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Cógito
Print version ISSN 1519-9479
Cogito vol.7 Salvador 2006
PSICANÁLISE E CINEMA
Beleza americana: o mito do sonho americano
José Antônio Araújo *
Círculo Psicanalítico da Bahia
RESUMO
Filme que retrata a vida e a destruição de uma família da classe média americana, através da narrativa feita pelo seu personagem central, Lester Bunham, marido da estereotipada mulher, Carolyn, e pai de uma filha única adolescente. Carolyn representa a frivolidade da sua existência cultivando uma imagem onde o lema que ela adota do seu ídolo, o "Rei dos Imóveis", é: "Para ter sucesso, deve-se projetar uma imagem de sucesso o tempo todo". Além disso, Carolyn cultivava em seu jardim, a rosa que dá o título do filme, rosa a qual não tem espinho nem cheiro, uma perfeita metáfora sobre o vazio do americano comum.
Lester desperta a sua subjetividade, decide virar a mesa, joga tudo para o alto e muda radicalmente de vida. Só que o faz desajeitadamente. Todos desejam matá-lo e isso, já prenunciado pelo mesmo nas primeiras cenas, acontece no final. É a queda do mito do sonho americano, do "american way of life"
Palavras-chave: Sonho American, Mitos, Sucesso, Simulacro, Destruição.
Este filme foi lançado em 1999. Ganhou 5 Oscars: melhor filme; melhor diretor (Sam Mendes), cidadão britânico, tendo sido este o seu primeiro filme, já que até então só havia dirigido peças teatrais; melhor ator(Kevin Spacey); melhor roteiro original e melhor fotografia. Teve, além disso, três outras indicações para: melhor atriz(Annette Bening), melhor montagem e melhor trilha sonora.
Curiosamente, apesar de tratar-se de uma crítica contundente ao american way of life este filme é um dos preferidos do público americano, tendo estado entre os 10 mais do IMDB - Internet Movie Database por um longo período. Estranho, não é? Acho que o público americano mais uma vez ficou na superficialidade, não entendeu que a cada minuto do filme, novas revelações são feitas e o "sonho americano" é destruído tijolo por tijolo.
Vamos tentar ir mais fundo na nossa análise e atender o convite do cartaz do filme: "Look closer", Olhe bem de perto.
DO FILME
Todos os personagens parecem reais e vão se encaixando perfeitamente no desenrolar da trama. No entanto, Lester, magnificamente desempenhado por Kevin Spacey, é quem prende mais a nossa atenção, e eu diria mesmo que chegamos a nos identificar com ele, ou pelo menos vamos nutrir pelo próprio uma certa admiração. É por isso que vamos deter a nossa análise principalmente nesse personagem.
É preciso ter coragem para sair de uma situação de gozo incitada pela sociedade e partir para uma situação do sujeito desejante, mesmo que desajeitadamente como Lester faz, levando-o até a sua morte, cujo sentido analisaremos adiante. Porém, o que ele faz bem, e não conseguimos ignorar isso, é romper com essa falta que sentia ter dentro de si mesmo, uma falta e um sofrimento que muitos sentem e não têm coragem para assumir diante da sociedade. Esta, cheia de rótulos, um deles tão bem expresso pelo almofadinha Buddy Kane, perfeitamente caracterizado por Peter Gallagher, "o Rei dos imóveis", e totalmente absorvido por Carolyn: " Para ter sucesso, deve-se projetar uma imagem de sucesso o tempo todo". É a sociedade que valoriza sobretudo a imagem, o simulacro, a aparência. Lester decide virar a mesa, joga tudo para o alto e muda radicalmente sua vida. Dá as costas para o seu chefe insuportável, largando o emprego(quem nunca teve vontade de fazer isso?), desperta seu amor próprio retomando uma rotina de exercícios físicos, aceita seu lado rebelde e começa a fumar maconha, e ainda tenta seduzir a amiga da filha.
Coitada ela também, a estonteante ninfeta Mena, vendia uma imagem falsa de uma experimentada amante, uma fantasia desfeita na hora da relação sexual com Lester quando ela confessa que aquela seria a sua primeira vez.
