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Cógito

Print version ISSN 1519-9479

Cogito vol.5  Salvador  2003

 

PERVERSÃO

 

A paixão pela miséria*

 

 

Ana Lúcia Sampaio Fernandes**

Círculo Psicanalítico da Bahia

 

 


RESUMO

A autora retoma a partir da biografia e obra de Cèline - Louis Ferdinand Destouches, médico e escritor francês, a questão levantada por Serge André de uma possível articulação entre o sofrimento melancólico e a perversão.

Palavras-chave: Melancolia, Perversão, Paixão.


 

 

A tristeza profunda faz parte da natureza humana e é tão antiga quanto a própria humanidade. Homero, no canto VI da Ilíada, narra a dor sentida por Bellerofonte, vítima do ódio dos deuses e condenado ao sofrimento e solidão, caracterizando como melancolia – excesso da bile negra, de acordo com a teoria dos humores, vigente na antiguidade. A tristeza era considerada uma “paixão da alma” nos tempos de Aristóteles (383-322 AC), São Tomás de Aquino (1225-1274 ) e Descartes ( 1596-1650). No século XIX, o psiquiatra francês Esquirol a denominou “Paixão triste”. Freud, nos textos pré-psicanalíticos, refere-se à depressão, depressão senil e melancolia e algumas vezes até depressão e melancolia surgem como sinônimos. Adolf Adler dá um destaque especial ao estudo da depressão, termo que até hoje é usado pela psiquiatria. É a doença do século XX, que em seu discurso se restringe a um distúrbio de humor, considerado como um dado orgânico, ou como estado da alma ou da consciência, uma falsificação, portanto, da antiga idéia de tristeza.

Depois de tantas alterações, será que na atualidade ainda se sabe o que é tristeza?

PAIXÃO de acordo com o Aurélio é martírio, sentimento ou emoção levado ao mais alto grau de intensidade, amor ardente. MISÉRIA é situação ou estado de grande sofrimento. A Paixão pela Miséria seria então em termos literais ? sentimento intenso (amor) por um estado de grande sofrimento.

A “Suma Teológica” de Tomás de Aquino fala da “misericórdia” como um tipo de tristeza, onde o sujeito toma para si a miséria sofrida por outrem, sendo assim, o inverso da inveja que antes de ser considerada uma virtude, ou sentimento de piedade, era fundamentalmente uma “paixão pela miséria”. As vítimas da desorganização social, os mendigos, os vagabundos, os fora do mundo, se apegam com ardorosa ambição a essa posição de miseráveis, quanto a de ser um líder. Para outros, a paixão pela miséria se aproxima da santidade, haja vista a biografia de alguns santos, que se tornam dejetos da humanidade para atrair a misericórdia divina. O melancólico não é um “deprimido”, mas um apaixonado por se depreciar, por se tornar imundo ao olhar do outro, por ser indigno de consideração e de amor, pedindo punição por seus erros.

Serge André em seu livro “A Impostura Perversa” escolhe, como excelente modelo de “paixão pela miséria”, a obra e vida do médico e escritor francês LOUIS FERDINAND DESTOUCHES (1894 – 1961), apresentado no meio literário pelo pseudônimo Louis Ferdinand Cèline ou Céline, cujo pseudônimo foi retirado de sua avó materna, o único ponto fixo de sua existência. Sua obra se caracteriza pela violência verbal e melancolia. Seus dois primeiros trabalhos foram considerados os mais importantes romances melancólicos do século XX (Morte a Crédito e Viagem ao Fim da Noite).

Os Detouches sustentavam um padrão de vida superior à sua condição financeira, tentando a todo custo dissimular a sua miséria, enquanto Cèline, tanto na sua obra quanto na sua vida, a expôs abertamente. A mentira, a doença e a miséria, presentes no discurso obsedante de seus pais, eram mais imaginárias que reais, como ficou confirmado em declarações e entrevistas posteriores. Isso marcou tanto Cèline, revestindo-se ele mesmo dessa aparência miserável.

A vida de Cèline até a emergência de sua prática literária foi uma sucessão de desilusões e descobertas de trapaças –a família, o exército, os pais substitutos, o heroísmo patriótico, a colonização da África, a invenção científica, a faculdade de medicina, a sociedade das nações, a medicina social - todas essas experiências sucessivas não passaram da mesma destituição do ideal.

