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Cógito
Print version ISSN 1519-9479
Cogito vol.12 Salvador 2011
O tempo foracluído da psicanálise
A time psychoanalysis forcluded
Marli Piva Monteiro*
Círculo Psicanalítico da Bahia
RESUMO
Considerando que o Inconsciente funciona de acordo com o processo primário e é atemporal, torna-se difícil entender por que a psicanálise se recusa a aceitar a analisabilidade dos idosos, inclusive foracluindo o tempo cronológico da velhice, quando o Inconsciente continua jovem, bem como o desejo.
Palavras-chave: tempo foracluído; envelhecimento; velhice; narcisismo; Espelho quebrado; escrita.
ABSTRACT
Time and psychoanalysis have a specific relationship, since the Unconscious is submitted to the primary process, and is intemporal and remains eternally young. However it’s hard to believe that psychoanalysis refuses to treat old people or even try to understand the process of getting old, thus forcluding time of Old Age.
Key words: forcluded time; aging; old age; The broken mirror; writing.
40 anos completa o CPB — festa de aniversário. Falar de aniversário é falar de presente. Presente que é, para mim, o reencontro com pessoas muito queridas, hoje, aqui. Presente como o presente de livros que tantas vezes tentei dar a alguém, sem nunca conseguir porque ele já o lera antes. Quero dedicar este trabalho ao meu grande amigo e colega de turma de formação, mas na verdade meu mestre, pois foi ele quem me ensinou a estudar Lacan — professor Adilson Peixoto Sampaio.
A relação que a psicanálise mantém com o tempo constitui uma conexão bastante original. Para a psicanálise, o tempo é fundamental, mas a referência do tempo tem múltiplas facetas. A referência do tempo real da vida comum não se enquadra no tempo da psicanálise, ou melhor, no tempo do inconsciente nem no tempo lógico da Nachträglich — do après-coup de Lacan. O tempo da psicanálise é atemporal quando se refere ao inconsciente, e imutável quando dele se trata; mas, paradoxalmente, a mesma psicanálise que o conceituou como não submetido ao tempo, em determinadas circunstâncias, ao se deparar com o registro inexorável do tempo na realidade — a condição da velhice —, parece recusar render-lhe atenção e mesmo nem sequer compreender este processo da evolução do ser humano. Onde ficaria o inconsciente no velho se ele não envelheceu? Os efeitos do tempo verificam-se claramente sobre o corpo e as possibilidades de qualificações do Eu. Isto talvez justifique a falta de interesse da psicanálise pelo tema. Não é com o Eu que a psicanálise se preocupa, muito pelo contrário. “O tratamento psicanalítico é um encontro peculiar de inconscientes — declara Jack Messy1 — qualquer que seja a idade do paciente e do analista — em jogo estão apenas os desejos que não têm idade”.
Entender o envelhecimento como um processo vital implica não ser possível admitir a omissão da psicanálise. No entanto, o próprio Freud, que continuou a produzir com o avançado da idade, chegou a declarar que, a partir dos 50 anos, o indivíduo não teria mais possibilidades de ser analisado.
Inevitável se faz estabelecer a diferença entre envelhecimento e velhice. Envelhecimento é o processo natural do desenvolvimento da vida, que começa com o nascimento, e velhice é um ponto ou estádio do próprio envelhecimento, que poderá ocorrer ou não. Contudo, tanto estão imbricados os dois termos que, em francês, a palavra vie (vida) encontra-se tanto na palavra viellissement (envelhecimento) quanto nas palavras vieux (velho) e vieillesse (velhice).
O preconceito contra o termo velhice culmina pelos eufemismos como terceira idade, idade avançada, idosos ou, até ironicamente, melhor idade. Evita-se a palavra velho, embora esta expressão encerre até um sentido carinhoso (somos sempre o velho de alguém), lembra Messy .
Poucos foram os psicanalistas que se detiveram sobre a velhice, dentre eles, Karl Abraham2 que, em 1920, publicou um trabalho intitulado “O progresso do tratamento psicanalítico em sujeitos de certa idade” e concluiu que, a esse respeito, pode-se dizer que a idade da neurose é igual à idade dos neuróticos. Ferenczi interessou-se também pelo tema e escreveu que, ao envelhecer, o homem tende a retirar o investimento libidinal dos objetos e voltá-lo contra si mesmo.