Recordemos as primeiras cenas do filme: uma vista aérea de um típico bairro da classe média americana, com casas perfeitas, bem construídas e a voz em off de Lester dizendo, a medida que a câmara vai fechando:
" Meu nome é Lester Burham. Este é o meu bairro. Esta é a minha rua. Esta é a minha vida. Tenho 42 anos. Em menos de um ano estarei morto. É claro que ainda não sei disso. De certa forma já estou morto". Após levantar-se, vai tomar banho. Masturba-se e a voz em off aparece novamente para dizer: "Este é o melhor momento do meu dia".
Lá fora, Carolyn tratava e colhia as suas rosas, as belezas americanas que dão nome ao filme. Este tipo de rosa é muito cultivada nos EEUU e tem uma peculiaridade: ela não possui espinhos nem cheiro. Uma perfeita metáfora sobre o vazio do americano comum.
Lester pede para que observássemos que não era por acaso que as sandálias que Carolyn usava combinavam com o cabo da tesoura de jardim... Ela era capaz de tudo para manter as aparências.
A história da família Burham é a da própria destruição do ideal americano de quem tem uma casa bonita, com uma cozinha ampla, eletrodomésticos, decoração impecável com um sofá de seda italiana, limpa, num bairro bonito, o carro do ano. Uma família assim, aparentemente perfeita, só pode ser feliz. Mas, ali ninguém é feliz, porque no fundo a família inteira é uma falsidade de sentimentos. Na verdade esta família nem existe mais, ela já ruiu. Expressiva a cena do jantar formal, insípida, com "música de elevador ao fundo".
No carro, enquanto Lester adormece no banco traseiro, novamente a voz em off diz: "Elas (a mulher e a filha) acham que eu sou um perdedor e estão certas. Eu perdi algo. Não sei exatamente o que. Mas sabem de uma coisa: nunca é tarde para recomeçar".
Voltemos agora à questão da morte de Lester. Por detrás do seu assassinato cometido pelo Coronel Fitts, podemos explorar um outro significado da sua morte. Vamos fazer uma comparação entre a morte de Lester e o mito de Édipo. Este, ao casar-se com a sua mãe Jocasta, torna-se símbolo da adversidade do povo tebano. Vê-se obrigado a purificá-lo através de seu próprio sacrifício, ou seja, através do seu desterro e da sua própria morte. Esta morte serve como hipotético elemento de uma certa reestruturação da ordem social.
Beleza Americana assenta também nos mesmos axiomas que a tragédia de Édipo Rei. Aqui o desequilíbrio é causado pela ruína de um casamento regido pela superficialidade, por valores extrínsecos impostos pela sociedade. O equilíbrio é devolvido pela morte, pelo sacrifício do nosso herói Lester - Édipo que se recusa a viver a farsa. Sacrifício este formalmente celebrado pelo epítome da hipocrisia da sociedade americana, o Coronel Fitts. A morte de Lester representa, na sua beleza trágica, a mesma de Édipo, na morte do herói que purifica um povo. A grande diferença, é que aqui o nosso herói não é monarca, ele não simboliza o sacrifício de uma classe superior para salvar o seu povo. Aqui, ela é perversa e assume a forma de um de nós, de um cidadão normal, de um vizinho nosso.
Em Édipo o casamento trouxe a tragédia; em Beleza Americana a queda do casamento reencontrou essa mesma tragédia. Édipo conhece sua origem de uma maneira equivocada("méconnaît), julgando-se filho de Pólipo e Mérope, mas ao mesmo tempo põe a sua história em cena. Essa é uma vertente importante da questão do saber inconsciente para a psicanálise: é justamente essa dimensão de uma história censurada, esquecida, recalcada, excluída da consciência do sujeito, mas que, todavia, é determinante de seus atos que dá contornos característicos ao que chamamos inconsciente.
Lester traz em si um enigma: quem era ele? Sabia que não era aquilo que os outros queriam que ele devia aparentar ser. Tal qual Édipo ele questiona a sua origem, o seu papel, e deixa-se atravessar pelo mito do sonho americano, experienciando-o.