Para suprir a carência do pai, buscou vários substitutos, todos decepcionantes.

Enquanto as pessoas falam do sentido da vida, Cèline fala do sentido da morte, mas apesar disso nunca quis matar-se.

O seu relacionamento com a figura feminina é caracterizado pela incapacidade de se fixar e criar laços afetivos, apenas tinha um comportamento sedutor e histérico banal, como se o erotismo para ele nunca pudesse ser concebido e vivenciado a não ser como uma fuga para adiante, e ele nunca saboreava o momento presente. A figura feminina é sempre degradada: “mulher decai feito cera, se estraga, derrete escorre, aperta-se, exuda por baixo!”. Segundo Serge André, no inconsciente de Cèline, a mãe - e a mulher em geral - é apresentada como uma espécie de vampiro que é preciso saciar com sangue, esperma e morte.

É impressionante a convergência entre a vida do autor e a sua obra, ambas marcadas por tendências contraditórias: de um lado a errância e o arrebatamento que caracterizou o seu estilo maníaco, e do outro lado o sentido melancólico traduzido pela imobilização na miséria. Para entender sua obra e perceber em que ela é uma resposta ao discurso do Outro, temos que lembrar que, logo após seu nascimento, foi afastado da mãe, que se julgava tuberculosa e temia contaminá-lo. A fantasia da mãe de ser fonte de infecção mortal, parece ter sido mais significativa para Cèline que o próprio afastamento desta em idade tão precoce, o que o levou a pensar ser esse o desejo dela (desejo do Outro). Nas questões de higiene e profilaxia, presentes em sua tese de doutorado em medicina, em sua obra, onde o doente e o médico eram ameaçados pela podridão e pelos micróbios, assim como o homem branco é ameaçado pela mestiçagem (judeu), parece haver vestígios desta questão.

O discurso do Outro em que Cèline cresceu e no qual teve de encontrar seu lugar como sujeito, foi marcado por duas observações imaginárias: a doença e a miséria e, pior que isso, a falsidade e a mentira: sua mãe se dizia tuberculosa e não era, seus pais se queixavam que eram pobres e realmente não eram, portanto a ameaça era mais imaginária que real. A avareza patológica que Cèline manifestou em toda sua vida, parece menos determinada pela falta de dinheiro, devido à infância miserável, do que pelo medo de possuí-lo ou de ser visto como possuidor. Essa impostura de miséria alegada pelos pais, talvez tenha sido a única máscara que Cèline nunca se dispôs a deixar cair.

Sua obra literária compõe-se de três fases, a dos romances “Morte a Crédito” e “Viagem ao fim da Noite”, a dos panfletos e a das narrativas do pós-guerra - Casse Pipe, Bagatelas por um massacre e Rigodon, seu último livro.

A primeira fase pode ser descrita como o momento da descoberta do desejo do Outro - intrinsecamente materno. No inconsciente celiniano, a mãe e a mulher em geral representam o objeto devorador, ou seja, aquele que é capaz de oferecer o objeto do seu desejo ao massacre ou à contaminação. Assim o desejo do Outro para Cèline é a pulsão de morte sob seu aspecto mais destrutivo. A carência da figura paterna ratifica essa cadaverização que o desejo materno impõe ao filho, o de ser precipitado na podridão, tanto na carnificina da guerra, da decomposição das carnes femininas, da putrefação da selva africana, da miséria como médico dos pobres. Na segunda fase da sua obra, a dos panfletos anti-semitas, Cèline passa a expulsar o objeto podre com o qual se identificou na primeira fase, assimilando-o ao judeu, ele mesmo conclamou a destruição desse objeto com uma intensa raiva maníaca, não menos sintomática. Mas supondo-se que essa expulsão do objeto lhe permitisse escapar do gozo mortífero do Outro materno, ele não podia evitar ser atraído pela impostura, o que fica comprovado na terceira fase de sua obra, quando ele tenta conciliar a podridão do objeto e a impostura do falo, numa nova identificação ? a do escritor perseguido e doente. Ele mesmo provoca e se oferece às perseguições. Se querem a sua morte, ele se faz de morto, oferecendo os seus restos ao carrasco.

