvolvida ou de progresso humano; refere-se à sociedade concreta que se seguiria imediatamente à “barbárie” ou à indústria do tempo da instalação da produção industrial, que é o seu tempo; prende-se à sociedade industrial ocidental mais desenvolvida, identificada com a civilização européia do século XIX e é um termo carregado com uma conotação negativa, fruto da visão crítica do autor em relação ao mundo industrial capitalista de sua época.

No Brasil, o livro de Leandro Konder (1998) fornece ao leitor uma apresentação simpática e acessível do projeto de Fourier de um “socialismo do prazer”, sugestão que tanto fascinou, como influenciou Karl Marx. Assim, sobre Marx, bem como sobre muitos outros pensadores e políticos do século XIX, Fourier imprimiu sua marca muito especial e fecunda, às vezes mal-compreendida, sobretudo conhecida por seus aspectos excêntricos e excessivos, muito embora, por suas pretensões teóricas, em conexão com suas imaginativas sugestões práticas, Fourier, além de inspirado utopista e escritor original, pode ser e de fato é considerado um filósofo.

No Prefácio que apresenta à edição de 1973 da obra Le nouveau monde industriel et sociétaire, Michel Butor faz uma introdução que pode ser vista como reavaliação da contribuição fourierista para a sua época e para a nossa e, em primeiro lugar, situa esse livro particular no conjunto da obra do autor, apresentando o Novo mundo industrial e societário como uma exposição resumida de toda a teoria societária”, logo, uma espécie de resumo do pensamento de Fourier.

Por tudo o que sobre ele se tem afirmado, parece incontestável a significação de Fourier para a vida política dos últimos séculos, através de sua influência sobre o marxismo e outras vertentes políticas à esquerda, mas também sobre o movimento cooperativista; isso muito embora Fourier tenha expressado um claro menosprezo pela vida política em si, enquanto universo dos partidos políticos.

As sugestões de Fourier, mais que para a vida política, situavam-se no plano da reforma social e, como era típico dos utopistas românticos, negava criticamente a mediação do setor propriamente político. Por exemplo, quando o escritor escreve sobre o que ele chama de “candidatura especulativa”, vai ser bem claro em recomendar:

guardar-se de contar, para esta fundação, com qualquer dos partidos políticos: liberais, absolutistas e mistos seriam maus juízes, todos absorvidos na polêmica e nas intrigas eleitorais... (Fourier, 1973, p. 536).

E para que se convençam os céticos e se comprove a importância das utopias para a vida concreta, basta lembrar que, no mesmo prefácio referido, Butor indica, como resultado espetacular da influência de Fourier, nada menos que a abertura dos canais de Suez e do Panamá, isso muito embora o imaginativo utopista seja lembrado quase exclusivamente como “precursor do socialismo” (Butor, 1973).

Tal ligação com as navegações e as passagens difíceis são insinuadas por Miguel Abensour de modo metafórico, com certeza consciente dos seus vínculos além da metáfora:

Os utopistas não se contentaram em conturbar as relações entre o pensamento especulativo e a prática; como os grandes navegadores - e Fourier, o príncipe dos utopistas, invocou sempre Cristóvão Colombo - eles não cessaram de explorar terras desconhecidas e de forçar passagens perigosas (Abensour, 1990, p. 47).

É reconhecida, pois, a força e a originalidade das sugestões utópicas e inclusive a importância de Fourier para as transformações sociais do século que lhe sucedeu. Menos conhecida e reconhecida, no entanto, é a significação de Fourier para a história da ciência e das ciências humanas, o que seria sobremaneira interessante explorar; pois o livre pensador Charles Fourier se compreendia como descobridor da lei da atração universal nas ciências físicas assim como para o domínio dos estudos do homem, estudos científicos que o pensador considerava como subsídios para suas propostas de reformas sociais.

Pretendendo na atividade de reformador social fundamentar-se na ciência do real em geral e do humano em particular, apresentava-se Fourier como cientista complementar a Isaac Newton, o maior nome da ciência física moderna (pelo menos até o século XIX), que havia descoberto a lei da atração no plano da realidade física. Como o expressa Simone Debout-Oleszkiewicz (2001), uma das mais dedicadas estudiosas da obra de Fourier:

Numa época marcada pela influência de Newton, Fourier sonha com uma sistematização ainda mais geral: se a lei da gravitação interliga fenômenos aparentemente opostos - o curso regular dos astros e a queda dos corpos -, a “atração passional” permite conceber uma ciência única: o cálculo da unidade universal. Compreendendo ao mesmo tempo o segredo da história e as causas que movem o universo, Fourier não vincula a realidade humana às determinações das coisas; ele nega a predominância da matéria, relaciona tudo “ao movimento-tipo e modelo” das paixões em sociedade (p. 392).

O pensador se entendia, pois, não só como mais um sonhador, nem como reformador social apenas, mas como fundador da nova ciência social que passaria a considerar, no trato da organização da sociedade, as leis próprias da natureza humana, onde as paixões imperam; e, nesse sentido, afastava-se do plano ideal dos socialismos utópicos, em geral debitários da filosofia e da moral tradicional.

O apresentador e prefaciador da edição de Le nouveau monde industriel et societaire de 1973 sugere ali ainda uma interpretação possível de Fourier como precursor da psicanálise. Segundo Butor (1973), deve-se a André Breton o destaque dos aspectos da obra de Fourier que o fazem aparecer hoje como precursor não somente do marxismo, mas da psicanálise e de várias direções da arte moderna e do pensamento contemporâneo. Enquanto os primeiros admiradores haviam sido apenas sensíveis à energia do discurso fourieriano, Breton, sublinhando também suas virtudes poéticas e humorísticas, permitiria aos leitores apreciar a obra em sua totalidade.

Parece-me que seria realmente interessante uma investigação sobre a eventual influência das idéias de Fourier na pré-história da psicanálise, ou seja, na formação de Sigmund Freud que deu origem à teoria ou à ciência e à prática psicanalíticas, embora não pareça provável que se possa estabelecer um elo direto entre a psicanálise de Freud e a teoria das paixões de Fourier, do mesmo modo como é notório existir afinidade entre este e Marx, em cujos textos constam comentários explícitos que, embora manifestando distância e diferença, também são de reconhecimento e admiração pelo utopista. Desde o Manifesto comunista conhece-se a posição de Marx sobre Fourier, cujo pensamento é considerado como o melhor dos socialismos utópicos, porque crítico da sociedade capitalista.

A teoria da atração apaixonada ou passional, de nosso criativo Fourier, provavelmente só de outra maneira mais indireta e mediata poderia ser relacionada à psicanálise. Em sua pesquisa Os dez amigos de Freud, Sérgio Paulo Rouanet (2003) se refere às leituras francesas de Freud e às influências que foram para o pai da psicanálise Anatole France e Émile Zola. Seria quem sabe possível estabelecer uma ligação entre essas leituras e a influência do pensamento utópico francês sobre a formação do jovem culto europeu do século XIX que foi Freud, mas não há nada que nos garanta poder descobrir um elo muito direto entre eles. Ainda assim, estou convencida de que os pesquisadores psicólogos saberiam descobrir afinidades provocativas entre a teoria da atração passional e a teoria da pulsão, por exemplo. Digamos que é evidente haver algo de comum na compreensão da centralidade da dinâmica das paixões assim como a das pulsões na economia anímica dos seres humanos. É como se estivessem inscritas no “ar do tempo”, da época quando os intelectuais europeus se tornaram muito conscientes dos limites da razão endeusada no século XVIII; um ar do tempo da crítica da razão, que reuniria num mesmo universo de pensamento filósofos tão diferentes e distantes quanto Fiedrich Nietzsche e Henri Bergson, com diferenças tão marcantes, contudo unidos na mesma afirmação da vitalidade, da vontade de ser, do impulso de vida, da pulsão, da paixão, como fundamentais na natureza do ser humano.

