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Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.56 no.1 Rio de Janeiro June 2004

 

ARTIGOS

 

O corpo na história: a dupla natureza do homem na perspectiva materialista dialética de Vigotski

 

Body into history: the twofold nature of man in the vygotskian dialectical approach

 

 

Nilson Guimarães Doria

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A idéia norteadora deste trabalho é a de que Vigotski não deve apenas ser visto como teórico do desenvolvimento, mas também como metodólogo e epistemólogo da psicologia. Nosso objetivo aqui será mostrar como o seu debruçar sobre a problemática filosófica da dualidade mente-corpo o levou à busca da operacionalização científica do problema em termos da superação desta dualidade, no sentido da síntese dialética de opostos. Tencionamos mostrar que a originalidade da contribuição de Vigotski neste âmbito se encontra nas suas colocações no que tange: a) à questão das unidades de análise em psicologia, quando propõe o estudo do psicológico enquanto síntese dialética entre o psíquico e o fisiológico; b) ao estudo dos déficits cognitivos decorrentes de lesões cerebrais na qualidade de "experimentos naturais" que permitiriam a pesquisa dos "sistemas psicológicos" em deterioração (isto é, o outro lado da moeda desenvolvimentista); c) à visão antropológica materialista-dialética embutida no projeto socialista de produção de um "novo homem" encarnada no movimento pedológico. Gostaríamos ainda de mostrar como a sua perspectiva de três linhas de desenvolvimento (evolutiva, histórica e ontogenética) pode conduzir a um modelo psicológico que considere os fatores biológicos sem sucumbir às tentações do recapitulacionismo e do maturacionismo. A perspectiva desenvolvimentista expandida de Vigotski, que considera o homem dotado de uma "dupla natureza" biológica e social, parece ser um campo privilegiado para a colocação da questão das relações entre os fenômenos psíquicos e os corporais na medida em que: a) assume de uma maneira não-reducionista, e com propostas metodológicas factíveis, as idiossincrasias das instâncias envolvidas; e b) considera que a unidade do comportamento, da consciência e da história humanos é um dado que não é negado pela existência de várias disciplinas distintas que se dedicam ao estudo focal de cada fator, desde que se leve em conta seu lugar no mosaico das ciências.

Palavras-chave: Vigotski; Corpo; Epistemologia.


ABSTRACT

The main idea of this work is that Vygotsky should not be seen just as theoretical of the development, but also, and mainly, as metodologist and epistemologist of Psychology. Our objective is showing how his approach of mind-body problem led him to the search for a scientific operacionalization to it. His answer to the problem lies on the notion of dialectical synthesis of opposites. We intended to show the originality of his contribution in a few different fields: a) his proposal of units of analysis in Psychology, when he proposes the study of the psychological phenomena as dialectical synthesis of the psychic and the physiologic; b) treating cognitive deficits decurrent from cerebral lesions as "natural experiments" that would allow the research of the "psychological systems" in deterioration (a counterpart of his developmental studies); c) the Marxist's anthropological project of production of "a new man", embodied in the pedologic movement. Our aim is to show how his perspective of three developmental lines (evolutionary, historical and ontogenetic) can lead to a psychological model that considers the biological factors without succumbing to the temptations of the recapitulacionist and maturationist tendencies. Vygotsky's expanded developmental perspective considers man endowed of a dual nature, both biological and social. It seems to provide a useful approach of the relationships between the psychic phenomena and the corporal, once: a) it assumes them in a no reductionist way the idiosyncrasies of the involved instances, having practicable methodological proposals, and b) it considers that the unit of the human behavior, conscience and History, is a datum that is not denied by the existence of several different disciplines devoted to the focal study of each factor, since it is taken in its correct place in the mosaic of the sciences.

Keywords: Vygotsky; Body; Epistemology.


 

 

INTRODUÇÃO

Com a rara, e talvez única, exceção dos escritos de Henry Wallon, nenhuma outra teoria psicogenética clássica (como a de Piaget e a de Vigotski) acentuou explicitamente o papel desempenhado pelo corpo, enquanto instância biológico-material, nos processos de desenvolvimento psicológico. Isto, no entanto, não quer dizer que o tema tenha sido completamente negligenciado pelos demais autores que tomaram por objeto de estudo a psicologia do desenvolvimento. Se isto fica mais ou menos óbvio no caso de Piaget, que traz para sua epistemologia genética fortes influências de sua formação como biólogo, o mesmo não pode ser dito quando se fala da imagem que o público não especializado (mas muitas vezes propagada mesmo pelos especialistas) faz da contribuição de Vigotski, normalmente vinculada à sua formação como pedagogo e humanista e à ênfase concedida em seus escritos aos fatores de ordem cultural e histórica que incidem sobre o desenvolvimento.

Entretanto, por entendermos que o papel desempenhado pelo corpo na abordagem vigotskiana é maior que aquele aparente em uma leitura superficial de sua obra, tentaremos neste trabalho defender o ponto de vista de que, apesar do corpo não assumir uma posição de destaque explícito no quadro teórico vigotskiano, ele de forma alguma foi um tema estranho ao pensamento do psicólogo soviético. Defenderemos a tese de que, pouco a pouco, o corpo, enquanto instância biológica, ganhou lugar nas formulações psicológicas de Vigotski, especialmente a partir de 1930, quando os interesses do autor passam a abranger o estudo da medicina. Este interesse o levou a importantes aprofundamentos teóricos e metodológicos em seus trabalhos. Tal foi o impacto da aproximação de Vigotski com a medicina que hoje ele é considerado por muitos um dos fundadores da neuropsicologia - ver, por exemplo, Blanck (1996), Luria (1998) e Van der Veer & Valsiner (1999).

Entendemos que a guinada de Vigotski rumo ao estudo da medicina não se deu de modo abrupto, mas é reflexo tanto das influências do discurso marxista sobre seu pensamento, quanto de uma necessidade interna surgida do próprio curso e desenvolvimento de suas investigações psicológicas. Como materialista, Vigotski não podia negar a precedência do biológico sobre o psíquico, e como psicólogo não podia negar a autonomia do psiquismo relativa à instância biológica, sua base material (VIGOTSKI, 1930/1996b: 143-145). Procuraremos mostrar aqui como o pensamento dialético de Vigotski buscou a superação das contradições que marcavam a tradição de investigação psicológica de base dualista cartesiana que herdou. Nosso intento é mostrar como o debruçar de Vigotski sobre o problema das relações mente-corpo foi decisivo na construção de algumas de suas contribuições mais importantes, originais e atuais para a psicologia do desenvolvimento, e mesmo para a epistemologia em geral, como a postulação dos três níveis de desenvolvimento psicológico: filogenético, ontogenético e histórico-cultural.

