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Cógito
Print version ISSN 1519-9479
Cogito vol.12 Salvador 2011
Tempo, tempo, tempo, tempo: o tempo na análise em tempos líquidos
Time, time, time, time: the time in psychoanalysis in liquid times
Rui Maia Diamantino*
UNIFACS
RESUMO
Freud, em seu texto “Análise terminável e interminável” de 1937, discute sobre a duração de uma análise e as possibilidades de abreviar ou não a sua duração, já que ele reconhece “a duração inconvenientemente longa do tratamento analítico”. Por sua vez, Lacan, nos Escritos, discute a estrutura temporal do processo lógico imbricada na produção dos significantes, especificando a modulação do tempo no movimento do sofisma: o instante de olhar, o tempo para compreender e o momento de concluir. Esses tempos guardam correlação com os três tempos da análise em Freud: recordar, repetir e elaborar. Há, portanto, tempos que constituem a duração de uma análise. Zygmunt Bauman propõe o conceito de “tempo líquido”. Neste tempo, no qual há uma fagocitose dos tempos no cotidiano da vida humana, tempo marcado pelo realtime do mundo cyber, cuja imediaticidade torna-o zero entre demanda e resposta, o tempo do inconsciente torna a análise um dispositivo factível para a subjetividade constituída na contemporaneidade? Este texto empreende algumas tentativas de elucidar tal questão, fundamental, ao ver do autor, para situar a Psicanálise na cultura líquida.
Palavras-chave: cultura líquida; tempos líquidos; tempo lógico; análise; psicanálise.
ABSTRACT
Freud in his article “Analysis terminable and interminable”, 1937, discusses the duration of an analysis and the possibility of shortening the duration or not, as it recognizes "the inconveniently long term analytic treatment." Lacan, in Écrits, discuss the temporal structure of the logical process embedded in the production of significant, specifying the time modulation of the movement of sophistry: the time to look, the time to understand and the moment to conclude. These times are correlated with the three times of analysis proposed by Freud: to remember, to repeat and to elaborate. So there are times that the duration of an analysis. Zygmunt Bauman proposes the concept of "liquid time". At this time, in which there is phagocytosis of time in everyday life, a realtime marked by the cyber environment, immediacy which makes it zero between demand and response, the time of the unconsciousness makes the analysis feasible for a device made in contemporary subjectivity? This paper undertakes a few attempts to elucidate this question, fundamental, in the author's view, to put Psychoanalysis in “liquid culture”.
Key words: liquide culture; liquide time; logical time; analysis; Psychoanalysis.
Neste trabalho, tomo a concepção de tempo em algumas dimensões que possam me permitir elaborar a questão da análise neste momento específico da alta modernidade ou, como preferem alguns, da pós-modernidade. Há um tempo que se pode conceber como o tempo do processo de construções em análise, sintetizada no texto de Freud “Recordar, repetir e elaborar”1 , que considero seminal. Há um tempo que interpreto como correlato ao do texto freudiano citado, expresso no texto de Lacan “O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada”2 . Porém, farei uma apropriação desse tempo, aplicando-o ao tempo que medeia a demanda daquele que nada sabe sobre o seu desejo para a condição de um saber sobre um desejo que está sempre na condição de vir-a-ser sabido, quando a demanda que instaurou a transferência torna o sujeito suposto saber, o analista, na condição de dejeto, ou do que nada sabe e nunca soube, senão pelo engano de um semblante. Este será, então, precariamente aqui denominado de tempo do desejo a vir-a-ser sabido, que compreende o instante de olhar, o tempo para compreender e o momento de concluir3 . Há o tempo de término de uma análise que implica, por sua vez, uma possibilidade de continuidade, desde que, por se passar numa superfície, qual seja, a do inconsciente, deixa uma abertura na dissolução da neurose de transferência, como propõe Freud em “Análise terminável e interminável”4 . A esse tempo, denominarei de tempo de indeterminação do sujeito da análise.
