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Cógito
Print version ISSN 1519-9479
Cogito vol.12 Salvador 2011
A transitoriedade e o bem-dizer
The transcience and the well-said
Sonia Campos Magalhães*
Associação Científica Campo Psicanalítico
RESUMO
No texto de Freud A transitoriedade (1915), fomos buscar os elementos para a construção deste trabalho. Freud observa, neste seu artigo, duas tendências psíquicas que o ser humano apresenta diante da constatação da impossibilidade do existir sem perecer: “o doloroso cansaço do mundo” e “a rebelião contra o fato consumado”. Este trabalho vem situar-se em torno dessas posições que remetem à “perda do objeto” — segundo Freud, e ao “universo mórbido da falta” — segundo Lacan. Trabalhando essas questões, buscamos fazer uma articulação com a ética da psicanálise, que revaloriza o desejo e propõe uma saída do mal- dito ao bem-dizer.
Palavras-chave: transitoriedade; psicanálise; objeto perdido; falta; tristeza; ética da psicanálise.
ABSTRACT
This work is based on Freud´s text The transience (1915). Freud points out in this essay two psychological tendencies that human beings have on the realization of the impossibility of existence without perishing, "the painful weariness of the world" and "the rebellion against the fait accompli." This work has the focus on those positions that refers to "lack of the object" — according to Freud, and "morbid universe of missing" — according to Lacan. Working on these issues, we make a links with the ethics of psychoanalysis, which revalues the desire and proposes a way out of bad-said to well-said.
Key words: transience; psychoanalysis; lost object; lack; sadness; the ethics of psychoanalysis.
Em um texto de Freud que, em alemão, recebeu a denominação de Vergänglichkeit e, em nossa língua, na tradução de Paulo Cesar de Souza, aparece como “A transitoriedade”, fomos buscar elementos para a construção deste trabalho, apresentado neste momento em que o Círculo Psicanalítico da Bahia, ao comemorar os seus 40 anos de existência, propõe como tema para estudo e debates nesta Jornada “O tempo da psicanálise”.
O texto “A transitoriedade” foi publicado em 1916. É interessante notar que Freud retomou a ideia nuclear deste trabalho em uma das suas obras mais importantes – “Luto e melancolia” ([1915]1917).
Comecemos, então, trazendo o que Freud nos diz no início de “A Transitoriedade”:
Algum tempo atrás, fiz um passeio por uma rica paisagem num dia de verão, em companhia de um amigo taciturno e de um jovem poeta, mas já famoso. O poeta admirava a beleza do cenário que nos rodeava, porém não se alegrava com ela. Perturbava-o o pensamento de que toda aquela beleza estava condenada à extinção, pois desapareceria no inverno, e assim também toda a beleza humana e tudo de belo e nobre que os homens criaram ou poderiam criar. Tudo o mais que, de outro modo, ele teria amado e admirado, lhe parecia despojado de valor pela transitoriedade que era o destino de tudo.1
Freud observa que tal preocupação com o caráter perecível do que é belo e perfeito pode dar origem a duas diferentes tendências psíquicas: uma conduziria ao “doloroso cansaço do mundo”— mostrado pelo jovem poeta —, e a outra, à “rebelião contra o fato constatado”.
Em relação à segunda posição, o texto de Freud nos leva a poder escutar a voz de quem brada:
Não, não é possível que todas essas maravilhas da natureza e da arte, do nosso mundo de sentimentos e do mundo lá fora, venham realmente a se desfazer em nada. Seria uma insensatez e uma blasfêmia acreditar nisso. Essas coisas têm de poder subsistir de alguma forma, subtraídas às influências destruidoras.2
Ao nos dizer que essa exigência de imortalidade seria um produto dos nossos desejos, Freud vai observar que, por mais doloroso que seja constatar que tudo perece, há de se admitir que a vida é transitória e que a exigência de imortalidade não pode reivindicar um direito à realidade.
Ao longo desse artigo de Freud, podemos observar a extrema dificuldade que têm os seres humanos em lidar com a questão da incompletude, da impossibilidade de existir sem perecer. Vemos que Freud se refere a seu taciturno amigo e ao jovem e talentoso poeta como “espíritos sensíveis”. Não obstante, tanto para um quanto para o outro, a transitoriedade, a perecibilidade, retiravam o valor da vida e, ali onde se poderia encontrar a alegria, vinham-se colocar a tristeza e a revolta.
Freud não se dispôs a discutir com o jovem poeta e seu amigo taciturno a respeito da transitoriedade que se coloca para todos. Dispôs-se, no entanto, a negar ao poeta que o caráter perecível do belo implicasse sua perda de valor. A seu ver, pelo contrário, isso seria um aumento do seu valor. “A qualidade do perecível comportaria um valor de raridade no tempo”, afirma Freud acrescentando, ainda, que “[...] as limitadas possibilidades de gozar desta beleza a tornavam ainda mais preciosa”3.