Visando atingir estes objetivos, seguiremos a metodologia1 proposta e aplicada pelo próprio Vigotski (1927/1996) em "O significado histórico da crise da psicologia", segundo a qual:

"(...) a regularidade na mudança e no desenvolvimento das idéias, o aparecimento e a morte de conceitos, inclusive a mudança de categorizações etc., tudo isso pode ser explicado cientificamente se relacionarmos a ciência em questão: 1) com o substrato sociocultural da época; 2) com as leis e condições gerais do conhecimento científico; 3) com as exigências objetivas que a natureza dos fenômenos objeto de estudo coloca para o conhecimento científico no estágio atual da investigação. Ou seja, em última instância, com as exigências da realidade objetiva que a ciência em questão estuda" (p. 219).

Buscando contemplar estes três aspectos priorizados pela metodologia vigotskiana de investigação epistemológica, desenvolveremos nossa argumentação a favor da importância do corpo no quadro teórico vigotskiano também em três etapas2. A primeira e a segunda tratam respectivamente dos contextos sociocultural e teórico nos quais Vigotski estava inserido. Na terceira parte, interessa-nos mostrar como o pensamento de Vigotski tomou forma em meio a este contexto e como o autor chega a uma síntese a respeito do lugar do corpo no plano teórico da psicologia que é, a um só tempo, inovadora e coerente com a tradição de pensamento que herdou.

Dado que Vigotski foi um pensador marxista que viveu em um país socialista, é bastante claro que esta nossa divisão, que como toda divisão metodológica é arbitrária e artificial, implica em algumas possíveis superposições de temas, em especial no que tange à primeira e à segunda parte de nossa exposição, isto é, o quadro teórico marxista é parte integrante do contexto sociocultural da URSS dos anos 20 e 30 do século passado. Por isso, esclareceremos desde aqui o que pretendemos de fato desenvolver nestas duas etapas de nosso trabalho.

Na primeira parte do trabalho, estaremos voltados para o papel desempenhado pela ciência na sociedade soviética, o que se esperava e se exigia dos cientistas da extinta União Soviética. Em especial, estaremos interessados em mostrar o lugar da psicologia neste controverso momento, como ela se viu instada a dar conta tanto de reformular-se abandonando o idealismo e o materialismo mecanicista em favor do materialismo dialético, quanto de se tornar uma disciplina a serviço da prática transformadora da sociedade.

No segundo momento, nosso foco estará voltado para mostrar como os autores clássicos do marxismo, especialmente Marx e Engels, colaboraram teoricamente para a superação do idealismo e mecanicismo no âmbito da economia, da política e da epistemologia, mas de maneira a permitir e incentivar ajustes posteriores a áreas específicas, como o que Vigotski aplica à psicologia. Importantes aqui são as contribuições destes autores acerca das unidades (dialéticas, em sua visão) constituídas pela história natural e a humana, e a matéria e o espírito/mente.

Concluindo o artigo, procuraremos mostrar como as idéias de Vigotski sobre o tema ainda mantêm vigor e frescor mais de setenta anos depois de formuladas. Esta contemporaneidade das concepções de Vigotski pode ser sentida tanto em linhas mais tradicionais de pesquisa em psicologia, quanto em abordagens mais recentes, como a da psicologia evolucionista.

 

Breve Contextualização Histórica

Toda a formulação teórica de Vigotski deve muito ao fato de ele ter vivido onde viveu e no momento histórico em que viveu. Se é certo que não era pré-requisito viver durante a revolução bolchevique e na Rússia para se dominar os conceitos e a filosofia marxistas, também o é que adotá-los como fundamentos para o estabelecimento de uma linha de pesquisa em psicologia não parecia ser possível em outro lugar do mundo nessa época3.

A revolução de 1917 tornou possível, e até mesmo exigiu, que houvesse um programa de investigação científica sobre as bases do materialismo dialético. A ruptura proposta com a revolução iria além do estritamente político-econômico, diria respeito a todo tipo de produção, inclusive à produção de conhecimento. Assim como se via em Marx a superação do idealismo e do materialismo "ingênuo" na Filosofia, esperava-se dos cientistas soviéticos a superação do idealismo e do materialismo vulgar na ciência.

Ao menos desde A dialética da natureza, de Engels (1883/2000), existia a proposta de se consolidar a pesquisa científica sobre as bases do materialismo histórico. Parte desta consolidação passava pela unificação do que se poderia em termos atuais chamar de ciências sociais e humanas e de ciências da natureza. De forma contrária ao que paralelamente estava sendo tentado pelos positivistas - copiar o modelo das ciências naturais ao se fazer ciências sociais -, a proposta de Engels era a de se expandir a aplicação das leis da dialética (ou melhor, do materialismo dialético), primeiramente empregadas no estudo da história e da economia política, ao estudo de todas as demais ciências, inclusive a física, a química e a biologia.

Uma ciência mais eficaz que a praticada nos países capitalistas fundamentada em pressupostos marxistas seria a prova cabal da superioridade da sociedade socialista, uma vez que as práticas do regime seriam pautadas pela cientificidade e objetividade do conhecimento obtido por meio do emprego de métodos marxistas. Todavia, o modelo de Engels, que guiava este movimento, era ainda muito incipiente e aos poucos os fatos e as explicações científicas que ele utilizou para testemunharem a seu favor começaram a se tornar obsoletos (CERUTI, 1987: 318).

O grande desafio colocado ao cientista soviético era levar em conta a historicidade, ou, para usar as palavras de Engels (1883/2000), "o movimento das coisas no mundo". A palavra de ordem era a superação tanto de visões idealistas e metafísicas da verdade quanto das "materialistas ingênuas" que viam a verdade como dado imutável (imutáveis, ironicamente, só as leis da dialética!) e não levavam em consideração a mudança do mundo.

Com esta pequena introdução ao tema, não é difícil conceber que a psicologia enquanto disciplina científica representasse um problema especial a ser resolvido pelos cientistas soviéticos da época. Talvez nenhuma outra ciência tenha vivido um dilema tão grave quanto ela: por um lado, resquícios da ciência da alma entendiam-na como algo à parte do corpo; por outro lado, psicólogos materialistas mais obstinados defendiam que o cientificamente correto era reduzir todo o psiquismo a reflexos e associações neurais e a consciência a mero epifenômeno.

Tão ou mais importante, porém, que a discussão acerca dos pressupostos teóricos e opções metodológicas adotadas na pesquisa psicológica na URSS do início do século era a aplicabilidade do conhecimento produzido pela ciência. Deste peculiar encontro da psicologia com a pedagogia, nasceu a pedologia soviética, ciência proposta como estudo unificado da criança. A pedologia procurou integrar os estudos sobre a criança em um corpo teórico e prático único. Para tal, utilizou-se de materiais advindos, além das ciências já mencionadas, de várias áreas, como a fisiologia, a anatomia e a neurofisiologia infantis e a Antropologia. A pedologia foi a expressão máxima do esforço soviético em tomar as rédeas no nascimento e desenvolvimento do "novo homem socialista". Entretanto, se a pedologia nasceu do seio ideológico de uma URSS jovem e revolucionária, é verdade também que foi a justificativa ideológica governamental de um governo nem tão jovem, nem tão revolucionário como o de Stalin4, que fez com que ela desaparecesse e fosse cassada, ela e todos os seus fomentadores, entre eles o próprio Vigotski5.