Englobando esses tempos específicos da análise, incluo a noção de tempo líquido de Bauman5 , construto psicossociológico que acentua a dimensão subjetiva da contemporaneidade, colocando em questão o processo analítico da tradição freudiana e lacaniana, desde que, como saber eminentemente idiográfico, a clínica psicanalítica se funda na experiência direta do analista com o sujeito do inconsciente do momento da análise. Este, por sua vez, acima da condição de uma mera abstração teórica destacada do tempo, ao contrário, institui-se pela vívida experiência sócio-histórica, vale dizer, cultural, daquele que demanda uma análise.
Começando pelo conceito de Bauman trago os versos de Caetano Veloso na sua “Oração ao tempo”:
Ainda assim acredito
Ser possível reunirmo-nos
Tempo tempo tempo tempo
Num outro nível de vínculo
Tempo tempo tempo tempo...
O tempo líquido é aquele que reúne sem vínculo, sem proximidade, sem intensidade e sem implicação as pontas das interações humanas. Bauman aventa o tempo zero da infoway, do enlace cyber, que prescinde de presença e de papéis, como o paradigma do tempo líquido. Negócios, decisões, amores e gozos são intermediados pela rede de computadores – a Internet, ou Net, para os mais íntimos – de sorte que as fronteiras se diluem, o tempo de ser de cada cultura, o momento de ordenar a informação e processar o sentido se esboroam ante a lógica da imediaticidade. Como diz Caetano em outra obra sua e com outras conotações, porém consentâneas com o que busco construir: o Haiti é aqui. Mas também o são Cingapura, Nova York, Burundi, Moscou ou Nepal. Basta um clique e um endereço web para sentirmo-nos globais, estarmos em qualquer parte.
Toda e qualquer transação que vai desde triviais necessidades domésticas até a aquisição de um truste financeiro ou deposição de governos e gabinetes políticos, passa, se não necessariamente, pelo menos, costumeiramente, pela infoway, vide os últimos acontecimentos relacionados ao Weak Leak, denunciando os movimentos governamentais norte-americanos. Estados e nações ficam destituídos de suas singularidades, logo, também seus povos e indivíduos, polarizados que são pela noção globalizante determinada pelas leis do mercado neoliberal. Este, por seu turno, é ávido em tamponar faltas e exceder na abundância da oferta pelo crédito fácil. Que nada nos falte! Amém! Essa a cartilha do jogo global promovido para a felicidade da Nova Ordem Mundial.
Onde ficam, então, as identidades e as diferenças, se nos tornamos cidadãos do mundo, sem fronteiras demarcadas? Onde ficam os costumes locais se eles se tornam componentes de uma massa informe chamada “mundialização”?
Onde se situam a memória e o esquecimento, se a parafernália eletrônica nos possibilita a imagem intrauterina e a fieira interminável de fotografias do instante do nascimento, da primeira mamada, dos primeiros passos, dos primeiros cocô e xixi, da primeira aula na escolinha? Daí por diante, produz-se a sequência interminável de imagens de momentos em que a função do recordar pela via da significação dos eventos torna-se desnecessária.
O real dos registros imagéticos em alta definição gerados pelos celulares, filmadoras, máquinas fotográficas de última geração, etc., faz o papel da memória e do “imajário”6 sem a mediação da marca mnemônica associada ao significado. O S1 fica quase à frente da barra, e a clivagem que caracteriza a Verdrängung se vê neutralizada pela exatidão de uma memória material. Faz-se, assim, uma “cirurgia plástica” onde desaparece o umbigo dos sonhos ou do trauma (enquanto marca). A possibilidade de construção de um mito e todas as vacilações que promovem o advento do sujeito do inconsciente em busca do que não é sabido, tendo por base o par recordação-associação, diminui na medida em que todos os anos da vida, os momentos mais e menos infelizes, tudo está à mostra no HD, no CD, no pendrive ou qualquer outro tipo de memória cyber auxiliar.