DO MITO
Primeiramente vamos discorrer um pouco sobre o significado da palavra, o que se entende por mito. Hoje em dia ela é justamente empregada como algo que se opõe à verdade, à certeza, à exatidão científica, sendo, portanto, sinônimo de falso, de crença ou superstição, de engano - em suma, de algo que deve ser descartado em prol da razão, de um conhecimento voraz e profundo. Mýthoi em grego significa fábula. Platão já reprovava as fábulas, os relatos fantasiosos de Homero, de Hesíodo e de outros poetas na defesa do discurso racional, filosófico e, portanto, mais verdadeiro.
Em "A Interpretação dos Sonhos"(1900), obra fundante do método psicanalítico, o mito figura como uma fonte ímpar de reflexão e inspiração para Freud elaborar suas teorias acerca do funcionamento psíquico. Aristóteles nos chamou a atenção da ambigüidade em que está imerso o significante mýthos na língua grega. Ao mesmo tempo em que o termo se refere a uma fabulação, a um relato, a uma estória, ele também concerne ao arranjo desses fatos fabulosos. Ou seja, o mito, segundo esse filósofo, não é algo somente da ordem do significado, do conteúdo, mas igualmente diz respeito a como esse significado se constrói, a uma lógica que preside à articulação significante.
Somos confrontados por questões que gravitam em torno das origens, do sujeito, do mundo, do sujeito no mundo. Disso se ocupam os mitos, a psicanálise e a História. Sobre o conceito desta última, Walter Benjamim escreveu:
"... O passado traz consigo um índice misterioso, que o impele à redenção. Pois não somos tocados por um sopro do ar que foi respirado antes? Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram?... Se assim é, existe um encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e a nossa..."
DO MITO ORIGINAL AMERICANO
Os EEUU foram a primeira nação do mundo que se edificou com base na razão e não no espírito guerreiro. Isto foi em 1776, quando as treze pequenas nações coloniais decidiram-se agir no interesse comum, emancipando-se da Inglaterra, sem desconsiderar os interesses particulares de cada uma delas. Esta é a base da democracia, do sonho americano: o reconhecimento e aceitação do outro e de seus direitos. Supõe a aceitação ao mesmo tempo da igualdade e da diferença, de uma igualdade enriquecida pela diferença. Na Declaração de Independência, redigida por Thomas Jefferson e outros, logo no início, podemos ler:
"Todos os seres humanos nascem iguais e são dotados pelo Criador dos mesmos direitos inalienáveis: a vida, a liberdade, a procura da felicidade".
O GRANDE SELO
Vamos agora analisar o mito do Grande Selo- The Great Seal (contido na nota de um dólar americano a partir de 1935 - Roosevelt como Presidente)
"In God We Trust" - Em Deus Nós Confiamos.
Esse Deus era um Deus da razão, não dissociado da mente humana. A razão coloca você em contato com Deus. Todos os homens são dotados de razão. Esse é o princípio fundamental da democracia. Como toda mente é capaz de adquirir um conhecimento verdadeiro, não é preciso que uma autoridade especial, ou uma revelação especial, lhe diga como as coisas deveriam ser. "The Great Seal" - O Grande Selo. Estabelecido em 20.06.1782.
Há uma infinidade de símbolos e de significados esotéricos a seu respeito. Não podemos esquecer que uma boa parte dos fundadores da nação americana eram maçons. Um deles é o seguinte:
A pirâmide tem quatro lados. São os quatro pontos cardeais. Há alguém neste ponto, alguém naquele, alguém naquele outro. Localizando-se perto da base da pirâmide, a pessoa estará de um lado ou de outro, mas quando se chega ao topo, ao vértice, os pontos se reúnem em um só e então o olho de Deus se abre. Há por cima da pirâmide os raios que iluminam, um símbolo heráldico que significa a Glória. A pirâmide foi desenhada com treze estratos.
"Annuit Coeptis" (13 letras)- Ele(Deus) sorriu às nossas realizações.