Embora sendo uma contribuição tão única e original, mesmo excêntrica ou exótica, é também de acordo com uma tendência dominante no século XIX (que pôde ser chamado de “século da ciência”) que o projeto social de Charles Fourier deve ser compreendido como um socialismo utópico, que se entende e se quer como científico. Fourier criticou reiteradamente a posição do reformador inglês Robert Owen que, trabalhando sobre uma base apenas moralista (portanto, não-científica e considerada por Fourier como ingênua) contribuiria para a difamação do sonho associativista. Enquanto Fourier buscava, como vimos acima, a fundamentação já de um “socialismo científico”, ou seja, ligado à análise científica da realidade, da natureza e dos homens.

A utopia de Fourier não é mais uma utopia literária no sentido de um modelo ideal de novo mundo apresentado em obra de ficção, como o foram a Utopia de Sir Thomas More, ou A cidade do sol de Tommaso Campanella. Também não tem em comum com tais exemplos o fato de fundamentar-se somente numa concepção ética ou moral e religiosa. No caso de More, um humanismo cristão em uma visão católica; e no de Campanella, também dentro de uma concepção religiosa e católica, embora sob forte influência da astrologia.

Por outro lado, as análises como as sugestões de Fourier não são recomendações utópicas com fundamento unicamente moral ou de caráter predominantemente moralista como nos escritos de Jean-Jacques Rousseau, que lhe antecedeu mais de perto.

Na verdade, a utopia do mundo da Harmonia pela associação em séries passionais, embora carregada de motivos éticos e convicções religiosas, quer-se fundamentada no plano científico por uma teoria das paixões tais como estas são observáveis na realidade humana concreta, e de acordo com a lei geral que se encontra em todo o universo, já em sua base material; portanto, apresenta-se como uma ciência do humano ligada à prática da reforma social, mas ainda assim como uma ciência, uma psicologia ou uma antropologia, que não é independente de uma ontologia quando se aplica ao mundo natural, que não se separa do plano cosmológico e que pretende dar sólida fundamentação realista para a organização industrial do trabalho.

Tem sido divulgado e é muito conhecido o projeto social fourierista do falanstério, gigantesco conjunto habitacional coletivo revolucionário planejado obsessivamente até o nível dos detalhes numéricos, onde a vida social encontraria a sua harmonia pela organização em falanges e séries passionais, em que os indivíduos saberiam aproveitar e combinar ao máximo suas inclinações para sua felicidade pessoal, harmonia social e riqueza econômica, pois a produção coletiva de indivíduos bem situados a fazer o que lhes apaixona redundaria naturalmente em produção abundante.

Todavia, tem sido menos considerada, ou não tem sido levada suficientemente a sério, a interessante teoria da atração passional que fundamentava o projeto prático do excêntrico falanstério, pelo que convém lembrá-la em seus traços principais, embora de modo breve, como introdução à abordagem das sugestões fourierianas para o trabalho e a educação.

A teoria geral da atração de Fourier talvez devesse ser situada antes no plano da filosofia geral do que no da psicologia, onde estaria sem dúvida bem situada se ficasse restrita ao mundo humano e à atração passional. Mas, na realidade, segundo Fourier, os “quatro movimentos” se dão em quatro planos do ser - no mundo material, no mundo orgânico, no mundo animal e no mundo social - de modo analógico, por atração ou por repulsão. No mundo social, entre os seres humanos, a atração que é a lei geral do universo se apresenta como paixão, mais especificamente, como atração passional. A teoria da atração passional é a apresentação específica da lei geral do cosmos no plano do mundo humano.

 

A dinâmica das paixões

A atração passional é o impulso dado pela natureza anteriormente à reflexão, e persistente apesar da oposição da razão, do dever, do preconceito, etc. Em todo tempo e em todos os lugares a atração apaixonada tendeu e continuará a buscar três objetivos:

Ao luxo ou prazer dos cinco sentidos; Aos grupos e séries de grupos, laços afetuosos; Ao mecanismo das paixões, caracteres, instintos; e em decorrência, à Unidade universal (Fourier, 1973, p. 90).

A mecânica passional ocupa parte importante do discurso de Fourier, no qual as paixões são vistas de forma compreensiva, complacente, mesmo com permissividade. A dinâmica das paixões é um movimento onde se põem em jogo doze paixões principais, que se multiplicam quase infinitamente em suas combinações e detalhes.

Para Fourier existem doze paixões primitivas, assim como há doze notas na escala cromática, e sua concepção do mundo da harmonia social se prende a esse originário modelo musical:

...Fourier acreditou estar de posse da chave da harmonia e da felicidade universais. Deslumbrado pela correspondência entre os sons e as medidas ou as figuras matemáticas, ele quis transpor para todos os domínios uma harmonia que é tanto mais maravilhosa porque não precisa ser compreendida, pois basta senti-la para receber seus bálsamos (Debout-Oleszkiewicz, 2001, p. 393).

Sendo doze as paixões primitivas, assim como são doze as notas da escala cromática, as paixões principais são, primeiro, as cinco paixões sensitivas, ligadas aos cinco sentidos físicos do homem, nomeados como: visão, ouvido, olfato, tato, gosto. Sobre o gosto e as paixões e os prazeres a ele ligados, Fourier se deteria sobremaneira sobre a paixão ligada ao gosto, desenvolvendo uma verdadeira gastrosofia, que apresenta pontos em comum com tendências ainda hoje atuais, que associam a gastronomia à sabedoria. Mesmo quando o autor trata das crianças e de sua educação, a gastrosofia ocupa um lugar privilegiado em suas atenções.

Às paixões sensitivas seguem-se as paixões afetivas, ligadas aos afetos centrais que Fourier identifica como o amor, a amizade, a paternidade e a ambição, sendo que essas são as paixões afetivas dos adultos, porque, segundo ele, as crianças ainda carecem dos afetos do amor e da paternidade.

Em terceiro lugar, encontram-se as paixões mecanizantes ou distributivas, em número de três, completando a dúzia. As paixões mecanizantes ou distributivas são, sem dúvida, as mais originais da teoria da paixão fourierista e constituem uma de suas descobertas ou invenções mais geniais. Elas são as paixões que põem o conjunto das paixões em ação, criando seus desenhos concretos particulares. As paixões mecanizantes combinam as diversas paixões dos sentidos e dos afetos, levando-os assim ao movimento, dinamizando o universo passional.

São paixões distributivas: a paixão papillone (borboleta ou borboleteante), que é a paixão da variação, tão evidente nos seres humanos, que se entediam e tornam-se infelizes ao precisar permanecer por muito tempo numa única atividade:

é a necessidade de variedade periódica, situações contrastadas, mudanças de cena, incidentes picantes, novidades próprias a criar a ilusão, a estimular ao mesmo tempo sentido e alma (Fourier, 1973, p. 108).