A tristeza, a melancolia e o desespero de Cèline são revelados em toda sua dimensão aos 18 anos, quando se alista no exército, onde relata a revolta e decepção com o regimento para o qual foi destacado, denunciando que por trás da disciplina cruelmente severa, as regras morais não existiam. Esses episódios da vida do autor, no contexto da relação do sujeito com o semblante, com o véu das aparências e com a impostura, iriam tornar-se o tema central de sua obra literária.

“Morte a Crédito” é seu único trabalho no qual os dados de sua infância, adolescência e vida de médico são descritos de forma detalhada. Fala de suas experiências de garoto pobre ajudando a mãe no trabalho: “Durante o dia não era fácil. Quase sempre chorava uma boa parte da tarde. Recebia mais tapas do que sorrisos. Pedia desculpas por qualquer coisa. Durante toda a vida me desculpei por tudo”. Relata as cenas de fúria do pai contra a mãe e contra ele, dos poucos cuidados que ele tinha com o asseio corporal após as dejeções. “Meu pai, com medo que eu desse para ladrão, berrava como um trombone. Só porque, uma tarde, eu tinha comido todo o açúcar do açucareiro. Nunca se esqueceram daquilo. Ainda por cima eu tinha outro defeito, andava sempre de bunda suja, não me limpava direito, não tinha tempo. A minha desculpa era que a gente estava sempre com pressa.Também me lavava sempre mal, pois tinha medo dos tapas que me esperavam se eu me atrasasse e que eu queria evitar. Ficava sujo de fezes durante semanas. Eu reparava no cheiro, não chegava muito perto das pessoas”. O pai lhe dizia: “É sujo como um porco no chiqueiro! Não tem nem respeito próprio! Nunca vai conseguir ganhar a vida! Todos os patrões que tiver vão despedi-lo logo”. “Eu era o bode expiatório de todos os desgostos...”

De ternura, as únicas referências são quando fala da avó, da sua agradável companhia nos passeios. No auge das quatro grandes cenas sexuais do livro, o autor demonstra todo o seu horror, repugnância e fascínio, ao mesmo tempo, comparando a genitália feminina a uma espécie de cloaca viscosa ou uma bolsa obscura que desperta temor à idéia de rompê-la, de emporcalhar-se, de sufocar –se, como na carnificina da guerra, na umidade da selva africana. Na sua vida de médico em meio à miséria física do dispensário, no local onde viveu a sua infância miserável e em sua vida de escritor, Cèline não parou de perseguir a podridão, a miséria e a decomposição, identificando-se com elas, (introjeção do objeto) à maneira melancólica, ora expulsando-as à maneira maníaca.

A verdade imunda, diante da qual tudo não passava de trapaça, era a doença fantasiosa da mãe. No entanto ela apresentava artropatia do tornozelo que ocasionava um caminhar claudicante, que motivou a desidealização da mãe tornando-a objeto de repulsa. A isso ele opôs a figura perfeita da bailarina, revestida da função de um verdadeiro fetiche. Cèline assim se expressa: “continuo amando as bailarinas. É só isso mesmo que amo. Todo o resto me é horrível”... As duas mulheres que jamais amou realmente, mas com as quais compartilhou sua vida, eram bailarinas, sendo Lucette Almansor a última e a única com quem pode encarnar o ponto de apoio de uma fantasia.

A claudicação materna não é o único motivo da sua desidealização, mas é o sentido assumido por esta que importa. Sua mãe nunca o fez acreditar que o mundo era benigno e que ela fez um bem ao tê-lo concebido. Em “Morte a Crédito”, todo o desenrolar do romance visa restabelecer a verdade diante das mentiras da mãe. Essa mãe não é apenas desidealizada, mas destituída de seu poder de propor ao filho um ideal masculino,