Podemos ver claramente o caráter ideológico das produções científicas da URSS na seguinte transcrição do trabalho de Davydov & Zinchenko, primeiramente publicado no início da década de 1970 no periódico Soviet Psychology e republicado nos anos 1990 por Daniels (1995):

"Vygotsky envolveu-se com as ciências humanas nos anos de preparação, realização e consolidação dos primeiros resultados da maior revolução social da história, que libertou os trabalhadores das amarras de classe que restringiram seu desenvolvimento intelectual durante séculos. Sua visão de mundo desenvolveu-se nos anos da revolução e refletiu as mais avançadas e fundamentais influências sócio-ideológicas relacionadas à compreensão das forças essenciais do homem e das leis de seu desenvolvimento histórico e de sua formação plena, nas condições da nova sociedade socialista" (DAVYDOV & ZINCHENKO, 1995: 153).

No artigo, em que é feita uma apresentação do trabalho de Vigotski, referências à "maior revolução social da história" ou às "mais avançadas influências sócio-ideológicas", como as que aparecem na citação acima são freqüentes e parecem refletir bem a influência da ideologia de Estado sobre a produção científica.

Não estamos aqui querendo desqualificar a produção científica soviética ao apontarmos a forte influência ideológica presente nesta, longe disto. Apenas estamos frisando que esta influência realmente ocorreu e que o entendimento correto e mais aprofundado das contribuições dos cientistas que produziram suas obras neste contexto só pode ocorrer se conhecermos seus pressupostos e seu ambiente de trabalho.

Vamos ainda além e defendemos que efetuar a análise da obra de autores soviéticos, como é o caso de Vigotski, sem levar em conta os aspectos acima mencionados é, também por motivos ideológicos ou por omissão deliberada, subtrair muito da originalidade da contribuição destes autores. No caso específico de Vigotski, entendemos, juntamente com Burgess (1995), Tuleski (2002) e Newman & Holzman (2002), que omitir o marxismo de sua obra é negligenciar seu próprio projeto de fundar uma psicologia marxista.

Mais tarde, veremos como estes fatores (a influência e a exigência ideológica e a demanda teórica de uma psicologia calcada no materialismo dialético) incidiram diretamente sobre o trabalho de Vigotski e fizeram indispensável que suas reflexões psicológicas tocassem muito de perto a presença do problema filosófico do dualismo corpo/mente (espírito) na psicologia desde muito cedo - pelo menos desde 1925 (VIGOTSKI, 1925/1996) -, quando sua preocupação e argumentação eram ainda eminentemente filosóficas, no sentido de superação do idealismo no estudo da consciência, até os escritos mais próximos do fim de sua vida (VIGOTSKI, 1934/1996), quando já estudante de medicina propõe teorias já mais elaboradas sobre os "sistemas psicológicos" e argumenta contra a teoria localizacionista estreita das funções psicológicas.

 

Matéria e espírito, história natural e história humana

Uma das grandes tarefas do início do marxismo foi desvincular-se do ponto de vista filosófico e tentar construir um lugar para seu materialismo histórico dentro do seleto grupo das disciplinas científicas. Entretanto, isto não se mostrou possível sem o apelo ao trabalho filosófico e metacientífico empreendido pelos pioneiros marxistas no desenvolvimento do materialismo dialético6, e é mesmo bastante questionável se este esforço foi suficiente.

Em especial, Marx, Engels e companheiros estavam interessados em marcar tanto sua distância quanto sua filiação à postura hegeliana. Sua filiação, por estarem de acordo com os princípios gerais da dialética hegeliana, em especial as três leis básicas da dialética. Sua distância, por não conceberem o espírito como causa, ou natureza, primeira da realidade, mas sim a matéria. Afastavam-se assim tanto do idealismo de Hegel, quanto do materialismo de grande parte de seus contemporâneos. Afastavam-se dos primeiros por entenderem que a matéria antecedia o espírito, e dos segundos por entenderem a matéria como essencialmente mutável e em movimento (MCLELLAN, 1983: 82-83).

Para Marx, Hegel está certo ao ver na base da realidade a transitoriedade e o movimento. A história impulsionada pela transformação da quantidade em qualidade, pela negação da negação e pela interpenetração dos contrários seria tanto a história humana quanto a natural. Essa concepção dialética da história seria o elo entre Marx e Hegel. Contudo, Marx atribui a Hegel um erro básico, porém fatal, na formulação de seu sistema. Ao não compreender a distinção entre o conteúdo do pensamento e o referente do pensamento, Hegel identificaria os dois e conceberia a realidade como produto do pensamento e não como um processo representado no pensamento. Para Marx, então, Hegel peca por sua concepção idealista da realidade, do concreto. Marx, portanto, indica como uma visão científica e materialista deveria olhar para o problema:

"(...) o concreto é concreto porque é síntese de muitas determinações, isto é, da unidade do diverso. Por isso o concreto aparece no pensamento como processo da síntese, como resultado, não como ponto de partida, ainda que seja o ponto de partida efetivo e, portanto, o ponto de partida também da intuição e da representação (...). (...) Hegel caiu na ilusão de conceber o real como resultado do pensamento que sintetiza em si, se aprofunda em si, e se move por si mesmo; enquanto o método que consiste em elevar-se do abstrato ao concreto não é senão a maneira de proceder do pensamento para se apropriar do concreto, para reproduzi-lo como concreto pensado. Mas este não é de modo nenhum o processo da gênese do próprio concreto" (MARX, 1859/1999: 39-40).

Como já foi dito, a proposta marxista iria além da crítica ao idealismo e pretenderia superar também o materialismo que julgou ingênuo, ou reducionista. A grande crítica aos materialistas residia no fato de eles, apesar de tomarem a matéria como ponto de partida e considerá-la como componente único da realidade, não a considerarem mutável. Engels vê nisso uma má interpretação dos dados científicos de sua época que demonstravam, claramente para ele, a correção das leis da dialética, por exemplo, por meio da descoberta da real natureza das transformações químicas (a distinção qualitativa entre átomos e moléculas) e das transformações qualitativas de energia (a transformação de energia química em elétrica etc.).