Em seguida, encontramos a paixão cabalista, paixão da intriga e da conspiração, que anima a vida social e política e cria os movimentos de oposição e concorrência entre indivíduos e entre grupos. E a paixão composite ou compósita, de composição do diverso, mesmo do oposto, de conjugação das paixões, pela qual se potencializam os efeitos da satisfação de uma paixão a outra, por exemplo, da visão quando associada ao amor e vice-versa.2

A cabalista, ou espírito de partido, é a mania da intriga muito ardente entre os ambiciosos, as corporações (...), os comerciantes, o mundo galante (Fourier, 1973, p. 112).

A paixão compósita contribui especialmente para o objetivo final da dinâmica das paixões, que é a satisfação do desejo de harmonia e de unidade, pelo que se pode falar também em uniteísmo, a paixão da unidade e da harmonia, razão do conjunto do esforço do reformador.

A cabalista e a compósita estão em perfeito contraste: a primeira é uma fuga especulativa e refletida; a segunda é uma fuga cega, um estado de ebriedade, de enlevamento que nasce da combinação de muitos prazeres dos sentidos e da alma, degustados simultaneamente (Fourier, 1973, p. 111).

A teoria das paixões para Fourier quer ser uma base de análise do real para suas sugestões de reforma social; essa análise, que tem um cunho teórico mas também um vínculo empírico, é o que deve ser considerado como apoio científico de sentido realista da utopia fourieriana.

Sua teoria do campo passional nada mais é que a exploração das combinações possíveis entre forças reais - as paixões -, somente impedidas pelas instituições cuja realidade se limita à das ideologias que as sustentam (Malécot, 2002, p. 98).

A teoria das paixões encaminha uma apresentação do mundo humano, interpessoal e social, como contínuo movimento que, assim compreendido no nível da potencialidade, varia conforme às inclinações passionais. Porque as atrações passionais são o fundamento do dinamismo humano coletivo, sendo o que dá consistência à prática societária: na vida na Harmonia há de imperar a variação. Por isso, ao descrever a dinâmica das potencialidades humanas, individuais e coletivas, o discurso de Fourier descreve a variação, as passagens, as transformações constantes, demonstrando uma concepção de ser humano como ser que escapa à forma fixa e que se determina na experiência por contínuas modificações.

De modo coerente, a ordem societária será também uma contínua modificação; nesse movimento importam as paixões e as séries passionais, segundo as quais os indivíduos se fazem e desfazem (Malécot, 2002, p. 100) no encadeamento variado das sessões pelas quais acontece a vida social, dos encontros amorosos ao trabalho produtivo. Os desvios, as exceções, as fugas da regra são tanto esperadas como previstas e aceitas como parte do movimento geral da atração apaixonada.

A harmonia que se constrói pelo movimento das mais diversas paixões e da atração passional se estende do mundo físico ao humano, do mundo humano ao físico, sempre com o nexo da harmonia evidente na música:

A Harmonia polifônica eleva-se assim, progressivamente, às potências capazes de integrar “bilhões de variáveis”. De tal modo que, conhecendo a série inicial, conhece-se e organiza-se o universo, tem-se o exato significado do imenso e do ínfimo. Da propriedade extraordinária que têm os sons, as consonâncias ou dissonâncias sensíveis - por mais complexas que sejam - de corresponder exatamente aos números que os representam, Fourier faz os módulos criadores do ser. Supõe que as inesgotáveis riquezas surgem segundo um código prévio, e que o cálculo pode não só harmonizá-las como também prevê-las. Desvendando ao mesmo tempo as fontes da vida e as leis que regem todos os seus desenvolvimentos, ele prolonga os mistérios dos números ou das figuras inscritas no sensível para metamorfosear a vida social e a própria natureza, os climas, as florestas, os vulcões, os animais selvagens. Bela síntese do sonho e da ciência, visto que basta a escala cromática para recriar o universo e abarcar o devir, natural e social, com um único olhar (Debout-Oleszkiewicz, 2001, pp. 394-395).

 

O fundamento teológico da dinâmica das paixões

Base científica do projeto social de Fourier, a teoria da atração passional universal, do mesmo modo que as mais nobres utopias que lhe antecederam, sem dúvida ainda tem um fundamento teológico. Não mais como a moral tradicional se apoiava na lei divina dada aos homens pela palavra sagrada para edificar a lei moral, social e política, mas no sentido de que na teoria de Fourier se mantém forte o elo entre a ciência e a fé, e a análise da realidade humana se efetiva carregada de admiração e respeito pela obra do criador, que se deseja reconhecer e respeitar. A realidade concreta, com suas leis naturais, assim se apresenta porque o criador assim a fez; portanto, a lei da atração passional, reconhecível em toda a realidade humana, como no plano da natureza, deve ser conhecida e respeitada, e não negada pela civilização ou pela moral. A bússola no estudo das paixões é o encontro dos desígnios, dos modos de ver e dos planos de Deus:

Uma das armadilhas às quais em todas as épocas prendeu-se a multidão, foi persuadi-la de que os desígnios de Deus eram impenetráveis, que o homem não devia mesmo procurar conhecer a Deus. O bom senso exige todo o contrário; o bom senso indica que nosso primeiro estudo seja o de Deus, o mais fácil de todos (Fourier, 1973, p. 407).

O pensamento de Fourier nesse aspecto é claro e sensato: se somos criaturas de Deus e devemos a ele nosso ser, convém inspecionarmos quais são as características desse ser que lhe devemos, por ele impressas em nosso ser real e em nossas tendências naturais.

Na Antigüidade, enquanto o mito/ a fábula mascarava o Criador, confundindo-o com uma multidão de 35.000 falsos deuses, mais ridículos uns do que os outros, era com certeza difícil estudar as vistas/ os desígnios de Deus, de os desembaraçar através desta mascarada celeste; também Sócrates e Cícero dedicaram-se a isolar-se das bobagens de seu século, e adorar o Deus desconhecido, sem levar mais longe suas pesquisas, que teriam sido contrariadas pelo espírito do tempo: Sócrates disto foi vítima (Fourier, 1973, p .407).

A fé da revelação monoteísta judaico-cristã exerce uma influência de esclarecimento sobre a religião ligada ao mito da antigüidade greco-romana e esse esclarecimento nos auxilia a entender de modo científico a realidade concreta.

Hoje que estas suposições estão dissipadas, e que o cristianismo nos orientou para idéias mais sadias, para a crença num Deus único, temos uma bússola fixa para proceder ao estudo da natureza (Fourier, 1973, p. 407).

Os filósofos buscam encontrar a regra ideal, a bússola para a organização humana através da razão, logo, no plano do homem; porém, ao pesquisar as leis da natureza, encontra-se a direção do movimento integral da criação e, assim, obtém-se a regra dada por Deus, pelo próprio criador, lei superior à que o homem pretende estabelecer por suas próprias forças e razão.

Esse texto em que se expõe a vinculação do projeto social fourierista com o plano de Deus é um dos momentos em que o pensador explicita as linhas gerais mais importantes de sua utopia, referindo-se à direção integral do movimento - da dinâmica da atração universal, por lei natural de origem divina, o que o leva à economia de recursos, à justiça distributiva, à universalidade da providência e à unidade do sistema.

A direção integral do movimento do real é indicada deste modo:

Se Deus é o superior na direção do movimento, se só ele é o senhor do universo, único criador e distribuidor, cabe a ele dirigir todas as partes do universo, entre outras, a mais nobre, aquela das relações sociais: conseqüentemente, a legislação das sociedades humanas deve ser a obra de Deus e não dos homens; e para dirigir nossas sociedades para o bem, é preciso procurar o código social que Deus deve ter composto para elas (Fourier, 1973, p. 408).