Onde situar o recalque se o chat e as redes sociais proporcionam o anonimato onde o gozo pode imperar para além da fantasia? Onde situar a falta, correlata ao recalque, se o clique do mouse oferece o objeto que tampona, sempre precária e temporariamente, facilitando o impulso à adicção?
Bauman coloca um contexto contemporâneo na sua proposição do tempo líquido, no qual, liquefeita essa dimensão tão importante para o funcionamento do sujeito, abole-se algo necessário para a formação dos vínculos e o Outro se torna apenas a “coisa” a mais que é devorada pelo imediatismo. Porém, Bauman também ressalta que esse assomo da globalização não se impõe sem custos. Há reações localizadas que, ante a ameaça da destruição das barreiras das diferenças, originam como sintomas, as xenofobias, as guerras urbanas e a violência intrassocial. Originam, também, o sentimento de desamparo, sim, o desamparo freudiano, já que se instaura o mal-estar na cultura como resultante inevitável deste momento.
Ora, o desamparo freudiano, entre outros aspectos, se situa no campo da perplexidade e da interrogação ante o que é inevitável, incontrolável ou incompreensível, vale dizer, sem possibilidade de significação e significantização para o sujeito. Penetremos, então, no campo da análise, como uma possibilidade de responder a esse sujeito desamparado o que lhe propõe o enigma do seu problema. Mas será que a análise, ante o quadro delineado por Bauman aí se aplica, ou seja, pode acolher a demanda a partir do tempo zero da infoway que delineia um écran do sujeito contemporâneo? É possível a formação de um vínculo num outro nível, que não o da dinâmica cyber, que reúna o que demanda e o que escuta?
Em “Recordar, repetir e elaborar” Freud estabelece que a análise se contenta em estudar tudo o que esteja presente, de momento, acentua, na superfície da mente do analisante. “Presente” e “de momento” são termos que não dão margem a qualquer dúvida sobre a importância do tempo para que se proceda ao trabalho da interpretação e da resistência. Esse tempo do processo de construções em análise compreende o intervalo no qual se instaura a neurose de transferência e, ainda, na posição daquele que faz-de-conta que sabe, o analista, acompanha o paciente no caminho de tratamento até a apropriação, por este, de um saber sobre o seu desejo.
O vínculo da transferência faz-me retomar os versos de Caetano:
O que usaremos prá isso
Fica guardado em sigilo
Tempo tempo tempo tempo
Apenas contigo e comigo
Tempo tempo tempo tempo...
Esse vínculo que se situa fora da lógica cyber e do tempo da infoway suscita o esquecido, conforme o texto de Freud.
O tempo recobre, encobre e distorce as situações que fizeram as marcas no sujeito. São essas marcas advindas do desejo do Outro em certo instante da ex-sistência que constrói a formulação fantasmática $<>a e que sustenta a demanda de uma análise. Essas marcas precisam de uma passagem de tempo, que não pode ser zero, imediata, mas mediada pela apropriação de sentidos e significados que fazem da marca um fantasma.
Freud demonstra que o recordar na transferência muitas vezes não é o mero resgate da lembrança. Não se trata de uma remontagem de uma dimensão pictórica. A presença do analista e a resistência levam o paciente a retomar o recalcado sob a forma de uma atuação, e é nessa atuação que o que foi encoberto se desvela pela repetição. Recordar torna-se repetir. Diz Freud7 : “[....] evocar um fragmento da vida real [....]”.
Um tempo se faz necessário para que a repetição na transferência seja superada e, ao longo da trajetória familiar, as lembranças do esquecido apareçam sem dificuldades, possibilitando ao paciente a elaboração da resistência. Esperar e deixar as coisas seguirem seu curso não pode ser evitado e nem apressado. Arremata Freud8 que isso “[....] pode, na prática, revelar-se uma tarefa árdua para o sujeito da análise e uma prova de paciência para o analista. [....]”. Isso pode ser transmudado em arte: recordar, repetir e elaborar é, parafraseando os versos acima da “Oração ao Tempo”: usar isso, guardado em sigilo, apenas contigo e comigo, no tempo, tempo, tempo, tempo.