A diminuição quantitativa da libido, de acordo com Ferenczi3, favoreceria uma regressão aos estádios primitivos pré-genitais e, consequentemente, uma volta ao narcisismo primário. Assim, conclui Ferenczi, os velhos seriam como crianças, perderam os interesses familiares e sociais e, com reduzida capacidade de sublimação, já que a vergonha não se faz presente, tornaram-se cínicos, malvados e avarentos.
Uma teoria narcísica do envelhecimento surge em 1979 com Claude Balier4 , que confunde, no entanto, envelhecimento com velhice e considera que o que é importante é a repartição da libido entre os objetos e o Eu que marca o período da velhice. Como, no final da vida, as perdas de objetos são muito frequentes, a velhice pode ser considerada uma perene luta entre o investimento afetivo de “si mesmo” e o desinvestimento, tendo por fim a morte. Para Balier, o “si mesmo” está muito próximo do conceito de “self” de Winnicott, sendo apenas um esboço de estrutura num corpo ainda indiferenciado da mãe. Nessa regressão, vão ser compensadas as perdas do corpo e do status social, contribuindo para reforçar o narcisismo e as lutas contra a insegurança e a angústia de morte. Não se trata de uma regressão à infância, ressalta Balier, mas da possibilidade de encontrar meios de estabelecer relações promissoras com o ambiente.
O indivíduo é lançado na velhice quando perde a autoestima, e esta velhice poderá apresentar-se de forma normal ou patológica a depender da redução do investimento narcísico, que poderá não mais fazer frente às tendências destrutivas e manter o equilíbrio.
Na obra de Lacan, tampouco há referências de estudo sobre a velhice, porém, autores contemporâneos, aproveitando-se de alguns dados da teoria, fizeram incursões interessantes no sentido de compreender e aprofundar os conhecimentos desta fase tão crucial da vida humana.
Jack Messy é um desses autores e extrapola o estádio do espelho para um novo estádio do espelho na velhice. Para ele, é como se houvesse um tempo do espelho quebrado, que consistiria na antecipação, no espelho, da imagem de outro mais velho, de sua própria imagem e da morte. A antecipação não será jubilosa como a da criança, porém aflitiva, pelo retorno inesperado de um corpo fragmentado cujo controle foi perdido com a projeção da imagem decadente e enfeada, repulsiva. A essa projeção do Eu, Messy denomina de Eu/Ego Feiúra.
Os espelhos sempre incomodaram os homens. Não foi à toa que Michelangelo disse certa feita: “Meu rosto tem algo que me dá medo”. Freud confessou que, durante algum tempo, evitava olhar-se no espelho. Percebendo com a sutileza do artista a questão, Oscar Wilde criou uma alegoria da conflituosa relação do homem com o espelho na sua obra literária magistral, O retrato de Dorian Gray; nesta, o retrato pintado do jovem Dorian, no papel de espelho, registrava todo o lado pecaminoso, obscuro e devasso, ao lado dos traços do envelhecimento e da feiúra, ao preço da conservação da juventude e da beleza que o moço conseguia preservar. Wilde afirmou que “a tragédia da velhice é permanecer jovem”. Como no romance de Wilde, assistimos impotentes ao nosso envelhecer, sem conseguir sentir os efeitos desse envelhecimento e, só mais tarde, só no “après coup”, nos damos conta do que aconteceu.
Tentar uma aproximação com a velhice é tentar uma aproximação com a morte e como, para o inconsciente, não há registro de morte nem de velhice — para ele, somos seguramente jovens imortais.
Plagiando Lacan, como ele mesmo diz, Messy denominou seu livro provocativamente, de A pessoa idosa não existe. Para o autor, pessoa idosa é um termo social e, depois de designá-lo, define-se a pessoa, caracteriza-se e descrevem-se seus usos, costumes, temperamento e defeitos. A pessoa idosa, por exemplo, tem os cabelos embranquecidos, ou perdeu os cabelos, o rosto apresenta rugas e manchas escurecidas, reflexos lentificados, enrijecimento das articulações, escoliose, halos senis nos olhos. Do ponto de vista social, também a pessoa idosa é limitada pela sua produtividade, que a aposentadoria se incumbe de determinar. Pessoa idosa designa uma categoria homogênea de indivíduos nos quais o sujeito desapareceu com suas peculiaridades, sua história pessoal, seu caráter, seu temperamento. A pessoa idosa habita a velhice e, em consequência, a casa de repouso ou o quartinho dos fundos da casa no mais amplo sentido, porque é alijada do convívio familiar e social e, isolada, perde seu status social e, muitas vezes, sua pensão, aposentadoria e bens.