Uma das grandes vantagens da proposta de superação do idealismo e do materialismo ingênuo feita pelos autores marxistas está intimamente relacionada a um dos maiores problemas com os quais a psicologia (e também a filosofia) ainda hoje se defronta, o problema do dualismo corpo-alma, ou, no dizer contemporâneo da discussão, mente-corpo. A visão defendida por Marx e por Engels permite, a princípio, uma interpretação do problema na qual, em certa medida, o dualismo seja superado de uma maneira mais satisfatória que aquela dos "materialistas ingênuos". Kolakowski (1978) retrata esta vantagem da abordagem engelsiana da seguinte forma:

"Por Engels sustentar que a oposição filosófica essencial é aquela entre natureza e espírito, pode parecer que ambas as perspectivas que se opõem expressam uma forma de dualismo: de modo que os materialistas, considerando a mente como geneticamente secundária relativamente à natureza, também precisam considerá-la como algo separado e diferente. Mas Engels não assume essa postura. Ele defende que a oposição entre natureza e espírito não é a de duas substâncias diferentes em uma relação genética particular: a consciência não é algo em si, mas um atributo de objetos materiais (corpos humanos) organizados de uma maneira determinada, ou um processo que tem lugar neles. Este ponto de vista é, portanto, monista, rejeitando a crença em qualquer forma de ser que não seja material" (pp. 378-379, tradução nossa)7.

Essa visão se mostra especialmente vantajosa por permitir que se mantenha a unidade de origem e de natureza, entre o "espiritual" e o bruto sem que se perca a particularidade do fenômeno da consciência, uma vez que qualidades diferentes coexistem na natureza como produto de acumulações ou organizações diferentes de quantidades. O que foi visto para as diferentes formas de energia vale também para a consciência e a matéria bruta, contigüidades e saltos são igualmente constitutivos da unidade dialética deste "par de opostos".

Uma outra linha de argumentação dentro da tradição marxista que justifica a continuidade e a unidade dialética constituída por matéria e espírito é aquela que discorre sobre como se inter-relacionam história natural e história humana (KRADER, 1983). O contato de Marx com a obra de Darwin foi importante para que ele pudesse argumentar teoricamente, e com base científica, a favor da natureza única da história, seja ela natural ou humana. Pretendemos mostrar como esta aproximação de Marx relativa a Darwin desempenhou um papel importante no quadro teórico vigotskiano.

Para Krader (1983: 269-270), Marx "na doutrina de Darwin, encontrou apoio para a premissa que já fixara para seu pensamento: ela postula a unidade da história natural e humana, em intrínseca oposição à doutrina do grande projeto imposto por uma divindade à natureza e ao homem". A teoria da evolução das espécies de Darwin forneceu a Marx a base científica (e mais importante, oriunda de uma ciência biológica) que ele precisava para inequivocamente afirmar a continuidade entre as histórias natural e humana. Entretanto, a contigüidade entre as duas histórias, como considerada no pensamento de Marx, não deve ser entendida como um sinal de identidade entre elas.

Por mais que Marx veja em Darwin um aliado no sentido da defesa da continuidade entre as duas modalidades históricas, ele também vê no naturalista inglês um obstáculo. Apesar de para Marx "a história natural da humanidade ser sua história biológica" (KRADER, 1983: 266), e portanto manterem-se unidas as duas linhas históricas, o óbice que a posição de Darwin oferece reside na exclusão do aspecto revolucionário próprio da atividade laboral humana que incide sobre a natureza, alterando tanto a condição humana, quanto a própria natureza. Este é um aspecto de extrema relevância, dado que por essa perspectiva não se pode taxar a teoria marxista da história humana como biologicista, pois apenas se apóia na biologia como fonte de informações. A relação entre as "duas histórias" fica mais bem explicada na passagem seguinte: "a história que é feita por nós [a história humana] distingue-se da história que não é feita por nós [a história natural]. A separação entre as duas histórias não é absoluta, já que a história que não é feita por nós é um importante fator de determinação da história que é feita por nós; e, além disso, a história que não é feita por nós é determinada em medida minúscula, mas crescente pela história que é feita por nós" (KRADER, 1983: 273).

A exposição sobre as relações entre a história natural e a história humana, além de nos ajudar a entender como a dicotomia mente-corpo é superada no materialismo dialético (uma vez que a história biológica e social do homem são contíguas), também nos oferece subsídios para que compreendamos melhor outras formulações psicológicas de Vigotski, como a dos diferentes níveis de desenvolvimento (filogenético, ontogenético e histórico). Voltaremos a esse assunto na próxima parte deste artigo. Agora, encerrando esta, iremos apenas transcrever um trecho do trabalho de Krader que nos dá pistas mais específicas sobre este aspecto da teoria vigotskiana, que é central, a nosso ver, para o entendimento do papel desempenhado pelo corpo em sua psicologia:

"A passagem dos caracteres hereditários - dos quais falava Darwin - para a acumulação por parte do homem se realiza, segundo Marx, por meio de uma natureza humana já modificada e de uma natureza não humana também já modificada, transformada num órgão das atividades humanas. A acumulação é o resultado de um processo dúplice: por um lado, o processo histórico, ao longo de períodos superiores à duração da vida individual; por outro, o processo de transmissão de uma habilidade por um trabalhador individual" (KRADER, 1983: 270).

 

O projeto psicológico vigotskiano e o papel desempenhado pelo corpo

O panorama que acabamos de traçar indica a que cenário sociopolítico e intelectual a produção de Vigotski está intimamente ligada. Entretanto, isto não basta para entendermos como essas influências do Zeitgeist repercutiram sobre a pessoa de Vigotski, pois, se é verdade que as determinações sociais, teóricas e ideológicas incidiram diretamente sobre toda sua obra, é certo também que as mesmas pressões incidiram sobre a produção de muitos outros autores, resultando em contribuições bastante diversas tanto no campo da psicologia, quanto no das demais ciências.

Para atermo-nos a poucos exemplos, bastaria citar a reflexologia, a escola fisiológica de Pavlov, e sua ênfase na questão dos reflexos condicionados. Outro exemplo, de menor alcance, porque circunscrito à ex-URSS, é a reactologia, escola psicológica de Kornilov (WOODWORTH & SHEENAN, 1965; VAN DER VEER & VALSINER, 1999). Ou seja, a influência do discurso ideológico de Estado e as pressões para que o mesmo fosse absorvido pelo discurso científico resultaram em várias interpretações e vários projetos de psicologia. Cabe, portanto, perguntar: qual o projeto psicológico vigotskiano? Como Vigotski idealizou o projeto marxista de construção de uma ciência psicológica?8

Como iremos argumentar daqui por diante, a ciência, assim como a arte, na ótica de Vigotski é apenas mais uma das atividades humanas e, como tal, está submetida às mesmas leis dialéticas que regem a matéria e a história. Desta forma, desde o início de sua investigação psicológica, Vigotski encara os empreendimentos científico e artístico como fenômenos de origem social. Assim podemos ver acontecer em Psicologia da arte (1926/1999) e em O significado histórico da crise da psicologia (1927/1996).