"Novus Ordo Seculorum" - Nova Ordem nos Tempos(no Mundo).
A Europa encontrava-se dizimada em guerra. É o que representa o terreno atrás da pirâmide, o caos, o deserto. Contrariamente, a prosperidade é representada pela vegetação à frente da pirâmide, o Estado recém criado em nome da razão, não em nome do poder, e o resultado é o florescimento de uma nova vida.
"A Águia da Cabeça Branca".
É o maior pássaro existente nos EEUU e representa a liberdade.
Na sua garra direita a águia tem um ramo de oliveira (os louros da paz) contendo treze folhas, para onde ela olha. É desse modo que os idealistas, fundadores dos EEUU, gostariam que o seu povo olhasse, mantendo a diplomacia como a base de suas relações com as outras nações do mundo. Mas, a águia mantém treze flechas na outra garra, no caso de os louros não funcionarem, ou seja, estavam prontos a se defender. Isto foi baseado nos dizeres "Bello vel Pace Paratus" - Preparados para a Guerra e para a Paz.
No seu peito, um escudo de defesa contendo seis listas vermelhas e sete brancas, perfazendo um total de treze.
No seu bico, a Águia segura uma fita com os dizeres "E Pluribus Unum"(contém também treze letras) que significa No Meio de Muitos, Apenas Um(Out of Many, One)
Acima de sua cabeça, uma constelação contendo treze estrelas, uma outra alusão clara às treze colônias. Esta constelação é iluminada por raios que atravessam uma nuvem, representando também a Glória.
No seu discurso de despedida, George Washington disse:
"Como resultado de nossa revolução, libertamo-nos de qualquer envolvimento com o caos da Europa".
Sua última palavra foi no sentido de que a sua nação não se engajasse em alianças internacionais intervencionistas. Esse seu desejo foi mantido até a Primeira Grande Guerra, quando os EEUU desconhecendo a sua Declaração da Independência, reuniu-se à Inglaterra no propósito de conquistar o planeta. Politicamente, historicamente, os EEUU são agora membros de um dos lados da disputa. Não representam mais aquele princípio do olho lá em cima. Todas as suas preocupações têm a ver com militarismo, conquistas imperiais, economia e política, e não com a voz e o som da razão.
Pergunta rápida: com Bush, para que lado a águia está olhando?
CONCLUSÃO
Na primeira parte da nossa exposição, correspondente à análise do filme, vimos o esgarçamento do tecido social norte americano, representado pelas famílias Burham e Fitts. Trata-se da negação do mito, ou melhor dizendo, a imposição de um mito que não se sustenta. Prevalece o discurso capitalista que impõe, ampara e legitima a sociedade de consumo, a qual aliena e oprime o sujeito.
Na segunda parte, resgatamos a essência do mito originário, o ideal americano tão bem engendrado por Thomas Jefferson, Georges Washington e outros. Se este mito ainda estivesse vivo, aí sim, daí poderiam eventualmente(não obrigatoriamente) emergir o self made man, o american dream, o american way of life.
Uma grande curiosidade foi despertada em mim e não encontrei resposta: porque hoje o americano tem tanta ojeriza ao número treze?
BIBLIOGRAFIA
AZEVEDO, Ana Maria Vicentini Ferreira de. Mito e Psicanálise Jorge Zahar Editor Ltda. Rio de Janeiro, 2004 [ Links ]
CAMPBELL, Joseph. O Poder do Mito - Entrevistas com Bill Moyers. Editora Palas Athena. São Paulo, 2000 [ Links ]
CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil Faces. Editora Pensamento-Cultrix Ltda. São Paulo, 2002 [ Links ]
ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. Editora Perspectiva S.A. São Paulo, 2002 [ Links ]
* Aluno concluinte do Curso Básico de Teoria Psicanalítica do Círculo Psicanalítico da Bahia. Trabalho apresentado em 17 de agosto de 2005, por ocasião da 2ª Semana de Cinema e Psicanálise, cujo tema foi O Homem e Seus Mitos: Uma Visão Psicanalítica.