A leitura desse texto de Freud nos levou de volta a um momento em que, estudando o Seminário de Lacan A ética da psicanálise,nos interessamos por um artigo de Hélio Pellegrino4 no qual ele vai lembrar que, diante da angústia da morte e do enigma do existir, o humano reage e revela o seu maior problema - sua questão existencial. Aí estaria o ponto a partir do qual a prática filosófica viria se situar.
O artigo citado nos remete a Nietzsche em O nascimento da tragédia5 quando o grande poeta e filósofo alemão assinala ser o povo grego excepcionalmente dotado para o sofrimento e para a intuição da tragédia da existência. Ele vai observar, também, que esta sensibilidade pode-se tornar, ela própria, uma ameaça à vida. Atingido o ponto máximo da dor de existir, o humano deverá encontrar respostas para lidar com o sofrimento.
Nietzsche tenta ilustrar esse problema recorrendo à forma com que Sileno – suposto possuidor da inspiração profética – respondera ao rei Midas quando este lhe impusera declarar o que melhor conviria à espécie humana. A resposta de Sileno ao rei Midas teria vindo desta forma:
Miserável rebento de uma raça efêmera, filha do acaso e da pena, por que me obrigas a dizer o que não tens o menor interesse em escutar? O bem supremo te é absolutamente inaccessível: é não ter nascido, não ser, ser nada. Em compensação, o segundo dos bens tu podes ter: é morrer logo.6
Para Nietzsche, poder-se-ia encontrar aí a questão que dera origem à arte grega e, em particular, à tragédia grega. Duas teriam sido as respostas encontradas pelos gregos em relação ao que diz Sileno ao rei Midas: uma delas seria a dimensão dionisíaca, com o Dionísio arcaico da orgia, da desmesura, da desordem, que levaria à volta à natureza, com todas as suas consequências; a outra estaria com o deus da bela aparência, do sonho — Apolo. Supunham os gregos que o homem, nesta segunda dimensão, poderia curar-se do horror à existência e assim, as paixões — o amor e o ódio, a violência e a piedade, a vingança e a transgressão — seriam revestidas de uma dignidade que viria servir à vida, tornando-a desejável. Com Apolo, portanto, a sentença de Sileno passaria por uma inversão e a pior desgraça seria o não ter nascido e o pior dos males, o morrer depressa.
Se, diante da angústia da morte e do enigma de existir, a prática filosófica vem situar-se, como vem a prática analítica, a psicanálise, aí se colocar?
Acreditamos que Freud, ao escrever o seu texto “A transitoriedade”, nos leva a indagar: como a psicanálise vem situar-se em face do que atinge o humano no âmago do seu ser, enquanto ser de fala, habitado pela linguagem? Como lidar com o furo, com a incompletude? Como se situar diante do “universo mórbido da falta”7?
Se formos a Freud, nos seus “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”8 , veremos que ele se refere a uma situação de desamparo, de dor de existir, que se vem colocar para o ser falante. Diferentemente de Nietzsche em O nascimento da tragédia, Freud vai colocar aí não o homem sensível, o grego antigo, mas a criança. Freud quer mostrar que o encontro com o mal-estar se dá muito cedo, na infância.
Ante o enigma da existência, a criança freudiana vê-se desafiada a encontrar saídas e, como um pequeno lógico, deverá buscar respostas para os desafios que lhe são colocados. Nas suas perguntas sobre os enigmas do sexo, do gozo e da morte, a criança inventa teorias, que, embora falsas, comportam um fragmento de verdade. Segundo Freud, não é de maneira arbitrária que a criança encontra suas teorias. Elas lhe vêm por força da pulsão, conceito de Freud que Lacan definiu como “[...] o eco no corpo pelo fato que há um dizer”, ressaltando que “[...] esse dizer, para que ressoe, consoe, é preciso que o corpo lhe seja sensível. E é um fato que ele o é”9 .
Na articulação de uma verdade – obscura, insondável –, o mito virá oferecer-se ao ser falante, trazendo o seu suporte enquanto ficção. Este trabalho, em face do encontro do que Lacan chamará o Real, não se faz sem luto. Para tocar esses pontos de angústia, de excesso, de gozo, a sensibilidade pode, ela própria, tornar-se ameaça à vida.
O Me phynai, o melhor não ser, tem, é verdade, uma dimensão trágica, mas a psicanálise aponta para outra direção. Onde encontramos o melhor seria não existir se tenho de ser para a morte, a psicanálise quer mostrar que esta morte não é a morte do corpo, mas a que é equivalente à impossibilidade da relação sexual.
Segundo a teoria psicanalítica, quando se está acometido pelo “doloroso cansaço do mundo”, pela revolta, pelo desespero, a queixa seria: se é pra viver na impossibilidade da relação sexual, melhor não ser.