Correspondente ao recordar, repetir e elaborar de Freud, o instante de olhar, o tempo para compreender e o momento de concluir proposto por Lacan também nos fala de tempo na análise. Aqui, tomo esses três tempos conjugando-os num tempo do desejo a vir-a-ser sabido, algo como um segundo momento do percurso de uma análise que se sucede ao tempo em que se fazem as construções em análise.
Quero esclarecer que não se trata aqui de propor um argumento cartesiano e linear para alcançar um design ou pattern do caminho de tratamento. A Psicanálise não se presta a tais propósitos porque o inconsciente nos faz caminhar precariamente, no escuro e às apalpadelas, como nos lembra Lacan. A tentativa que faço é no sentido de aventar a tessitura delicada e complexa do processo analítico em que tantos momentos se interpolam, cada qual desvelando a verdade do sujeito do inconsciente.
Retomando Lacan, em “O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada”, no qual ele mesmo afirma se tratar de um novo sofisma (subtítulo do texto), não adentrarei sua densa trama argumentativa sobre a proposta para solucionar qual a cor que cada um de três presidiários carrega às suas costas, sendo que há dois discos pretos e três discos brancos que podem ser um deles colados às costas de cada presidiário. Apenas discos brancos são colados às costas dos presos. O diretor do presídio libertaria o que deduzisse corretamente qual a cor do disco às suas costas. Sugiro que quem se interesse em esquadrinhar esse denso texto, remeta-se aos Escritos de Lacan9 .
O que importa é a possibilidade de articular os três momentos do texto dos Escritos com o tempo do vir-a-ser-sabido do desejo de uma análise. O desejo em muito se assemelha à cor de disco que cada presidiário carrega às costas. Sabemos que ele ali está, mas não sabemos qual a sua “cor”.
Vencida a resistência, quando se procede às travessias fantasmáticas, empreende-se uma busca da solução lógica para a questão fantasmática surgida. Entretanto, essa solução lógica tem feições de sofisma, ou seja, por mais que ela se apresente consistente, comportará equívocos lógicos. Isso porque o a do matema $<>a comporta o deslocamento próprio ao funcionamento do inconsciente e à (in)consistência da Ding correlata ao a. Ou seja, a travessia fantasmática, embora se proponha a desvelar a fantasia, em verdade produz outra, que assume caráter mais satisfatório pelo discurso do analisante. Torna-se um saber antes não sabido, porém não um saber da verdade última do sujeito, senão uma solução lógica sofismática que mais adiante se apresentará insatisfatória pelo caráter do a que integra o matema lacaniano. Torna-se um desejo a vir-a-ser sabido, porém nunca inteiramente sabido. Numa análise, sempre há restos que não são somente o analista e o lugar do suposto saber.
O instante do olhar é uma instância de tempo, nos diz Lacan, que abre o intervalo no qual o dado da prótase10 transmuda-se no dado da apódose11. Essa modulação do tempo propicia o surgimento de uma hipótese que objetiva a incógnita do problema do sujeito, aquilo que ele ignora como seu atributo. Aqui, a travessia do fantasma aparece como uma homologia. Diante da constatação pelo discurso da análise, o sujeito se “olha” como objeto a ante o desejo do Outro (prótase) e se vê ante a sua clivagem, a sua barra (apódose).
Esse instante do olhar, que está além do momento da resistência da análise, possibilita ao sujeito a criação de hipóteses sobre o seu gozo. Dá-se, então, o momento de compreender, intervalo de tempo no qual ele se vê a si mesmo como em um espelho, um movimento no qual o [Je] e o moi se distinguem na produção da fala e do sentido. No caso dos presidiários do texto lacaniano, é o tempo que se passa entre a constatação das cores dos discos dos dois outros parceiros para encontrar a chave do seu próprio problema.