Sua mãe joga um véu de amor idealizado sobre a verdadeira relação que a unira ao seu pai, nessa idealização mentirosa há um gozo sádico e ao mesmo tempo masoquista. De um lado, ela goza com a morte do marido, na medida em que seu anseio mais profundo é mandar o homem para a morte (mandar para a guerra), destruindo a figura masculina. De outro lado, ela goza com os espancamentos e maltratos do marido, por se fazer o dejeto de sua potência fálica. Diz Cèline: “Vou dar uma surra nela. Levanto a saia dela com fúria. Vejo o tornozelo fino como um pau, sem um pingo de carne em volta, a meia frouxa, que horror!...Eu sempre reparei naquilo. Dou-lhe uma boa vomitada em cima”... Com essa cena Cèline desmascara o segredo da potência da mãe (falo esquelético e infecto - o cadáver e a podridão - impostura) e vomita o seu ser. O retrato que Cèline faz de seu pai é um dos mais violentos da literatura. O próprio pai se oferece à cadaverização com que o desejo da mãe o ameaça e não pode servir de proteção a Ferdinand, quando esse se sente devorado pelo desejo da mãe. O pai avaliza o objeto causa desse desejo, apontando o filho como a própria decadência. É diante dessa perna bamba que pai e filho vão se debater até a morte, realizando o desejo materno oculto, o de que os homens (os dois, pai e filho) morram por ela, numa carnificina sangrenta. Para se identificar como filho, a partir daí, Ferdinand só pode identificar-se com esse falo trôpego, diante do qual o próprio pai abdicou. Mas, ao mesmo tempo que se identifica com o objeto (alvo) do desejo materno, o filho denuncia o objeto (causa) que o prende ao gozo. Ao expulsar o excremento, que conclui a cena, ele evidencia seu ser como objeto de gozo da mãe e dessa maneira, lhe mostra onde realmente se situa a raiz do seu desejo. Todo o drama do sujeito celiniano está entre o falo decaído como objeto do desejo e a podridão, como o objeto de gozo. Se o falo se apresenta irremediavelmente apodrecido, que resta a esse sujeito como identificação possível?

A perversão de Cèline é apontada pelos dois traços estruturais, o fato do desejo da mãe ser predominante, e o fato do falo imaginário estar do lado dela e não do pai. Diante da decadência do falo, ele cria o fetiche, isto é, as pernas musculosas e saltitantes das bailarinas se opõem à falta de firmeza evidenciada na claudicação. Do lado do objeto de gozo, a presentificação maciça da podridão como causa do seu ser para a mãe, impõe a Cèline recuperar sua dignidade de sujeito através do esforço que oscila perpetuamente entre o sacrifício (identificação com a podridão até garantir que o outro não o deseje) e a impostura.

A carência do pai real, principalmente na perversão, leva o sujeito a buscar um substituto, em qualquer um que apareça, e foi o que fez Cèline. Inicialmente após uma cena de violência com o pai, Ferdinad vai morar com um tio que o acolhe, mas ele diz “Eu precisava de um modelo!, como meu pai não servia, meu tio poderia ser o ideal”. Esse homem bonachão e demasiado maternal, não lhe serve. Cèline busca em outro pai ideal, mais autoritário, um misto de inventor, gênio científico, escritor e tresloucado, com quem passa a trabalhar e admirar, mas que se revela um escroque que se mete em inúmeras situações tragicômicas. Mais uma vez se estabelece a impostura da função paterna.

Freud, em “Luto e Melancolia” diz ? “No discurso auto depreciativo do melancólico, não há vergonha em exibir sua miséria, pelo contrário, há um sadismo em proferir sua condenação e um sentimento de triunfo”, é exatamente isso que constatamos ao ler Céline, um exemplar perfeito da “Paixão pela Miséria” e Serge André foi muito feliz na sua escolha.

 

Bibliografia

Freud, Sigmund.- Luto e Melancolia – ESB Vol. Rio, Imago 1986        [ Links ]

K. Abraham - Teoria Psicanalítica da Libido. Rio, Imago 1970        [ Links ]

S. André - A Impostura Perversa. Rio, J. Zahar, 1995        [ Links ]

Céline - Morte a Crédito. Rio, Nova Fronteira, 1982        [ Links ]

 

 

* Trabalho apresentado na XIV Jornada do Circulo Psicanalítico da Bahia, outubro de 2002.
**Médica, participante do Curso Básico de Técnica Psicanalítica do Círculo Psicanalítico da Bahia.


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