Vigotski encarava o fenômeno do conhecimento científico, ele próprio, como sujeito a e promotor de transformação e evolução históricas (VIGOTSKI, 1927/1996), em um modelo que se aproxima por um lado daquelas idéias que foram muito mais tarde defendidas por Thomas Kuhn (1962/1998), acerca das revoluções científicas, e por outro daquelas defendidas por Karl Popper e sua teoria evolucionista do conhecimento (POPPER, 1975). Apesar de este ser um dos aspectos mais controversos da contribuição vigotskiana (NEWMAN & HOLZMAN, 2002), insistimos que sua concepção do empreendimento científico é determinante para sua formulação original da natureza particular da investigação psicológica de cunho científico. Para uma discussão mais ampla desta polêmica, consultar Van der Veer & Valsiner (1999) e Doria (2004a).

Assim, seguindo a orientação engelsiana, considerando a psicologia uma ciência acerca do "movimento das coisas no mundo", Vigotski precisou lidar desde o princípio, e adotar como ponto de partida, com a explicação das próprias transformações do psiquismo humano, e isto desde "antes" de sua constituição, isto é, desde o surgimento do psiquismo humano a partir do animal em uma escala evolutiva darwiniana. A psicologia de Vigotski é uma psicologia genética, no sentido que Piaget, por exemplo, dá à expressão. Mas a psicologia genética de Vigotski difere muito da psicologia de Piaget e da maioria das tentativas de psicologias do desenvolvimento contemporâneas a ele. Apesar de partir de pressupostos monistas e materialistas, Vigotski não aceitava a redutibilidade dos processos psicológicos aos biológicos. Para ele, o homem seria dotado de uma "dupla natureza", uma material/biológica e outra histórica/cultural. A segunda emergindo9 da primeira, mas subordinando-a ao longo do desenvolvimento histórico.

Apesar de Vigotski ser claramente avesso às teorias recapitulacionistas do desenvolvimento (aquelas que pregavam ser a ontogênese psicológica humana até certa idade simples reconstituição da filogênese psicológica da humanidade), não se pode dizer o mesmo relativamente às teorias antropológicas evolucionistas, isto é, aquelas que defendiam haver culturas mais e menos evoluídas(RIVIÈRE, 1984/1994; WERTSCH, 1996). Este ponto de vista vigotskiano é muito claramente defendido em um livro pouco conhecido do grande público, e mesmo de muitos daqueles que se dedicam ao estudo de sua obra, Estudos sobre a história do comportamento (VYGOTSKY & LURIA, 1996).

é fácil entender que Vigotski assumisse este tipo de postura. Basta lembrarmos que seu projeto marxista de ciência se inseria em um projeto social maior, um projeto estatal de transformação social. Se há um objetivo a ser alcançado, um modelo a ser atingido, é preciso que a todo momento comparemos o estado atual das coisas com o estado ideal ou planejado para alcançarmos a medida do sucesso de nossas intervenções. Diferentemente de outros contemporâneos seus, Vigotski tomava (ou procurava tomar) como referencial evolutivo máximo não a sociedade capitalista e tecnológica ocidental, mas a vindoura sociedade sem classes socialista e originalmente russa, mas tendente, em projeto, a se tornar global.

Com estas idéias em mente, e tomando-as por chave de entendimento da realidade, Vigotski e Luria postulam sua famosa teoria de três níveis do desenvolvimento psicológico humano, filogenético (ou evolutivo, ou ainda natural), ontogenético e histórico-cultural. Nas palavras dos autores: "Nosso trabalho consistiu em descrever três linhas principais no desenvolvimento do comportamento - evolutiva, histórica e ontogenética - e em demonstrar que o comportamento do homem cultural é produto dessas três linhas de desenvolvimento e só pode ser compreendido e cientificamente explicado pela análise dos três diferentes caminhos que constituem a história do comportamento humano" (VYGOTSKY & LURIA, 1996: 51).

Quando, em A formação social da mente (1998a), Vigotski fala das relações entre aprendizado e desenvolvimento, temos uma clara idéia de como estas linhas evolutivas se cruzam e como a última linha a surgir no sentido cronológico (ela só aparece no homem) assume o caráter de norteadora de todo o desenvolvimento posterior, mas dependente e fundada nas precedentes. A aprendizagem formal, ocorrida nas escolas, ou em outros esquemas e instituições formalizados de ensino, serve a dois propósitos: acelerar o desenvolvimento de funções psicológicas que de outra maneira só despontariam muito mais tarde, como a memória mediada; e, em segundo lugar, mas não menos importante, permitir a emergência de novas capacidades além daquelas próprias da espécie (tomada como espécie biológica), como, por exemplo, a formulação científica de conceitos (VIGOTSKI, 1930/1996a; 1998b). é o sistema de ensino que promove a maior aceleração possível para esse desenvolvimento, e é a psicologia quem orienta a pedagogia no sentido de identificar os rumos das intervenções.

Para Vigotski, e voltaremos a esse ponto mais tarde, é preciso conhecer a psicologia do homem para que, com base nesse conhecimento, se possa desenvolver técnicas e conceitos facilitadores de sua transformação para níveis superiores de desenvolvimento psicológico, isto é, aqueles alcançados pelo homem cultural, que se baseiam na mediação das relações do homem com o mundo externo, representado pelo uso de instrumentos na atividade laboral, e na mediação semiótica da relação do homem com o seu próprio psiquismo/comportamento, por meio do uso de signos. A educação seria o meio prático que por excelência conduziria a esta transformação para a qual a psicologia apontaria o melhor caminho e para a qual as condições materiais do sistema socialista favoreceriam a possibilidade de constituição em seu estado pleno, apesar de estados intermediários e próximos a este "ponto final" estarem presentes já nas organizações sociais "precedentes".

Este destaque concedido à educação pode resultar em uma aparente sobrevalorização do terceiro nível de desenvolvimento (o nível histórico-cultural). Se isto pode parecer verdadeiro em muitos momentos na obra de Vigotski, em especial naqueles textos de coletânea de outros escritos seus realizada por autores ocidentais - como A formação social da mente (1998a) e Pensamento e linguagem (1998b) -, uma leitura que tome sua obra em conjunto nos mostra que na realidade a postura de Vigotski não comporta privilégios a nenhuma das linhas. Vigotski não é mais "culturalista" que "biologicista", nele há uma postura integradora destes aspectos, o que já deixamos mais ou menos claro na citação anterior da obra Estudos sobre a história do comportamento (VYGOTSKY E LURIA, 1996: 51), na qual os autores não deixam margem à dúvida no que tange à necessidade do estudo de todas as três linhas de desenvolvimento e suas relações recíprocas para uma compreensão adequada do fenômeno psicológico humano integral.