Há um filme muito interessante adaptado do livro do mesmo nome cuja temática é a luta de uma senhora idosa pelo seu direito de autonomia perante os filhos e decisões importantes — O piano da senhora Cimino.
O critério econômico para definir a pessoa idosa é a aposentadoria que decide se o cidadão está ou não em condições de produzir.
Os critérios médicos definem o velho por idade, embora a velhice esteja claramente desatrelada deste fator e soe como inatingível, algo da ordem do Real.
No diálogo consigo mesmo, é como se o indivíduo se dissesse que, não se vendo velho, um velho não pode ser velho. Ou até poeticamente como Mário Quintana:
Ah! Espelho meu!
Cada vez que em ti me vejo
Me vejo menos eu.
De fora para dentro, apreciamos a situação. Ou ainda: - Não sou velho porque não me sinto velho.
O que define a velhice? O que é ser velho? Sente-se isso? Pode-se contatá-lo, vendo?
Teria de haver concomitância entre o de fora e o de dentro?
É incongruente a atitude de Freud (1824) que declara em “Minha vida e a psicanálise”5 sentir-se jovem aos 53 anos e considerar que, após os 50 anos, já não havia o que fazer com o indivíduo. Ora, Freud esqueceu-se do encontro dos inconscientes eternamente jovens?
Desmentem também essa assertiva de Freud, os vários exemplos de produções de idosos, como os poemas de Cora Coralina ou a defesa de Sófocles escrita aos 90 anos, na tentativa de se livrar da interdição proposta pelo filho, que via sua herança ameaçada pelo fato de o pai ter-se apaixonado por uma cortesã. O resultado dessa defesa rendeu-nos a primorosa obra “Édipo em Colono” e, ao autor, sua vitória.
A criança, ao se dar conta da imagem do semelhante no espelho, experimenta agressividade, que também é experimentada na velhice, e este encontro imaginário antecipado do estádio do espelho quebrado inaugura a velhice, ao expressar um desejo de matar o outro que nos aliena. Para mediar essa situação de conflito, na criança intervém o Ideal do Eu — lugar onde o sujeito se vê como capaz de ser amado, admirado, à medida que se percebe cumprindo suas exigências. Este é o momento em que o simbólico passa a ter prevalência sobre o imaginário e organizá-lo.
Na posição de velhice, a tensão entre o Eu e o Eu Feiúra vai ocorrer no momento de profundas mudanças do Ideal do Eu, e vai caber ao simbólico a tarefa de organizar um imaginário repulsivo, aterrador. O Ideal de Eu que a sociedade exige, não corresponde ao cansado e decadente. Eu que se encontra, à medida que avança a idade, no lugar de um sujeito já não atraente como dantes, incapaz de ocupar o lugar de objeto de amor. Se o Ideal do Eu não é capaz de mediar a tensão agressiva, o sujeito pode precipitar-se na doença física, na demência e até no aniquilamento. Se, contudo, o Ideal do Eu introjetado não se colocar em posiç-tilde;o de indesejável e utilizar a seu favor sua capacidade de sublimação, que porventura esteja intacta, uma saída é vislumbrada para o sujeito.
As aquisições do envelhecimento, afinal de contas, são os investimentos realizados nos entes queridos e configuram o Ego/Eu. Esta é a dimensão imaginária do Eu e significa que, sem que disso tenhamos consciência, é a imagem do outro semelhante que nos molda.
Na realidade, costumam-se perceber semelhanças entre casais de longo tempo. O que acontece na vida psíquica é parecido, apenas com a diferença de que é um traço particular que caracteriza o indivíduo que se introjeta. A noção de aquisição é observada tanto na relação narcísica do eu com o objeto como na relação com o outro.
O Eu é constituído das diversas camadas formadas por imagens investidas, por isso, o Eu tem relação com o tempo. É esta estratificação que define a cronologia. Se há, por um lado, um Eu que envelhece, há do outro um imutável inconsciente. Sendo indiscutível a intemporalidade do inconsciente, outro não será o sujeito que surge na velhice, embora algumas evidências possam apontar para o contrário.
Contudo não se envelhece de uma só vez, e a sensação frequente de que não mudamos, dificulta o nosso reconhecimento no espelho. As mudanças são iniciadas de forma imperceptível e lenta, enquanto continuamos a nos ver por dentro como sempre fomos; e, por fora, nossas diferenças são vistas pelos outros. Daí a dificuldade de perceber-se velho, velho é sempre o outro. Curiosamente, a palavra velho em francês —, vieux — contém a palavra eles (eux).