Essa ordem natural de origem divina inclui a máxima economia de recursos:

Se o mecanismo das sociedades fosse regrado por Deus, ver-se-ia brilhar a economia de recursos que lhe atribuímos, ao chamá-lo de supremo ecônomo. Ora, a economia exige que ele opere sobre as maiores reuniões societárias, e não sobre a mais pequena, que chamamos família, lar conjugal. Ela exige sobretudo que Deus escolha por motor a atração passional, cujo emprego lhe garante doze economias que não se encontram no regime de obrigação (Fourier, 1973, p. 408).

Para Fourier, é suficiente observar as propriedades da atração para provar que um Deus “ecônomo” de recursos não pode ter optado pelo constrangimento, via adotada pelos legisladores “civilizados” e bárbaros; é no estudo da atração que se deve buscar o código social e industrial de Deus. É também na dinâmica da atração real, nos diversos planos da natureza, e na natureza humana, que se pode bem fundamentar e organizar a justiça distributiva.

 

A crítica do industralismo

Em sua apresentação aos textos escolhidos de Fourier, Félix Armand (1950) distinguia as contribuições de Fourier para a filosofia geral, para a crítica da civilização e para a utopia propriamente dita. Entre as grandes contribuições do utopista à filosofia geral, a primeira é a sua filosofia da história, quando estabelece as etapas da evolução social; a segunda, a teoria da atração em que se inclui a análise da dinâmica das paixões, a que nos referimos acima; enquanto a crítica da civilização parece estar intimamente ligada à filosofia da história, pois é do ponto de vista também da possibilidade do futuro que se realiza a crítica do mundo industrial da época.

Lembremos as fases que Fourier apontava para a “primeira idade do mundo social”: Entre os “períodos anteriores à indústria”, encontram-se, primeiro, o período “bastardo, sem o homem”; a seguir, o período “primitivo, dito Éden”; depois, o período da “selvageria ou inércia”. Entre os períodos próprios da “indústria dividida, mentirosa, repugnante: limbos obscuros”, encontram-se primeiro o período do “patriarcado, pequena indústria”; a seguir, o da “barbárie, indústria média”; e mais tarde, o da “civilização, grande indústria”. É no terceiro andar da primeira idade do mundo social, no plano da “indústria societária, verídica, atraente”, ou seja, no período da evolução na direção da sociedade ideal, em que se encontrariam, primeiro, o período do “garantismo, semi-associação”; a seguir, o do “sociantismo, associação simples”; mais tarde, finalmente, o esperado período do “harmonismo, associação composta” (Fourier, 1973, p. 29; Albornoz, 1985, p. 148).

Na realidade, a utopia fourierista é refratária, contrária ao industrialismo, porque justamente é crítica do trabalho industrial que qualifica de “repugnante”, negativo de tudo o que idealiza como trabalho atraente e conforme aos gostos, às paixões, às inclinações dos indivíduos e de seus grupos.

Na Harmonia, onde seria alcançada a organização “societária” da sobrevivência e do bem-estar, seriam superados os modos alienantes de produção do mundo da indústria, da super-exploração capitalista que em sua época se afirmava como o real.

Se é possível chamar de “romântica” essa tendência tão oposta ao fazer industrial da “indústria dividida, mentirosa, repugnante”, contudo, no caso de Fourier (dada a força de sua psicologia centrada na observação das paixões humanas, das tendências materiais que lhes são ligadas e a aspiração à ciência das paixões humanas), o adjetivo “romântico” seria impróprio, quem sabe injusto. Ainda mais que o trabalho industrial que ele reputa como desprezível e desumano na realidade o era efetivamente, por motivos demasiado conhecidos, do excesso de horas de trabalho exigido de adultos, homens e mulheres, e de crianças, com sacrifício da saúde e a exposição a condições insalubres ao extremo, presos junto a máquinas que já começamos a esquecer em nosso tempo de automação.

A propósito da experiência feita por Fourier das misérias do trabalho durante a revolução industrial, parece-me muito expressivo e verdadeiro, portanto, ainda conveniente relembrar a observação, já referida em trabalho anterior, do grande historiador francês François Michelet quando descrevia a cidade de Lyon em 1790, exatamente o tempo em que Fourier ali viveu:

A questão íntima e profunda era a “questão social”: a disputa dos pobres e dos ricos. Esta grande e cruel questão, velada em outros lugares sob o movimento político, aparecia em Lyon em toda a sua nudez. O comerciante de Lyon, republicano por princípio, não era menos o senhor, o tirano do operário e, o que é pior, o senhor de sua mulher e de sua filha... A prostituição não pública mas infligida à família como condição de trabalho era o caráter deplorável da vida da cidade de Lyon. Esta era uma raça humilhada(...) Havia de que sonhar. Em nenhum outro lugar mais do que nesta cidade houve sonhadores utópicos. Em nenhuma outra parte o coração ferido, cortado, procurou mais inquietamente soluções novas ao problema dos destinos humanos. Lá apareceram os primeiros socialistas, Ange e seu sucessor Fourier. O primeiro, em 1793 esboçava o falanstério e a doutrina da associação, do qual o segundo vai se utilizar, com o vigor do gênio (Michelet citado por Armand, 1950).

Assim como “civilização” na linguagem fourieriana tem um significado muito especial, “indústria” e “industrialismo” também se distinguem do seu uso corriqueiro, aliás, nenhum termo no texto de Fourier pode ser compreendido de maneira ligeira, como se carregasse o seu sentido mais comum. Com tais oscilações de termos e sentidos, todavia, Fourier reconhecia “sete funções industriais”, que se encontravam separadas, divididas, fragmentadas naquele período que conhecemos por “revolução industrial”, quando ele viveu. As sete funções industriais são assim indicadas: “1º o trabalho doméstico, 2º agrícola, 3º manufatura, 4º comercial, 5º do ensino, 6º estudo e emprego das ciências, 7º estudo e emprego das belas-artes” (Fourier, 1973, p. 43).

Como se vê por essa caracterização, embora a palavra “indústria” e “industrial” ocorram freqüentemente na linguagem criativa do utopista, mesmo no título da obra aqui considerada, e os falanstérios fossem imaginados como instituições de “reforma industrial”, na realidade, o mundo sócio-econômico idealizado por Fourier significava algo diferente e como que uma superação da indústria em seu sentido mais estrito, tal como existia então. Para ter a convicção da recusa fourieriana da indústria como a conhecemos, basta considerar o artigo III de O novo mundo industrial e societário, onde se lê:

O industrialismo é a mais recente de nossas quimeras científicas; é a mania de produzir confusamente, sem nenhum método em retribuição proporcional, sem nenhuma garantia para o produtor ou assalariado de participar do crescimento da riqueza; também vemos que as regiões industriais são tão cheias, talvez mais repletas de mendigos do que as regiões indiferentes a este gênero de progresso (Fourier, 1973, p. 65).

Algumas das críticas marxistas já estavam antecipadas, indicadas nas críticas de Fourier mestre de Marx, que as aperfeiçoaria no contato com a grande filosofia dialética alemã e a economia inglesa, mas não se afastaria das críticas sociais de inspiração científica e psicológica, antes que moral e teológica.