Se, ao tratar do nível histórico-cultural de desenvolvimento, Vigotski chama-nos a atenção para os aspetos sociais que incidem sobre o desenvolvimento psicológico, quando nos fala do nível filogenético, por sua vez, a ênfase recai sobre os aspectos biológicos. Vamos mais além e defendemos que, na verdade, o foco de Vigotski em suas investigações não reside em estudar a "influência" de fatores "biológicos" e "culturais" sobre o fenômeno "psíquico"; a nosso ver, Vigotski entende que a interação destes fatores em determinado e concreto organismo humano, ao longo do tempo, gera e transforma o fenômeno psicológico.

No ensaio "A psique, a consciência e o inconsciente" (1930/1996b), podemos encontrar na distinção que Vigotski faz entre psíquico e psicológico uma peça de argumentação a nosso favor:

"Pensamos que o caráter insolúvel desses problemas [o problema do objeto da psicologia, se o psíquico ou o fisiológico] decorre de uma formulação equivocada. é absurdo arrancar primeiro uma determinada qualidade [psiquismo] de um processo integral [processo psicofisiológico] e depois se perguntar sobre suas funções como se existisse por si, totalmente independente do processo integral do qual é uma propriedade. é absurdo, por exemplo, depois de separar o Sol de seu calor, atribuir-lhe um significado independente e se perguntar que significado tem e que ação pode exercer esse calor" (p. 147).

Vemos, a partir daí, que mesmo a identificação de várias linhas de desenvolvimento poderia também cair no mesmo problema se Vigotski não tivesse em mente exatamente que esta divisão é meramente "didática", uma forma de nos ajudar a pensar um processo que é unitário (dialeticamente falando) na realidade. Todas as linhas de desenvolvimento são abstrações de um só processo de desenvolvimento. Talvez a postura de Vigotski relativa a este uso de seus conceitos fique mais claramente exposta se virmos, por exemplo, como ele trata este mesmo tipo de problema em outros autores. Tomemos o comentário de Vigotski sobre o conceito freudiano de inconsciente: "neste caso Freud criou um conceito difícil de conceber visualmente, algo que também se dá com freqüência nas teorias físicas. A idéia do inconsciente, afirma Freud, é, de fato, tão impossível quanto o é a do éter sem gravidade que não produz atrito. é tão inconcebível como o conceito matemático '-1' (...). Em minha opinião, podemos utilizar tais conceitos, mas é preciso compreender que nos referimos a conceitos abstratos, não a fatos" (VIGOTSKI, 1930/1996b: 155).

Voltando àquilo que apresentamos no item anterior, isto é, à base teórica marxista que fundamenta a obra de Vigotski, pudemos ver até aqui que a teoria dos níveis de desenvolvimento psicológico se enquadra muito bem nos postulados de Marx sobre a continuidade entre história natural e história humana. Ainda nos falta, entretanto, tratar especificamente de como a proposta de superação da dualidade corpo/mente se encontra representada nos escritos vigotskianos. Na citação anterior sobre a particularidade do psicológico e sua oposição tanto ao psíquico quanto ao fisiológico, já iniciamos este tratamento. A fim de torná-lo mais completo, achamos oportuna uma breve consideração sobre a abordagem vigotskiana acerca do problema do localizacionismo das funções psicológicas.

À época de Vigotski, havia duas correntes principais concorrendo à explicação do problema. A mais tradicional, ligada às correntes psicológicas associacionistas, como o behaviorismo e a reflexologia, era a do localizacionismo estrito, que defendia que todas as funções psicológicas, mesmo as mais complexas, refinadas e "recentes" do ponto de vista filogenético, teriam um correlato cerebral anatômico-funcional determinado. A outra estava ligada a posturas gestaltistas e era representada especialmente por Lashley e Goldstein, que defendiam o caráter plástico do cérebro e o tratavam "como um conjunto", cada parte podendo desempenhar qualquer função indiferenciadamente (VIGOTSKI, 1930/1996a; 1934/1996).

Vigotski criticou ambas as visões. A primeira, por não dar conta da evolução histórica das funções psicológicas superiores. Em outras palavras, os defensores do localizacionismo estreito não eram capazes de explicar as diferenças psicológicas estruturais entre os homens "primitivos"10 e o homem civilizado. Não havendo, como não há (COSMIDES & TOOBY, 1997), evidências de diferenças dos pontos de vista genético, fisiológico e anatômico entre os homens pré-histórico e contemporâneo, não há como essa explicação dar conta das diferenças psicológicas.

A segunda corrente foi criticada por não dar conta dos reais e concretos problemas impostos pelo estudo das síndromes de deterioração/lesão do sistema nervoso central (afasias, mal de Parkinson, agnosias etc.). Apesar de ter sido elogiada por Vigotski por permitir que se libertasse esta área do localizacionismo estreito, ela recebeu críticas por assumir uma postura "anti-materialista" por acabar deixando de lado a especificidade da configuração material do cérebro, patente pelas síndromes acima referidas. Nessa perspectiva, o cérebro "informe" não passaria de um instrumento da mente ou do espírito, passível de qualquer utilização genérica.

A solução de Vigotski para o problema daria conta de explicar a deficiência de ambas as teorias vigentes em seu tempo. A seu ver, por mais que as funções psicológicas inferiores ("naturais") estejam bem localizadas, do ponto de vista anatômico, no cérebro, as funções psicológicas superiores ("culturais")11 emergem da (e provocam a) mudança das relações funcionais hierárquicas entre os centros cerebrais de processamento específico. Assim, ao longo da história (tanto a do gênero humano, quanto a de cada ser humano - isto é, filo e ontogeneticamente falando), novas configurações relacionais entre os centros resultariam em novas funções psicológicas, sem que se precise postular nenhuma entidade metafísica responsável por isso. Este modelo é vantajoso por ser capaz de explicar as diferenças psicológicas entre os homens em distintos momentos históricos e configurações culturais.

Mesmo a característica interpsicológica12 na ontogenia inicial dos processos superiores não deve ser entendida como "extracorpórea", muito pelo contrário! Vigotski chega a afirmar: "Toda a função superior estava dividida entre duas pessoas, constituía um processo psicológico mútuo. Um deles se dá em meu cérebro, outro, no indivíduo com quem discutov (VIGOTSKI, 1930/1996a: 113).