O momento de concluir é uma urgência advinda de um tempo de demora em torno do movimento de compreender. Aqui, o sujeito faz uma asserção sobre si: um prisioneiro conclui que ele traz um disco branco às costas a partir da observação dos discos dos dois companheiros e, ante a urgência de formular sua hipótese para o diretor do presídio, precipita o seu juízo, a sua dedução, que pode ser absolutamente falsa. Em termos de análise, formula-se a hipótese sobre o gozo no instante em que o analisante conclui a travessia fantasmática.
Entretanto, seguindo o fio do pensamento de Lacan sobre os três tempos — olhar, compreender e concluir —, tem-se que a verdade do sofisma é apenas uma presunção, tendo em vista a urgência do momento de concluir. Assim, a travessia fantasmática também pode ser apenas uma presunção. Entretanto, é um acordo que o sujeito empreende consigo mesmo para alcançar um sentido necessário à sua ex-sistência. Lembra-nos Caetano:
Compositor de destinos
Tambor de todos os rítmos
Tempo tempo tempo tempo
Entro num acordo contigo
Tempo tempo tempo tempo...
A presunção traz a suspeita de algo que ainda há uma verdade a ser buscada. Pode-se supor que aí esteja a incompletude de uma análise, um resto entre tantos que ela deixa. Entretanto, esse é um resto que permanece como possibilidade de um novo intervalo de prótase e apódase na direção de outras hipóteses. Trata-se da tópica da garrafa de Klein, proposta por Lacan no Seminário da Angústia ou da fita de Moebius: o inconsciente tem abertura e fechamento que se imbricam e passagem de um lado ao seu avesso sem pulos, mas em continuidade. O inconsciente se não é infinito ou interminável, também não é limitado. É uma instância de paradoxos estruturada como a linguagem.
Penso no tempo de indeterminação do sujeito da análise a partir desse caráter paradoxal.
Retomo Freud, considerando o seu texto “Análise terminável e interminável”. Com notável senso pragmático, Freud não deixa de considerar, nesse texto de 1937, a possibilidade de “acelerar” o processo analítico. O esboço de ideias do que hoje poderia ser comparado às terapias breves são discutidas. Não escapava ao senso crítico de Freud que a duração longa das análises produzia críticas quando a sua eficácia. Nada poderia ser mais contemporâneo nessas considerações...
Freud retorna às questões da resistência e das dificuldades de se realizar transformações profundas na personalidade de sorte a evitar a recorrência da neurose, buscando justificar o prolongado processo analítico. Os mecanismos de defesa do ego e toda a sorte de empecilhos que se estabelece na transferência são examinados ao longo das seis primeiras partes do texto.
Na sétima parte, ele afirma com toda a clareza que “[....] A missão da análise é garantir as melhores condições psicológicas possíveis para as funções do ego: com isso ela se desincumbiu de sua tarefa”12 . Freud ainda aponta a impossibilidade de dissipar todas as peculiaridades do ser humano em busca de uma “normalidade esquemática”. Uma pessoa analisada não está isenta de paixões e do desenvolvimento de novos conflitos, desde que uma análise é sempre inacabada. Essa condição situa o sujeito numa experiência de tempo indeterminado. A cada análise empreendida, há uma invenção de sujeito, há uma invenção de outros tempos, tal como nos versos abaixo:
Por seres tão inventivo
E pareceres contínuo
Tempo tempo tempo tempo
És um dos deuses mais lindos
Tempo tempo tempo tempo...
A análise requer tempos: tempos de tempos de tempos. Mas o infotempo e o cybertempo são tempos superpostos de tempos zeros, o chamado real time no qual não há nenhuma perda de tempo (loss time). Pode a Psicanálise atender a tal impostura de tempo? Penso que não...
A análise tem necessidade de tempo fora da lógica do imediato, mesmo quando há a urgência do momento de concluir, o que não significa pressa. O tempo líquido é o tempo da pressa. Psicanálise e tempos líquidos são incompatíveis?
Bauman13 pode nos ajudar a dirimir essa dúvida. Ele afirma: “O medo é reconhecidamente o mais sinistro dos demônios que se aninham nas sociedades abertas de nossa época. Mas é a insegurança do presente e a incerteza do futuro que produzem e alimentam o medo mais apavorante e intolerável. [....]”.