A percepção de que o desenvolvimento e o crescimento da riqueza no capitalismo industrial andam juntos com a radicalização da miséria já se encontra portanto nos textos de Fourier. A economia societária proposta pelo pensador opõe-se ao industrialismo que se encontrava no centro de outras utopias da época, como as de Henri de Saint-Simon ou de Robert Owen, por exemplo. Assim:

Importa dissipar desde o prefácio as ilusões do industrialismo ou abuso da indústria, porque são o regime mais oposto à política societária, que tem por base: a atração industrial, a repartição proporcional, a economia de recursos, o equilíbrio da população, e outras regras das quais em todo sentido se distancia o sistema industrialista, produção desordenada, sem garantia de justiça distributiva (Fourier, 1973, p. 65).

 

O trabalho atraente

O conhecimento e o respeito à realidade dinâmica das paixões levará à organização da vida e do trabalho em séries passionais, grupos de atividades segundo as inclinações, talentos e preferências reais dos indivíduos. Esse trabalho a ser desenvolvido pelos indivíduos em seus grupos divididos por séries, considerados os seus talentos e paixões (e nesse ponto a imaginação criadora e utópica do autor cria asas chegando às raias da excentricidade e da ficção científica), por causa mesmo de sua distribuição por inclinações e paixões, por ser desenvolvido de modo apaixonado, tornar-se-á um trabalho atraente, aprazível, agradável, também por ser sujeito à lei (ou à liberdade) da variação, realizar-se em sessões mutáveis, diversas, o que terá o efeito supletivo de aumentar a produtividade industrial e a prosperidade geral.

A organização do trabalho por séries passionais faz o dinamismo interno básico do falanstério, que já tem sido objeto de análises detalhadas. As atividades junto à natureza, de um lado, bem como as atividades artísticas de outro, são privilegiadas, sendo mais evidente a relação que possam ter com as paixões de grupos especiais de indivíduos.

Os tão imaginativos falanstérios, grandes instalações habitacionais ou centros arquitetônicos previstos em seus detalhes mais excêntricos, que fizeram a fama de Fourier, estariam na proximidade da natureza, inseridos em regiões onde fosse possível desenvolver atividades junto a ela, portanto, além de centros de socialização e convivência, são pensados como unidades agrícolas de produção. As demais atividades de produção “industrial”, da fabricação de objetos necessários para a sobrevivência e o desenvolvimento da vida do grupo, são imaginadas em forma de produção artística ou artesanal, conforme aos talentos e à atração passional dos indivíduos distribuídos em seus grupos próprios por tendência natural.

No texto “Engrenagem das atrações industriais” (Fourier, 1973, p. 295), Fourier desenvolve de modo imaginativo as “iniciativas da atração individual e coletiva na indústria serial”, referentes às séries passionais de trabalho. O autor escreve com a paixão do detalhe, inclusive com a rica indicação de séries numéricas, o que carrega os leitores por uma verdadeira aventura sem nenhuma garantia de perfeita coerência, e não se pode supor que as propostas de Fourier sejam sempre iguais a si mesmas, a não ser em seus fundamentos mais gerais. De um modo um tanto inusitado para nossos hábitos intelectuais contemporâneos, o pensador afirma em primeiro lugar que é preciso atrair ao trabalho produtivo “a série dos três sexos - homens, mulheres, crianças”, e “a série das três fortunas - ricos, médios e pobres”. Todos os “gêneros” e todas as categorias sociais serão atraídos para o trabalho, do que se pode deduzir que todos irão colaborar para uma melhor divisão do trabalho e do repouso e, o que é principal, a melhor divisão se fará com acréscimo de felicidade, porque seguirá a regra da atração passional e dos talentos naturais.

Interessante é a noção que Fourier apresenta do que chama de “atrações parcelares” ou parciais, quer dizer, não integrais. Ao contrário do que se poderia supor com nossos hábitos corrompidos pelo sistema industrial capitalista, não é uma única paixão que nos ocupará obsessivamente em toda a nossa capacidade de esforço, ao contrário, poderemos exercer a muito sábia paixão da variação, descobrindo em nós muitas atrações que nos motivarão e tornarão ao máximo produtiva a nossa atividade.

...depois de haver percorrido por alguns dias os trabalhos da falange, cada personagem se espantará de ver aparecer em si mesmo vinte atrações industriais para as quais não sabia ser dotado... mas que serão atrações parcelares e não integrais, porque não se aplicarão ao conjunto do trabalho, como o exigiria o mecanismo civilizado, em todo sentido contrário ao voto da natureza (Fourier, 1973, pp. 296-297).

As paixões indicadas não são somente as da atração própria da atividade mesma, que transforma na base a atividade produtiva em passionalmente orientada, portanto, prazerosa; nosso utopista, como bom psicólogo, leva em conta as paixões humanas em seu conjunto e tem em mente a sua composição, o seu movimento. Nas séries de trabalho segundo a natureza e a atração, são esperadas combinações variadas entre as diversas idades e categorias de pessoas, e a atração passional que pode surgir entre essas pessoas de diversas idades e experiências poderá imiscuir-se e dar tempero às atividades de trabalho.

A comparação com as realidades da sociedade da “indústria fragmentada, mentirosa e repugnante”, da “falsa indústria” da sociedade industrial burguesa da época, as observações sociológicas ou do plano da psicologia social estão sempre como base ou, ao menos, como pano de fundo por onde se pode, mais que saber, intuir quais as mudanças desejadas:

Em oposição a estes brilhantes acordos, a indústria fragmentada só consegue misturar as idades opostas e as classes opostas; o salário se torna um tema de querelas intermináveis, e o comando individual é um assunto de ódios (Fourier, 1973, p. 299).

Antes do que questão de novas tecnologias, o aperfeiçoamento da organização do trabalho aparece como um aperfeiçoamento das relações, também das relações de poder, onde as paixões devem estar presentes. A superação das relações de submissão e dominação aparece como condição para o trabalho apaixonado, atraente.

Todo comando arbitrário é humilhante para aquele que obedece. O indivíduo em harmonia somente é comandado por disciplina convencionada, coletiva e consentida apaixonadamente; neste caso, nada há de arbitrário na ordem dada, nada de ofensivo na obediência; enquanto que o método civilizado ou regime de domesticidade individual e assalariada cria sempre uma discórdia dupla, freqüentemente quádrupla, lá onde o método societário produz duplo ou quádruplo charme, elos e acordos de toda espécie (Fourier, 1973, p. 299).

 

A educação pelo trabalho atraente

A educação é que vai despertar, desvelar, fazer mostrar-se, descobrir as atrações passionais naturais e desenvolvê-las; e isso deve ser realizado já na infância mais tenra.

Esse despertar das paixões próprias para as atividades nas séries apaixonadas é essencial para que a pessoa se situe corretamente na dinâmica produtiva passional, encontre as suas séries e grupos adequados por inclinações e tendências de atividade, ao longo de toda a sua vida, e assim venha a ser uma pessoa feliz, bem sucedida socialmente, e isso, não só conseqüentemente mas ao mesmo tempo, potencializa ao máximo sua capacidade produtiva.

Conforme resume Leandro Konder (1998, pp. 38-39), a educação no falanstério não assumiria as características das experiências educacionais que têm sido realizadas pelas sociedades “civilizadas” nem se apoiaria nas concepções elaboradas pelos grandes filósofos da educação e pedagogos, pois Fourier se referia sarcasticamente a muitos deles, como a Condillac e Rousseau. A educação das crianças seria feita predominantemente pelas outras crianças um pouco mais velhas, que ensinariam o que soubessem às mais novas, restringindo ao mínimo a interferência dos adultos.