Porque já não consegue mais se manter no lugar do Eu Ideal, o indivíduo se desmonta, rui a sua figura idealizada, e ele se transforma na enfeada imagem do Eu, que já não é capaz de mediar a posição agressiva do Eu. Quebrado o espaço e al-quebrado o indivíduo, sobram somente estilhaços espalhados aos quatro ventos e, com eles, vai-se o simbólico apagando. É quando a palavra perde a representação, e a memória combalida opta por bater em retirada. Assim, vão-se perdendo as referências, o sujeito mergulha nas vagas da pulsão de morte com ele, e, soçobram os destroços de um Eu desgastado e exausto.
A memória nos permite acumular percepções, sentimentos, sensações, afetos, que poderão ou não ser rememorados depois. No entanto, como o passado é inalterado, esses fragmentos, que retornam como se fossem atuais, são capazes de provocar outras vivências novas e dar a impressão de que o tempo não passou. Prova disso são os reencontros amorosos após longas separações, que parecem tentar imortalizar amores, mas cuja ilusão logo se desfaz.
Reviver a memória é facilitado pelo ato de escrever. Escrever, diz Mucida6 , é saber atualizar o tempo da memória, enlaçando passado, presente e futuro. Sendo um processo contínuo e radical, o envelhecer está constantemente a se inscrever em “linhas tortas”, às vezes, mas sem interrupção. E é nesse tempo sem intervalo, sem interrupção, tão difícil de perceber que a velhice se vai e da morte, que vão deixando suas marcas e traços, seus destinos instalando sorrateiramente. O percurso do envelhecimento é “[...] assim formado pelos fios da vida prováveis a partir do inevitável envelhecer”, como diz. Mucida7 .
As marcas desse envelhecimento vêm gravadas no corpo de cada um, e este traçado vai-se modificando à medida que o processo de envelhecer avança.
O surgimento do sujeito que nunca envelhece vai ocorrer no desenrolar desta escritura definida pelos traços inalteráveis e que jamais se perderão. A partir daí, intui-se que a escrita de cada indivíduo mantenha relação com o seu modo de lidar com a vida. Na escrita é que fica registrado um estilo que não envelhece, não se altera e acompanha a escritura, captando aqui e ali o sujeito.
Ainda que possa parecer contraditório, sem o imponderável, a vida não existiria; nessa imponderabilidade onde se colocam a falta e o desejo, mas também onde se introduzem o limite e a morte. É aí que está, de fato, o real do dia a dia.
Portanto, propõe Mucida8 , toda escrita pressupõe, em algum ponto, um indizível, um impossível de nomear, e isto tem relação com a velhice — uma escrita que se vai sustentar sobre um resto indizível. A velhice é como uma escrita, uma rasura, diz Angela Mucida em seu texto Escrita de uma memória que não se apaga, uma marca que pode estar entrelaçada nas várias formas de escrita — poética, artística, literária, musical, cinematográfica, todas com a mesma característica de apontar para o imutável. Tudo que escapa ao autor aponta para a falta, até porque, como ser de falta, o autor jamais poderá apossar-se de todas as letras e palavras, algo sempre lhe escapará, algo íntimo e incrustado no âmago do sujeito, um quê de estranho — familiar, o duplo — Das Umheimlich.
Do mesmo modo inesperado como o imponderável aparece, surge a velhice, deixando aturdido o sujeito que se defronta com o conflito do seu desejo, sabendo-se incapaz de tentar uma satisfação ou por temer a experiência da frustração. A evidência da velhice, na maioria das vezes, apresenta-se como uma estranheza diante de limites antes não percebidos ou de desejo presente, de realização impossível, que nem morrem nem envelhecem e perpetuam a frustração.
O texto da nossa vida começa a ser escrito em nosso corpo assim que nascemos, e nele são grafadas marcas ou letras de tudo que olhamos, sentimos, percebemos e pensamos. Traços que a memória preserva incólumes e nem morrem nem envelhecem, como o próprio inconsciente, situando-se num tempo peculiar — passado — presente — futuro a um só tempo. Esta delimitação difusa do tempo sugere que o passado não morre, não sendo possível falar de um presente puro, e o futuro é o que vai depender da interpretação e sentido que dermos no presente “après-coup”. Nessa escrita variada, decorre o percurso criativo da vida no qual cada um entrelaça o tempo como pode.