Se após toda a nossa exposição ainda resta alguma dúvida sobre o papel do corpo no edifício teórico de Vigotski, pretendemos dirimi-la ao encerrar esta seção com a apresentação de uma citação em que a indissociabilidade dos três níveis de desenvolvimento e o comprometimento de Vigotski com o materialismo dialético se apresentam com uma transparência rara, mostrando o real alcance do projeto soviético de criação de um "novo homem" sobre suas idéias:

"Tendo dominado os processos que determinam sua própria natureza, o homem que lutava contra a velhice e as doenças, certamente ascenderá a um nível mais alto e transformará sua própria organização biológica. Mas esta é a fonte do maior paradoxo histórico do desenvolvimento humano: esta transformação biológica do tipo humano que é atingida principalmente através da ciência, da educação social e da racionalização dos modos de vida como um todo não constitui um pré-requisito, mas, ao contrário, é o resultado da libertação do homem" (VYGOTSKY, 1930)13.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho, procuramos apresentar a importância que Vigotski deu, em especial na década de 1930, à contribuição que o estudo da medicina poderia proporcionar à psicologia, destacando como ele integrava seus estudos nessa sua nova área de atuação a seus trabalhos anteriores relacionados predominantemente à psicologia do desenvolvimento. Neste sentido, este trabalho pode ser entendido como uma tentativa a mais de se reabilitar, ou mesmo de se redefinir, o papel de Vigotski no quadro histórico da psicologia, na mesma esteira de autores como Davydov & Radzikhovskii (1986), Van der Veer & Valsiner (1999), Newman & Holzman (2002) e, entre nós, Bock, Gonçalves & Furtado (2001), Tuleski (2002) etc. A idéia norteadora a partir deste ponto de vista é a de que Vigotski não deve apenas ser visto como psicólogo e teórico do desenvolvimento, mas, também, e principalmente, como um metodólogo e epistemólogo da psicologia. O nosso maior objetivo aqui foi mostrar como o seu debruçar sobre a problemática filosófica da dualidade mente e corpo, sob uma ótica materialista-dialética, levou-o à busca de uma operacionalização científica do problema em termos da superação da dualidade, buscando entender a mesma como uma unidade, no sentido da síntese dialética de opostos.

Há vários motivos que nos levaram a conceder destaque ao tópico "corpo" no estudo da obra de Vigotski, e eles vão desde a negligência do tema na maioria dos escritos sobre o autor14 até a popularidade do conceito de embodiment no campo da psicologia do desenvolvimento na atualidade (por exemplo, este conceito foi o tema central do encontro internacional anual da Jean Piaget Society em 2002). Com relação ao primeiro motivo, julgamos não ser justificada a negligência do tópico pelos autores especializados dado o fato de Vigotski em vários momentos de sua obra ter a ele se dedicado, como constatamos ao longo deste trabalho. Nesses escritos, podemos encontrar, ainda que não plenamente desenvolvidas, muitas das intuições de Vigotski acerca do problema e algumas de suas propostas de superação do mesmo. é bom lembrar ainda que a questão das relações entre a fisiologia do sistema nervoso e o psiquismo (humano e animal) era um tópico de debate de destaque na URSS de Vigotski, onde a reflexologia de Pavlov e Bekhterév dominavam, senão ideologicamente, ao menos politicamente, o discurso psicológico, ou, em outras palavras, ainda que quisesse Vigotski, não se poderia furtar a abordar o tema das relações entre psique e corpo. Outro fato que nos leva a pensar como sendo um erro a negligência da consideração do corpo na perspectiva e sistema vigotskianos é a sua "continuação" nos trabalhos neuropsicológicos de Luria.

No intuito de darmos conta de nossa proposta, procuramos, baseados nos textos supramencionados de Vigotski, mostrar que o corpo, apesar de não representar um papel central em seus trabalhos teóricos e experimentais, ainda assim é alvo de considerações que marcaram profundamente suas opções metodológicas e orientações teóricas. Na verdade, nem é preciso ir muito longe para se demonstrar esse ponto, basta que nos lembremos e não deixemos que nos escape que o pensamento vigotskiano em muito se ancora no marxismo. Não é difícil de entender que, se tratando de um monista, e um monista que optou pelo materialismo, Vigotski enquanto psicólogo necessite abordar com algum detalhe a questão das relações entre psiquismo e corpo. Também não surpreende que ele tenha se valido de um pensamento dialeticamente orientado como instrumento de superação das dicotomias que tanto têm engessado o desenvolvimento da própria ciência psicológica (VAN DER VEER & VALSINER, 1999).

Entretanto, nenhuma dessas considerações preliminares esclarece sobre quais seriam, de fato, as contribuições de Vigotski ao debate entre dualistas e monistas em psicologia. Cremos e tencionamos haver mostrado que a originalidade da contribuição de Vigotski neste âmbito, que o resgata da história da psicologia e o faz ainda vivo no presente da disciplina, encontra-se nas suas colocações no que tange: a) à questão das unidades de análise em psicologia, quando propõe o estudo do psicológico enquanto síntese dialética entre o psíquico e o fisiológico; b) ao estudo dos déficits cognitivos decorrentes de lesões cerebrais/deficiências congênitas na qualidade de "experimentos naturais" que permitiriam a pesquisa dos "sistemas psicológicos" em deterioração (isto é, o outro lado da moeda desenvolvimentista); e, finalmente, c) à visão antropológica materialista-dialética, que na época de Vigotski encontrou expressão no movimento pedológico (do qual Vigotski era participante) e ainda hoje incide na produção de autores no campo da psicologia, como Bock, Gonçalves & Furtado (2001) e Newman & Holzman (2002), para citar apenas poucos exemplos.

Enfim, gostaríamos de novamente salientar como a sua perspectiva de três linhas de desenvolvimento podem conduzir a um modelo psicológico que leva em conta os fatores biológicos, mas sem sucumbir às tentações do reducionismo inatista representado à sua época pelos adeptos do recapitulacionismo e do maturacionismo (SIMÃO, 1999). A perspectiva desenvolvimentista expandida de Vigotski (WERTSCH, 1996), que considera o homem dotado de uma "dupla natureza" biológica e social, parece-nos ser um campo privilegiado para a colocação da questão das relações entre os fenômenos psíquicos e os corporais por manter sua atualidade mesmo no momento da emergência de novas perspectivas científicas para a psicologia, como a da psicologia evolucionista. Na verdade, a síntese da perspectiva evolucionista - "nossos crânios modernos abrigam uma mente da Idade da Pedra" (COSMIDES E TOOBY, 1997) - poderia também resumir a linha filogenética de desenvolvimento proposta por Vigotski. Vamos além: a psicologia de Vigotski, a partir desta afirmativa, tem por missão e objetivo responder à pergunta que dela deriva imediata e forçosamente: então por que não vivemos hoje como nossos antepassados da caverna? Defendemos que a teoria dos três níveis de desenvolvimento psicológico nos dá uma pista que vale a pena ser seguida, pois integra os aspectos biológicos, psicológicos e culturais e um todo teórico consistente, mesmo que ainda não plenamente desenvolvido e explorado.