O “doloroso cansaço do mundo” do qual Freud nos fala em “A transitoriedade”, nos leva à acídia definida por São Tomás de Aquino10 como tristeza, tédio. E é interessante notar que o cansaço, segundo Emmanuel Levinas, não provém do esforço: Cansar-se, é cansar-se de ser11 . Poder-se-ia dizer que “o doloroso cansaço do mundo” estaria ali onde o tédio da vida traz consigo lassidão, preguiça, falta de interesse, abatimento, modulando as manifestações de um desejo que se esgota.
Em seu Seminário 7: A ética da psicanálise12, Lacan afirma que a análise revaloriza o desejo no princípio da ética. Não ceder de seu desejo – esta seria a vertente da resposta da coragem que se vem situar diante da outra vertente: a da covardia, da melancolia e da tristeza.
Em Televisão, retomando Spinoza, Lacan quer demonstrar a correlação entre a tristeza e uma exigência ética: a do bem-dizer. Ele vai situar a depressão como covardia moral e afirma que ela se coloca, em última instância, a partir do pensamento, ou seja, do dever de orientar-se no inconsciente, na estrutura. Mesmo ante o impossível de dizer, a opção na vertente da coragem leva a uma ética: do mal-dito ao bem-dizer.
À tristeza, Lacan vai opor uma virtude: o gaio saber. Para melhor nos ensinar a respeito, afirma que essa virtude consiste: “[...] não em compreender, morder no sentido, mas em raspá-lo o máximo possível, sem que ele se torne um engodo para essa virtude”13 .
É neste momento que Lacan introduz a pergunta sobre a felicidade: “[...] onde está, em tudo isso, o que traz felicidade, a boa sorte”?14
É, também, nesse instante, que ele vai invocar Dante e dizer que, sobre isso, o poeta pode nos ensinar: “um olhar, o de Beatriz, ou seja, um tantinho de nada, um batimento de pálpebras e o dejeto delicioso que disso resulta” 15.
Referências
AQUINO, S. T. Sobre o ensino: os sete pecados capitais. Tradução e estudos introdutórios de Luiz Jean Lauand. São Paulo: Martins Fontes, 2004. [ Links ]
FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade [1905]. In: ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Tradução de Jorge Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1976. v.V. [ Links ]
FREUD, S. A transitoriedade [1916] In:______. Obras completas. Tradução e notas de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. v.12. [ Links ]
FREUD, S. Luto e melancolia [(1915) 1917]. In: ______. Obras completas. Tradução e notas de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. v.12. [ Links ]
LACAN, J. Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia. In: ______. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. [ Links ]
LACAN, J. O Seminário, Livro 7: a ética da psicanálise. Tradução de Antônio Quinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007 a. [ Links ]
LACAN, J. O Seminário, Livro 23: o sinthoma. Tradução de Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007b. [ Links ]
LACAN, J. Televisão. Tradução de Antonio Quinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993. [ Links ]
LEVINAS, E. Da existência ao existente. Tradução de Paul Albert Simon e Ligia Maria de Castro Simon. Campinas, São Paulo: Papirus, 1998 (Coleção Travessia do século). [ Links ]
NIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia. Tradução de J. Guinsburg, São Paulo: Schwarcz, 1999. [ Links ]
PELLEGRINO, H. O secreto coração de Hipólito In: ______.A burrice do demônio. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. [ Links ]
* Psicóloga. Psicanalista. Analista Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil – Fórum Salvador. Membro da Associação Científica Campo Psicanalítico – Salvador.
1 FREUD, S. A transitoriedade [1916] In:______. Obras completas. Tradução e notas de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. v.12, p.248.
2 Id., loc. cit.
3 FREUD, S. A transitoriedade [1916], op. cit. p 249.
4 PELLEGRINO, H. O secreto coração de Hipólito In: ______. A burrice do demônio. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
5 NIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia. Tradução de J. Guinsburg. São Paulo: Schwarcz, 1999.
6 Id., ibid., p.36.
7 LACAN, J. Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia. In: ______. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 138.
8 FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade [1905]. In: ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Tradução de Jorge Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1976. v.V.
9 LACAN, J. O Seminário, Livro 23: o sinthoma. Tradução de Sérgio Laia, Revisão André Telles Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007b. p.18-19.
10 AQUINO, S. T. Sobre o ensino: os sete pecados capitais. Tradução e estudos introdutórios de Luiz Jean Lauand. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p.92-93.
11 id., ibid, p.37.
12 LACAN, J. O Seminário, Livro 7: a ética da psicanálise. Tradução de Antônio Quinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007 a.
13 LACAN, J. Televisão. Tradução de Antonio Quinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993. p.44-45.
14 Id., ibid., p.45.
15 Id., loc.cit.