A terceira secção do Novo mundo industrial e societário, que se intitula A educação na Harmonia, é dedicada ao detalhamento da adaptação da teoria do mecanismo da atração passional à educação. Nesses trechos de sua grande síntese da teoria da Harmonia dedicados especialmente à educação e à infância, o autor se dedica a batizar criativamente as categorias ou séries de crianças em suas diversas fases, bem como a imaginar e sugerir sua reorganização em grupos de dons e paixões ou interesses.

A primeira parte da secção se esmera em provar que a educação “civilizada”, ou seja, da sociedade burguesa industrial contemporânea do autor, na época moderna e na tradição ocidental, encontra-se em contrariedade com a natureza e o bom senso.

A educação societária tem por objetivo operar o pleno desenvolvimento das faculdades materiais e intelectuais, aplicando-as todas, mesmo os prazeres, à indústria produtiva (Fourier, 1973, p. 214).

Isso inclui o “luxo interno, vigor corporal e refinamento dos sentidos”, que se identifica com uma concepção muito especial de saúde, que Fourier ilustra com os casos exemplares de longevidade, dos muito idosos lúcidos e ativos de que tinha notícia. Para chegar-se a esse desenvolvimento e longevidade industriosa, o autor considera evidente, aos olhos de qualquer pessoa de bom senso, a importância e a necessidade da boa educação desde a primeira infância.

O sistema das fases da educação infantil deixa-se contaminar pela grande paixão de Fourier pelo detalhe e pela classificação ao extremo. No propósito ousado de dar conta da questão complexa de “operar o pleno desenvolvimento das faculdades”, e de todas as capacidades, para o máximo de produtividade industriosa, Fourier divide as fases da educação infantil em quatro, sem deixar de antes também indicar um período de “educação preparatória”, ou “prelúdio”, durante a “idade primitiva” ou “prima infância”, de 0 a 2 anos. A seguir, indica a primeira fase propriamente educacional, que chama de “educação anterior”, na “baixa infância”, que iria dos 2 aos 4 anos e meio. A fase seguinte, a da educação infantil, Fourier a chama de “educação citerior,” da “infância média”, dos 4 e meio aos 9 anos; logo depois, situa a “educação ulterior”, na “alta infância”, dos 9 aos 15 anos e meio; para concluir com a quarta fase educacional, da “educação posterior” ou da “infância mista”, que corresponderia ao que hoje chamamos de adolescência, dos 15 anos e meio aos 20 anos (Fourier, 1973, p. 217).

A prima infância ou âge brut compreende as categorias dos recém-nascidos ou bebês, nourrisons ou allaités. Após o período inicial, vem a fase dos lutins e poupons ou sevrés que, por sua vez - como é do estilo rebuscadamente detalhista e inventivo do autor - também são subdivididos, sem distinção de sexo, em séries trinitárias: os primeiros, entre pacíficos ou benignos (benins ou rétifs) ou malins e désolants ou diablotins (Fourier, 1973, p. 218).

A educação dos lutins será ajudada pelos bonnins e bonnines, espécie de babás que se distinguem das da sociedade “civilizada” pela sua valorização social e pela sua formação e consciência de que sua tarefa é fazer nascer as vocações, aparecer as inclinações e despertar as paixões das crianças já nesta fase precoce da infância (Fourier, 1973, p. 227).

A educação da tribo dos bambins, ou simplesmente meninos de 35 a 54 meses, quando as crianças devem ser sobretudo estimuladas a desenvolver suas capacidades físicas, suas faculdades corporais, seria ajudada pelos mentorins e mentorines (Fourier, 1973, p. 236), que devem ter o mesmo objetivo dos outros educadores, que é dirigir todas as faculdades da criança à indústria produtiva segundo suas naturais inclinações, talentos, gostos e atração passional.

Conforme a tradução de Konder, a partir de quatro anos e meio, quando se torna um querubim, a criança passa a ganhar seu próprio dinheiro, prestando serviços à comunidade e tendo direito à sua própria remuneração, sendo que o período seguinte, dos 6,5 aos 9 anos, é o dos serafins, ao qual se segue o dos liceanos, dos 9 aos 12 anos, e o dos ginasianos, dos 12 aos 15 anos:

Querubins e serafins formarão “pequenos bandos”, que prestarão ajuda nas plantações; liceanos e ginasianos formarão “pequenas hordas” que cuidarão dos animais e da limpeza (Konder, 1998, p. 40).

A seguir, aos 16 anos, inicia-se um novo período de sentido educativo importante e especial, sendo quando se encaminha a educação para a sexualidade e o amor, aspecto central na utopia de Fourier, sobretudo abordada em Novo mundo amoroso.

Ainda a propósito das sugestões de Fourier para a organização da educação, convém destacar o papel pedagógico que Charles Fourier confere ao colega um pouco mais velho, ao camarada de atividades infantis com alguma vantagem de desenvolvimento.

É evidente que, na atualidade, uma tal sugestão - de organizar os meninos em “séries de jogos de indústria produtiva”, dito de outro modo, de estimular o trabalho das crianças, compreendido como algo legítimo, positivo, mesmo essencial para a sua educação e também importante para a boa organização social -, no primeiro momento, há de parecer chocante, sobretudo se nos vem à mente a terrível e inadmissível exploração que a indústria capitalista tem feito do trabalho infantil.

É preciso, contudo, não esquecer que Fourier tem em vista séries de crianças que se organizam em torno de atividades que correspondem a suas paixões e talentos, logo, que lhes dão prazer; trata-se de atividades produtivas que podem ser vividas como jogo porque satisfatórias, de acordo com suas preferências, conforme aos temperamentos e às inclinações muito pessoais, livremente expressas.

Por outro lado, essas atividades não serão nunca exercidas por muito tempo, haja vista que na Harmonia uma das regras mais importantes é a do respeito à paixão da variação, da paixão papillone ou borboleta, do movimento de desejo de alternância de atividade, o que ainda com mais razão será cuidado quando se trate das séries infantis produtivo-educativas.

As sugestões sobre o caráter educativo do trabalho infantil podem ter sido um importante impedimento para que o mundo das ciências da educação tivesse tido ouvidos para as sugestões de Fourier. Pois, se o utopista da Harmonia influenciou por muito tempo o pensamento e a política revolucionários dos séculos XIX e XX (na medida em que foi admirado e respeitado, embora com certa distância, pelos pais fundadores do socialismo científico, suas idéias influenciando as de Karl Marx e de Friedrich Engels - que no Manifesto Comunista a ele se referiram com deferência, situando-o entre os socialismos utópicos críticos e não entre os passadistas ou retrógrados); se o eco das idéias de Fourier também repercutiu no movimento feminista de caráter mais liberal ainda na segunda parte do século XX; e se é bem conhecida a sua influência sobre as experiências cooperativistas que continuaram a ocorrer mesmo dentro da sociedade industrial capitalista, contudo, não parece ter-se firmada sua influência sobre a nova pedagogia, muito embora o movimento da Escola Ativa quase se identificasse com o da Escola Nova e tenha sido exatamente esse o tempo da vida de Charles Fourier, utopista tão rico em sugestões de reforma social, na época da descoberta simultânea da importância da educação para a reforma social bem como da importância da atividade infantil para a educação. Sendo ainda de notar-se que a atividade da criança foi reivindicada pelos pedagogos da Escola Ativa e da Escola Nova com uma inflexão bastante afim com a sugestão do trabalho infantil atraente, apaixonado, contido no projeto fourierista.