O que podemos perscrutar nessas palavras de Bauman, se não o tema do desamparo, do mal-estar na cultura e a face oculta do desejo que se chama “medo”?
A Psicanálise está aí para atender a essa demanda, como sempre buscou fazê-lo de forma terminável e interminável ao longo da sua participação na cultura nos últimos 115 anos. Só que ela não pode se tornar tão líquida quanto a lógica dessa atual época. Caso se torne, para ser “contemporânea”, ela não será inacabada, como afirma Freud, mas simplesmente se acabará...
A partir dos versos de Caetano Veloso, penso que o tempo para a Piscanálise é outro tempo:
Que sejas ainda mais vivo
No som do meu estribilho
Tempo tempo tempo tempo
Ouve bem o que te digo
Tempo tempo tempo tempo...
Referências
BAUMAN, Z. Tempos líquidos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. [ Links ]
FREUD, S. Recordar, repetir e elaborar. Novas recomendações sobre a técnica da Psicanálise II [1914]. In: ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v.12, p.159-171. [ Links ]
FREUD, S.. Análise terminável e interminável [1937]. In: ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v.23, p.223-270. [ Links ]
LACAN, J. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. [ Links ]
* Psicólogo formado pela UFBa. Mestre em Psicologia pela mesma universidade. Atualmente é doutorando em Psicologia (2010.1) também pela Universidade Federal da Bahia. Professor Assistente da Universidade Salvador, UNIFACS. Participou de grupos de formação no Colégio de Psicanálise da Bahia entre 2000 e 2002, na Associação de Psicanálise da Bahia em 2000. Participou do Fórum Baiano de Psicanálise entre 2001 e 2009, sendo integrante do corpo de ensino e transmissão, coordenando grupos de estudos das obras de Freud e de Lacan entre 2005 e 2009. Atualmente, não se encontra vinculado à instituição psicanalítica, mantendo junto a outros psicanalistas a continuidade de sua formação em grupo de estudos em Salvador. Apresentou trabalhos nas Reuniões Lacanoamericanas de Florianópolis (2005), de Montevidéu (2007) e de Brasília (2011). Exerce a clínica psicanalítica desde 2001, quando começou a atender no Núcleo de Assistência Psicológica – NAPSI, de orientação psicanalítica. Atualmente, exerce a clínica psicanalítica em consultório particular.
1 FREUD, S. Recordar, repetir e elaborar. Novas recomendações sobre a técnica da Psicanálise II [1914]. In: ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v.12, p.159-171.
2 LACAN, J. Escritos. Tradução:Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
3 Id., ibid.
4 FREUD, S. Análise terminável e interminável [1937]. In: ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v.23, p.223-270.
5 BAUMAN, Z. Tempos líquidos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
6 Aqui a palavra imajário refere-se à uma tentativa de fidelidade literal do originário francês imajeur, utilizado por Lacan em seus ensinos: o objeto “imajado” não é semblante de objeto por não remeter a outro objeto, tal como ocorre na metonímia. Portanto, dentro do contexto aqui desenvolvido, imajário pretende se referir ao campo das imagens por si mesmas, ou seja, ao que tem efeito no registro do imaginário sem a necessária mediação da fantasia e da produção de sentido, funções desse registro que constitui o RSI.
7 FREUD, S. Recordar, repetir e elaborar..., op. cit., p.167.
8 Id., ibid., p.171
9 Cf.p.197-213 da obra referenciada.
10 Em uma estrutura sintática de dois membros correlacionados, é aquele que, subordinado ou dependente, cria uma expectativa para a enunciação do segundo, chamado apódose. Na lógica, corresponde à primeira parte da proposição.
11 De dois membros correlacionados, é aquele que, subordinante ou condicionante, encerra o enunciado que satisfaz a expectativa criada pela prótase.
12 FREUD, S. Análise terminável e interminável..., op. cit., p.267.
13 BAUMAN, Z. Tempos líquidos, op. cit., p.32.