Sabem bem os escritores que o processo criativo é ondulante, tortuoso e complicado. Se, por um lado, exige decisão, coragem, em outros momentos, a inércia, o vazio e o desespero se apoderam do autor. Muitas vezes, no começo, tem-se a falsa impressão de domínio do texto para, em pouco tempo, perceber-se que se é tragado por este, num vórtice de autonomia. Exige-se, então, paciência, perspicácia e persistência para corrigir erros muitos e buscar soluções num fazer e desfazer contínuo, que corta as horas e que obriga a cortar, acrescentar ou simplesmente redistribuir cada palavra no contexto. Na tentativa de encontrar a palavra exata, o escritor se desespera, tanto quanto o velho que se vê ante o vazio, quando enfrenta sua página em branco e não sabe o que registrar, não consegue enchê-la e se envolve em dúvidas e tropeços, mal sabendo que é entre dúvidas e tropeços que o fio da meada poderá ser recuperado, no lugar onde, estando agora a angústia, antes estava o desejo. A solução, portanto, é suportar o desejo eternamente intransitivo.
À medida que escrevem, os idosos contam e recontam o passado e, como cada repetição porta sempre algo novo, é possível criar um espaço para se situar. Além do mais, buscando um ouvinte, garante-se o efeito da própria fala. Ao falar a alguém que o escuta, o sujeito diz mais do que pensava dizer e algo vai-se produzir, processando-se os efeitos em consequência. Contar histórias faladas ou escritas é um modo de criar laço social. Escrever, contar ou simplesmente lembrar impõe o escutar, mesmo que não se detecte o interlocutor, comenta Mucida9. Se há algo que a psicanálise pode fazer pelo idoso é permitir que possa manter-se em sua posição de sujeito — garantindo-lhe agressividade e autonomia.
Ao mesmo tempo, que reconhece a supremacia teórica do inconsciente, a psicanálise pretende relegá-lo a um esquecimento quase absoluto justamente num momento em que continua vivo e jovem, além de palco de intensos conflitos. Essas duas atitudes contraditórias confirmam o alijamento a que o reduzem e a recusa dos psicanalistas em tratar o tema. Aliás, os três temas que Freud considerava impasses para a análise foram: a análise de psicóticos, a de crianças e a de velhos. As outras duas mereceram depois de Freud aprofundamentos significativos e foi provado que não eram impossíveis.
Termino com uma poesia autoral:
Eis-me neste espelho
Em que me escondo
Desconhecida, arisca
E sem sossegoMe vi sem me encontrar
E a outra que aqui vejo
É tão estranha a mim
Quanto eu me vejo.
Referências
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BEAUVOIR, S. La Vieillesse. Paris: Gallimard, 1978. [ Links ]
FERENCZI, S. Obras completas. São Paulo: Martins Fontes,1982. [ Links ]
FREUD, S. Introdução ao Narcisismo [1914]. In:______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1974. v.XIV. [ Links ]
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FREUD, S. Além do Princípio do Prazer [1920]. In: ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976. v.XVIII. [ Links ]
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MUCIDA, A. Escrita de uma memória que não se apaga: envelhecimento e velhice. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. [ Links ]
MUCIDA, A. O sujeito não envelhece: psicanálise e velhice. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. [ Links ]
WILDE,O. Le portrait de Dorian Gray.Paris:Presses Pocket, 1979. [ Links ]
* Psicanalista do CPB. Representante da IFPS. Médica. Tradutora [e-mail: traduzir@compos.com.br]. Endereço para correspondência:Av. ACM, 1034 s/121C - Ed. Pituba Parque Center - Itaigara. CEP 41824-000. Tel. (71) 3359-2555.
1 MESSY, J. A pessoa idosa não existe: uma abordagem psicanalítica da velhice. 2. ed. São Paulo: Aleph, 1992. P.10.
2 ABRAHAM, K. O progresso do tratamento psicanalítico em sujeitos de certa idade. In: _____OEuvres complètes. Payot 1989.
3 FERENCZI, S. Obras completas. São Paulo: Martins Fontes, 1982.
4 BALIER, C. Pour une theorie narcissique du vieillissement. L’Information psychiatrique, v. 55, n.6, p.635-645, jan. 1979 (apud MESSY, J. A pessoa idosa não existe..., op.cit.).
5 Apud MESSY, J. A pessoa idosa não existe..., op.cit.
6 MUCIDA, A. Escrita de uma memória que não se apaga: envelhecimento e velhice. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.
7 MUCIDA, A. O sujeito não envelhece: psicanálise e velhice. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.
8 MUCIDA, A. Escrita de uma memória..., op. cit.
9 Id., ibid.