Quer-me parecer que essa separação da nova educação com relação ao projeto da educação em séries autônomas infantis organizadas pelos nexos da atração passional tenha permanecido profunda por causa da ligação específica da educação sonhada para o novo mundo societário da Harmonia, com a idealização do trabalho comunitário infantil e a sugestão da precoce remuneração das crianças. Pois, na realidade, essa proposta de Charles Fourier se apresenta contramão, contra a corrente que mais se afirma no último século, em que se reclama a reserva das crianças dentro do espaço social próprio da educação, no sistema e programa escolares, associada mesmo essa reserva à progressiva regulamentação da proibição do exercício profissional infantil.

Enquanto se afirmava o direito à educação como a uma atividade alternativa e oposta à do trabalho remunerado, compreende-se que Fourier tenha permanecido uma voz destoante, escondida, enquanto defendia o valor educativo do trabalho atraente também na infância: desde que em grupos por afinidade e em séries conformes às inclinações de gosto e de paixão, em ritmos de alternâncias variadas. Pode-se assim bem compreender que o pensamento de Charles Fourier sobre a educação pelo trabalho e sobre o importante caráter educativo do trabalho infantil seja ainda hoje silenciado, esquecido e, quando ouvido, soe como impróprio ou mesmo absurdo, sendo difícil sequer trazê-lo à consideração num tempo em que o progresso social e os direitos das crianças e adolescentes à educação são identificados com sua libertação do trabalho.

Mas que fosse negado no seu tempo, quando a indústria utilizava largamente o trabalho infantil, deve ser atribuído a outras características internas próprias do modo de entender a organização das atividades em séries passionais nas quais se organizam os indivíduos, também as crianças, de modo sui generis, ou seja, situados por suas inclinações e paixões mais acentuadas, quando apenas a idéia ou a proposta do trabalho prazeroso se imaginava como algo muito oposto à realidade, e aos interesses da produção industrial da época.

A grande influência de Jean-Jacques Rousseau sobre o domínio da pedagogia e sobre os pedagogos deve também ter-se imposto para impedir que a sugestão fourierista do trabalho infantil educativo fosse sequer conhecida e pudesse ser trazida para a reflexão e o debate entre pedagogos e educadores destes dois séculos.

Segundo Fourier, a educação infantil se encontra naturalmente com o trabalho apaixonado e isso pode e deve dar-se desde a primeira infância. Com base na observação científica e considerando as paixões predominantes nas crianças, em seus caracteres comuns e em sua rica diversidade, cuja sede de atividade é grande e geral, deduz que é natural e adequado organizar as crianças em séries de produção apaixonada, em esforços parciais, não repetitivos, e associados a toda espécie de atividade prazerosa.

Através da atividade infantil despertam e afirmam-se as verdadeiras inclinações e paixões dos indivíduos. A atividade infantil - ao mesmo tempo trabalho, jogo e educação - possibilitará o desabrochar, fará aparecerem as tendências individuais, os talentos que possibilitarão as distribuições e a dedicação para a vida, bem dosada com a variação e a composição, conforme à natureza das paixões humanas. A atividade produtiva, segundo inclinações e paixões demonstradas já na infância, possibilita aos indivíduos desenvolverem-se, tornarem-se felizes, aprender e produzir bem em continuidade durante sua vida adulta, conforme toda a capacidade que a paixão indica.

Na utopia da Harmonia fourieriana, são muito criticadas as oposições em geral estabelecidas entre natureza e moral, bem como se afirma a necessidade de considerar, em seu jogo de oposições e possibilidades de conciliação, a igualdade e a diferença. Enquanto a moral, na educação moderna do mundo da “civilização” (que é o modo como Fourier indica a sociedade industrial, da “indústria repugnante”) exerce sua pressão no sentido contrário da natureza, a educação que encaminhará para a Harmonia (esta que é a denominação dada por Fourier ao novo mundo que se organizará sobre a atração passional) deverá respeitar e obedecer a natureza. A moral é própria da educação na “civilização”; a natureza será a base da educação na sociedade da Harmonia.

A educação será segundo a natureza na organização que leve em conta a lei da atração passional inscrita na natureza, atração que é tanto da realidade física como da humana, e nessa se apresenta na forma de atração passional. Por isso será sábio e justo organizar as crianças também, assim como os indivíduos adolescentes e adultos, em séries passionais produtivas, que constituirão séries industriais apaixonadas de produção atraente.

Por outro lado, na natureza mesma se inserem certas diferenças, que uma atitude igualitária, mesmo igualitarista, obrigará a reconhecer e respeitar. Fourier se celebrizou entre os partícipes dos movimentos sociais e políticos de esquerda dos séculos XIX e XX também por seu modo muito especial de considerar os direitos das mulheres e a igualdade entre os sexos. É dele a frase célebre que rodou mundo e que afirma ser pela situação de suas mulheres que pode ser medido o grau de desenvolvimento e progresso de uma sociedade. O trato desse problema no projeto exposto em O novo mundo industrial e societário faz uma consideração bem equilibrada da igualdade e da diferença.

O reformador reconhecia direito igual a homens e mulheres de pertencerem indistintamente a qualquer tipo de série passional, a todo e qualquer grupo de atividade, selecionados por suas capacidades e paixões. Mas, evidentemente, e isso com base na observação realista, afirma encontrar-se entre os varões maior número de indivíduos dispostos por paixão, por exemplo, à prática dos esportes violentos, enquanto se encontra entre as mulheres maior número de indivíduos dispostos a atividades mais delicadas. Tais paixões e tendências mais ou menos freqüentes e distribuídas entre os gêneros seriam respeitadas nas séries passionais.

Essa sábia associação da consideração da igualdade e da diferença, não esquecida a predisposição natural, também é recomendada quanto às diferenças de idade e, desse modo, vai atingir a organização das séries passionais infantis.

Toda a proposta fourierista de reorganização da educação das crianças em vista de sua educação prazerosa pelo trabalho atraente e para a produtividade, segundo suas tendências naturais da idade e do temperamento, de cada tipo de indivíduos, faz-se como esforço oposto ao dos métodos “civilizados”, que contrariariam as tendências da natureza (Fourier, 1973, p. 248).

A relação da proposta fourieriana com a natureza está longe de ser simplista; ao contrário, compreende um movimento que se poderia chamar, com cuidado e leveza, de “dialético”: pois, se Fourier nota que os métodos civilizados se afastam da natureza, tem consciência também de que não é simples na Harmonia encontrar o bom elo com a natureza, daí a importância da organização social e do trabalho, em séries passionais, e dessa organização desde a infância, enquanto organização educativa. O pensador encontra-se longe do simplismo de imaginar uma via fácil e direta do homem com sua própria natureza; e é para permitir que ela nasça e cresça que se apresenta como necessidade e solução a imaginativa construção societária da utopia da Harmonia dirigida pelo movimento da atração passional, posto como uma rede educativa/produtiva em movimento, desde a idade mais tenra dos indivíduos. Porque:

desde sua infância, o homem não é compatível com a simples natureza; é preciso, para criá-lo, um vasto conjunto de funções contrastadas e graduadas, mesmo desde a mais baixa idade onde ele não é feito para o berço (Fourier, 1973, p. 248).

Essas observações precisariam ser desenvolvidas mais detidamente; esta apresentação sabe ser apenas um convite ao debate e à reflexão posterior. Uma das maneiras de continuar a reflexão sobre a sugestão de Fourier de tornar o trabalho infantil, porque educativo, aceito e organizado de forma prazerosa, livre e sob a lei da alternância, que evita ao mesmo tempo o esforço doloroso e o tédio, seria confrontar essa sugestão com o ponto de vista da análise da atual tendência de emancipação da infância, tal como estudada por Alain Renaut (2003).