 

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Endereço para correspondência
Nilson Guimarães Doria
E-mail: ngdoria@uol.com.br

 

Recebido em: 10/09/05
Revisado em: 15/11/05
Aprovado em: 25/01/06

 

1Quando se estuda a obra de Vigotski, é preciso diferenciar o que ele chama de método e de metodologia. Enquanto o primeiro termo é usado por ele com referência aos procedimentos experimentais específicos desenvolvidos para pesquisas de problemas também específicos, o segundo é de alcance mais amplo e, pode-se dizer, encontra-se em um patamar teórico superior ao primeiro, subordinando-o, dado que para Vigotski a metodologia pode ser entendida como aquilo que "determina o objetivo da pesquisa, o caráter e a natureza da ciência" (VIGOTSKI, 1927/1996: 283).
2Em outras ocasiões (DORIA, 2004a; 2004b), já discutimos algumas destas mesmas temáticas com mais profundidade. Utilizamos aqui parte do material anteriormente apresentado, sendo que no presente trabalho pela primeira vez privilegiamos a temática do corpo na obra de Vigotski.
3Em outros momentos, a situação transforma-se. Na época de Stalin, por exemplo, segundo Ceruti (1987), era mais fácil fazer ciência inspirada no marxismo fora da URSS, onde a ideologia stalinista já havia em muito se afastado do pensamento de Marx e mesmo do de Lênin. Henry Wallon, já citado anteriormente, é um bom exemplo de psicólogo marxista não-soviético da época de Stalin. Atualmente, entre nós, podemos encontrar autores como Bock, Gonçalves & Furtado (2001) que também procuram no marxismo e em Vigotski fundamentação teórica e metodológica para seus trabalhos.
4Van der Veer & Valsiner (1999: 319-354) apresentam uma discussão bem mais detalhada das origens e dissolução da pedologia na URSS.
5Segundo Blanck (1996: 42), Oliveira (1997: 15) e Van der Veer & Valsiner (1999: 354), a censura da obra de Vigotski estendeu-se de 1936 a 1956. Para que se tenha idéia da extensão e impacto da censura, basta que consultemos algumas obras daqueles que, sendo seus alunos e companheiros de trabalho, mesmo anos depois da morte de Stalin, raramente o citam, e que apenas muito mais tarde admitiram a influência exercida por Vigotski em suas carreiras. Exemplos claros disso podem ser encontrados em Leontiev, Luria & Smirnov (1966), em que há raras citações a Vigotski e, especialmente, em Smirnov et al. (1960), em que há apenas uma referência ao nome e à obra de Vigotski.
6Tomamos as definições de materialismo histórico e dialético do Dicionário do pensamento marxista de Tom Bottomore (2001), que no verbete "materialismo dialético" diz: "o materialismo dialético tem sido, de um modo geral, considerado como a filosofia do marxismo, distinguindo-se assim da ciência marxista, o materialismo histórico" (p. 258).
7Original em inglês: "Since Engels maintains that the essential opposition in philosophy is between nature and spirit, it would seem that booth the opposing views express a kind of dualism: so that although the materialists regard mind as genetically secondary to nature, they must also regard it as something separate and different. But Engels does not in fact take this view. He holds that the opposition between nature and spirit is not that of two different substances in a particular genetic relation: consciousness is not a thing in itself, but an attribute of material objects (human bodies) organized in a certain way, or a process which takes place on them. His standpoint is thus a monistic one, rejecting the belief in any form of being that cannot be called material" (KOLAKOWSKI, 1978: 378-379).
8 Com a expressão "projeto psicológico vigotskiano", estamos nos referindo especialmente ao conjunto de reflexões metateóricas, isto é, metodológicas (no sentido da nota 1), de Vigotski acerca da natureza da ciência psicológica. Talvez, neste caso, fosse mais acertado falar em um projeto "metapsicológico" vigotskiano, mas consideramos que esse termo poderia gerar uma confusão desnecessária, dado que, ao menos desde o artigo de Davydov e Radzikhovskii (1986), o hiato existente entre o "Vigotski metodólogo" e o "Vigotski psicólogo" é bastante conhecido e debatido nos meios especializados. Assim, o que dissermos deste ponto em diante acerca do projeto vigotskiano de psicologia se refere sobretudo ao metodólogo Vigotski, que epistemologicamente se aproximou muito mais da formulação de uma psicologia materialista dialética do que o psicólogo Vigotski de sua implantação seja na forma de programas de pesquisa ou de aplicações práticas.
9O conceito de emergentismo está aqui aplicado um tanto anacronicamente. Para uma discussão deste conceito, ver Sperry (1993) e Popper & Eccles (1977/1992). Para a adequação desta utilização anacrônica, consultar o artigo de Ceruti (1987) já mencionado anteriormente.
10Para Vigotski o termo "primitivo" engloba tanto os povos da pré-história, quanto os povos "menos evoluídos" se comparados ao homem civilizado europeu ou soviético (VYGOTSKY & LURIA, 1930/1996; WERSCHT, 1996).
11A distinção entre funções psicológicas superiores e inferiores em Vigotski pode ser melhor compreendida se nos referirmos a elas utilizando outros termos também empregados pelo autor, respectivamente funções psicológicas culturais e naturais. Para Vigotski, as funções naturais representam o repertório de funções psicológicas típicas da espécie biológica. Assim, em todos os animais há funções psicológicas naturais ou inferiores, e o repertório de funções naturais varia de espécie para espécie. Já as funções culturais ou superiores são aquelas que só podem surgir no seio de uma dada cultura, definindo-se pelo uso de signos para a auto e hetero-regulação do comportamento, típica dos seres humanos. Para maiores aprofundamentos, ver Vigotski (1930/1996c; 1998a; 1998b) e Vygotsky & Luria (1996).
12Para Vigotski, toda função psicológica aparece duas vezes na ontogênese humana: primeiro interpsicologicamente, isto é, entre os pares envolvidos no desempenho da função (como o discurso do adulto guiando a ação da criança em tarefas de memorização mediada por meios externos, pistas como figuras), e depois intrapsicologicamente, quando esta função já é parte constituinte do próprio sujeito (por exemplo, quando a criança é capaz de por si só gerar e desenvolver pistas e técnicas mnemônicas).
13Original consultado em inglês: "Having mastered the processes which determine his own nature, man who is struggling with old age and diseases, undoubtedly will rise to a higher level and transform the very biological organization of human beings. But this is the source of the greatest historical paradox of human development, that this biological transformation of the human type which is mainly achieved through science, social education and the rationalization of the entire way of life, does not represent a prerequisite but instead is a result of the liberation of man" (VYGOTSKY, 1930).
14Em duas das obras de referência mais importantes e conhecidas no Brasil sobre Vigotski, Vygotsky: uma síntese (VAN DER VEER & VALSINER, 1999) e Vygotsky: cientista revolucionário (NEWMAN & HOLZMAN, 2002), não encontramos nenhuma referência direta, nem mesmo alguma entrada nos índices onomástico e de assuntos sobre temas como corpo, fisiologia, localizacionismo etc.

Nota:

Este artigo, resultado de apresentação realizada no VI Encontro Clio-Psyché, foi gentilmente cedido pelo Programa de estudos e pesquisas em História da Psicologia - Clio-Psyché, da UERJ, para publica¸ão nos Arquivos Brasileiros de Psicologia.

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