Outra maneira de continuar a reflexão sobre a sugestão de Fourier sobre a educação em sua relação com o trabalho infantil seria a de confrontá-la com as contribuições mais atuais e desenvolvidas da antropologia filosófica e das demais ciências humanas.

Aos que, por justa indignação, instintiva e imediata, julgarem que o ponto é impróprio para voltar à discussão dos educadores, dos filósofos e dos cientistas da educação a esta altura da história, parece-me que vale sugerir que abram o olhar para a realidade da permanência crua e inegável do trabalho das crianças na atualidade: lembrar o trabalho duro, sem prazer nem segurança das crianças presas na armadilha das redes do tráfico de entorpecentes nas favelas do Rio de Janeiro, conforme dá vaga idéia e forte impressão o documentário recentemente divulgado nos mais conhecidos meios de comunicação brasileiros sob a denominação de Falcão: meninos do tráfico. Sugerir também que reflitam sobre a realidade das crianças no Brasil, em outros países da América Latina e também em outros continentes, trabalhando de sol a sol sem remuneração sob as ordens do pai-patrão nas lides da terra; e lembrar as que trabalham na indústria e no artesanato sem escolha nem lei, e constituem invisivelmente a riqueza das novas potências do oriente longínquo. Vale convidar a pensar nas crianças engajadas na luta armada, como exemplo extremo, no caso dos meninos soldados de Serra Leoa.

Uma reabertura do debate e da reflexão sobre as possibilidades honrosas do trabalho livre e educativo da criança, em séries e horários regrados e adequados à sua saúde e inclinação, que o pensamento de Charles Fourier sobre a educação suscita, seria uma conseqüência válida do seu pensamento, de relevância humana e social.

 

Será possível concluir?

A sugestão prática no coração da utopia de Fourier, para a qual a educação é condição e que assim encaminha a proposta do trabalho educativo, é a da transformação do trabalho produtivo em atividade atraente, ou seja, a imaginação da atividade criativa que se fará com paixão e por inclinação natural, portanto, perderá pelo menos parte do seu caráter de esforço pelo qual foi tida como pena, no sentido de castigo, já com essa expressão nos relatos mais originários de nossa cultura.

Essa transformação desejável contida no sonho fourierista será possível pela afirmação da lei da atração passional e do respeito à ligação da paixão com a variedade, o ritmo, o movimento de variação.

Essa espécie de atividade ao mesmo tempo criativa e prazerosa é hoje privilégio de poucos, em geral dos artistas que escolhem sua atividade levados pelo talento mais que pela necessidade. Todavia, é experiência real de nossas vidas concretas que somos capazes, e assim nos tornamos mais felizes, de desenvolver certas atividades para além da pura necessidade de salário e da busca de meios de sobrevivência, o que o sistema integrou bem sob a denominação de “hobby”, muito embora cada vez mais a pressão do complexo econômico-ideológico ligado ao capitalismo tardio global de hoje encaminhe as compreensões coletivas no sentido de convencer que nada vale a pena se não for por sua remuneração material.

Nesse sentido, e para orientação com conhecimento dos mecanismos profundos que regem essa ligeira independência do trabalho efetivo em relação à sua remuneração e ao seu reconhecimento, tantas vezes insuficientes e injustos, a teoria da atração passional é uma ainda não bem desenvolvida mas cativante sugestão para a interpretação científica do movimento humano psicológico e social.

As difíceis situações históricas do presente e as transformações radicais no mundo do trabalho nos motivam a reler com outros olhos as sugestões dos utopistas. Pois, para a inquietação dos que vêem na atividade humana unicamente um meio de sobrevivência, dadas as imensas possibilidades introduzidas pelas transformações tecnológicas, diminui a necessidade real de trabalho produtivo.

Várias aberturas, para a prática e para a transformação de consciência, apresentam-se ante a imaginação consistente do trabalho apaixonado, ou passionalmente motivado, conforme se afirmava na concepção de Fourier.

De um lado, percebemos como necessária a abertura de pensar possível o trabalho criativo espontaneamente inventado pelos seus sujeitos, indivíduos ou seus grupos, como meio de produção e inserção econômica e social, portanto, para sobrevivência econômica e também para reconhecimento interpessoal e afirmação social, sem deixar de ser prazer e realização emocional, ou seja, a invenção da atividade produtiva no movimento de atração passional, como queria Fourier.

De outro lado, as teorias fourieristas dos movimentos passionais, que insistem tanto na consciência da paixão da variação, justamente do movimento, da dinâmica da variação que é a regra da atração passional, do detalhe desviante e da passagem de exceção, nos convidam a encarar sem preconceitos e com mais força e coragem a realidade do presente em transformação, para descobrir no tecido concreto destas realidades recentes, marcadas pelas novas tecnologias, as brechas de possibilidades de realização humana prazerosa, pelas atividades mais variadas, pela superação da ideologia do emprego ultra-especializado e único, espécie de servidão voluntária a que as multidões estiveram submetidas nos últimos séculos.

A esse respeito, temos já de remeter ao conceito de “ócio criativo” tal como o sociólogo do trabalho napolitano Domenico De Masi (2001) o tem utilizado, e que parece complementar essa atitude de coragem e esperança ante a transformação.

Finalmente, a teoria fourieriana do trabalho apaixonadamente atraente, portanto livre e variado leva-nos a visualizar a tarefa seguinte estabelecida neste nosso plano de pesquisa, que consistirá em considerar a contribuição de Paul Lafargue para o pensamento utópico sobre o trabalho na época contemporânea.

A diferença que aparece de saída e se impõe desde o primeiro olhar, entre essas duas reflexões críticas do trabalho no capitalismo e entre esses dois grandes líderes políticos e de idéias, ambos com distanciamento revolucionário do mundo industrial capitalista e grande talento utópico, não é apenas a de que um se posicionou ativamente dentro dos movimentos políticos revolucionários da época e o outro se situou, embora crítico e ativo, fora da política, do lado da utopia. A grande diferença que aparece está na maneira de prezar o trabalho em si mesmo.

Fourier, muito embora sua imensa criatividade tão original e sua forte vontade de transformação, foi ainda um homem do século XIX que, naquele momento da indústria e da ciência, batalhava pela transformação do trabalho em algo de belo e prazeroso, de acordo com as paixões, ou com os impulsos e os desejos, de cada um e de todos, isso quando o trabalho para as grandes multidões era efetivamente o centro da vida humana.

Para Lafargue, o desenvolvimento dos mecanismos aplicados è produção já possibilitaram a visualização de uma era em que de novo, como na cultura grega antiga, o valor do ócio poderia ser recuperado, no sentido da maior dignidade humana. Lafargue daria o passo para fora da ideologia do trabalho, esta que, embora do modo crítico e aberto para a riquíssima inovação, urde ainda no coração das utopias mais ousadas do século XIX, como seja no genial sonho da convivência de harmonia de Charles Fourier.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: suzanaalb@viavale.com.br

Recebido em: 23/05/2006
Revisado em: 27/11/2006
Aprovado em: 13/02/2007

 

 

1 Charles Fourier, um grande sonhador, texto publicado como anexo da primeira edição de Albornoz (1985).
2 A tradução de composite por composta seria sem dúvida mais conforme às tendências de nossa língua portuguesa; preferi traduzir por compósita, na tentativa de conseguir algo do estranhamento que a linguagem de Fourier persegue no francês.

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